Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0816634
Nº Convencional: JTRP00042227
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20090225
Data do Acordão: 02/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: JULGADO EXTINTO O PROCEDIMENTO CRIMINAL.
Indicações Eventuais: LIVRO 70 - FLS. 58.
Área Temática: .
Sumário: Com a entrada em vigor da nova redacção do nº 1 do art. 105º do RGIT, introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não se preenche o crime de abuso de confiança fiscal se cada uma das prestações tributárias não entregues for de valor não superior a € 7 500, ainda que o valor de todas elas exceda esse montante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 6634/07-1.
1ª Secção Criminal.
Processo nº 132/04.6IDTALSD.
I
Acordam em audiência de julgamento na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. No processo nº 132/04.6IDTALSD do Tribunal Judicial de Arouca, em que são arguidos,
B………….., casada, doméstica, filha de C…………… e de D………….., natural do Porto, nascida em 3-3-1962, residente em lugar de ……….., ……………, Arouca, e
E………….., casado, maquinista de terraplanagem, filho de F……………, natural de Angola, nascido em 25-1-1953, residente no lugar ………., …………., Arouca,
Foram os mesmos julgados e a final, decidido:
“- condeno os arguidos B………….. e E…………….. como co-autores materiais de um crime continuado de abuso de confiança fiscal p. pelo artigo 24º, n.º 1, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção que lhe foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro) e p. pelo artigo 105º, n.º 1 da Lei n.º 15/2001, de 5-6 e artigos 26º e 30º, n.º 2, ambos do Código Penal, aplicável por força do artigo 4º, n.º 1 do referido diploma avulso, respectivamente, nas penas de multa de 200 e de 150 dias, à taxa diária de 5 euros o que perfaz o quantitativo global de € 1000,00 e de € 750,00;
- Julgar procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido e condenar solidariamente os demandados no pagamento da quantia de € 13.442,11, a que acrescem os juros de mora calculados desde a data de vencimento de cada uma das prestações de IVA não entregues ao Estado, à taxa de 7% até 30-4-2003 e à taxa legal de 4% a partir de 1-5-2003 até efectivo e integral pagamento.
2. Da sentença recorrem ambos os arguidos.
Formulam as seguintes conclusões:
I - Com o devido respeito, os Arguidos, ora Recorrentes, discordam, da decisão de condenação contra si proferida.
II - Ao contrário do que decorre da sentença proferida pela meritíssima juiz “a quo”, a arguida não praticou o crime que lhe foi imputado não tendo por isso qualquer responsabilidade objectiva e/ou subjectiva na prática dos factos.
III - É certo que a arguida B…………… encontrava-se no ano de 2000, tributada em IRS- Categoria B e enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral pelo exercício da actividade de “Terraplanagem e demolições” (CAE 45110).
IV - A gerência e o exercício de tal actividade era única e exclusivamente levada a cabo pelo seu marido Alberto que contratava os trabalhos, recebia os pagamentos e emitia as facturas referentes a esses serviços conforme as declarações supra transcritas do arguido E…………., da Arguida B…………. e da testemunha G……………registados respectivamente na cassete nº 1, lado A, de 0000 a 253 do contador, de 309 a 1080 do contador, de 254 a 308 do contador, de 1081 a 1468 do contador e de 1779 a 2023 do contador.
V - A arguida B………….. apenas se colectou no Serviço de Finanças local, pelo exercício de tal actividade, por razões de ordem meramente formal.
VI -No dia a dia, a arguida limitava-se a ser a “moça de recados” do marido no sentido de lhe levar combustível quando este faltava, peças para as máquinas quando estas avariavam e por vezes levava a documentação para a contabilidade sem saber do que se tratava.
VII- A arguida não geria e orientava a empresa, não contactava com os clientes, apenas os conhecendo pelo seu nome, não fixava os preços, não emitia as facturas, era doméstica, mãe de cinco filhos a seu cargo, com idades próximas dos 19, 16,13,4 e um filho de meses.
VIII - O art. 105º do RGIT – tal como, já antes dele, o fazia o art. 24º do RJIFNA – prevê o tipo de ilícito criminal epigrafado de “Abuso de Confiança”.
IX - O Regime Geral de Infracções Tributárias (RGIT) – à semelhança do que já consignava o art. 29º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA) – prevê no seu art. 114º o tipo de ilícito contra-ordenacional cujo objecto consiste na ”Falta de entrega da prestação tributária”, como reza o seu proémio.
X - Sejam qualificados como crime ou como contra-ordenação, os factos ilícitos são os mesmos nos arts. 105º e 114º do RGIT – a não entrega “à administração tributária, total ou parcialmente, da prestação tributária deduzida nos termos da lei”, sendo havida, para este efeito, como prestação tributária “a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”.
XI - Porque o bem jurídico protegido por ambas as normas é exactamente da mesma natureza e reclama a mesma extensão e intensidade de tutela jurídica, para quem defendesse serem eles irredutivelmente incompatíveis – o que, salvo melhor opinião, não parece ser o caso – teria de resolver o conflito fazendo o art. 105º ceder perante o art. 114º por força dos princípios de última “ratio” e da necessidade que enformam o direito penal.
XII - Nos termos do art. 9º, nº 3, do Código Civil: “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, impõe-se fazer uma interpretação do nº 1 do art. 114º e do art. 105º que permita a sua compatibilização normativa respeitando a ratio essendi da alteração, por intercalamento do inciso “ou por período posterior, desde que os factos não constituam crime”, naquela primeira norma (que não constava no art. 29º do RJIFNA) e que só pode ter sido introduzido pelo legislador de forma pensada e para ter alcance prático.
XIII - O conceito de crime de abuso de confiança fiscal (criado pelo legislador, mas que, na realidade, não existe, por impossibilidade teórica e prática) não se basta com a mera não entrega à administração tributária da prestação tributária, exigindo um “plus”, que não é, (porque impossível) a apropriação pelo agente do objecto da prestação, mas que será seguramente o propósito de não a entregar, exteriorizada, v.g. pela colocação intencional do agente em posição de se furtar, com êxito, ao cumprimento do dever de prestar.
XIV - Isto é, só haverá crime de abuso de confiança fiscal se o agente se apropriar da prestação tributária e se recusar a entregá-la ao Estado sem que o Estado possa (v.g. por inexistência de bens penhoráveis) coagi-lo ao cumprimento da prestação.
XV - Caso o agente venha a entregar a prestação à administração tributária por iniciativa própria ou em resultado do accionamento dos meios legais, coercitivos ou não – v.g. o processo de execução fiscal, com penhora e venda de bens e a compensação de créditos (cfr. art. 88º do CPPT) – não haverá crime, mas mera contra-ordenação.
XVI - No caso vertente, os arguidos, só não entregaram ao Estado as prestações tributárias liquidadas por graves dificuldades financeiras de que se faz eco a motivação da decisão do tribunal “a quo”.
XVII - Os arguidos, não dispunham de meios financeiros para, naquele contexto, entregar as prestações tributárias ao Estado tendo agido sem dolo e mesmo no contexto de estado de necessidade ou de inexigibilidade de outro comportamento, não tendo, assim, praticado o crime que lhe vem imputado.
XVIII - Um dos princípios estruturantes do estado de direito (que a Constituição diz Portugal ser) é o princípio da justiça de que o princípio da igualdade é um seu corolário.
XIX - No caso em apreço – e no que concerne especificamente à criação no ordenamento jurídico-penal-fiscal português da figura do crime de abuso de confiança – e o mesmo se diga, quanto à aplicação das penas nele previstas – inexiste esse pressuposto essencial da intervenção criminalizadora, que é a sua legitimidade ou validade ética, seja enquanto validade sociológica, seja enquanto validade ética, “stricto sensu”.
XX - Quanto à validade sociológica, é sabido que, por razões históricas, idiossincráticas e de deficiente preparação para a cidadania, o não pagamento de impostos não conseguiu impor-se e radicar-se na consciência colectiva dos portugueses como um comportamento eticamente censurável.
XXI - Para essa não adquirida consciência colectiva do desvalor ético-jurídico da fuga ao imposto – que não é o caso dos arguidos, pois trata-se apenas de atraso involuntário no pagamento – tem concorrido, a muitos títulos, o próprio Estado, quer quando cria e aplica impostos desmesurados, quer pela injustiça na distribuição da carga fiscal que, na obra citada, Medina Carreira denuncia e demonstra com recorrentes acusações de iniquidade e desequilíbrio dirigidas ao sistema fiscal e à sua incidência desigual e arbitrária sobre os contribuintes.
XXII - O imposto tem uma função meramente instrumental, mas tem sistematicamente – tal como as normas fiscais – sido sujeito a sucessivas manipulações oportunísticas pelas forças políticas, sociais e económicas que se apoderaram do Estado e dele se servem para a prossecução dos seus interesses, sempre em nome do povo, mas contra o povo.
XXIII - A percepção das iniquidades do sistema fiscal e das chocantes discriminações na sua aplicação e no tratamento dos contribuintes, por um lado, e a tomada de consciência da delapidação (eufemisticamente chamada de desperdício) dos recurso financeiros do Estado obtidos essencialmente dos impostos são um contra-estímulo poderoso ao cumprimento das obrigações fiscais e à emergência de uma consciência ético-jurídica da colectividade.
XXIV - Contra-estímulo que tem sido periodicamente reforçado pelas medidas de benevolência fiscal adoptadas para os contribuintes relapsos – de que são exemplo, nos anos mais recentes, o Dec-Lei nº 225/94, 5.09, secundado pelo Dec-Lei nº 124/96, de 10.08, e completado pela Lei nº 51-A/96, de 9.12, seguido do Dec-Lei nº 248-A/2002, 14.11, diplomas que ficaram conhecidos pelo nome dos ministros das finanças ao tempo, “Lei Catroga”, “Lei Mateus” e “Lei Manuela Ferreira Leite”.
XXV - Sendo axiomático que o direito penal tem uma função meramente subsidiária na tutela dos bens jurídicos, ou seja, só é legítima a sua intervenção tutelar onde e sempre que outras medidas menos gravosas ou lesivas dos direitos fundamentais se mostrem claramente inidóneas a assegurar a subsistência e reintegração dos bens jurídicos, no caso vertente a intervenção criminalizadora do legislador carece de toda a legitimidade.
XXVI – Ressaltando essa falta de legitimidade, desde logo, da desnecessidade da pena.
XXVII - E isto porque o Estado dispõe de uma panóplia de meios e instrumentos – e outros pode criar – que permitem salvaguardar os seus créditos tributários, mesmo nas hipóteses previstas no art. 105º do RGIT, sem lesão do direito constitucionalmente consagrado – cfr. art. 27º, nº 1 – à liberdade nem necessidade de criar penas criminais.
XXVIII - O crime de abuso de confiança só surge no ordenamento jurídico-criminal-fiscal português, não porque os interesses da Fazenda Pública que visa tutelar estejam tocados pela propalada, mas inexistente, ressonância ética que fundamenta o direito penal de justiça em geral, mas apenas como meio de suprir a incapacidade atávica da administração fiscal em zelar, administrar e defender os interesses que lhe estão cometidos.
XXIX - Não é necessário, pois, que o Estado se arme com a desproporcionada arma do crime contra as empresas e os seus gerentes, especialmente no caso como o dos arguidos, em que a falta de entrega de imposto se deveu a dificuldades financeiras insuperáveis.
XXX - Com a criação do crime de abuso de confiança fiscal o Estado violou os princípios da dignidade da pessoa humana, de que o direito à liberdade, plasmado no art. 27º, nº 1, da CRP, é um corolário, e da proporcionalidade, consagrados nos arts 1º e 18º, nº 2, da CRP, para a sua Administração Tributária poder continuar a demitir-se das suas responsabilidades de criar um sistema fiscal e aplicar as suas normas baseadas na equidade e na eficiência, na igualdade dos cidadãos perante a lei.
XXXI - Face ao exposto, deveriam os arguidos terem sido absolvidos, pelo que o tribunal “a quo” ao condená-los pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, não decidiu com justiça, mas apenas em obediência a uma lei iníqua.
XXXII - As normas dos arts. 76º, nº 3 e 77º, nº 1, do Código de Processo Penal estão pré-ordenadas aos casos típicos, em especial os que se conexionam com os crimes previstos no Código Penal.
XXXIII - Por outro lado, nos termos do art. 43º, nº 1, do RGIT: “Recebido o auto de inquérito e respectivo parecer, o Ministério Público procede nos termos dos artigos 277º a 283º do Código de Processo Penal …”, nos quais não há qualquer referência ao pedido de indemnização civil.
XXXIV - O que, de resto, bem se compreende, uma vez que, estando em causa receitas tributárias do Estado, o ordenamento jurídico já prevê os procedimentos legais pertinentes à sua liquidação e cobrança e a definição das autoridades competentes para o efeito e dos prazos respectivos, assim como dos responsáveis principais e subsidiários pelas dívidas.
XXXV - O processo-crime não é o competente para a cobrança do imposto nele referido, mas, sim, o procedimento previsto nos códigos fiscais respectivos e no Código do Procedimento e Processo Tributário e, na fase da cobrança coerciva, o processo de execução fiscal, regulado neste último diploma. – Cfr. art. 148º e seguintes do CPPT
XXXVI - Com a elaboração e publicação do D.L. 20-A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), consagrou-se a concepção e doutrina autonomista do direito penal fiscal que, justamente, parte da ideia de que a infracção fiscal assume uma natureza muito própria em que a característica da arrecadação de receita é um elemento essencial e modelador da própria definição dos tipos de crime.
XXXVII - O quadro normativo fiscal é formalmente autónomo do direito penal obedecendo a regras de competência e de processo específicas e próprias deste ramo de direito.
XXXVIII - Coexiste, assim, com a lei penal comum, substantiva e adjectiva, mas em termos formalmente autónomos, a lei penal fiscal que visa tipificar e punir as condutas ilícitas dos contribuintes.
XXXIX - Entre o direito penal comum e o direito penal fiscal existe uma relação de especialidade, no sentido em que o direito fiscal sancionatório afasta a aplicabilidade das normas relevantes dos códigos penal e processual penal, os quais são chamados a desempenhar uma função meramente supletiva e integradora.
XL - É que a valoração ética dos tipos de crimes comuns é diferente e diversa da que foi considerada elegível para efeitos de elevação a crime de certos comportamentos do contribuinte violadores das regras essenciais da relação jurídico-tributária relevante.
XLI - Sendo o direito penal fiscal, substantivo e adjectivo, um direito penal especial, que rege de forma total e fechada a tutela dos interesses tributários – e não se prevendo neste a possibilidade de formulação, pelo Ministério Público, em representação do Estado, do pedido de indemnização civil – não pode, como fez o tribunal “a quo”, lançar-se mão do regime prescrito no direito processual penal, como se de um caso omisso se tratasse.
XLII - Acresce, ainda que, na sequência de uma consulta da Direcção de Finanças de Braga, sobre a melhor maneira de acautelar as liquidações de impostos que eventualmente sejam de efectuar, sem prejuízo do processo penal tributário, a Direcção-Geral dos Impostos, através de circular de Dezembro de 2002, decidiu que: “o processo penal não é o meio idóneo em sede de pedido de indemnização civil para exigir do arguido quaisquer contribuições e impostos já que existe um meio próprio de obter a sua cobrança voluntária ou coerciva ao devedor. Tudo isto porque o processo penal não é o meio próprio, não só para o sujeito passivo atacar a legalidade de tal dívida, mas também para conhecer da sua exigibilidade ao contribuinte. Por fim, e por não serem os tribunais comuns os tribunais próprios para conhecer da impugnação da liquidação dos tributos ou oposição à execução como resulta dos artº 1º, 2º e 62º do E.T.A.F., sempre seria inviável proceder a qualquer liquidação de imposto no processo penal tributário, já que retiraria aos sujeitos passivos ou contribuintes meios próprios de reagir contra tais liquidações.”
XLIII - Ao não se entender assim – ou seja, que o Estado dispõe para este efeito (das infracções tributárias) de outro mecanismo legal, que é o da instauração do processo executivo subordinado à regra do privilégio de execução prévia – temos a Administração Fiscal a ficar duplamente garantida podendo, cumulativamente, ora lançar mão da liquidação dos tributos e da subsequente execução fiscal para a sua cobrança coerciva, ora quedar-se impávida e serena na sua tradicional letargia, beneficiando, como prémio, da possibilidade de, mais tarde, lançar mão do pedido de indemnização civil no processo penal fiscal.
XLIV - O que, in maxime, poderia até conduzir a uma dupla cobrança da dívida fiscal.
XLV - Daí que, para além da sobreposição dos meios de cobrança coerciva das dívidas fiscais, ora pela Administração Fiscal, através dos seus próprios mecanismos e processos, ora pelo Ministério Público, através da execução da sentença (se não houver pagamento voluntário da dívida – o que nunca acontece dado os elevados montantes que sempre estão em causa), operar-se-á no processo administrativo fiscal, um atentado chocante às garantias de defesa dos contribuintes, prosseguido pelo próprio processo penal, se interpretado de acordo com o entendimento do tribunal “a quo”.
XLVI - Ora, face ao sistema jurídico fiscal, tal entendimento não é de sufragar, pois o direito penal fiscal, como direito especial que é relativamente ao direito penal e processual penal comum, não se compadece com tal posição.
XLVII - Nos termos do art. 45º da L.G.T., a Administração Fiscal tem o prazo de quatro anos para proceder à liquidação dos tributos, sob pena de caducidade.
XLVIII - Nos termos do art. 129º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
XLIX - Será, pois, através da lei civil que se devem determinar os pressupostos da indemnização e bem assim toda e qualquer questão atinente que envolva os princípios gerais das obrigações.
L - Para abreviarmos razões, diga-se que a condenação no pedido cível - que foi deduzido apenas sobre a dívida fiscal - está formal e substancialmente incorrecta, pois, apesar de os “danos” derivarem da prática de um crime e de intervirem no processo vários responsáveis, o pedido revela-se infundado, não podendo ser reconhecida a responsabilidade dos arguidos e, como se vai ver, nem o arguido pode ser declarado devedor solidário.
LI - Desde logo porque, por via de lei especial - a Lei Geral Tributária; Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro - a responsabilidade dos membros dos órgãos sociais é meramente subsidiária e estes dispõem ali de mecanismos processuais e de defesa que quer a lei penal quer a lei civil não contemplam.
LII - Pelo exposto, dir-se-á que a douta sentença recorrida violou ostensivamente o disposto nos artigos 105, nº 1 do RGIT, 20º a 24º da LGT, o artigo 1º e 18º, nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa (respectivamente, princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Proporcionalidade), o art. 35 do CP e, bem assim, as regras que regulam a liquidação e cobrança dos impostos, mormente as estatuídas nos artigos 148º e seguintes do Código do Procedimento e Processo Tributário
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso Interposto pelos recorrentes revogando-se a douta sentença proferida em 1 ª Instância, no sentido de se absolverem os arguidos do crime de abuso de confiança fiscal pelo qual foram condenados, bem como, do pedido de indemnização civil arbitrado, com o que se fará inteira e sã JUSTIÇA.
3. Respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese que:
3.1. A arguida praticou o crime em causa.
3.2. A pena aplicada aos arguidos é a adequada atendendo à culpa destes e às exigências de prevenção geral e especial.
3.3. A sentença não violou as disposições legais mencionadas pelos recorrentes.
3.4. Deve ser julgado improcedente o recurso.
4. Pelos fundamentos do despacho de fls. 287 a 289, proferido a 12.12.2007, foi determinado já nesta instância de recurso, a devolução dos autos ao tribunal recorrido, a fim de se proceder à notificação a que alude a al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro e, decorrido o prazo de 30 dias ali cominado, se verificasse sobre a existência da referida condição objectiva de punibilidade.
5. Cumprida esta formalidade na 1ª instância e não tendo sido regularizada a dívida à Fazenda Pública pelos recorrentes, conforme resulta de fls. 302 a 313, foram os autos remetidos de novo a este Tribunal da Relação para prosseguirem seus termos.
6. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
7. Foram colhidos os vistos e teve lugar a audiência de julgamento..
II
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:

“1.º A arguida B…………., sujeita passiva tem o NIF: ……….810, com domicílio fiscal no Lugar de ………….., em Várzea, pertencente à área do Serviço de Finanças de Arouca, encontrava-se no ano de 2000, tributada em IRS – Categoria B e enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral pelo exercício da actividade de “Terraplanagem e demolições” (CAE 45110);
2.º A actividade supra referida, era essencialmente gerida e orientada, no dia-a-dia, pelo marido da arguida B…………., o arguido E……………., com conhecimento e concordância da arguida B……………, embora não pormenorizado, a qual sabia que as quantias a seguir referidas e recebidas a título de IVA não estavam a ser entregues ao Estado;
3.º Ao longo do ano de 2000 os arguidos, desenvolveram a actividade de “Terraplanagem e demolições”, comercializando e vendendo os seus serviços, emitindo as competentes facturas, recebendo dos adquirentes os preços correspondentes, liquidando e recebendo também desses mesmos clientes o IVA incidente sobre tais operações;
4.º Pela actividade desenvolvida pelos arguidos era devido o pagamento de IVA, estando os arguidos sujeitos à obrigação de enviar a declaração periódica do imposto e os correspondentes meios de pagamento ao Serviço de Administração do I.V.A. até ao dia 20 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as operações, de acordo com a redacção dada à al. a), do n.º 1, do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, pelo n.º 2, do art.º 34º, da Lei n.º 10-B de 23\03;
5.º Efectuada uma inspecção à actividade da empresária em nome individual, a arguida B…………., apurou-se o seguinte a título de IVA já recebido e não entregue nos Cofres do Estado:
Primeiro trimestre de 2000
Não obstante terem procedido à entrega da declaração periódica a que se referem os artigos 28.º, n.º 1, alínea c) e artigo 40.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código do IVA, nela tendo apurado, nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, do citado Código, imposto a entregar a favor do Estado no montante de 5.654,56€ (IVA liquidado – IVA dedutível), não procederam à entrega nos cofres do Estado desse IVA. Nesta declaração periódica, o sujeito passivo mencionou IVA liquidado no montante de 9.655,58€.
6.º Através de circularização efectuada junto dos seus clientes conhecidos, foi possível provar o recebimento de cerca de 90% do valor antes referido, respeitante às facturas que se indicam no quadro seguinte:





Segundo trimestre de 2000
Na declaração periódica a que se referem os artigos 28.º, n.º 1, alínea c) e artigo 40.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código do IVA, entregue, não inscreveu qualquer valor de IVA liquidado. No entanto, no decurso da acção de inspecção, foram recolhidos elementos junto de clientes seus, os quais demonstram que também nesse período em causa, o sujeito passivo prestou serviços, liquidou IVA que recebeu, no montante de 2.069,01€ que não entregou nos cofres do Estado, nem o mencionou na declaração periódica que entregou;
7.º O referido IVA foi mencionado nas facturas que se indicam no quadro seguinte:





8.º Em relação ao terceiro e quarto trimestres de 2000 o sujeito passivo não procedeu à entrega das declarações periódicas de IVA a que estava obrigado;
9.º No entanto, no decurso da acção de inspecção, foram recolhidos elementos junto de clientes seus, os quais demonstram que, ainda no 3º trimestre de 2000, o sujeito passivo prestou serviços, liquidou IVA que recebeu, no montante de 2.378,10€ que não entregou nos cofres do Estado;
10.º O referido IVA foi mencionado nas facturas que se indicam no quadro seguinte:





11.º Assim, receberam e não entregaram nos cofres do Estado, o IVA liquidado no montante total de 10.101,67€, sendo:
- 5.654,56€ relativos ao 1º trimestre;
- 2.069,01€ relativos ao 2º trimestre; e
- 2.378,10€ relativos ao 3º trimestre,
12.º Embora tenham cessado a sua actividade com data de 2000/12/30, não procederam também à entrega das declarações periódicas de IVA relativas ao 3º e 4º trimestres do ano de 2000.
13.º Na declaração periódica respeitante ao 2º trimestre do ano de 2000, por si entregue, não mencionaram a existência de quaisquer serviços prestados, nem a existência de IVA liquidado, quando, como acima é referido, emitiram nesse período diversas facturas nas quais liquidaram IVA.
14.º Assim e para além dos montantes supra referidos, (10.101,67), os arguidos receberam e não entregaram IVA referente aos 2º, 3º e 4º trimestres de 2000, IVA este calculado nos termos do artigo 82º do Código do IVA, com recurso a métodos indirectos pela Direcção Geral de Finanças de Aveiro, no montante total de 3.340,44€;
15.º Tal montante de IVA em falta foi estimado e determinado com recurso a métodos indirectos nos 2º, 3º e 4º trimestres de 2000 da seguinte forma:
- base tributável estimada = 30.519,37€ + 15.289,69€ = 45.809,06€
- base tributável constante das facturas cujo valor é conhecido = 12.170,66€ + 13.988,78€ = 26.159,44€
- base tributável em falta = 45.809,06€ - 26.159,44€ = 19.649,62€
- taxa de IVA = 17%
- IVA em falta = 19.649,62€ x 17% = 3.340,44€
16.º Para efeitos de determinação dos juros compensatórios, considera-se que a base tributável e o IVA em falta se repartem por períodos de forma uniforme, conforme se descreve no quadro seguinte:





17.º Em resultado da conduta omissiva, os arguidos ocultaram factos ou valores que estavam obrigados a revelar à Administração Fiscal, unicamente com o intuito de não pagarem os impostos devidos ao Estado, no montante total de 13.442,11€, referente a IVA, conforme se demonstra no quadro seguinte:





18.º Assim, os arguidos nos seus interesses emitiram facturas para clientes, liquidaram o IVA a que tais transacções se encontravam sujeitas e, receberam o valor de imposto constante de cada uma das facturas no papel de «fiel depositário” e não o entregaram nos Cofres Públicos;
19.º Em contrapartida, as empresas clientes puderam arrecadar através do direito à dedução do imposto, estabelecido nos artºs 19.º e 20.º do Código do IVA, o imposto que os arguidos não entregaram ao Estado.
20.º Os arguidos apropriaram-se para si ilicitamente dos referidos valores que estavam, como bem sabiam, obrigados a entregar ao credor tributário (Estado);
21.º As quantias referidas foram utilizadas pelos arguidos para pagamentos vários da sua actividade e da sua vida privada, passando a integrar a sua esfera patrimonial;
22.º Com o comportamento descrito os arguidos agiram de comum acordo, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de se apoderarem para si dos referidos valores, como efectivamente se apropriaram, em detrimento da Fazenda Nacional, bem sabendo que lhes não pertencia e que assim violavam a lei.
21.º Os arguidos são casados entre si, têm 5 filhos, vivem em casa que está registada a favor de uma das filhas;
22º A arguida é doméstica, o arguido é maquinista de terraplanagem e aufere o salário mínimo; têm como habilitações literárias a 4ª classe;
23.º Não têm antecedentes criminais”.
III
Questões a apreciar:
1ª. A prática, pela arguida recorrente, do crime em que foi condenada.
2ª. A inexistência do crime de abuso de confiança fiscal.
3ª. A não exigência ou ilegalidade do pedido de indemnização civil contra os arguidos, neste processo-crime.
4ª. Questão emergente da nova redacção do artigo 105º, nº 1, do RGIT, dada pelo artigo 113º, da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro – Lei do OGE para 2009.
IV
Questão prévia:
Após o despacho supra mencionado, proferido em 7.3.2007, alguma jurisprudência foi produzida sobre a questão em causa, quanto à introdução da nova redacção do nº 4, do citado artigo 105º do RGIT.
Da nossa parte, foi mantida a posição assumida no referido despacho[1].
Entretanto, em 9 de Abril de 2008, o plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça proferiu, por unanimidade, no processo n.º 07P4080, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jstj, acórdão uniformizador de Jurisprudência no seguinte sentido:
«A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor; em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)».
Pelo que entendemos ser de manter a posição até agora perfilhada sobre esta questão.
Mantendo nós a posição de que o teor do art.º 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007 e alterou a redacção do n.º 4, do art.º 105.º, do RGIT, não descriminalizou/despenalizou a conduta dos arguidos, como jurisprudência agora fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, eis a razão por que os autos prosseguiram para apreciação dos recursos.
V
Apreciando:
1ª Questão
1. A recorrente discorda da sua condenação, dizendo que quem detinha a direcção efectiva do negócio era o arguido marido, limitando-se a mesma a servir de “moça de recados” do marido no sentido de lhe levar combustível quando este faltava, peças para as máquinas quando estas avariavam e por vezes levava a documentação para a contabilidade sem saber do que se tratava”[2].
Não parece ser exactamente assim, com esta simplicidade que a recorrente lhe pretende dar.
Apesar de, no fundo, a arguida não fazer uma correcta impugnação da matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, nos termos legalmente impostos - artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal -, procedendo essencialmente a uma diferente valoração da prova produzida em julgamento daquela que fez o tribunal recorrido, uma vez que existe documentação/transcrição dos depoimentos, que os recorrentes mencionam e transcrevem nas suas alegações as provas/depoimentos dos quais tiram conclusões opostas ao tribunal recorrido, este Tribunal apreciará a questão.
Aproveita-se, no entanto, desde já, para anotar que na sua transcrição, os recorrentes omitem passos relevantes e determinantes para suporte do conhecimento e prática de actos pela arguida mulher, que mais adiante se afirmará e que, com certeza, foram decisivos para a motivação do tribunal a quo.

2. Fixemo-nos, pois, no exacto teor da motivação do tribunal a quo.
Motivou a sentença recorrida os factos provados no que à recorrente mulher respeita, nos seguintes termos:
“A convicção do tribunal ao fixar a factualidade tida por provada no que concerne aos factos integradores dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado aos arguidos, baseou-se nas declarações prestadas em audiência pelos próprios que admitiram parcialmente a prática dos factos, referindo que não foram entregues as quantias devidas a título de IVA porque foram canalizadas para pagamento diversos, devido às dificuldades económicas que atravessavam.
Das declarações dos arguidos foi perceptível que a actividade empresarial apesar de estar registada em nome da arguida, era exercida preferencialmente pelo arguido.
Contudo, de tais declarações também resultou a convicção de que apesar do menor envolvimento da arguida, a mesma sabia que a actividade comercial estava registada em seu nome, sabia das dificuldades financeiras e que não estava a ser pago o imposto ao Estado, facto referido por ambos os arguidos, chegando mesmo a arguida a entregar os documentos da empresa ao contabilista, sabendo, ainda, que a empresa tinha sido encerrada porque estava a causar prejuízo.[3]

Conjugadas com as declarações dos arguidos foram valoradas as declarações das testemunhas de acusação, inspectores tributários que examinaram a escrita dos arguidos, depondo com isenção e revelando Ter conhecimento dos factos.
Conjugados com os depoimentos referidos o tribunal baseou-se ainda nos documentos de fls. 25 a 48, 75-84”.

A fundamentação que supra se sublinhou reproduz, no essencial e de acordo com a prova produzida no processo, o envolvimento e consequente responsabilidade criminal da arguida mulher.
Repare-se que o objecto ou actividade em causa era a de “Terraplanagens e Demolições”.
Pelo que, embora a actividade se encontrasse registada/colectada em nome da arguida mulher, era o arguido marido que, na prática, executava os trabalhos com as máquinas.
Pelo que, no exercício desta actividade propriamente dita, as funções da arguida eram secundárias ou subsidiárias das do marido[4].
No entanto, a apreciação que está em causa nos autos, tem natureza diferente e depende do conhecimento e prática de outros factos: o recebimento do valor do IVA correspondente aos trabalhos ou serviços prestados e a sua não entrega ao Estado.
E no que respeita a esta matéria, a arguida mulher não só tinha conhecimento do recebimento do IVA pela actividade desenvolvida em seu nome pessoal, como tinha igualmente conhecimento da sua não entrega à Fazenda Pública e dos motivos, como ainda praticava actos pessoais relacionados com a entrega da declaração periódica nos Serviços de Administração do I.V.A.. E a não entrega efectiva do IVA não era um acto da responsabilidade apenas do arguido marido mas sim uma decisão de ambos, partilhada e assumida.
Estas afirmações e conclusões têm suporte nas próprias declarações dos arguidos, que para uma melhor documentação aqui se reproduzem parcialmente[5]:
Arguido E…………….
Juiz[6]: Ela também ajudava…?
Arguido: Sim, sim. E outras vezes era gasóleo e… quando havia avarias ajudava-me também, não é?
Juiz[7]: A sua esposa tinha conhecimento das pessoas que o contratavam?
Arguido: Sim, alguns tinha…
Juiz: Sabia?
Arguido: Sim, sim.
Juiz: Sabia as obras que o senhor fazia?
Arguido: Sim, sim.
Juiz: Tinha conhecimento disso?
Arguido: Sim, sim.
Juiz[8]: …o senhor é que estava totalmente dentro do assunto mas ela sabia do que se passava?
Arguido: Sim, sim.
Juiz: …ela também sabia que a empresa estava em nome dela?
Arguido: Claro, pois então…
…a empresa estava no nome dela.
Juiz[9]: Os clientes pagavam o preço e IVA incluindo?
Arguido: Sim.
Juiz: Esse IVA senhor E…………, sabe que não era seu?
Arguido: Eu sei, Senhora Doutora.
Juiz: …durante o ano de dois mil…os senhores não entregaram o IVA. Quer-me explicar o que é que se passou?
Arguido: Senhora doutora, olhe…eh…muitas dificuldades, máquina…máquinas velhas, avarias consecutivas…e às vezes quando chegava….
Juiz[10]: …a sua esposa sabia que quando o senhor recebia das facturas, também recebia do imposto…
Arguido: Claro.
Juiz[11]: O senhor dizia à sua esposa “olha, devemos às finanças xis”…
Arguido: Sim, eu dizia “olha, deve-se isto, deve-se este IVA, está para pagar…”
Juiz: Sabia do que é que estava por pagar?
Arguido: Sim.
Juiz[12]: …antes da fiscalização receberam notificações a avisar que não estavam a pagar o IVA?
Arguido: Sim, recebemos notificações.
Juiz: Receberam vários avisos de cobrança?
Arguido: Sim.
Arguida B………….
Juiz[13]: D. Teresa, as coisas em dois mil devem ter começado a correr mal…
Várias dificuldades económicas…
Arguida: Muito mal mesmo.
Juiz:…sabe que o IVA não lhe pertence?
Arguida: Certo.
Juiz: Em que é que o IVA foi utilizado?
Arguida: …foi utilizado…só outras pessoas, portanto, estavam lá sempre a bater…os credores…quer dizer a gente vai pagando mais aqueles que nos vão apertando, não é?
Juiz[14]: …o contabilista preenche os papéis mas o contabilista não paga…
Arguida: Certo, certo.
Juiz: A dívida é vossa, não é do contabilista…
Arguida: Certo.
Juiz: …o contabilista preenche os papéis mas quem tem que entregar o meio de pagamento são os senhores…o contabilista
Arguida: Sim, sim.
Juiz: Ele deve ter pedido…”preciso de xis para pagar o IVA”.
E os senhores não lhe davam…
Arguida: Não tinha.
Juiz:…mas o que eu estou a perguntar é se sabia que não estava a ser pago…?
Arguida: Sim, sabia.
Juiz: …sabia que quem estava colectada era a senhora?
Arguida[15]: Sabia, sabia.
Estes breves excertos, não podem deixar de ser considerados e interpretados segundo o designado homem médio ou bonus pater familae, indicadores fortes e consistentes da responsabilidade criminal da arguida mulher na prática dos factos.
Aos quais se pode acrescentar ainda o depoimento da testemunha Amândio Jorge, inspector na Direcção de Finanças de Aveiro, também transcrito, de onde resulta que a arguida mulher tinha conhecimento de vários factos referentes ao não pagamento do IVA, o qual não era pago por dificuldades económicas – v. fls. 33 do apenso, entre outras.
2ª Questão.
1. Os fundamentos desta questão - a inexistência do crime de abuso de confiança fiscal - mostram-se sintetizados nas seguintes das longas conclusões dos arguidos, já supra reproduzidas:
- O art. 105º do RGIT – tal como, já antes dele, o fazia o art. 24º do RJIFNA – prevê o tipo de ilícito criminal epigrafado de “Abuso de Confiança”.
- O Regime Geral de Infracções Tributárias (RGIT) – à semelhança do que já consignava o art. 29º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA) – prevê no seu art. 114º o tipo de ilícito contra-ordenacional cujo objecto consiste na ”Falta de entrega da prestação tributária”, como reza o seu proémio.
- Porque o bem jurídico protegido por ambas as normas é exactamente da mesma natureza e reclama a mesma extensão e intensidade de tutela jurídica, para quem defendesse serem eles irredutivelmente incompatíveis – o que, salvo melhor opinião, não parece ser o caso – teria de resolver o conflito fazendo o art. 105º ceder perante o art. 114º por força dos princípios de última “ratio” e da necessidade que enformam o direito penal.
- Isto é, só haverá crime de abuso de confiança fiscal se o agente se apropriar da prestação tributária e se recusar a entregá-la ao Estado sem que o Estado possa (v.g. por inexistência de bens penhoráveis) coagi-lo ao cumprimento da prestação.
- Caso o agente venha a entregar a prestação à administração tributária por iniciativa própria ou em resultado do accionamento dos meios legais, coercitivos ou não – v.g. o processo de execução fiscal, com penhora e venda de bens e a compensação de créditos (cfr. art. 88º do CPPT) – não haverá crime, mas mera contra-ordenação.
- No caso vertente, os arguidos, só não entregaram ao Estado as prestações tributárias liquidadas por graves dificuldades financeiras de que se faz eco a motivação da decisão do tribunal “a quo”.
- Os arguidos, não dispunham de meios financeiros para, naquele contexto, entregar as prestações tributárias ao Estado tendo agido sem dolo e mesmo no contexto de estado de necessidade ou de inexigibilidade de outro comportamento, não tendo, assim, praticado o crime que lhe vem imputado.
- Com a criação do crime de abuso de confiança fiscal o Estado violou os princípios da dignidade da pessoa humana, de que o direito à liberdade, plasmado no art. 27º, nº 1, da CRP, é um corolário, e da proporcionalidade, consagrados nos arts 1º e 18º, nº 2, da CRP, para a sua Administração Tributária poder continuar a demitir-se das suas responsabilidades de criar um sistema fiscal e aplicar as suas normas baseadas na equidade e na eficiência, na igualdade dos cidadãos perante a lei.
- Face ao exposto, deveriam os arguidos terem sido absolvidos, pelo que o tribunal “a quo” ao condená-los pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, não decidiu com justiça, mas apenas em obediência a uma lei iníqua.
2. Ou seja, pretendem os recorrentes dizer que não existe crime de abuso de confiança porque:
1 - é elemento típico deste crime, a recusa de entrega ao Estado da prestação ( imposto ) e a apropriação da mesma pelos arguidos.
2 - se o Estado, por qualquer meio, nomeadamente por penhora em execução fiscal, conseguir pagar-se ou ressarcir-se, não há crime mas apenas contra-ordenação.
3 - existe uma causa legítima de exclusão ou afastamento do dolo pelos arguidos, traduzida na sua dificuldade financeira que os impediu de entregar o IVA.
4 - com a criação deste crime de abuso de confiança fiscal, o Estado viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade.
Como refere o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto, a motivação dos recorrentes, sobre esta questão, trata-se de um “ exercício de erudição académica sem apoio no direito constituído e em vigor”.
Assim parece ser.
Para todas as questões suscitadas já os tribunais superiores se pronunciaram, não sendo do nosso conhecimento qualquer posição em sentido contrário daquela que se apontará, salvaguardando a referência feita nas alegações quanto à questão do pedido civil.
2.1. Sobre o conceito de apropriação para estes fins, decide-se no ac. desta Relação do Porto de 22.102008, processo nº 0813921, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp:
“ Não é imprescindível a efectiva ‘apreensão’ material das quantias pelo recorrente para que o tipo criminal se preencha; basta que elas não dêem entrada na administração fiscal, a quem eram devidas. Basta o desencaminhar dessas quantias, ainda que para satisfazer outros encargos iminentes e lícitos da empresa. Nisso se traduzirá a ‘apreensão’. Neste tipo de crimes a apropriação pode consistir no diferente destino dado às quantias retidas relativamente ao imposto por lei (neste sentido, v. o ac. STJ de 24/3/2003, CJ I-235)”.

E no ac. de 18.10.2006, processo nº 0612319, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, já havia sido decidido:
“ A apropriação das prestações fiscais, para efeitos do crime de abuso de confiança fiscal, significa apenas a não entrega das prestações tributárias deduzidas nas remunerações pagas, pelo que, tendo a arguida pago aos seus trabalhadores os vencimentos “líquidos”, isto é, deduzidos das quantias para IRS que não entregou ao Estado, não se pode pôr em dúvida que houve apropriação de tais montantes”[16].
Ora, tendo-se provado que “ As quantias referidas foram utilizadas pelos arguidos para pagamentos vários da sua actividade e da sua vida privada, passando a integrar a sua esfera patrimonial”, não se suscitam dúvidas de que este requisito do tipo de crime está preenchido.
2.2. Quanto à possibilidade de o Estado, por qualquer meio, nomeadamente através da execução fiscal, conseguir pagar-se, não constituir crime mas apenas contra-ordenação, não tem qualquer fundamento, sobretudo agora depois do supra citado ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Abril de 2008 sobre esta questão.
A punibilidade das condutas como contra-ordenação, está efectivamente prevista no artigo 114º, nº1, do RGIT, que diz o seguinte:
“ A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido”.
De onde resulta que a não entrega até ao período de 90 dias, conjugado com o disposto no artigo 105º, nº4 do mesmo diploma[17], do imposto (IVA) devido, era, sim, punido como contra-ordenação, com coima.
Mas para lá dos 90 dias, os factos eram punidos a título de crime.
A não ser que, nos termos do nº 6, do mesmo artigo 105º, que o valor da prestação não ultrapassasse os 1000 euros, agora 2000[18], situação em que a responsabilidade criminal se extinguia mediante o pagamento da prestação, juros e coima pelo valor mínimo, até 30 dias depois da notificação para o efeito, da administração tributária[19].

A ser como pretendem os recorrentes, seria fazer tábua rasa não só das disposições que já existiam sobre as regras de punição do tipo de crime em causa, como desvalorizar por completo a referida alteração ao artigo 105º, nº 4, do RGIT operada pelo artigo 95º da Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007, criando na alínea b), uma nova condição objectiva de punibilidade, do seguinte teor:
«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito».
“ O objectivo foi, claramente, o de possibilitar a despenalização de condutas após a regularização fiscal, assim contribuindo para o combate à evasão fiscal, uma das principais medidas de política fiscal consagradas no OE2007, reforçando o cumprimento voluntário das obrigações tributárias e aumentando a receita global (cfr. neste sentido o Relatório do Orçamento do Estado para 1997, pág. 26)” – pode ler-se no ac. da Relação de Guimarães de 26.3.2007, proferido no proc. nº 1917/06-1, consultável em www.dgsi.pt.jtrg.
Mas é inequívoco que os recorrentes não pretenderam usufruir desta nova oportunidade, fazendo cessar/extinguir contra si o procedimento criminal, com a consequente ineficácia das penas em que foram condenadas, desde que tivessem cumprido com aqueles pagamentos exigidos na acrescentada alínea b) do nº 4, do artigo 105º.
Optaram por nada fazer/pagar, mantendo os seus argumentos/conclusões que já tinham manifestado neste processo e recurso.

2.3. A causa legítima de exclusão ou afastamento do dolo pelos arguidos, traduzida na sua dificuldade financeira que os impediu de entregar o IVA.
Do factualismo provado resulta que “as quantias referidas foram utilizadas pelos arguidos para pagamentos vários da sua actividade e da sua vida privada, passando a integrar a sua esfera patrimonial”.

Tendo sido este o uso dado pelos recorrentes ao montante do IVA (imposto) cobrado aos respectivos clientes, não vislumbramos qualquer conflito de deveres ou estado de necessidade dos mesmos para deixarem de fazer a sua entrega ao Estado.
É que os recorrentes esquecem um pormenor relevante nesta actividade: as quantias cobradas a título do IVA, não integram os serviços pelos mesmos prestados aos clientes. Trata-se de uma imposição legal, de um acréscimo que os clientes pagam para, através dos recorrentes, ser entregue ao Estado. A infracção, o abuso, consiste nisto mesmo: não entregar a quem é devido, o imposto, fazendo-o seu, utilizando-o em proveito próprio.
Entre pagar a clientes dos recorrentes, para quem os mesmos tivessem dívidas ou pagar ao Estado, não existe qualquer conflito de deveres relevante, que mereça uma opção a favor dos ditos clientes.
E outras despesas da vida privada dos recorrentes, considerando-se que se trata de despesas comuns ou normais, também não significa qualquer conflito de deveres ou estado de necessidade.
E se os recorrentes consideraram que existia um conflito de deveres, então a opção deveria pender para o pagamento do IVA ao Estado, pois este interesse público tem primazia sobre o interesse privado dos recorrentes.
É com o dinheiro dos impostos, que o Estado investe no interesse público ou colectivo, quer na saúde, quer na educação, quer em meios de comunicação e outros, beneficiando a colectividade. Agindo todos os contribuintes nos mesmos termos em que agiram os recorrentes, com certeza que a actividade do Estado, inevitavelmente paralisava ou criaria grandes transtornos e défice no interesse da comunidade.
Para ilustrar a falta de razão dos recorrentes, pode ler-se no ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 9.6.2004, proferido no processo nº 0440771, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp:
“ Em geral, não é correcto falar de conflito de deveres, direito ou estado de necessidade, em casos como o agora em apreço. Tendo em vista o conflito de deveres, instituto que melhor quadra com a realidade em apreço, dispõe o artigo 36° do Código Penal que, «não é ilícito o facto de quem, no caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos (...) satisfaz o dever (...) de valor igual ou superior ao do dever (...) que sacrifica.
Os trabalhadores têm múltiplos direitos, nomeadamente, na parte que agora interessa, direito ao trabalho e à retribuição, art.º 58º e segts. da CRP.
O Estado, por sua vez, está constitucionalmente incumbido de realizar democraticamente vários objectivos visando a realização da democracia económica, social e cultural. Essas finalidades são possibilitadas pelas receitas cobradas pelo sistema fiscal. As hierarquias são claras e inequívocas. As empresas e os cidadãos estão obrigados a pagar, sendo esse o caso, os seus impostos. Não se devem preocupar com o problema do Estado. O Estado tem um tecido legislativo, também conhecido, com uma multiplicidade de remédios: para as empresas em situação económica e financeira difícil, para as empresas economicamente inviáveis, para as situações de desemprego, etc. Essa legislação foi discutida e aprovada por quem de direito, sendo suposto que consagra as soluções mais razoáveis. Não é por isso legítimo que uma empresa, erija e aplique os seus critérios, fazendo tábua rasa dos comandos legais.
A não ser assim, desvirtuam-se de modo ilegítimo as regras da concorrência, favorece-se a praga económica da informalidade e o resultado, não é, normal e reconhecidamente, a resolução de um problema, mas apenas adiar uma falência. Foi o caso dos autos. A conduta do arguido viola princípios e regras basilares da ordem jurídica económica e social. Acresce, que o arguido não se limitou cumprir as suas obrigações em matéria salarial, com os trabalhadores, mas também para com terceiros fornecedores de bens e serviços, o senhorio, etc. Com que legitimidade, impõe-se perguntar, escolheu não pagar ao Estado as contribuições para a segurança social, quando pagou a todos os outros credores”[20]?
2.4 – A violação pelo Estado dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, com a criação deste crime de abuso de confiança fiscal.
As considerações dos recorrentes a este propósito, não têm qualquer apoio no nosso direito constituído nem passam, em nosso entender, de “meras desculpas” de quem, no momento próprio, não cumpriu com as suas obrigações.
Qualificar a obrigação de os recorrentes entregarem ao Estado, determinadas quantias que terceiros lhes entregaram para esse efeito, de violação da dignidade da pessoa humana, cumpre perguntar então, como qualificar a conduta dos recorrentes que, em vez de entregarem as ditas quantias a quem efectivamente pertencem, as gastam em proveito próprio!?
Os conceitos de Dignidade e Liberdade da pessoa Humana são conceitos de uma natureza e relevância tal, que merecem igualmente um tratamento excepcional, de reserva, exactamente para situações Dignas desse tratamento.
Não é o caso. A qualificação destas condutas como crime, são iguais a tantas outras em que o Estado, no seu jus imperium, entendeu qualificá-las assim.
Trata-se de uma incriminação que a comunidade aceita com normalidade, integrando as relações sociais e tributárias entre o cidadão e o Estado, que importa definir com alguma certeza e um meio de o Estado obter os dividendos necessários para zelar pelo interesse público ou colectivo.
Como se decidiu no ac. desta Relação do Porto de 30.1.2008, no processo nº 0714688, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, “…é manifesto que a intervenção do direito penal há-de, numa qualquer altura do processo, contender com direitos dessa natureza e grandeza; todavia, não sendo os direitos individuais absolutos, hão-de sofrer as limitações que se mostrem necessárias à prossecução do Estado de Direito, designadamente através da realização da Justiça, obra a que se mostram vinculados os Tribunais Judiciais (artº 202º, CRP)”[21].
3ª Questão: A não exigência ou ilegalidade do pedido de indemnização civil contra os arguidos, neste processo-crime.
Esta questão da legalidade da formulação do pedido de indemnização civil pelo não pagamento do I.V.A. no processo-crime, tem sido objecto de estudo e apreciação pela jurisprudência, nomeadamente desta Relação, em vários acórdãos.
No processo de recurso nº 5397/07.1, deste Tribunal da Relação do Porto, de que somos relator, embora sob forma indirecta[22], foi por nós decidido a possibilidade e legalidade da dedução do pedido de indemnização civil no processo-crime, pelo não pagamento ao Estado, de determinada quantia a título de imposto de IVA.
Aí dissemos, a dado momento:
“…dispõe o artigo 71º, do Código de Processo Penal, que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal, nos casos previstos na lei.
Aqui se consagra expressamente o princípio da adesão. Pelo que, mesmo no caso de absolvição pelo crime, pode haver condenação na indemnização civil, sempre que o pedido se revelar fundado - artigo 377º, do Código de Processo Penal -, sendo assim, por claras razões de economia processual[23].
… numa situação dita de normal, o pedido de indemnização civil só poderá ser deduzido em separado, nas situações descritas no artigo 72º, do Código de Processo Penal, aqui não figurando a da hipótese de reclamação de créditos em caso de falência do devedor.
Por imposição do princípio da adesão e em obediência ao mesmo, se for instaurada acção de indemnização civil fora das situações do artigo 72º, nº 1, do Código de Processo Penal, a acção não pode prosseguir por falta de um requisito de validade que se reflecte na competência do tribunal. Este deverá ser considerado materialmente incompetente e o réu absolvido da instância na acção cível - artigo 288º, nº 1, alínea a), do CPCivil[24].
Por aqui se pode desde já concluir que, a haver uma absolvição da instância por existirem dois pedidos quanto à mesma indemnização civil, a mesma deveria ocorrer no processo civil - de falência -, que não neste processo-crime.
E seria assim porque, de acordo com as regras processuais próprias, a situação tem um tratamento não de litispendência, mas de inexistência ou falta do dito requisito de validade para o tribunal civil apreciar o pedido fora dos casos do artigo 72º, nº 1, do Código de Processo Penal.
… não se diga que, com o reconhecimento dos créditos a favor do Estado em dois processos diferentes, acarreta prejuízo para a arguida, pois que esse prejuízo só se efectivará com o pagamento em duplicado. E, desde que pague uma vez, a arguida poderá então requerer, nessa altura, a extinção da dívida, pelo pagamento. E se por mero absurdo pagasse duas vezes, sempre poderia alegar o enriquecimento sem causa por parte do Estado.
Somos levados a concluir, pois, que a arguida foi indevidamente absolvida da instância”.
Também no ac. Relação do Porto de 28.2.2007, proferido no processo nº 0615916, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, subscrito por nós enquanto juiz adjunto, se decidiu:
“ Ora, o pedido civil que foi deduzido e conhecido neste processo não respeita a qualquer daqueles actos tributários relativos à liquidação ou à execução de impostos, mas à obrigação de indemnizar por danos causados, baseada na responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, a que alude o art. 483º, nº 1, do Código Civil.
Tal pedido de indemnização cível cabe no âmbito do princípio definido no art. 71º do Código de Processo Penal e, desse modo, teria que ser deduzido obrigatoriamente no processo penal. Sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer desse pedido, conjuntamente e em simultâneo com a conexa acção penal”.
Igualmente no ac. desta Relação do Porto de 24.10. 2007, proferido no processo nº 0713235, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, e também por nós subscrito, se decidiu:
“ Como decorre do disposto no art. 71.º do Código de Processo Penal, só o pedido de indemnização civil “fundado na prática de um crime” é deduzido no processo penal respectivo. O que quer dizer que qualquer outro pedido cível que não tenha por fundamento a indemnização por danos resultantes da prática de um crime não pode ser deduzido em processo penal (ac. do STJ de 06-11-96, em CJ-STJ/1996/III/185). É também neste sentido restrito que se baseia a fundamentação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99, publicado no Diário da República n.º 179, Série I-A, de 03-08-99.
O que leva a concluir que o processo penal é inidóneo para conhecer de pedido civil que não tenha por fundamento o facto ilícito integrador do crime que é objecto do processo penal. Como acontece quanto à indemnização baseada na responsabilidade civil de natureza contratual ou numa obrigação legal de contribuir para a segurança social ou de pagar impostos. Sucede que a causa de pedir invocada no pedido civil deduzido pelo assistente não é a obrigação legal que impendia sobre os arguidos de descontar nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida as suas contribuições obrigatórias para a segurança social e de as entregar à respectiva entidade, bem como a percentagem que por lei cabe à entidade patronal, mas antes o facto ilícito de que os arguidos estão acusados em co-autoria e que constitui o crime de abuso de confiança previsto e punido no n.º 1 do art. 107.º do RGIT. E é por ser esta a causa de pedir que o pedido civil é admissível e o assistente tem legitimidade processual e interesse em agir…
Com efeito, o despacho recorrido parte do pressuposto de que o recorrente, para exigir o pagamento das prestações contributivas em dívida à segurança social, não necessita de recorrer a qualquer acção de natureza declarativa, neste caso, conexa com a acção penal, visto que dispõe de condições, designadamente título executivo válido, que lhe permitem instaurar de imediato a respectiva acção executiva para o pagamento coercivo dessa dívida. O que é certo. Mas, neste caso, como também refere o despacho recorrido, a responsabilidade civil do gerente, o arguido C………., é meramente subsidiária, de harmonia com o disposto nos arts. 22.º a 24.º da Lei Geral Tributária, aprovada pela Lei n.º 15/2001, de 5-06, que prescrevem o princípio da responsabilidade subsidiária dos membros dos corpos sociais da pessoas colectivas pelas dívidas tributárias; enquanto que na responsabilidade civil por facto ilícito o mesmo arguido, como co-autor, responde solidariamente com a sociedade arguida pelo pagamento da indemnização por danos causados à segurança social, nos termos do art. 497.º do Código Civil. O que faz toda a diferença em termos de garantias de exequibilidade patrimonial por parte da segurança social. Ora, o que está em causa no pedido civil deduzido pelo assistente é, não directamente o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, mas antes a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social que a acusação imputa em co-autoria aos arguidos. E esta determina-se e resolve-se segundo as regras do Código Civil, para que remete o art. 129.º do Código Penal e para que também remete o art. 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, dispondo que, quanto à responsabilidade civil, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Civil e legislação complementar.

A circunstância de o assistente já dispor de título executivo para poder exigir coercivamente o pagamento das prestações em falta e respectivos juros de mora em nada colide com a dedução deste pedido civil nem pode obstar à admissibilidade deste pedido. Como também decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 13-06-2007 (em www.dgsi.pt/jtrc.nsf/ proc. n.º 11773/04.1TDLSB.C1): “A existência de título executivo, ou título de igual valor, não impede que se demandem os arguidos no enxerto cível deduzido em processo penal, embora releve para efeitos de responsabilização pelas custas”. É que, como já ficou demonstrado supra, o título executivo de que o assistente dispõe não lhe garante os mesmos direitos de exequibilidade relativamente ao gerente, o arguido C………., através dos quais a sua responsabilidade é meramente subsidiária, isto é, só pode fazer reverter a execução contra este depois de excutido o património da sociedade. Enquanto que, obtendo uma sentença condenatória que o responsabilize solidariamente pelo pagamento das mesmas prestações, o assistente pode accioná-lo imediatamente e a título principal e executar desde lodo o seu património individual, sem qualquer moratória. A única consequência é que o assistente não poderá servir-se ao mesmo tempo dos dois títulos executivos para cobrar a mesma quantia. Cobrando-a através de um dos títulos, o outro fica inutilizado. Contextualizado o pedido civil nos termos referidos, resulta evidenciado que o assistente tem, objectivamente, interesse legítimo em que seja apreciado e decidido o seu pedido civil deduzido neste processo penal, e, portanto, tem interesse em agir…”.
Estes são fundamentos por nós partilhados que explicitam as razões por que o pedido de indemnização civil formulado neste processo-crime é legalmente admissível e, consequentemente, foi correctamente deduzido e apreciado.

4ª Questão:
1. Tudo seria assim se, entretanto, já depois de elaborado o projecto inicial deste acórdão e os autos terem sido remetidos para os vistos legais, não tivesse havido uma alteração legislativa que converteu em pura ficção tudo o supra se disse.
Na verdade, a propósito da suscitada questão “ de violação pelo Estado dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, com a criação deste crime de abuso de confiança fiscal” – ponto 2.4., escreveu-se:
“A qualificação destas condutas como crime, são iguais a tantas outras em que o Estado, no seu jus imperium, entendeu qualificá-las assim”.
Ora, é exactamente este jus imperium inerente ao Estado que, através do seu poder legislativo, do mesmo modo que tipifica uma determinada conduta como crime, a desqualifica como tal.
Foi assim que, na Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro – Lei do Orçamento Geral do Estado para 2009, no artigo 113º, foi alterada a redacção do artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, nos seguintes termos:
1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Conjugando esta nova redacção com o teor do nº 7, do mesmo preceito[25], entendemos que a melhor interpretação e a correcta é a que considera aquele montante de 7500 euros como correspondente a cada uma das prestações individuais, que foram declaradas e não pagas à administração tributária, que tanto pode ser uma única, como várias e não a sua soma total.
O que significa que se se tratar de uma só prestação superior a 7500 euros, continua a ser crime. Mas se se tratar de uma ou várias prestações, sendo cada uma delas inferior a 7500 euros, pese embora o seu total ultrapasse largamente aquele montante, não existe crime. Foi uma opção legislativa, mais concretamente uma opção de política fiscal do Estado.

2. Dos factos provados resulta que pelos recorrentes arguidos não foi entregue o seguinte montante de IVA:
Primeiro trimestre de 2000, 5.654,56€;
Segundo trimestre de 2000, 2069,01€;
Terceiro trimestre de 2000, 2378,10€.
Valores que foram entretanto corrigidos pela inspecção tributária quanto aos 2º, 3º e 4º trimestres de 2000, no valor de 1113,48€ para cada trimestre, pelo que os valores finais e em dívida são os que constam do quadro seguinte:





3. Todas as prestações não pagas são, assim, cada uma delas individualmente considerada, inferiores aos referidos 7500,00 euros.
Ora, refere o artigo 2º, nº 2, do Código Penal, o seguinte:
“ O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais”.

Trata-se de uma clara afirmação do princípio de aplicação da lei mais favorável, na sua forma mais radical, que é a da descriminalização de uma conduta[26].
Que tem plena aplicação na situação dos presentes autos. Com a nova redacção do artigo 105º, nº 1, do RGIT, a conduta dos recorrentes foi descriminalizada.
Tanto basta para que aos mesmos não seja imputada a partir da entrada em vigor daquela norma, qualquer responsabilidade criminal bem como qualquer responsabilidade civil, pois que esta apenas era apreciada e reconhecida neste processo, em virtude do ilícito criminal.

DECISÃO
Por todo o exposto, decide-se, por fundamentos diferentes dos alegados pelos recorrentes, ou seja, pelo facto de ter sido descriminalizada a sua conduta, absolver os recorrentes da prática do crime por que foram condenados, julgando extinto o procedimento criminal contra os mesmos.
*
Sem custas.

Porto, 25 de Fevereiro de 2009
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão
_______________
[1] A outra posição seguia o entendimento da descriminalização/despenalização do crime de abuso de confiança previsto no art. 105 nº 1 e 4 do RGIT, após alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29/12 (que entrou em vigor em 1/1/2007), quanto às omissões de entrega de prestações tributárias deduzidas e comunicadas à Administração Tributária, em relação às quais o termo do prazo de 90 dias, aludido no art. 105 nº 4-a) do RGIT, ocorreu antes de 1/1/2007.
[2] Conclusão VI.
[3] Sublinhado da nossa autoria.
[4] Daí a designação de “moça de recados”.
[5] Reafirma-se que os recorrentes não reproduziram muitas destas declarações, na transcrição que das mesmas fizeram nas suas alegações.
[6] Fls. 8 do apenso de transcrições.
[7] Fls. 9.
[8] Fls. 10.
[9] Fls. 12.
[10] Fls. 15.
[11] Fls. 16.
[12] Fls. 17.
[13] Fls. 23.
[14] Fls. 24.
[15] Fls. 25.
[16] E no ac. também desta Relação do Porto de 17.1.2007, proferido no processo nº 0642766, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, decidiu-se ainda:
“Mostrando-se provado que os recorrentes receberam, efectivamente, de clientes determinadas quantias respeitantes ao IVA e que afectaram as mesmas à satisfação de compromissos da sociedade, designadamente, o pagamento de despesas correntes de água, electricidade, matérias-primas e salários, não as entregando à administração tributária, não podem subsistir dúvidas sobre a existência de actos objectivos e concludentes que comprovam a apropriação desses montantes, por parte dos recorrentes. Devendo ter-se, ainda, presente que a apropriação se pode traduzir na simples fruição e disposição ut dominus, em proveito próprio ou alheio, pelo devedor das prestações deduzidas ou recebidas e que estava obrigado a entregar”.
[17] Que dispunha o seguinte:
“ Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação”.
[18] Face à alteração do art. 60º da Lei nº 60-A/2005 de 30/12 (OE para 2006), que o elevou para aquele montante.
[19] V. neste sentido, ac. desta Relação do Porto de 5.3.2008, proferido no proc. nº 0716628, consultável em www.dgsi.pt.jtrp e ac. da Relação de Coimbra de 21.3.2007, proferido no proc. nº 232/04.2IDGRD-C1, consultável em www.dgsi.pt.jtrc.
[20] V. ainda ac. do STJ de 15.1.97, CJ S, V, Tomo I, pág. 192, onde se decidiu que “ não agiu o arguido em conflito de deveres, quando tendo recebido montantes pecuniários, com a obrigação de os entregar ao Estado, os destinou nomeadamente ao pagamento dos vencimentos dos trabalhadores e no giro comercial da empresa”.
Bem como o ac. da Relação desta Relação do Porto de 22.9.2004, proferido no processo nº 0412635, consultável em www.dgsi.pt.jtrp, onde se decidiu:
“… a alternativa dos recorrentes nunca foi entre, com dinheiro que lhes pertencia, pagarem aos trabalhadores ou pagarem uma dívida ao Fisco. Mesmo a aceitar-se a versão do recurso, a sua opção foi diferente: teriam pago aos trabalhadores com dinheiro que não lhe pertencia, de que apenas eram fiéis depositários e tinham de entregar à administração tributária. Isto altera significativamente o quadro de ponderação dos valores conflituantes que os recorrentes pretendem invocar. Os recorrentes não foram condenados por não pagarem uma dívida, mas por descaminharem dinheiro de outrem. De outra maneira, estaríamos perante uma «prisão por dívidas», o que repugna à nossa ordem jurídica. Dentro dos parâmetros agora fixados, não se vê qual a norma ou princípio da ordem jurídica que exclui a ilicitude do comportamento de quem dispõe de bens que não lhe pertencem. Aliás, na própria ordem jurídica encontra-se resposta para a «graduação» dos valores em causa, pois, ao contrário do que acontece com a não entrega do IVA deduzido, o não pagamento de salários aos trabalhadores não é crime”.
[21] E no ac. da Relação do Porto de 20.9.2006, proferido no processo nº 0611503, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp, decidiu-se ainda:
“Mais pretende o recorrente que com a criação deste crime, o Estado violou os princípios da dignidade humana, de que o direito à liberdade é um corolário (artº 27º, 1, CRP) e da proporcionalidade, consagrado nos artºs 1º e 18º, 2 da CRP. Cremos, todavia que (não obstante o juízo subjectivo que cada um de nós pode formular acerca da ‘justeza’ da incriminação penal em causa) não ocorre violação de qualquer daqueles preceitos constitucionais.Com efeito, o Estado, no exercício do seu poder de império, e ao abrigo da sua política legislativa criminal, elege as condutas que, em cada momento, devem ser alvo de uma reacção penal, por se mostrarem violadoras de regras essenciais da vida em sociedade; entendeu criminalizar a conduta daqueles que retendo quantias devidas ao fisco, as descaminham. Estando em causa o confronto entre os cidadãos que cumprem zelosamente as suas obrigações fiscais (e, por isso, estão isentos de reparo) e aqueles que o não fazem e se ‘apropriam’ dos montantes de imposto retido, não vemos em que medida a incriminação respectiva possa violar qualquer direito constitucionalmente garantido, designadamente os referidos pelo recorrente”.
[22] Pois a questão nuclear consistia em apreciar se, tendo sido já reclamados em processo de falência os créditos do Estado contra a sociedade arguida, se o mesmo Estado podia deduzir no processo-crime pedido civil por aqueles mesmos impostos devidos.
[23] V. Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. I, fls. 128.
[24] Neste sentido se pronuncia Germano Marques da Silva in ob. Cit, vol. I, fls. 131 e 132.
[25] Que diz o seguinte: “ Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração fiscal”.
[26] V. Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, fls. 199.