Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0151557
Nº Convencional: JTRP00032778
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
ADVOGADO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP200111260151557
Data do Acordão: 11/26/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 7 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ART1157 ART804 N1 N2 ART805 N2 A ART806 N1 N2.
Sumário: O advogado que, tendo recebido um cheque ao portador para entregar a X o deposita na sua conta, não cumprindo pontualmente o contrato de mandato de que foi incumbido, viola de forma dolosa esse contrato e fica obrigado a indemnizar o mandante com os respectivos juros de mora, às taxas legais, desde a data do depósito na conta até à entrega do dinheiro ao destinatário do cheque.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Maria..., intentou em 3.11.1998, pelos Juízos Cíveis do Porto – actualmente 7ª Vara Cível – acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra:
João Luís....
Pedindo a condenação do réu, a:
- reconhecer o direito de propriedade da autora ao dinheiro que o réu levantou e fez coisa sua;
- a restituir à autora a quantia de 1.000.000$00 e a pagar-lhe, a título de juros de mora vencidos, 812.500$00, mais os juros vincendos até integral pagamento;
- a indemnizar a autora, em montante a liquidar em execução de sentença, dos danos que lhe causou por se ter apropriado do dinheiro dela.
Resumidamente alegou:
- a autora contratou o réu para que este, na qualidade de advogado, ajudar o genro dela a resolver o problema de um processo-crime, por emissão de cheque sem provisão, que contra ele corria, na sequência do que o réu veio a chegar a acordo com o portador do cheque para este desistir do processo-crime, mediante o pagamento de uma determinada importância;
- alegando destinar a quantia a esse fim, o réu solicitou à autora que preenchesse e lhe entregasse um cheque no valor de 1.000.000$00;
- o réu levantou essa importância e integrou-a no seu património, não a entregando ao portador do cheque participado, e recusando--se a devolvê-la à autora, apesar de sucessivamente interpelado para o efeito;
- com esse comportamento o ré prejudicou o bom nome e o crédito da autora e do seu familiar.
Na contestação o réu, resumidamente, alegou:
- a autora não o contratou, quem o contratou foi a filha dela e genro;
- o dinheiro não pertencia à autora mas àqueles seus familiares, os quais por estarem inibidos do uso de cheques, faziam todos os seus movimentos bancários através de uma conta aberta em nome da autora.
Concluiu pedindo pela improcedência da acção com a consequente absolvição do pedido.
***
A final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu o réu dos pedidos.
***
Inconformado recorreu a Autora que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1) - -Existe contradição ente os factos dados como assentes e como facto provados e a douta sentença ora recorrida.
Na verdade refere que, pelo menos, a filha e o genro da apelante contrataram o apelado, para que este agisse conforme o definido entre ele e a sociedade portadora do cheque que constituía o problema que se pretendia solucionar.
Admite assim a existência de pelo menos mais uma pessoa, a apelante e, que esta preencheu e assinou o cheque que era seu, da sua conta bancária e representava dinheiro depositado naquela conta, aberta através de um contrato celebrado com o banco.
A Douta Sentença não deu relevo à data dos factos, à época em que se realizaram, facto imprescindível para a descoberta da verdade – art. 690° do Código de Processo Civil.
2) - -A apelante é parte no contrato, é um dos elementos da relação obrigacional constituída. É um dos sujeitos da obrigação. O Tribunal “a quo” apenas conhece um dos sujeitos, o devedor (o apelado), prescinde de conhecer o outro, o credor, não pode existir um sem o outro.
Ficou provado que o apelado recebeu dinheiro para levar a cabo uma tarefa, que não cumpriu, culposamente e, que por isso, é devedor. Para o 'Tribunal “a quo”, a obrigação é coxa, tem devedor, mas não credor. Para isso estaríamos face a ilegitimidade processual, que foi pelo tribunal afastada.
Existe a prestação debitória (1.000.000$00) e o vínculo, o apelado como devedor está ligado ao poder do credor, repete-se, para nós a apelante, para o tribunal recorrido, ninguém.
Como existe uma obrigação e existe incumprimento, logo existe um responsável contratual - artigos: 397°, 398°, 405° e ss. , 790° e 1173°, todos do Código Civil e 26°, 493° n° 1.494° al. c) do Código de Processo Civil.
3) - -A apelante invocou factos constitutivos de um direito que lhe assiste e, nessa medida, fez a prova que lhe competia- - 342°, n°1, Código Civil.
O apelado alegou em sua defesa o facto de nunca ter sido contratado pela apelante, não lhe dever nada, porque o dinheiro não ser dela.
Revestem-se estas alegações de factos impeditivos e extintivos do direito da apelante, pelo que nos termos do n°2 do mesmo preceito legal, lhe cabe a prova, que manifestamente, não fez.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve, com a devida vénia, serem as presentes recebidas, ser o recurso julgado procedente e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra.
Decidindo desta forma estarão concerteza a fazer a costumada Justiça.
O réu contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado.
***
Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:
- Em 07/02/1994 o genro da autora, António..., preencheu, assinou e entregou à sociedade “Jorge...& M...., Ldª”, para pagamento de mercadorias que esta lhe forneceu, um cheque no montante de 799.896$00 - (alínea A).
- Esse cheque foi apresentado a pagamento e devolvido por falta de provisão em 08/02/1994, tendo a portadora do cheque apresentado a competente queixa-crime, por emissão de cheque sem provisão - (alínea B).
- O réu, que exerce a profissão de advogado, foi contactado, pelo menos pela filha e pelo genro da autora, para nessa qualidade ajudar a resolver esse problema - (alínea C).
- O cheque cuja cópia está junta a fls. 19 dos autos foi entregue ao réu - (alínea. D).
- Em 30/05/1994 o réu deslocou-se ao “Banco Pinto & Sotto Mayor” e levantou ele mesmo o montante de 1.000.000$00 titulado por esse cheque -(alínea E).
- O réu fez seu o dinheiro do cheque que levantou - (alínea F).
- Através das diligências que fez, o réu chegou a acordo com a sociedade portadora do cheque para haver desistência da queixa-crime (3) e para o concretizar pediu que lhe entregassem um cheque ao portador no valor de 1.000.000$00 (4) para pagar à sociedade (5).
- No dia 26/05/1994 a autora preencheu e assinou o cheque referido em D) - (6).
- Apesar disso o réu não pagou à sociedade portadora do cheque assinado pelo genro da autora (7) e em consequência a sociedade não desistiu do processo crime - (8).
- A filha e o genro da autora faziam movimentos bancários através de uma conta aberta em nome da autora que para tanto assinava cheques que entregava à filha - (14).
- O cheque referido em D) foi sacado sobre a conta referida em 14 - (15).
Fundamentação:
A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões que, afora as questões de conhecimento oficioso, balizam o respectivo âmbito - arts- 684º, nº2 e 690º, nº3, do Código de Processo Civil, consiste em:
- saber que tipo de relação jurídico-contratual envolveu o Réu, e com quem foi estabelecida;
- se a Autora tem direito a reclamar do réu a restituição da quantia de que este se tornou possuidor, através do cheque de fls. 19, no valor de 1.000 contos;
- se existe contradição ente os factos considerados assentes e o sentenciado.
Vejamos:
A Autora, fulcralmente, alegou como fundamento da sua pretensão de condenação do réu a restituir-lhe a quantia de 1.000 contos, o facto de ter contratado os serviços do réu – cfr. art. 4º da petição inicial - com vista a que este, na qualidade de profissional da Advocacia, resolvesse uma questão que opunha um genro da Autora a uma sociedade comercial, a quem aquele entregara um cheque sem provisão; facto que despoletara uma queixa-crime a que pretendia - ela Autora, a sua filha e genro - pôr cobro, mediante o pagamento devido.
Alegou, ainda, que o réu exigiu que lhe fosse entregue a quantia de 1.000 contos para entregar à sociedade queixosa, ao que a Autora anuiu, sucedendo que o réu levantou tal dinheiro, fez dele coisa sua, e não o entregou à sociedade tomadora do cheque (sem provisão).
O réu contestou, afirmando nada ter contratado com a Autora e que o dinheiro que circulava na conta desta não lhe pertencia, mas antes ao seu genro e filha.
Na sentença o réu foi absolvido, essencialmente, por se ter considerado que não se provou que a Autora tivesse estabelecido com ele um contrato de mandato, portanto não estaria ela legitimada “substancialmente” para exigir o cumprimento, e que também não se provou que o dinheiro entregue ao réu pertencesse a esta.
***
O art. 1154º do Código Civil define contrato de prestação de serviços como:
“Aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
O art. 1155º do citado diploma define ser o mandato, a par com o depósito e a empreitada, uma das modalidades do contrato de prestação de serviço.
Ora, quando alguém se dirige a um advogado para que este, no exercício do seu múnus, actue no interesse do seu cliente estabelece com ele, se houver aceitação da incumbência, um contrato de mandato, que a lei no art. 1157º do Código Civil, define como:
– “O contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.
A figura do mandato distingue-se da procuração, porquanto no mandato há um contrato, o que pressupõe a existência de pelo menos duas manifestações de vontade “contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses”- Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, I, 219.
Na procuração há um negócio jurídico unilateral, autónomo - art. 262º, nº1, do Código Civil.
No mandato os actos jurídicos praticados pelo mandatário são praticados por conta de outrem, como resulta do art. 1157º do Código Civil; na procuração são-no em nome do procurador.
O mandato pode ser exercido sem representação – art. 1180º do Código Civil – ou com representação. Neste “o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação” – cfr. Pessoa Jorge, in “Mandato Sem Representação”, 20.
No mandato sem representação o mandatário age em seu próprio nome, por não ter recebido poderes para agir por conta do mandante – cfr. Mota Pinto, in “Teoria Geral de Direito Civil”, 3ª edição –538.
Mas a questão fulcral que o recurso e a acção colocam é a de saber quem, “in casu”, agiu como mandante em relação ao réu, ou seja, saber quem confiou ao réu a realização de actos jurídicos.
No caso em apreço, o objectivo visado pela Autora não era directa e imediatamente um interesse seu, próprio, mas antes o de, passe a expressão, “livrar” o seu genro do processo-crime em que era arguido, por emissão de cheque sem provisão.
Ora à questão levantada não pode ser estranha a vontade das partes e o modo como conduziram os contactos com o réu-advogado.
Por um lado, poderia o devedor não ter interesse directo na realização do negócio de pagamento do cheque à sociedade a quem devia, mas ser seu propósito resolver a questão, através do pagamento.
Como consta da alínea C) dos factos assentes - “O réu, que exerce a profissão de advogado, foi contactado, pelo menos pela filha e pelo genro da autora, para nessa qualidade ajudar a resolver esse problema”.
O “problema” era o pôr termo à queixa-crime por emissão de cheque sem provisão, provocada pelo facto de o genro da Autora ter passado um cheque sem fundos.
Na sequência dos contactos havidos com o réu, em que intervieram “pelo menos”, a filha e o genro da Autora, como se diz na matéria de facto provada, a Autora teve papel crucial, qual seja o de ter preenchido e entregue o cheque de fls. 19, que o réu pediu que lhe entregassem ao portador, no valor de 1.000 contos.
Ora, se foi a Autora como se acha provado que, no dia 26.5.1994, preencheu e assinou o cheque exigido pelo réu, não é ousado afirmar que, ela Autora, teve também intervenção no processo de resolução do litígio, não podendo o réu ignorar tal facto, porquanto o cheque de fls. 19 - que recebeu assinado e preenchido pela Autora - foi sacado da conta pessoal desta.
A entrega do cheque fora reclamada pelo réu para o entregar à sociedade e resolver a contenda que opunha o genro da Autora àquela entidade e que a Autora pretendeu resolver à sua custa, disponibilizando o dinheiro necessário pelo que, salvo o devido respeito, não se vislumbra razão para a expressão “pelo menos” contida em C) dos factos assentes.
O verdadeiro interessado no pagamento do cheque era o genro da Autora que não apareceu nem a sacar o cheque destinado ao pagamento, nem a intervir directamente, lidando como seu credor; a Autora tomou para si o interesse do seu genro, incumbindo o réu, como claramente resulta do facto de ter emitido um cheque da sua conta pessoal, para liquidar a dívida; cheque esse que, directa ou indirectamente – tal é irrelevante –, chegou às mãos do réu com um objectivo determinado – a respectiva entrega à sociedade “Jorge...& M...., Ldª”, para pagamento da dívida e pôr termo ao processo-crime.
Mas será que uma correcta interpretação da prova nos pode levar a concluir que a Autora agiu como mandante?
Como ensina Castro Mendes, in - “Do conceito de Prova em Processo Civil”, 181/182, os factos probatórios podem ser representativos e indiciários.
Aqueles, os representativos - “são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros em virtude de uma convenção humana geral que liga justamente aqueles a estes”.
Os indiciários “são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos em virtude das leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência”.
Ante a alegação de factos, que à luz da experiência comum, permitem por si só, alcançar uma conclusão normativa, são despiciendos outros, que não constituindo o núcleo essencial da causa de pedir, por não serem representativos, não logrem prova, por não poderem colidir com as regras de experiência.
Amparamo-nos nas pertinentes e doutas palavras do Professor Antunes Varela, in RLJ, Ano 122, nº3784, pág. 216, quando escreve:
“(...) Se a verificação ou a existência do facto desconhecido interessa à titularidade de um direito o titular, onerado com a respectiva prova nos termos do art. 342º,nº 1, do Código Civil, não logra fazer prova dele, mas consegue provar o outro facto (conhecido) que, segundo a determinação da lei faz presumir a existência do facto constitutivo do direito, tanto basta para em juízo se ter por demonstrada a verificação do facto desconhecido”.
A vontade negocial pode manifestar-se de modo expresso, tácito, ou por atribuição de valor declarativo ao silêncio – arts. 217º e 218 do Código Civil.
A Autora ao sacar da sua conta pessoal, quantia entregue ao réu, com um objectivo definido e do conhecimento deste, assumiu um “comportamento concludente” como mandante, emitindo uma declaração negocial - que até pode ser considerada tácita - no sentido de conceder poderes ao réu, para actuar como seu mandatário.
Concluímos, destarte, que a Autora foi parte no contrato de mandato, celebrado com o réu.
Discute-se na decisão, a partir da resposta ao quesito 14º, - “A filha e o genro da autora faziam movimentos bancários através de uma conta aberta em nome da autora que para tanto assinava cheques que entregava à filha”, a questão da titularidade do dinheiro, parecendo concluir-se, de tal facto provado, que, pela circunstância de o genro e a filha da autora movimentarem tal conta com cheques entregues pela Autora, que não foi feita a prova de que o dinheiro, cuja restituição se pede, não pertence à demandante.
Salvo o devido respeito, não podemos assim considerar.
Tendo o cheque sido emitido sobre uma conta aberta pela autora num banco e não resultando de tal cheque, sequer, que a conta fosse conjunta ou solidária – cfr. fls. 19 - tem de, pelo menos, presumir-se que os fundos lá existentes são do titular da conta e usuário do livro de cheques entregue pelo banco, sendo irrelevante que a titular da conta, autorize outros a movimentá-las, seja por que via for.
Como ensinam Ferrer Correia e António Caeiro, in “Revista de Direito e Economia”, IV-457:
“Na base da emissão de cheque há duas relações jurídicas distintas: 1- a relação de provisão; 2 - o contrato ou convenção de cheque.
A primeira pode revestir diversas modalidades, desde que tenha por fim pôr à disposição de alguém certos fundos que se conservam na pose do Banco. Tal relação pode assim consistir num depósito, numa abertura de crédito, num desconto, etc. O contrato ou convenção de cheque é o acordo pelo qual o Banco acede a que o titular da provisão mobilize os fundos à sua disposição por meio de emissão de cheques”.
O cheque como “ordem de pagamento”- dada pelo sacador, implica que este tenha fundos na conta sacada.
A Autora, comprovadamente, tinha-os.
A propósito da problemática da propriedade do dinheiro na conta da Autora “quesitou-se”, sob o nº13:
“A filha e o genro da Autora estavam inibidos de passar cheques”?
Resposta – Não provado.
E no quesito 15º - “O cheque referido em D) foi sacado sobre a conta referida em 14) cujos fundos pertenciam à filha e genro da Autora”?
Resposta: “O cheque referido foi sacado sobre a conta referida em 14)”.
A tese da propriedade do dinheiro, alegada pelo réu, de modo algum se pode considerar provada.
Como constituía matéria de excepção era do seu “onus probandi”- art. 342º, nº2, do Código Civil.
Ademais, o que releva, é saber se o réu cumpriu ou não pontualmente, o contrato de mandato de que foi incumbido pela Autora, como antes dissemos.
Estando, como se está. no domínio da responsabilidade contratual, o réu como devedor, está desfavorecido com a presunção de culpa quanto à falta de cumprimento ou ao cumprimento defeituoso – art. 799º, nº1, do Código Civil.
“Para afastar a presunção de culpa, o devedor necessita de alegar e demonstrar a existência, no caso concreto, de circunstâncias, especiais ou excepcionais, que eliminem a censurabilidade da sua conduta”- Antunes Varela, RLJ, 119-126.
Competia ao réu, para evitar a procedência do pedido de restituição do dinheiro, fazer a prova que à Autora fenecia “legitimação”, para tal por o dinheiro nem sequer lhe pertencer.
Ora, salvo o devido respeito, tal facto nem sequer se pode considerar provado, em função das respostas aos “quesitos” 14º e 15º.
A propósito, refira-se que na sentença-crime, junta a fls. 96 a 98, que condenou o réu por crime de abuso de confiança, pelos factos aqui em apreço, na pena de 9 meses de prisão, ficou provado que foi a aqui autora quem preencheu e assinou o cheque que veio a ser entregue ao réu para boa execução do mandato que lhe foi conferido.
O réu, em 30.5.1994, descontou esse cheque a seu favor, violando assim o contrato de mandato, pois que, se o tivesse executado pontualmente, tê-lo-ia de imediato entregue à sociedade dele destinatária, como resulta das negociações que manteve, quer com a filha e genro da Autora e da intervenção desta própria, interessada no cumprimento, como antes decidimos.
Mas o réu violou de forma dolosa, grosseira, esse contrato, desrespeitando os deveres deontológicos e éticos, inerentes à sua profissão de Advogado, deixando de entregar o cheque a quem ele se destinava, não o endossando ao credor, como se deu como provado na sentença-crime, mas antes “desencaminhando-o em seu proveito”.
Todavia, mau grado o incumprimento do réu, o pedido de restituição do dinheiro, por motivo superveniente, não pode proceder.
Com efeito, posto que tardiamente, o réu, como consta provado da sentença-crime de 27.4.2000, [facto que foi aceite pela instância recorrida, como decorre da fundamentação das respostas aos quesitos], cerca de um ano antes de tal sentença, “ressarciu integralmente a “Jorge...& M...., Ldª”, da quantia que lhe era devida”.
O réu, tendo recebido a quantia de 1.000 contos, em 30.5.1994, só a entregou ao destinatário, em 27.4.1999, como tem de inferir-se da sentença-crime, [proferida após a propositura da acção], de onde se extrai, provado, o facto do pagamento que, pelas circunstâncias em que foi feito, exprime cumprimento defeituoso do mandato.
Ora, durante este tempo o réu colheu, abusivamente, frutos de uma quantia que sabia não lhe pertencer, em função do contrato que celebrara.
Daí que réu, ao ter-se apossado dos frutos da coisa, juros, – [não pode ser deixado de ser considerado possuidor de má-fé, em função da situação de mora, em que culposamente incorreu, durante o lapso de tempo em que reteve, sem justa causa, a quantia que lhe foi confiada] – e uma vez que a sua obrigação era de entrega do dinheiro, obrigação pecuniária, - [que violou] – e, por o incumprimento desta gerar a obrigação de pagamento de juros, desde a data da constituição em mora – arts. 804º, nºs 1 e 2, 805º, nº2 a) e 806º, nºs 1 e 2, do Código Civil –, terá que restituir à Autora juros de mora, sobre a quantia de 1.000.000$00, desde a data de 30.5.1994, em que abusivamente passou a dispor do dinheiro, como se de coisa sua se tratasse, até à data de 27.4.1999, em que entregou a quantia à sociedade “Jorge...& M...., Ldª”.
Esses juros de mora são devidos às taxas legais sucessivamente vigentes, desde 30.5.1994 – data em que depositou na sua conta o dinheiro que lhe foi entregue, até 27.4.1999 - data em que entregou o dinheiro à sociedade tomadora do cheque –nos termos do art. 559º do Código Civil e Portaria 339/87, de 24.4 que fixou a taxa em 15%; Portaria 1171/95, de 25.9 que a alterou para 10% e Portaria 263/99, de 12.4 que a reduziu para 7%.
Em função do entendimento sufragado na sentença, face à interpretação e subsunção dos factos ao direito e da interpretação crítica que deles se fez, não pode considerar-se haver contradição entre os fundamentos e a decisão, como entende a recorrente.
Finalmente, cumpre para afirmar que o réu agiu com manifesta má-fé, porquanto de maneira dolosa, incumpriu defeituosamente o contrato de prestação de serviços de que foi incumbido, pois que como advogado, sabia do destino a dar ao dinheiro, litigando de forma a obstruir a descoberta da verdade dos factos – art. 456º, nº2, b) do Código de Processo Civil – pelo que vai condenado na multa de 8 Ucs.
Não se determina a participação dos factos à Ordem dos Advogados, por tal já ter sido ordenado na sentença de fls. 96 a 98 do 1º Juízo Criminal do Porto, de 27.4.2000.
Decisão.
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, condenando-se, agora o Réu a pagar à Autora, juros de mora, sobre 1.000.000$00, desde 30.5.1994 até 27.4.1999, às taxas legais, sucessivamente em vigor.
Mais se condena o réu, como litigante de má-fé, na multa de 8 Ucs.
Custas, pela apelante e pelo apelado, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.
Porto, 26 de Novembro de 2001.
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale