Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0422028
Nº Convencional: JTRP00036958
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: COMPRA E VENDA
CONTRATO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP200406010422028
Data do Acordão: 06/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - A entidade financiadora do crédito para aquisição de uma viatura, vendida por terceiro ao consumidor, não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo, por tal direito não existir na sua esfera jurídica.
II - Não pode, assim, requerer procedimento cautelar comum para apreensão da viatura, mesmo que constando registada reserva de propriedade do veículo a seu favor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B....., SA, com sede na rua....., ....., instaurou procedimento cautelar comum para apreensão de viatura automóvel e seus documentos

contra

C....., residente na rua....., .....,

requerendo a apreensão do veículo automóvel com a matrícula ..-..-PC, bem como dos respectivos documentos, com fundamento em não cumprimento por parte do requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade do veículo a seu favor.

Logo no despacho inicial, o Mmº Juiz indeferiu liminarmente a pretensão da requerente por entender ser inválida a reserva de propriedade estabelecida a favor da requerente e, consequentemente, carecer de legitimidade para a presente providência cautelar.

Inconformada, agravou a requerente defendendo a sua legitimidade para a providência cautelar e pugnando pela revogação do despacho recorrido.

O requerido não contra-alegou.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as suas alegações, verifica-se que o inconformismo da agravante radica no seguinte:

1- Encontra-se erradamente julgada e enquadrada a situação jurídica em apreço pois que o que a Requerente, aqui Agravante, requereu foi Processo Cautelar de apreensão de veículo automóvel;

2- para ver deferida a sua pretensão basta a Requerente, anui Agravante, provar o registo da reserva propriedade e o não cumprimento do contrato;

3- independentemente de ser contrato de crédito ao consumo e venda financiada por terceiro, é legalmente admissível que esse terceiro reserve para si a propriedade da coisa;

4- a reserva de propriedade é válida não só pela liberdade contratual das partes, mas, também por força do art.° 15.° e 19.° á contrário senso, ambos do Dec-Lei n.° 54/75 de 12/02;

5- o dador de crédito pode receber como garantia do seu crédito qualquer garantia que o recebedor desse seu mesmo crédito queira fornecer.

6- Para além disso, a legitimidade deve aferir-se em função da relação jurídica controvertida tal como o autor a configura, devendo ser apreciada em função do pedido formulado e da respectiva causa de pedir, gozando de legitimidade quem possa ser afectado na sua consistência jurídica.

7- Não podendo, assim concluir, nem questionar a sentença de que aqui se recorre, sobre qual o bem alienado, nem pela invalidade da reserva de propriedade, nem sequer pela ilegitimidade da aqui Agravante para instaurar a providência cautelar, já que tal decisão colide com o citado Dec-Lei 54/75 de 12.02, bem como com a liberdade contratual das partes, nomeadamente na liberdade de prestação de garantias.

B- Segundo o teor das conclusões, são essencialmente duas as questões colocadas e que se impõe decidir:
- validade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do bem vendido por terceiro;
- legitimidade da entidade financiadora para requerer a apreensão do veículo objecto da reserva de propriedade.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

III. Fundamentação

A- Os factos

Há a considerar a seguinte factualidade alegada no requerimento inicial:

1- O Requerido em 26-04-2002 apresentou á Requerente proposta de concessão de crédito para aquisição de uma viatura, no valor de € 7.940,64;

2- A Requerente aceitou a proposta, concedendo ao Requerido o referido crédito;

3- E reservou para si a propriedade daquela viatura, como garantia do pagamento do crédito concedido;

4- O Requerido deixou de pagar diversas prestações, num total de 1085,56 €;

5- O que implicou o vencimento do todas as demais prestações ainda em dívida.

B- O direito

1. validade da cláusula de reserva de propriedade

No caso vertente e segundo a factualidade alegada no requerimento inicial, está-se em presença de uma compra e venda financiada, coexistindo dois contratos autónomos, mas com uma ligação funcional entre si: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito. Os dois contratos como que se unem em vista da prossecução de uma finalidade económica comum, mantendo, todavia, estrutural e formalmente cada um deles a sua autonomia [cfr. Ana Isabel Afonso, in Contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais, pág. 113].
Assim, de acordo com o princípio da liberdade contratual, se promove o consumo, facilitando-se de um modo expedito o recurso ao crédito e se conciliam as necessidades do consumidor que deseja adquirir determinado bem mas não tem disponibilidades económicas para suportar o pagamento do preço de uma só vez, com as necessidades do vendedor que está interessado na venda a pronto pagamento.
Como garantia do pagamento do crédito concedido, a entidade financiadora reservou para si a propriedade da viatura vendida por terceiro. A cláusula de reserva de propriedade surge aqui constituída, não a favor da vendedora, mas sim de uma entidade distinta, a financiadora da compra.
A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato – nº 1 do art. 408º C.Civil.
Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art. 409º C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva.
Mas na situação em análise a entidade financiadora nada alienou. Limitou-se a conceder crédito ao consumidor para lhe possibilitar a compra de um veículo automóvel vendido por um terceiro.
Ora, só o vendedor, o titular do direito de propriedade sobre uma coisa pode manter na sua esfera jurídica, por determinado lapso de tempo, a propriedade da coisa que vendeu. E no caso de incumprimento da condição a que as partes subordinaram a transferência do domínio, abre-se a possibilidade ao vendedor de resolver o contrato e, consequentemente, obter a restituição do bem alienado, nos termos do art. 934º C.Civil.
A venda da viatura foi feita directamente pelo terceiro-vendedor ao consumidor e o efeito jurídico da transferência da propriedade não ficou condicionada à ocorrência de qualquer evento, designadamente ao pagamento das prestações emergentes do contrato de financiamento da compra, o que eventualmente poderia ser feito através de um acordo nesse sentido firmado pelos distintos intervenientes nos dois contratos. A transferência da propriedade operou-se no momento da celebração do contrato.
A entidade financiadora de crédito para aquisição de uma viatura, vendida por um terceiro ao consumidor, não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo, por tal direito não existir na sua esfera jurídica.

2- legitimidade da entidade financiadora para requerer a apreensão do veículo

A apreensão cautelar da viatura visa garantir e antecipar a sua entrega definitiva como consequência da resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade.
A requerente, entidade financiadora, não teve qualquer intervenção no contrato de compra e venda. E, por outro lado, como referido se deixou, não podia reservar para si o direito de propriedade da viatura.
Logo, está-lhe vedado conseguir a resolução do contrato de compra e venda por não ser sujeito dessa relação controvertida.

A mesma situação se nos depara quando se faz apelo ao procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis previsto no dec-lei 54/75, de 24 de Fevereiro.
Com este diploma teve-se em vista evitar que o veículo, com o respectivo uso, se deteriorasse ou desvalorizasse e, assim, garantir patrimonialmente o credor hipotecário ou permitir que o vendedor com reserva de propriedade, que continua a ser o seu proprietário, pudesse recuperar o bem antes da sua inutilização ou perda de valor [cfr., neste sentido, Moitinho de Almeida, in O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, ed. 1981, pág. 9/10].
E o seu campo de aplicação restringe-se à apreensão de veículos automóveis hipotecados ou com reserva de propriedade, tendo este procedimento natureza cautelar - cfr. arts. 15º, 16º e 18º.
A apreensão do veículo com reserva de propriedade é instrumental relativamente à resolução do contrato de alienação, como expressamente ressalta da parte final do nº 1 do art. 18º do citado dec-lei 54/75. A apreensão preventiva do veículo estará sempre dependente da resolução do contrato de compra e venda, visando antecipar, como consequência dessa resolução, a restituição definitiva ao vendedor, ainda seu proprietário.
Acontece que a requerente não teve intervenção no contrato de alienação do veículo, além de que o contrato de compra e venda operou todos os seus efeitos, nomeadamente a transferência plena do direito de propriedade do veículo para o comprador e de o direito de crédito do vendedor se encontrar integralmente satisfeito.
Para poder lançar mão da providência cautelar prevista neste diploma, deveria a requerente, entidade financiadora da compra, ter-se socorrido da constituição de uma hipoteca em seu benefício.
Não o tendo feito e sendo alheia ao contrato de alienação e não poder legalmente reservar para si o direito de propriedade da viatura, não dispõe de legitimidade activa para requerer a apreensão do veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda, legitimidade essa que apenas radicaria na pessoa do alienante com reserva de propriedade.

Será, portanto, de manter a solução encontrada na decisão recorrida.

IV. Decisão

Perante tudo o que exposto fica, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão que indeferiu a providência requerida.

Custas pela agravante.

Porto, 1 de Junho de 2004
Alberto de Jesus Sobrinho
Durval dos Anjos Morais
Mário de Sousa Cruz