Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12/12.1TAAFE-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: QUEIXA CRIME
IMPUTAÇÃO DE FACTOS CRIMINOSOS
EXERCÍCIO DE DIREITO
DENÚNCIA CALUNIOSA
DIFAMAÇÃO
Nº do Documento: RP2014031212/12.1TAAFE-A.P1
Data do Acordão: 03/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Apresentada uma queixa-crime, na qual se imputam factos ou juízos desonrosos a outra pessoa, deverá a mesma ser analisada de forma a perceber se (i) ela apenas denuncia factos suscetíveis de configurar um crime, (ii) se os apresenta de forma dolosa com a consciência da sua falsidade, ou se, além da denúncia, (iii) emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado.
II - No primeiro caso, temos o puro exercício de um direito, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado pelo artigo 20°, da CRP e, por isso, apesar da imputação da prática de factos que podem constituir crime, não há impedimento ou restrição ao exercí­cio do direito pois que deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.
III - No segundo caso - em que a denúncia é feita de forma dolosa com a consciência da sua falsidade -, estamos perante a prática do crime de Denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º, do Cód. Penal. Este é o mecanismo através do qual a Lei asse­gura o respeito pelos direitos dos visados em denúncias infundadas, feitas com consciência da falsidade e com a intenção clara de instauração de procedimento
IV - No terceiro caso - em que a denúncia não se limita à narração dos factos e, numa linguagem ofensiva, emite juízos de valor vexatórios sobre o denun­ciado - a situação pode constituir um crime de Difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do Cód. Penal, na medida em que o denunciante se serve da queixa para atingir, especificamente, a honra e consideração do denunciado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 12/12.1TAAFE-A.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 12 de março de 2014, o seguinte
Acórdão

I - RELATÓRIO
1. Nos Autos de Instrução n.º 12/12.1TAAFE, do Tribunal Judicial da Comarca de Alfandega da Fé, em que são assistentes B… e C… e são arguidos D…, E…, F… e G…, foi proferido o seguinte despacho de não pronúncia [fls. 50-54, vª, dos presentes autos que integram certidão do processo principal]:
«(…) O Ministério Público encerrou a fase de inquérito, proferindo despacho de arquivamento em relação aos arguidos D…, E.., F… e G… concluindo que não se encontrava suficientemente indiciada a prática, por parte dos mesmos, de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal.
Começa por referir que o crime de denúncia caluniosa exige a consciência da falsidade da imputação e a que o agente denuncie factos conhecendo a sua falsidade, não bastando que os factos sejam falsos.
Continua argumentando que do documento que deu origem aos presentes autos (participação crime extraída do processo-crime n.º 18/11.8TAAFE) apenas se extraem considerações vagas e genéricas, sendo denominador comum a denúncia do afastamento do cónego H… dos seus sobrinhos. Mais adianta que o processo-crime n.º 18/11.8TAAFE terminou por falta de indícios e não pela conclusão da falsidade dos factos de sequestro que aí se investigaram.
Defende que nos presentes autos, mesmo admitindo a denúncia de factos falsos, sempre seria necessário que se indiciasse que os arguidos tivessem agido com a consciência da falsidade das imputações, preenchendo-se assim o elemento subjectivo do tipo.
Conclui que foi possível apurar que os arguidos denunciaram os factos na participação crime em apreço por estarem convencidos de que os mesmos haviam ocorrido, procurando, dessa forma, reunir matéria probatória que permitisse a interdição e nomeação de curador ao seu tio.
Sustenta o seu despacho, de entre o mais, na análise da participação crime assinada pelos arguidos, assim como no facto de nenhuma das testemunhas arroladas pelas assistentes terem revelado factos que permitam concluir que os arguidos agiram com o conhecimento da falsidade dos factos denunciados.
A final, o Ministério Público determina a notificação das assistentes para a dedução de acusação particular pelo crime de difamação, consignando, no entanto, no seu entender, não estarem reunidos indícios suficientes da prática do mencionado crime por parte dos arguidos.
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Notificadas do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, as assistentes deduziram acusação particular contra os arguidos acima identificados, imputando a cada um dos arguidos a prática, em autoria material, de um crime de difamação com calúnia, previsto e punido pelo artigo 183.º, n.º 1, alínea b), por referência ao artigo 180.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
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O Ministério Público volta a pronunciar-se, agora após a dedução de acusação particular, mantendo o sentido do não acompanhamento da mesma.
De entre o mais, defende que a participação efectuada pelos arguidos se deve ter por justificada nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal.
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Notificados da acusação particular deduzida pelas assistentes, os arguidos requereram a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia.
Alegam, em síntese, que não se verifica um dos elementos objectivos do crime de difamação que é a divulgação a terceiros. Isto porque, a participação crime foi apresentada ao Ministério Público, sendo alheio à vontade dos arguidos se a participação teria o destino processual de um inquérito, um processo administrativo ou uma acção de interdição. Mais alegam que inexiste prova da mencionada divulgação a terceiros, considerando o facto de as testemunhas terem referido que tiveram conhecimento da mesma pelas assistentes. Reforçam referindo que nenhuma das testemunhas indicou qualquer facto que leve à conclusão que os arguidos agiram com o conhecimento da falsidade da imputação.
Adiantam que as expressões não têm um intuito difamatório e que foram proferidas perante a justiça, no exercício legítimo de um direito.
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Os presentes autos de instrução foram declarados abertos em 01 de Março de 2013, tal como se confirma no despacho com a referência 229919.
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Procedeu-se ao debate instrutório com observância das formalidades legalmente prescritas.
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O Tribunal é competente.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que cumpra conhecer.
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A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Assim estatui o n.º 1, do artigo 286.º do Código de Processo Penal (diploma a que nos referiremos doravante, sempre que não façamos qualquer menção legal).
O juízo que agora se profere não julga do mérito da causa, cingindo-se, tão só, à verificação de factos e elementos, que se revelem suficientes para a submissão do arguido a julgamento.
O legislador, no n.º 2, do artigo 283.º, determina que os indícios da prática de um crime são suficientes “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, no Acórdão datado de 21 de Maio de 2003, onde se pode ler que “constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável (…) Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação” – pontos I e II do sumário do identificado aresto.
Em suma, a submissão a julgamento não exige a prova no sentido de uma certeza da existência do crime, bastando-se com a comprovação de indícios (suficientes) da ocorrência do crime, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido e, consequentemente, da probabilidade razoável de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – cfr. n.º 1, do artigo 308.º.
Impõe-se, nesta senda, aquilatar se, em face dos elementos probatórios constantes dos autos recolhidos em sede de inquérito e no âmbito desta instrução, se revelam indícios suficientes da prática, por parte dos arguidos, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação com calúnia.
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Sob a epigrafe, “difamação”, estatui o artigo 180.º do Código Penal que:
1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Partindo deste tipo incriminador, estatui o artigo 183º, nº 1, alínea b), também do Código Penal, que, se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: (…) b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
O preenchimento do tipo objectivo do ilícito exige a demonstração factual da imputação a outra pessoa de um facto ofensivo da honra ou consideração, ou, a formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra ou consideração de outra pessoa, ou, a reprodução daquela imputação ou deste juízo.
Ademais, e parafraseando Faria Costa (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, página 608), “utilizando uma linguagem de sabor geométrico diremos que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular”, porquanto o agente, recorrendo a uma imputação indirecta dos factos ou juízos desonrosos a outra pessoa, faz intervir uma terceira, instrumentalizando-a para alcançar a ofensa ao bom nome e reputação da vítima.
Desta forma, demanda-se igualmente que as condutas anteriormente referidas não se façam directamente ao ofendido, mas proferidas a terceiros.
O facto ofensivo traduz-se num juízo de existência ou de realidade (Faria Costa, op. cit., pág. 610), cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. O facto pode ser comunicado sob a forma de uma suspeita, ou seja, de uma proposição dubitativa sobre a verificação do facto. O facto pode também ser comunicado sob a forma de uma proposição incompleta sobre a realidade (“a meia-verdade”), omitindo-se a parte da realidade favorável ao (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, U.C., 2008, p. 496. No mesmo sentido Faria Costa, ob. cit., pág. 496).
Estaremos perante um juízo ofensivo da honra e consideração de outra pessoa, quando a sua formulação se reflicta numa valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objecto do juízo. O juízo pode ser comunicado sob a forma de uma proposição incompleta sobre a realidade (“meia-verdade”), omitindo-se a parte da realidade favorável ao visado (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, página 496.
No mesmo sentido Faria Costa, op. cit., página 610, “o juízo (…) dever ser percebido, neste contexto, não como a apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor”).
A alínea b), do artigo 183.º do Código Penal contempla a proibição da calúnia, em que o agente, sabendo da falsidade, mesmo assim, avança com a imputação dos factos.
Por seu turno, o tipo subjectivo do ilícito ficará preenchido na modalidade de dolo directo ou dolo necessário, excluindo o dolo eventual - Faria Costa, op. cit., página 643.
O tipo do ilícito da calúnia, assim desenhado, visa a tutela do bom nome e da reputação, traduzido no “direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1º a 107º”, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, página 467).
Desta feita, protege-se “a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora (...) de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência (…) deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, núcleo da capacidade que lhe pertence de honra do individuo, é a irrenunciável dignidade pessoal (…) que lhe pertence desde o nascimento e cuja inviolabilidade a Lei Fundamental reconhece (…). Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas” – o presente trecho foi citado por Faria Costa “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, página 607. O legislador optou por uma concepção eclética de honra, a qual radica na concepção normativa pessoal, temperada pela concepção fáctico-objectiva (op. cit., páginas 606 e 607).
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Alcançado enquadramento jurídico-penal do crime que é imputado aos arguidos na acusação particular, urge apreciar da indiciação ou não indiciação (suficiente) dos elementos constitutivos da conduta criminosa.
Para o efeito, o Tribunal tomou em linha de conta a toda a prova produzida em sede de inquérito, como seja, a prova documental junta aos autos, nomeadamente: a folhas 32 a 33 e 142 a 143 (auto de declarações do arguido D…); a folhas 38 a 39 e 152 a 153 (auto de declarações do arguido G…), folhas 62 e verso e 151 e verso (auto de declarações do arguido F…), 92 a 93 e 99 a 100 (auto de declarações do arguido E…), folhas 44 a 45 e 123 a 124 (auto de declarações da assistente C…), folhas 46 a 47 e 121 a 122 (auto de declarações de B…), folhas 48 a 49 e 131 a 132 (auto de inquirição de I…), folhas 133 a 134 e 50 a 51 (auto de inquirição da testemunha J…), folhas 52 a 53 e 135 a 136 (auto de inquirição da testemunha K…), folhas 54 a 55 e 137 a 138 (auto de inquirição da testemunha L…), folhas 56 a 57 e 139 a 140 (auto de inquirição da testemunha M…), folhas 141 (auto de inquirição da testemunha N…), folhas 129 a 130 (auto de inquirição da testemunha O…), folhas 114 a 120 e 162 a 171 (certidões do processo 18/11.8TAAFE) e folhas 225 a 226.
Não foi produzida prova em sede de instrução.
Cumpre, portanto, verificar da indiciação ou não indiciação suficiente dos factos descritos na acusação particular deduzida.
Da prova acima elencada resulta que a participação que deu origem ao processo 18/11.8TAAFE foi apresentada perante o Ministério Público.
Acresce que as testemunhas inquiridas referiram que apenas tomaram conhecimento da participação apresentada pelas assistentes, isto é, não tomaram conhecimento por terceiros ou pelo arguidos. Mais se dirá que os arguidos, nem terceiros verbalizaram o teor da participação em conversa com as testemunhas.
Os arguidos que prestaram declarações reforçam a intenção que tinham com a dita participação e que nada tem a ver com os factos que lhes são imputados pelas assistentes. Referem a impossibilidade de contacto e convívio com o seu tio, quando esse convívio, antes de o mesmo estar a viver com as assistentes, era regular. Referem ainda a alteração do nome da quinta do tio para o nome das assistentes.
Ora, a participação deve ser lida nesse contexto, pois que outro contexto não foi trazido aos autos.
Com efeito, a palavra dos arguidos, não obstante não esteja sujeita ao dever de verdade, não vale menos do que a palavra das assistentes. Neste caso, e após o desenrolar do processo de inquérito, nem as assistentes, nem as testemunhas contrariaram com consistência as declarações dos arguidos.
Inexistem, portanto, factos que contrariem as declarações dos mesmos e assim permitam concluir que estes sabiam que estavam a participar uma falsidade.
Aqui chegados, importa, desde já, salientar, que não se indicia que os arguidos tenham relatado os factos da participação a terceiros, nem que tivessem conhecimento da alegada falsidade dos mesmos.
A ser assim, e recuperando a linguagem com saber geométrico a que se refere Faria Costa (como acima citado), falta um elemento na relação triangular que subjaz à difamação e à calúnia: o terceiro. Falta igualmente o elemento objectivo do conhecimento da alegada falsidade dos factos.
Faltando o elemento acima mencionado, cai por terra o elemento subjectivo do tipo, não podendo afirmar-se uma intenção dolosa (directa ou necessária) da imputação de um facto que se sabe ser falso.
A dedução de acusação particular pelo crime de calúnia choca com a conformação das assistentes com o despacho de arquivamento do crime de denúncia caluniosa, considerando por todas as razões, a inexistência de prova de imputação perante terceiros.
Cremos, salvo melhor entendimento, que o Ministério Público não pode considerar-se um terceiro para efeitos das normas acima citadas, quando receptor de uma participação, isto é, quando receptor do exercício de um direito democrático de acesso à justiça. Um acesso pelos meios legais e não pelo recurso à difamação e ao boato, como resultaria se houvesse uma publicitação dos factos ou uma conversa alargada e indiscriminada sobre os mesmos com terceiros.
Como salienta a Jurisprudência do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 24 de Outubro de 2010, disponível em www.dgsi.pt, ao direito à honra contrapõe-se o direito de acesso à justiça.
No caso, e em face dos parcos elementos probatórios e valorando as declarações dos arguidos sempre se afiguraria, sem prejuízo do que acima se expôs, que os arguidos agiram no exercício de um direito, mediante uma conduta reservada e encaminhada para a autoridade competente.
A sua conduta, sempre se consideraria justificada nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal.
Posto isto, da prova produzida em sede de inquérito não lograram demonstrar-se factos que sustentem os factos descritos na acusação particular, nem o enquadramento jurídico aí avançado.
Os elementos constantes dos autos logicamente relacionados e conjugados não permitem concluir pela existência do facto da responsabilidade dos agentes, nem criam a convicção de que, em julgamento, conduzirão a uma condenação dos arguidos.
Reforçando, cria-se a convicção da certa não indiciação dos factos.
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Pelo exposto e nos termos do n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal, decide-se não pronunciar os arguidos D…, E…, F… e G…, pela prática de um crime de calúnia, previsto e punido pelos artigos 180.º e 183.º, alínea b), todos do Código Penal, determinando-se, em consequência, o arquivamento dos autos.
Sem custas.
(…)»
2. Inconformadas, as assistentes recorrem, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 27, vº a 29, vº]:
«1a A decisão recorrida é escorada na abordagem decisória que faz a 3 questões:
a) o Ministério Público não pode considerar-se um terceiro (...), quando receptor de uma participação, isto é, quando receptor do exercício de um direito democrático de acesso à justiça
b) os arguidos agiram no exercício de um direito, mediante uma conduta reservada e encaminhada para a autoridade competente. A sua conduta, sempre se consideraria justificada nos termos do artigo 31.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b) do Código Penal.
c) A dedução de acusação particular pelo crime de calúnia choca com a conformação das assistentes com o despacho de arquivamento do crime de denúncia caluniosa, considerando por todas as razões, a inexistência de prova de imputação perante terceiros.
2ª - O Ministério Público é um serviço autónomo da Administração Central do Estado que, no âmbito das suas atribuições e competências legalmente definidas, representa a pessoa colectiva pública "Estado Português". Ou seja, o Ministério Público representa uma pessoa jurídica e não é um artefacto ou um animal diverso do homem. Não tem, pois, o estatuto jurídico de coisa que impediria a trilateralidade pressuposta.
3ª Tem, pois, no quadro das suas atribuições e competências, o mesmo estatuto jurídico que qualquer outro serviço da administração pública central, não sendo relevante para o caso a sua extensa autonomia funcional. A sua natureza jurídica confere, pois, ao Ministério Público o estatuto de terceiro, nos termos e para os efeitos do preenchimento do tipo criminal "difamação".
4ª - Quer o Ministério Público, quer a douta decisão recorrida efectuaram expressa remissão para o Ac. STJ de 21/04/2010. Mesmo na apertada leitura deste acórdão (e que teve escassa sequência na jurisprudência posterior), os arguidos não podem ser beneficiários da exclusão de ilicitude em virtude do exercício do direito de denúncia, uma vez que agiram com calúnia e inverteram os termos do correcto exercício de tal direito: Transbordaram em factos que sabiam falsos e acompanharam-nos de juízos aptos a ofender a honra e consideração das recorrentes.
5ª - As ora recorrentes, quanto à matéria do crime de denúncia caluniosa, optaram por não requerer a abertura de instrução. Isto, por a tutela, que visavam e visam, poder ser alcançada por via da acusação particular que deduziram. Ou seja, se é certo que tinham algum interesse que os arguidos fossem julgados e condenados pela prática de um crime de denúncia caluniosa (porque entendiam e entendem que os factos praticados preenchem intensamente tal tipo criminal), certo é igualmente que não pretendiam abrir uma fase processual facultativa (instrução), com as inerentes perdas de tempo e dinheiro, quando, no essencial, a sua busca de tutela jurisdicional efectiva podia ser satisfeita por via da acusação particular que efectivamente deduziram, nos termos em que o fizeram.
6ª - Ora, as assistentes defendem em primeiro lugar os seus interesses particulares e, reflexamente, o interesse público. Já o Ministério Público, nos termos que decorrem do seu estatuto deve, em primeiro lugar defender o interesse público e, reflexamente, os interesses particulares.
7ª - Sempre com salvaguarda do devido respeito, o anteriormente exposto decorre da leitura mediana que qualquer jurista com experiência de vida e maturidade funcional efectua, razão pela qual não alcançam as recorrentes o propósito e relevo do trecho argumentativo sobre que agora discorreram.
8ª - Os factos imputados na sua acusação particular pelas ora recorrentes aos arguidos resultam "ipsis verbis” da participação que estes efectuaram junto do Ministério Público e que deu origem ao inquérito n.º 18/11.8TAAFE, cumprindo aqui enfatizar que os mesmos passavam por:
a) E, aproveitando-se (as ora recorrentes, identificadas no 3° parágrafo da "comunicação" que deu causa aos presentes autos) e valendo-se da diminuição das suas faculdades físicas e mentais fizeram do nosso tio um joguete apoderando-se dos seus bens pessoais e imóveis de suas contas bancárias - acções e obrigações no banco P… — Alfândega da Fé (mudando-as de titular), e não só, como consta já ser uma realidade. (5° parágrafo, 2a folha)
b) E, se uma ou outra pessoa entra na casa onde ele está — e tem que ser da confiança delas ou que lhe deva favores - é sempre na presença delas,, para não o deixarem falar ou estar à vontade com receio que revele algo que se tenha passado e que elas escondem, como possível extorsão de bens ou que ele ignore tudo quanto se passou e quanto fez, inconscientemente. (3a folha, 2° parágrafo).
c) Mas se ele tenta sair de casa, como sempre o fez, vêm logo atrás dele, puxando-lhe pelo braço e à forca e agressivamente, levam-no para casa (3a folha, 4° parágrafo).
d) Mas elas não querem que ele contacte, seja com quem for, pelos motivos acima referidos, e do medo que lhe mete e mesmo temor reverenciai, que desde há muito exteriorizam, assim como lhes ficam com a correspondência a ele dirigida não lha entregando, nem lha lendo. (3ª folha, 6° parágrafo, 1° período)
e) O nosso tio vive como um estigmatizado, inteiramente sequestrado, violentado física e psicologicamente, com a liberdade diminuída, sem contactar connosco e com o mundo exterior. (3a folha, 6° parágrafo, 1° período)
9ª - Perante as declarações dos arguidos constantes do inquérito, concluiu o Mm.° Juiz "a quo":
Os arguidos que prestaram declarações reforçam a intenção que tinham com a dita participação e que nada tem a ver com os factos que lhes são imputados pelas assistentes. Referem a impossibilidade de contacto e convívio com o seu tio, quando esse convívio, antes de o mesmo estar a viver com as assistentes, era regular. Referem ainda a alteração do nome da quinta do seu tio para o nome das assistentes.
Ora, a participação deve ser lida nesse contexto, pois que outro contexto não foi trazido aos autos.
Com efeito, a palavra dos arguidos, não obstante não esteja sujeita ao dever de verdade, não vale menos do que a palavra das assistentes. Neste caso, e apôs o desenrolar do processo de inquérito, nem as assistentes, nem as testemunhas contrariaram com consistência as declarações dos arguidos.
Inexistem, portanto, factos que contrariem as declarações dos mesmos e assim permitam concluir que estes sabiam que estavam a participar uma falsidade.
Aqui chegados importa, desde já, salientar que não se indicia que os arguidos tenham relatado os factos da participação a terceiros, nem que tivessem conhecimento da alegada falsidade dos mesmos.
10ª
Tais declarações, por seu turno:
1) Ou são reiteração pura e simples da imputação (arguido D…, fls. 33);
2) Ou não houve prestação depoimento (arguido G…, fls. 39), sendo que nos autos de inquérito n.° 18/11.8TAAFE (fls. 163), havia afirmado que o tio não era vítima de qualquer sequestro ou privação da liberdade.
3) Ou constitui um relato (arguido F…, fls. 62) que se cinge a um afastamento efetivo e progressivo do seu tio da sua família.
4) Ou constitui um relato de algo ... do seu contrário (arguido E… - fls. 76 e 77 e 100), em que, após reiterar (fls. 76 e 77), no essencial, o que havia declarado na "participação", vem afinal concluir, por sua iniciativa (fls. 100) que:
A sua única preocupação foi o esclarecimento cabal das condições em que o seu tio estava a ser tratado pelas queixosas.
Dada a dificuldade de contactar o seu tio, apenas a partir do momento em que este, em condições de total liberdade, afirmou que estava a ser bem tratado, a preocupação do depoente cessou.
11ª - Urge, pois, concluir que foram os próprios arguidos que demonstraram a falsidade das suas imputações factuais e, por decorrência, a impropriedade dos juízos que sobre tais factos, que sabiam falsos, trataram de formular.
12ª - A falsidade de tais imputações surge cabalmente confirmada pelo concordante teor dos depoimentos testemunhais de O… (fls. 130), Q… (fls. 49), J… (fls. 51), K… (fls. 53), L… (fls. 55), M… (fls. 57), N… (fls. 141), sendo de destacar que todos foram unânimes quanto à lucidez, liberdade individual e de movimentos do Rev.° Cónego H…, para além do último ser, também ele, sobrinho deste último.
13ª – E testemunhos esses igualmente concordantes com o depoimento prestado pelo Ver.º Cónego H… nos autos de inquérito n.º 18/11.8TAAFE (e nestes autos constantes a fls. 67/168), em que este aponta a sua liberdade de decisão e de movimentos, apontando antes aos arguidos a intenção de se apropriarem, por meios indevidos, do seu próprio património e radicando aí o afastamento vivencial.
14ª - Aqui chegados, urge apontar que os autos revelam à saciedade a intenção dos arguidos de ofender as ora recorrentes na sua honra e consideração, bem sabendo e conhecendo a falsidade das imputações.
15ª - Dúvidas, pois, não podem restar que os autos indiciam de modo inabalável que cada um dos arguidos cometeu um crime de difamação com calúnia na forma p.p. pelo art. 183°, 1, al. b) C.P., com referência ao tipo base p.p. pelo art. 180°,1 C.P..
16ª - Foram, pois violadas por indevida ou não aplicação as normas dos arts. 31.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b), 180.º e 183°, 1, al. b), todos do Código Penal.
Deve a decisão recorrida ser revogada, devendo, outrossim, ser os arguidos pronunciados nos precisos termos da acusação particular oportuna e tempestivamente formulada.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada JUSTIÇA.
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público, por um lado, e os arguidos, pelo outro, refutam os argumentos da motivação de recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 32-35 e 36-40].
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto acompanha a resposta, emitindo parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso [fls. 56].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, importa saber se, ao contrário do que foi decidido, os autos reúnem indícios suficientes para ser proferido despacho de pronúncia dos arguidos pela prática, em coautoria, de um crime de Difamação com calúnia, do artigo 183.º, n.º 1, alínea b), por referência ao artigo 180.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
7. Dizem as recorrentes que (i) a natureza jurídica do estatuto do Ministério Público lhe confere a qualidade de terceiro para efeitos do preenchimento do tipo criminal “difamação” [conclusão 3ª]; e que (ii) foram os próprios arguidos que demonstraram a falsidade das suas imputações factuais e, por decorrência, a impropriedade dos juízos que sobre tais factos, que sabiam falsos, trataram de formular [conclusão 11ª].
8. Não têm razão. A questão não se coloca tanto em saber se o Ministério Público, quando recebe uma queixa-crime, não funciona como um terceiro a quem se dirige a imputação de factos ou juízos desonrosos assacados a outra pessoa. Coloca-se, sim, na análise do conteúdo concreto da queixa-crime apresentada, de forma a perceber se ela denuncia factos suscetíveis de configurar um crime, se os apresenta de forma dolosa com a consciência da sua falsidade ou se, além da denúncia, emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado.
9. No primeiro caso, temos o puro exercício de um direito – o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado pelo artigo 20.º, da CRP: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. (…)”. A denúncia, que em alguns casos chega mesmo a ser obrigatória [artigos 244.º e 242.º, do Cód. Proc. Penal], passa, necessariamente, pela atribuição a outrem de um juízo desonroso na medida em que se lhe imputa a prática de factos que podem constituir crime. Mas essa condição natural da denúncia não pode constituir um impedimento ou uma restrição ao exercício do direito: desde logo porque, na colisão entre o direito à honra do denunciado e o direito à denúncia como meio de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, deve prevalecer este último; e depois porque o regular exercício do direito é causa de justificação que exclui a ilicitude. Por isso se diz que num Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.
10. No segundo caso – em que a denúncia é feita de forma dolosa com a consciência da sua falsidade –, estamos perante a prática do crime de Denúncia caluniosa, do artigo 365.º, do Cód. Penal. Este é o mecanismo através do qual a Lei assegura o respeito pelos direitos dos visados em denúncias infundadas, feitas com consciência da falsidade e com a intenção clara de instauração de procedimento. Em comentário a este artigo, o Professor Costa Andrade realça a predominância dos interesses individuais face aos valores da realização da justiça no quadro do bem jurídico protegido: “(…) no direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 519]. Note-se que foi precisamente por este tipo de crime que os presentes autos se iniciaram e se desenvolveram, até ao despacho de arquivamento – com o qual, aliás, as assistentes se conformaram.
11. Por fim, no terceiro caso – em que a denúncia não se limita à narração dos factos e, numa linguagem ofensiva, emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado – a situação pode, efetivamente, constituir um crime de Difamação, do artigo 180.º, n.º 1, do Cód. Penal, na medida em que o denunciante se serve da queixa para atingir, especificamente, a honra e consideração do denunciado.
12. Feita esta síntese, logo se percebe que a queixa apresentada pelos arguidos não contem linguagem ofensiva dirigida às denunciadas através da emissão de juízos de valor, epítetos ou impropérios vexatórios. A queixa limita-se a narrar factos. Factos que, ao contrário do que as assistentes referem, não se provou serem falsos – mas apenas que não se indiciavam suficientemente para poderem conduzir a uma acusação [artigo 277.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal – ver fls. 6]. Coisa diversa. Pelo que, logo à partida, era insuscetível de configurar o alegado crime de Difamação com calúnia, do artigo 183.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, imputado pela acusação particular.
No sentido do que vimos de decidir, veja-se o Ac. STJ de 18.12.2008 [Cons. Sebastião Póvoas], proc. 08A2680, assim sumariado: “1) Toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, objetivamente, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado, por se traduzir na imputação de factos penalmente ilícitos. 2) O acesso aos tribunais para fazer valer um direito é constitucionalmente garantido, e o direito de participar criminalmente pode, em certos casos constituir um dever cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal. Mas a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação ou é crime de denúncia caluniosa. 3) No crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados e dos acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra. Trata-se de um crime doloso, inadmitindo, sequer, o dado eventual como elemento subjetivo. 4) Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como “iter” de acesso á justiça e aos tribunais. 5) Na colisão de direitos, que são desiguais, deve prevalecer o considerado superior. 6) Com princípio, o direito de denúncia prevalece notoriamente nos casos de denúncia vinculada (ou denúncia-dever funcional) e, em geral, porque como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. 7) Para além da denúncia caluniosa, são restrições a linguagem ofensiva do texto (que não se limite à narração de factos mas lance epítetos ou emite juízos de valor sobre o denunciado) que, por si, pode ofender a honra, mas não esquecendo o princípio da necessidade do n.º 2 do artigo 154º do CPC, sendo que, no mais (dever geral de diligência), deve ser feita uma avaliação casuística na ponderação do tipo de crime, na complexidade, sofisticação, necessidade de perícia e putativos agentes, que pode servir de critério para avaliar da grosseira leviandade da denúncia. 8) O regular – ressalvando situações de abuso e de atividades perigosas – exercício do direito exclui a ilicitude (é causa de justificação) como pressuposto da responsabilidade civil.
E também o Ac. STJ de 21.4.2010 [Cons. Oliveira Mendes], proc. 1/09.3YGLSB.S2: “I - Toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objetivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, objetivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso. II - Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – art. 20.º da CRP. Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado. III -A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lícita. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. Quando alguém tem de agir numa das situações tipicizadas nessas causas de justificação não comete crime, por não ser considerada ilícita a lesão do bem ou interesse em causa, dado que o legislador, apreciando a situação de conflito, indicou um interesse como prevalente, cuja tutela quer ver salvaguardada. Só assim se pode encontrar uma solução para as hipóteses de conflito e simultaneamente dar realização a uma exigência de justiça. Há uma ideia, a ideia de proporção entre os interesses em conflito, que paira e domina sobre as normas que disciplinam as causas de justificação. O legislador entende que os interesses em conflito devem ser ponderados entre si, já que a desproporção ou as soluções por ela ditadas repugnam à própria essência do direito, que é proportio hominis ad hominem e, portanto, justiça nas relações intersubjetivas. IV -Daí que as causas de justificação expressamente previstas possam e devam estender-se, por aplicação analógica ou apelando para um princípio geral de direito. É que as normas penais não estão sob a alçada do princípio da proibição da aplicação por analogia legis ou por analogia juris, na medida em que não são normas restritivas da liberdade como as normas incriminatórias, nem são normas excecionais. Elas gravitam em torno da ideia de que, em caso de conflito de interesses, um deles deve sempre prevalecer, pois seria absurdo consentir no sacrifício de ambos. V -Trata-se evidentemente do princípio da ponderação de interesses, o qual se acha sempre subjacente a todas as situações de conflito, constituindo o fundamento último da justificação do facto. VI -Ora, como o STJ vem decidindo, o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. “Quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com a consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado. VII - No caso dos autos inexiste prova indiciária de que o arguido agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da participação que apresentou contra a assistente e das declarações que prestou no âmbito do respetivo inquérito criminal. Por outro lado, o texto da participação e o conteúdo das declarações prestadas não contêm asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados. VIII - Nesta conformidade, impõe-se concluir que, quer a denúncia apresentada quer as declarações prestadas pelo arguido, conquanto objetivamente lesivas da honra e consideração da assistente, se devem ter por justificadas nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP.”
13. Com o que improcedem os fundamentos do recurso.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Uma vez que as assistentes decaíram no recurso que interpuseram são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça [artigo 515.º, n.º 1, al. b) e 2, do Cód. Proc. Penal], cujo valor é fixado entre 3 e 6 UC [artigo 8.º, n.º 5 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais]. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC, para cada uma.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Negar provimento ao recurso interposto pelas assistentes B… e C…, mantendo a decisão recorrida.
Taxa de justiça: 3 [três] UC, a cargo de cada uma das recorrentes.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 12 de março de 2014
Artur Oliveira
José Piedade