Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0635294
Nº Convencional: JTRP00039612
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: AVAL
PENHORA
Nº do Documento: RP200610190635294
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 687 - FLS 36.
Área Temática: .
Sumário: I - O aval tem a natureza de uma garantia autónoma e pessoal, sendo que a obrigação do avalista, além de materialmente autónoma, não subsidiária, só imperfeitamente se pode considerar uma obrigação acessória relativamente ao avalizado.
II - A razão da impenhorabilidade parcial prevista no artº 824º do CPC baseia-se em razões que se prendem com o princípio da dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos de Portugal como República soberana) contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos arts. 1º, 59º-2-a) e 63º-1 e 2, da CRP.
III - O nº 4 do citado artº 824º-4 CPC contempla um expediente excepcional que assenta num juízo de equidade e razoabilidade, a implicar uma ponderação dos interesses das partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No .º Juiz Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos, o B………. S.A., instaurou, em 10.12.2004, acção executiva contra C………., Lda., D………., E………. e F……….. .

O título executivo era uma livrança, de que o exequente era legítimo portador, no valor de € 14.116,24, vencida em 22.09.2004, subscrita pela aludida firma e avalizada à subscritora pelos demais executados, a qual não foi paga na data do seu vencimento.

Foram na dita execução nomeados à penhora os seguintes bens:
a) bens móveis, máquinas, equipamento informático e demais utensílios, existentes na sede da co-Executada C………., Lda., e nas residências dos restantes co-Executados, incluindo o aqui Agravado;
b) 1/4 do imóvel, da qual a co-Executada D………. é com proprietária.

Por despacho proferido em 11 de Janeiro de 2005, o Juiz "a quo" indeferiu a penhora do bem imóvel, "atenta a nomeação à penhora de bens móveis, atento o valor da execução".

Porque foi frustrada a penhora de bens móveis aos executados, o exequente requereu que fossem realizadas pesquisas junto do Instituto de Segurança Social para averiguar a existência de quaisquer rendimentos que os Executados declarassem receber.

Em Janeiro de 2006, o Centro Nacional de Pensões informou que o executado E………. recebia uma pensão mensal de € 1.072,00.

O Banco exequente requereu, então, a penhora de 1/3 do valor mensal recebido pelo Executado, a título de pensão.

Em 24 de Janeiro de 2006, notificado da penhora de 1/3 da pensão mensal, o executado E………. requereu o "levantamento da penhora do quantia de € 346,86, isentando-o da mesma, pelo menos até que se verifique alguma melhoria da situação económica", atenta a sua débil situação económica, que descreve.

Notificada do requerimento do executado, a Agravante requereu (1) a título principal, que a pretensão do Agravado fosse indeferida, mantendo-se a penhora de 1/3 da pensão mensal; (2) subsidiariamente, que com a redução da penhora de 1/3 para 1/4 da pensão do Executado […], que equivale a € 272,00, sempre o mesmo dispõe de € 804,00, quantia superior a dois salários mínimos nacionais, por referência à quantia vigente para o ano civil de 2006 (€ 385,90 - D.L. n° 238/2005, de 30 de Dezembro)".

Por despacho proferido em 20 de Março de 2006, o Meritíssimo Juiz "a quo" decidiu o seguinte:
"Como prova do alegado, o executado, após instado para tal, juntou cópia da última declaração de rendimentos que apresentou para efeitos de IRS.
Dessa declaração resultam os seguintes factos:
- o rendimento do requerente é o único relativo ao casal composto por ele e por G……….;
- aufere a título de pensão a quantia anual líquida de 14.718,80 €,
- apresenta despesas anuais (saúde, educação, lares, seguros) no montante de 4.024,75€
Face a estes factos, temos que o rendimento mensal líquido do executado é de 1.051,34 € (que recebe 14 vezes por ano, mas que também correspondem a um acréscimo de despesa nas alturas do ano em que recebe os subsídios de férias e de Natal). As suas despesas ascendem a uma média mensal de 335,33 €. Resta-lhe o rendimento de 716,01 €, com o qual se sustenta a si e á sua mulher (da prova documental apresentada só se pode tirar esta conclusão, pois não foi apresentada qualquer prova quanto ao facto de sustentar duas filhas).
Face a estes factos, verifica-se que o casal composto pelo executado e pela mulher dispõem daquela quantia para todas as restantes despesas domésticas.
Ponderando tudo o acima exposto e tendendo ainda à natureza da dívida do executado - que resulta de uma obrigação acessória, o aval -, à circunstância de existirem outros obrigados cambiários e ao facto de o exequente ser uma instituição financeira das maiores do país, nos termos do art. 824°/4 do Cód. Proc. Civil, determino o seguinte:
- isentar de penhora a pensão do executado requerente pelo período de um ano, a contar a partir do próximo mês de Abril, inclusive (e até Março de 2007), mantendo-se penhoradas as quantias já descontadas;
- após esse período de um ano autorizo a penhora de 1/6 dessa pensão pelo período de 5 (cinco) anos.".

Inconformado com este despacho dele veio o exequente recorrer, apresentando alegações que remata com as seguintes

“CONCLUSÕES:
1. O ora Agravante é dono e legítimo portador de uma livrança, no valor de € 14.116,24, vencida em 22 de Setembro de 2004, subscrita pela C………., Lda. e avalizada à subscritora por D………., E…………, aqui Agravado, e F………. .
2. Em 10 de Dezembro de 2004, o Agravante deu entrada de requerimento executivo no douto Tribunal a quo, contra o aqui Agravado e restantes devedores, nomeando à penhora os bens móveis, existentes na sede da co-Executada C………., Lda., e nas residências dos restantes co-Executados, incluindo o aqui Agravado; e 1/4 do imóvel, da qual a co-Executada D………. é com proprietária.
3. Por despacho proferido em 11 de Janeiro de 2005, o Juiz a quo indeferiu a penhora do bem imóvel, "atenta a nomeação à penhora de bens móveis, atento o valor da execução".
4. As tentativas de penhora de bens móveis à sede e às residências de todos os Executados, incluindo o aqui Agravante foram frustradas.
5. Decorrido um ano desde a entrada em Tribunal da acção executiva, o aqui Agravante não logrou penhorar quaisquer bens dos devedores, de forma a satisfazer o seu crédito.
6. Em Janeiro de 2006, o Centro Nacional de Pensões informou que o aqui Agravado recebia uma pensão mensal de € 1.072,00, tendo sido ordenada a penhora de 1/3 do valor mensal recebido.
7. Em 24 de Janeiro de 2006, notificado da penhora de 1/3 da pensão mensal, o aqui Agravado E………. requereu o "levantamento da penhora do quantia de € 346,86, isentando-o da mesma, pelo menos até que se verifique alguma melhoria da situação económica".
8. O Agravado alegou ter despesas mensais fixas no valor de € 417,65, restando-lhe, apenas o montante de € 308,00 "para suportar os gastos normais, com a alimentação, vestuário e calçado do seu agregado familiar".
9. O Agravado não provou documentalmente qualquer dos factos invocados.
10. O Agravante requereu (I) a título principal, que a pretensão do Agravado fosse indeferida, mantendo-se a penhora de 1/3 da pensão mensal; (II) subsidiariamente, que com a redução da penhora de 1/3 para "1/4 da pensão do Executado (leia-se, Agravado), que equivale a € 272,00, sempre o mesmo dispõe de € 804,00, quantia superior a dois salários mínimos nacionais, por referência à quantia vigente para o ano civil de 2006 (€ 385,90 - D. L. n° 238/2005, de 30 de Dezembro)".
11. O Meritíssimo Juiz a quo decidiu isentar de penhora da parte penhorável do rendimento do aqui Agravante assenta na faculdade concedida pelo n° 4 do art. 824° do Cód. Proc. Civil.
12. O Agravado aufere uma pensão mensal de € 1072,00.
13. Na situação sub judice, havia sido ordenada a penhora de 1/3 da pensão recebida pelo Agravado, por respeito ao prescrito no artigo 824°, n° 1, al. b) do Cód. Proc. Civil.
14. Tal parcela penhorada correspondia à quantia de € 346,86, continuando o Agravado a receber mensalmente a quantia de € 725,14, montante superior ao salário mínimo nacional, de acordo com o disposto no art. 824°, n° 2 do Cód. Proc. Civil.
15. Na oposição à penhora, o aqui Agravado alegou despesas fixas no valor mensal de € 417,65, invocando que a pensão que recebe mensalmente é o único rendimento do seu agregado familiar.
16. Os fundamentos da decisão recorrida cingem-se à "natureza da dívida do executado - que resulta de uma obrigação acessória, o aval", à "circunstância de existirem outros obrigados cambiários" e ao "facto de o exequente ser uma instituição financeira das maiores do país".
17. No que reporta à natureza da dívida, o art. 32° da L.U.L.L. dispõe que "O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada". De acordo com o Prof. FERRER CORREIA, "além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é senão imperfeitamente uma obrigação acessória relativamente ao avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma (...)".
18. Não restam dúvidas de que a obrigação do avalista é principal, sendo o aqui Agravado devedor solidário, em conjunto com os demais avalistas, perante a obrigação assumida pela co-Executada C………., Lda.
19. Este é, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que, no seu Acórdão de 30 de Outubro de 2003, dispõe que "(.) III. O aval representa um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo - princípio da independência do aval (art°. 32°, aplicável "ex-vi" do art°. 77° ambos da LULL). (...)"
20. O argumento da existência de outros obrigados cambiários, para além do aqui Agravado, além de não ser motivo atendível na decisão de isenção de penhora, prevista no art. 824°, n° 4 do Cód. Proc. Civil, é, em si mesmo, infundado.
21. Nos termos do art. 512° do Cód. Civil, "a obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera (...)".
22. A solidariedade está, especificamente, prevista no art. 47° da L.U.L.L. que diz: "Os sacadores aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador. ".
23. Aliás, muito embora o aqui Agravante tenha accionado judicialmente todos os signatários da livrança, título executivo na acção principal, o art. 47° concede e estipula "o direito de accionar todas essas pessoas (solidariamente responsáveis), individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.".
24. Uma vez que não há qualquer hierarquia relativamente às obrigações assumidas por avalistas e aceitante, por maioria de razão, não se poderá invocar hierarquia relativamente aos bens ou direitos que venham a satisfazer o crédito exequendo.
25. Os critérios definidos pelo art. 824°, n° 4 do Cód. Proc. Civil reportam apenas à esfera do crédito exequendo - montante e natureza - e à esfera do executado e agregado familiar - suas necessidades.
26. É absolutamente ilegítimo invocar a natureza do Exequente, aqui Agravante, para negar-lhe a satisfação do seu crédito legítimo e exigível.
27. O Agravante requereu a penhora de 1/3 da pensão auferida pelo Agravado, apenas após ver frustradas todas as tentativas de penhoras de bens móveis, considerando o indeferimento da penhora de 1/4 parte do imóvel identificado no requerimento executivo.
28. O Agravante é parte legítima na acção executiva supra identificada, sendo portador do título cambiário que consubstancia a obrigação exequenda.
29. A faculdade concedida ao Juiz, prevista no n° 4 do art. 824° do Cód. Proc. Civil, é um expediente excepcional, como se deduz da letra da lei, que assenta num juízo de equidade e razoabilidade.
30. Neste seguimento, o Prof. LEBRE DE FREITAS esclarece que "Pode ainda o juiz, excepcionalmente, tendo em atenção o montante e a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado, reduzir a parte penhorável dos rendimentos por período que, no seu arbítrio, considere razoável, ou até exclui-la por período não superior a um ano (824°/4). Trata-se da introdução de critérios de equidade, em abrandamento da rigidez dos critérios matemáticos legais. ".
31. Ora, um critério de equidade implica uma ponderação equilibrada dos interesses das partes.
32. Da fundamentação supra referida parece ficar claro que há um notório desatenção à posição do aqui Agravante, com vantagens injustas e injustificadas para o Agravado.
33. As necessidades do executado e do seu agregado familiar, a ter em conta na decisão prevista no aludido art. 824°, n° 4 do Cód. Proc. Civil, terão se ser avaliadas de acordo com um padrão económico comummente aceite.
34. Diz, ainda, o Prof. LEBRE DE FREITAS que não se deve considerar, especificamente, todas as necessidades do executado, mas, sim, atender-se às necessidades relativas "a qualquer economia doméstica, o que implica o recurso a um padrão mínimo de dignidade social".
35. Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz "a quo" fez uma errónea interpretação e aplicação das normas legais, maxime o disposto nos artigos 824.°, n.° 4 do C.P.C..

Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando o despacho recorrido, substituindo-se por outro em que se ordene a penhora de 1/3 da pensão do Agravado, nos termos peticionados, farão, como sempre, inteira e sã
JUSTIÇA”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Mº Juiz a quo sustentou o despacho recorrido (fls. 41).

Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a resolver são as seguintes:
- Se a natureza da dívida do excutado—tratar-se de um aval—e o facto de existirem outros obrigados cambiários (co-avalistas), além do agravado, é motivo para a isenção da penhora;
- Se a natureza do Exequente é relevante para lhe ser negada a satisfação do seu crédito;
- Se a decisão recorrida violou o disposto no artº 824º, nº4 do CPC.

II. 2. OS FACTOS:
A matéria de facto a ter em conta é a já descrita que nos dispensamos de repetir.

III. O DIREITO:

Apreciemos, então, as questões suscitadas pelo agravante.

- Primeira questão: se a natureza da dívida do excutado—tratar-se de um aval—e o facto de existirem outros obrigados cambiários, além do agravado, é motivo para a isenção da penhora:

Quanto a esta questão, é patente a sem razão do despacho a quo.
O artº 30º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças-- diploma a que nos referiremos sempre que outro se não mencione—, aplicável ex vi do artº 77º do mesmo diploma, dispõe que o pagamento de uma livrança pode ser no todo ou em parte garantido por aval.
Por sua vez o artº 32º dispõe que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, mantendo-se a sua obrigação mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
O fim específico do aval é o de garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário. É uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado (Ac. STJ, Bol. M. Just., nº 279º, pág. 214).
Como escreve o Professor Ferrer Correia, in Letra de Câmbio”, pág. 196, “o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário”.
O aval integra, assim, uma obrigação de garantia, dada por uma pessoa a favor de outra que já é obrigada na letra ou livrança, obrigação que ela pode ser chamada a cumprir independentemente de excussão prévia dos bens da pessoa por quem se vinculou, uma vez que, por expressa disposição do art. 47º, os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas são todos "solidariamente" responsáveis para com o portador, e este tem o direito de accioná-las individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.
Sendo uma garantia pessoal, apresenta os traços da fiança, ocorrendo inclusivamente que, como o fiador, o avalista também fica sub-rogado nos direitos da pessoa que garante.
Assegurando o cumprimento de uma concreta obrigação, a obrigação do aval será assim acessória dessa obrigação principal; mas, por outro lado, não obedece à regra accessorium sequitur principale pois, como se viu, ela mantém-se, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
É, no fundo, uma garantia objectiva do próprio pagamento da letra, ou livrança, uma especifica obrigação cambiaria de garantia, com regime próprio e que só num ou noutro aspecto se assemelhará à fiança do direito comum.

Daqui logo se conclui que o agravante não pode invocar a natureza da sua dívida, ou seja, o facto de a mesma emergir dum aval para obstar à penhora. Responde perante o exequente nos mesmos termos que a avalizada… ou os demais avalistas.
É o que resulta, portanto, da natureza jurídica e da função económica do aval, já que se trata de uma garantia autónoma e pessoal, por ela respondendo todo o património do avalista e não apenas parte dele.
Exige-se a responsabilidade do avalista precisamente por se recear que o património do avalizado, por qualquer razão, não baste para o cumprimento da obrigação.
Ora o agravante—tal com os demais avalistas--, ao assumir a posição de avalista, responsabilizou-se pelo pagamento da livranças, no seu todo, e fê-lo a título pessoal.

Não se pode esquecer, ainda, que o aval há-de ser puro e simples, não sendo permitido o aval condicional, pois de contrário postergar-se-ia o principio da literalidade e o avalista não ficaria adstrito às mesmas obrigações do avalizado (ver o Ac. da R.L. de 27/06/95, publicado na C.J. T III, pág. 141).
É preciso que o portador do título possa saber com toda a segurança, por simples inspecção do mesmo, quais os direitos que lhe competem contra cada um dos respectivos signatários, sem necessidade de ter em conta quaisquer elementos exteriores (vd. Conselheiro Pereira Delgado, in "Lei Uniforme", pág. 11 e Prof. Manuel Andrade, in "Teoria Geral da Relação Jurídica lI", págs. 361 e 362).
Assim e pela responsabilidade emergente do aval respondem todos os bens do(s) avalista(s).

Ainda no que tange à natureza da obrigação do avalista, dir-se-á que, ao invés do que se refere no despacho recorrido, “além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é senão imperfeitamente uma obrigação acessória relativamente ao avalizado. Trata-sede uma obrigação materialmente autónoma” (Ferrer Correia, Letra de Câmbio, pág. 207).
Diríamos que só aparentemente é acessória a obrigação do avalista, pois, de facto e atento o supra explanado, tal obrigação é principal, respondendo o agravante para com o avalizado de forma solidária com os demais co-avalistas.
Como refere o STJ, Ac. de 30.10.2003, citado pelo agravante, “O aval representa um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo - princípio da independência do aval (art°. 32°, aplicável "ex-vi" do art°. 77° ambos da LULL). (...)".

Atento o dito supra, logo se vê que é de todo irrelevante o facto de serem vários os avalistas da livrança dada à execução, pois todos os eles respondem perante o exequente de forma solidária (ut arts. 512º do CC e 47º da LULL).
Por isso, a existência de vários avalistas não é óbice, quer a que a execução fosse dirigida apenas contra qualquer dos avalistas (co-obrigados solidários), quer a que se nomeie à penhora bens de qualquer deles, muito menos tal situação é relevante para efeito do estatuído no artº 824º, nº4 do CPC—como claramente emerge da letra do preceito, que indica os factores a que se deve atender para a eventual redução ou isenção da penhora de bens.
Como bem salienta o agravante (ccl. 24ª), uma vez que não há qualquer hierarquia relativamente às obrigações assumidas por avalistas e aceitante, por maioria de razão, não se poderá invocar hierarquia relativamente aos bens ou direitos que venham a satisfazer o crédito exequendo.

Improcede esta primeira questão.

- Segunda questão: se a natureza do Exequente é relevante para lhe ser negada a satisfação do seu crédito:

É patente também a qui a razão do agravante.
Com efeito, “o facto de o Exequente ser uma instituição financeira das maiores do país” (citando o despacho recorrido) não tem qualquer relevo ou influência na decisão de redução ou isenção da penhora a que se reporta o artº 824º, nº4 do CPC.
O facto de o exequente ser “rico ou pobre”, mais ou menos poderoso, é absolutamente irrelevante.
Com efeito, resulta claramente do aludido normativo que os critérios a ter em consideração para aferir da redução ou isenção da penhora se referem apenas e só à esfera do “crédito exequendo”—montante e natureza—e à esfera do executado e seu agregado familiar—as suas “necessidades”.

Improcede esta questão.

- Terceira questão: se a decisão recorrida violou o disposto no artº 824º, nº4 do CPC:

Entendeu o despacho recorrido que, atentos os rendimentos e encargos comprovados (por via da declaração do IRS) do executado E………. e seu agregado familiar—considerando apenas o casal, pois se refere não ter sido apresentada “qualquer prova quanto ao facto de sustentar duas filhas”--, havia razões para isentar de penhora a pensão do executado pelo período de um ano, após o qual haveria lugar à penhora de 1/6 da mesma pensão pelo período de cinco anos.
Que dizer?

Dispõe o artº 824º do CPC:
“(Bens parcialmente penhoráveis)
1 – São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 – A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
3 – Na penhora de dinheiro ou de saldo bancário de conta à ordem, é impenhorável o valor global correspondente a um salário mínimo nacional.
4 – Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excepcionalmente, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora.
5 – Pode igualmente o juiz, a requerimento do exequente e ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como o estilo de vida e as necessidades do executado e do seu agregado familiar, afastar o disposto no n.º 3 e reduzir o limite mínimo imposto no n.º 2, salvo no caso de pensão ou regalia social.”
____________________________
Redacção anterior:
1. Não podem ser penhorados:
a) Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;
2. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
3. Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o nº 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.

Requereu o exequente a penhora de 1/3 do valor mensal recebido pelo Executado, a título de pensão.
Por sua vez, o executado E………., ao ser notificado dessa penhora de 1/3 da pensão mensal que auferia, requereu o "levantamento da penhora, […], isentando-o da mesma, pelo menos até que se verifique alguma melhoria da situação económica".
Alegou ter determinadas despesas mensais fixas, que descriminou, pouco lhe restando "para suportar os gastos normais, com a alimentação, vestuário e calçado do seu agregado familiar" (fls. 57/58).
O Mmº Juiz a quo entendeu notificar o executado para “juntar aos autos, em 10 dias, cópia da última declaração que apresentou para efeitos de I.R.S.”.
E com base nela decidiu.

Diga-se, desde já, que nos parece que o Mmº Juiz deveria, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 265º do CPC, não só ter ordenado a junção da dita declaração do IRS, mas também notificar o requerente para, em prazo que entendesse razoável, carrear para os autos prova de toda a factualidade que alegara, maxime no que tange às várias despesas que cita (alegada incapacidade da mulher, educação dos filhos, água, luz, renda de casa, etc.). Então, sim, estaria o tribunal na posse segura de todos os elementos que lhe permitiriam tomar uma decisão acertada e justa.
Limitando-se à declaração do IRS, é claro que navegou o tribunal em terreno pouco consistente, sabendo, como se sabe, que as declarações ali prestadas nem sempre correspondem à verdade ou, pelo menos, nem sempre contêm toda a verdade.

Como quer que seja, da aludida declaração do IRS—referente ao casal de que faz parte o executado/requerente—resulta que o rendimento de que o casal dispõe é apenas o decorrente da pensão líquida anual, no valor de 14.718,80 €, ali constando como despesas anuais de saúde, educação, lares e seguros o valor global de € 4.024,75.
Ou seja, a fazer fé—como fez o despacho recorrido-- apenas na dita declaração de IRS, temos que o rendimento mensal disponível do casal deduzidas tais despesas se situa em € 716,01 líquidos.

O que se perguntará é se tal montante será suficiente para permitir ao casal (reformado) viver com um mínimo de dignidade.

Como é sabido, o artº 824º-4 CPC contempla um expediente excepcional que assenta num juízo de equidade e razoabilidade.
“Trata-se da introdução de critérios de equidade, em abrandamento da rigidez dos critérios matemáticos legais” (Lebre de Freitas, A Acção executiva, pág. 221).
Assim —como bem diz a agravante na sua alegação--, é claro que esse critério de equidade implica uma ponderação dos interesses das partes.
E mesmo que se deva atender apenas “às necessidades relativas a qualquer economia doméstica, o que implica o recurso a um padrão mínimo de dignidade social” (Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 220), o certo é que há que ver, em concreto, qual a efectiva situação do requerente (do casal, entenda-se) para, só depois, se poder ver se o respeito da dignidade do casal se ajusta ao deferimento da penhora requerida.
Em causa estão aqui razões económico-sociais do executado, reterando-se que a razão da impenhorabilidade parcial referida no artº 824º do CPC se baseia em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de Portugal como República soberana, nos termos do artº 1º da CRP.
Aliás, não é espúrio salientar que, como escreve Amâncio Ferreira, Processo de Execução, 3ªed., Almedina, pág. 151, até “em caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu direito, apoiado no artº 62º, nº1 da CRP, …, e o direito fundamental dos trabalhadores, pensionistas e outros beneficiários de regalias sociais e por causa de acidente em perceberem um rendimento eu lhes garanta uma sobrevivência condigna, optou o legislador, e justamente, pelo sacrifício do direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for indispensável, mesmo totalmente, neste caso para evitar que o devedor se tansforme num indigente a cargo da colectividade” (cfr. Jean Vincent e Jacques Prévault, “vois d`exécution et procédures de distribuition”, 18ª ed., 1995, pág. 73).
Em causa está, portanto, o princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos arts. 1º, 59º-2-a) e 63º-1 e 2, da CRP. Subjacentes às impenhorabilidades contidas no citado artº 824º estão valores morais, sociais e humanitários—até porque tais impenhorabilidades não podem ser alteradas por convenção das partes nem o devedor pode renunciar à protecção que a lei por esse meio lhe concede, devendo, até, ser considerados nulos os negócios jurídicos em contrário (artº 294º do CC)[1].

Ora, não cremos que o rendimento disponível do casal constituído pelo executado E………. e mulher, declarado na dita declaração de IRS seja superior ao necessário à garantia da referida “sobrevivência condigna”.
Com efeito, trata-se de um rendimento per capite inferior ao salário mínimo nacional—que é, para o ano civil de 2006, de € 385,90 (ut DL nº 238/2005, de 30 de Dezembro)--, rendimento mínimo este que parece ser, precisamente, na perspectiva do legislador, o que permitirá uma vivência com o tal mínimo de dignidade.

Por outro lado, se é certo que da dita declaração de IRS apenas constam as despesas supra referidas, muitas outras têm seguramente o executado e mulher, as quais, certamente, os forçarão a alguma ginástica ou aperto de cinto. Trata-se de despesas evidentes, que todos temos, e a que não poderemos fugir, tais como alimentação, vestuário, calçado, habitação, etc., etc. Já não considerando os naturais imprevistos, designadamente, em matéria de saúde, pois não se deve olvidar que se trata de um casal de idade avançada, daí a pensão de reforma.
Surge, assim, a já apontada colisão entre o direito do credor (exequente) a receber o seu crédito e o direito do devedor (executado)—e do seu agregado familiar-- a manter disponível um rendimento que lhe proporcione e garanta uma sobrevivência condigna.
Ora, na senda do exposto, cremos que deve prevalecer o direito do executado a manter um rendimento que lhe proporcione uma vivência compatível com a dignidade da pessoa humana. E esse rendimento não coadunará, pelo menos por ora, com o deferimento da penhora requerida. É que, reitera-se que a razão da impenhorabilidade parcial referida no artº 824º do CPC se baseia em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana. E o respeito por essa “dignidade” certamente que passará também pela manutenção do despacho recorrido.

Em suma, perante o explanado, cremos que, na ponderação do montante e natureza do crédito exequendo e das necessidades do executado (e seu cônjuge), não é censurável a decisão do Sr. Juiz a quo de, “excepcionamente”, isentar de penhora a pensão do executado pelo período ali mencionado, sendo certo que ficou logo no despacho autorizada a penhora decorrido esse prazo, embora reduzida a 1/6—o que se aceita, atentas as considerações feitas supra.

Improcede, assim, a questão suscitada.

CONCLUINDO:
- O aval tem a natureza de uma garantia autónoma e pessoal, sendo que a obrigação do avalista, além de materialmente autónoma, não subsidiária, só imperfeitamente se pode considerar uma obrigação acessória relativamente ao avalizado.
- A razão da impenhorabilidade parcial prevista no artº 824º do CPC baseia-se em razões que se prendem com o princípio da dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos de Portugal como República soberana) contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos arts. 1º, 59º-2-a) e 63º-1 e 2, da CRP.
- O nº 4 do citado artº 824º-4 CPC contempla um expediente excepcional que assenta num juízo de equidade e razoabilidade, a implicar uma ponderação dos interesses das partes.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelo agravante.

Porto, 19 de Outubro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves

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[1] Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos…, pág. 645 e Acção Executiva…, pp 290 e segs.