Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0331654
Nº Convencional: JTRP00036404
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: RESPONSABILIDADE PELO RISCO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200306120331654
Data do Acordão: 06/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J VALONGO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: O disposto no artigo 508 do Código Civil não se encontra revogado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto


I- Na comarca de Valongo, José... veio intentar a presente acção ordinária contra COMPANHIA DE SEGUROS..., na qual peticionou, para além da concessão do benefício do apoio judiciário, a condenação desta no pagamento da quantia de esc. 40.168.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, destinada ao ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram de um acidente provocado por culpa exclusiva de um segurado na Ré, que, conduzindo um veículo ligeiro de passageiros, para se desviar de uma lomba e buraco existentes na faixa de rodagem por onde circulava, invadiu a via por onde circulava o A, embatendo no ciclomotor que este conduzia.

O Centro Regional de Segurança Social do Norte veio peticionar da Ré o reembolso da quantia de esc. 765.882$00, correspondente ao subsídio de doença pago ao A, posteriormente aumentada para esc. 962.442$00, tendo o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL peticionado o pagamento do montante de esc. 351.000$00, referente à pensão de invalidez paga até 09/2001, pedido este que lhe foi indeferido pelo despacho de fls. 261.

Contestando, a Ré veio alegar a exclusiva culpa do A na produção do acidente, impugnando, por desconhecimento, as lesões e os danos invocados pelo lesado.

Concedido ao A o peticionado benefício do apoio judiciário, foi elaborado despacho saneador, indicada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, que não foram objecto de qualquer reclamação.

Realizada a audiência de julgamento, o tribunal respondeu à matéria da base instrutória pela forma que consta do despacho de fls. 266 a 271.

Proferida sentença, foi julgado improcedente o pedido relativo ao reembolso do subsídio de doença formulado pelo CRSSN e condenada a Ré no pagamento ao A da quantia de esc. 6.000.000$00, ou € 29.927,88, acrescida de juros de mora desde a citação.

De tal decisão recorreram o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL, o A e a Ré seguradora, tendo, por falta de alegações, sido julgado deserto o recurso interposto pela instituição de segurança social.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- RECURSO DO A

A- Nas alegações que apresentou, o apelante formulou as seguintes conclusões:
1ª- Houve culpa de ambos os condutores intervenientes no acidente dos autos, de acordo com a matéria de facto dada como provada.
2ª- Deveria o Senhor Juiz averiguar o grau de culpabilidade de cada condutor.
3ª- E aplicar o preceituado no art. 570°, nº 1 do CC, na fixação da indemnização ao recorrente.
4ª- No caso de responsabilidade fundada no risco, o Senhor Juiz não podia aplicar as limitações previstas no art. 508º do CC.
5ª- Tal artigo contraria frontalmente o preceituado nas 2ª e 3ª Directivas do Conselho.
6ª- O Estado Português estava obrigado a cumprir as Directivas, conforme o fez com excepção do art. 508º do CC.
7ª- O Estado Português estava e está vinculado às Directivas do Conselho.
8ª- A sentença violou o preceituado no art. 483º do CC e as Directivas Comunitárias referidas.

Contra alegando, a Ré seguradora pronunciou-se pela manutenção do decidido, sem prejuízo do deferimento das questões suscitadas no recurso por si interposto.

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B- De relevante para o conhecimento do objecto do recurso ora em apreciação, há a considerar os seguintes factos provados:
"No dia 7 de Setembro de 1997, pelas 18,30 m, António... conduzia o veículo de sua propriedade, matrícula XP-..-.., na estrada municipal que liga Agrela-Sobrado, e neste sentido - (A).
Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o A seguia no ciclomotor de sua propriedade, matrícula 1-PRD-..-.., em sentido contrário, ou seja, no sentido Sobrado-Agrela - (B).
O tempo estava bom - (D).
No local do acidente, a faixa de rodagem tem uma largura de 4,90 m e para a direita do António... desenvolvia-se uma curva de boa visibilidade - (D).
Quando o condutor do XP descrevia a curva à sua direita, surgiu-lhe o A tripulando o seu veículo - (43º).
O embate deu-se entre a parte da frente esquerda do XP e a perna esquerda do A - (2º) e (45º).
A partir de 1998/10/07, o A passou a fazer tratamentos na Clínica Arrifana Vale do Sousa, em Penafiel, a mando da Companhia de Seguros... - (E).

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C- Das conclusões do recorrente, resulta que a sua discordância relativamente ao conteúdo da sentença proferida se circunscreve aos dois seguintes pontos:
- grau de culpa na produção do acidente por parte de cada um dos dois condutores no mesmo intervenientes; e
- aplicação das Directivas Comunitárias à responsabilidade fundada no risco,

a cuja análise se passará, então, de seguida.

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D- Assim, o recorrente vem sustentar, face à matéria de facto dada como provada, a concorrência de culpas de ambos os condutores para a verificação do acidente, pelo que, atenta tal circunstância, deve ser determinado o grau de responsabilidade de cada um dos mesmos -conclusões 1ª) a 3ª).

Ora, na sentença proferida, entendeu-se que a factualidade apurada não permitia imputar a ocorrência do acidente à violação, por parte de qualquer dos intervenientes, das normas a observar na condução estradal, pelo que, dado tal circunstancialismo, e não se podendo afirmar a existência de uma conduta culposa, de um ou de ambos os condutores, na sua produção, haveria apenas a considerar a existência de responsabilidade meramente objectiva, vindo o ora recorrente, como se referiu, alegar, perante esta instância de recurso que, contrariamente ao decidido, deve haver lugar ao reconhecimento da existência da referida responsabilidade subjectiva de ambos os condutores.

Mas, se bem se atentar na factualidade antecedentemente transcrita, constata-se, porém, não ter o tribunal recorrido conseguido apurar o local da faixa de rodagem onde ocorreu o embate entre o velocípede conduzido pelo A e o veículo automóvel conduzido pelo segurado da Ré, já que apenas foi apurado que aqueles veículos transitavam em sentidos opostos, e que, para o lado direito, atento o sentido de marcha daquele último veículo, se desenvolvia uma curva, que o mesmo efectuava no momento da colisão, colisão esta que se verificou entre a parte dianteira esquerda do ligeiro e a perna esquerda do A.

E, ainda que haja resultado provado que, a partir de determinado momento temporal, o A passou a fazer tratamentos numa clínica da área da sua residência, por incumbência da seguradora, tal facto, ainda que susceptível de poder indiciar a responsabilidade da Ré, não pode, por si só, conduzir à afirmação da existência de responsabilidade culposa de ambos os condutores intervenientes no acidente, já que, a verificar-se uma situação configurável no domínio da responsabilidade objectiva, de tal não decorre que aquela Ré fique, por tal motivo, eximida da sua responsabilidade ressarcitória, nomeadamente quanto ao pagamento dos tratamentos que se tornem indispensáveis à cura do lesado.

Temos, pois, que, para se poder configurar a existência da invocada culpa de ambos os condutores na produção do acidente, tornar-se-ia necessário que tivesse sido apurado o local onde se verificou o embate, pois só através de tal conhecimento se poderia determinar a conduta ou condutas contra ordenacionais de cada um dos intervenientes no acidente, uma vez que, embora este se tivesse verificado numa curva, ou em local muito próximo desta, sempre se ignora se algum ou ambos os veículos transitavam na faixa de rodagem destinada ao trânsito que se processava em sentido contrário ou se ambos circulavam demasiado próximos do eixo da via.

Assim, inverificando-se qualquer das situações contempladas no nº 1 do art. 712° do CPC, torna-se impossível lançar mão da faculdade de alteração oficiosa das respostas à matéria de facto proferidas pelo tribunal de 1ª instância, não ocorrendo, por outro lado, situação susceptível de enquadramento no âmbito das presunções judiciais, pela impossibilidade de substituição da prova testemunhal pelo recurso às máximas da experiência, dada a larga panóplia de comportamentos dos respectivos intervenientes, susceptíveis de terem determinado a produção do acidente em causa - arts. 349° e 351° do CC.

Todavia, tendo na sentença impugnada sido fixada em 50% a responsabilidade pelo risco na produção do acidente, relativamente a cada um dos condutores, entendemos que tal proporção deve ser objecto de alteração.

Com efeito, tendo a colisão ocorrido entre um veículo automóvel e um ciclomotor, ainda que não tenham ficado provadas, quer a velocidade a que circulava o ligeiro - resposta negativa ao art. 41º da base instrutória -, já que a velocidade de que iria animado o ciclomotor não foi objecto de alegação, quer a natureza plana ou inclinada da via por onde os referidos veículos circulavam, como eventual factor impulsionador de uma maior velocidade pelo utilizador do sentido descendente, sempre será de considerar que a proporção do risco gerador de danos, criado por um embate entre dois veículos daquela indicada natureza, será indubitavelmente e, a priori, superior no que respeita ao veículo automóvel, tendo em consideração a sua potência e a capacidade lesiva da respectiva carroçaria, perante a desprotegida estrutura humana do condutor de um velocípede com motor.

Assim, entende-se adequado alterar a proporção do risco fixada pelo tribunal a quo, para a percentagem de 75% para o veículo seguro na Ré e de 25% para o velocípede conduzido pelo A.
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E- Refere também o recorrente, que, face às Directivas Comunitárias a cuja observância se encontra vinculado o Estado Português, não podiam ser aplicadas à responsabilidade pelo risco as limitações decorrentes do art. 508º do CC - conclusões 4ª) a 7ª).

Com efeito, e de acordo com este último indicado normativo civil, em situações de responsabilidade objectiva, a indemnização a satisfazer pelo lesante tem como limite máximo, em caso de lesão corporal, o montante correspondente ao dobro da alçada da relação.

Por outro lado, a Segunda Directiva Automóvel (84/5/CEE), relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação automóvel, veio exigir a fixação, por parte daqueles Estados, do montante global mínimo do seguro obrigatório destinado à cobertura dos danos materiais e dos danos corporais, valor esse que, no que respeita aos danos com esta última natureza, não poderia ser inferior 600.000 Ecus - art. 1°, nºs 1 e 2 -, tendo tal imposição sido objecto de cumprimento gradual pelo Estado Português, mediante aumentos parcelares, iniciados através da fixação do quantitativo daquele seguro no valor de esc. 3.000.000$00 - DL nº 522/85, de 31/12 -, e que culminaram com a publicação do DL nº 3/96, de 25/01, diploma este através do qual foi dado integral cumprimento à derrogação temporal do estatuído no nº 2 do art. 5° daquela indicada Directiva, concedida até 31 de Dezembro de 1995 pelo Anexo I, Parte IX, F do Acto Relativo às Condições de Adesão da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados, relativamente ao termo temporal para a adequação da legislação nacional ao conteúdo daquela imposição emanada das instâncias comunitárias.

Ora, em processo de reenvio prejudicial, suscitado pelo tribunal da comarca de Setúbal ao abrigo do preceituado no art. 234° do Tratado da União Europeia, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), em acórdão proferido em 2000/09/14, no processo C-348/98, concluiu que:
"Os arts. 1°, nº 2 e 5°, nº 3 da Segunda Directiva obstam à existência de uma legislação nacional que prevê montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos de garantia fixados por esses artigos quando, não havendo culpa do condutor do veículo que provocou o acidente, só haja lugar à responsabilidade civil pelo risco."

E, se é certo que as decisões proferidas pelo TJCE, em caso de reenvio prejudicial, apenas vinculam os magistrados judiciais titulares do processo sobre o qual directamente incidem, sempre não poderá deixar de ser esquecida a força de precedente de facto atribuída à jurisprudência comunitária - vide "Direito Comunitário" do Dr. Miguel Gorjão Henriques, pág. 298 -, pelo que, por tal motivo, há que analisar a efectiva compatibilidade da aludida decisão daquele tribunal comunitário, com os normativos substantivos vigentes na legislação portuguesa.

Assim, e desde logo, haverá, por outro lado, a salientar, que as Directivas vinculam apenas os Estados membros quanto aos fins que as mesmas visam atingir, deixando porém à livre iniciativa dos respectivos destinatários a forma e os meios para alcançar o desiderato por aquelas pretendido - art. 249°, 3° § do TCE -, pelo que a sua aplicabilidade em qualquer dos referidos Estados, como gerador de direitos e obrigações para os cidadãos, está directamente dependente da sua transposição e consequente incorporação no direito interno de cada Estado, o que, em Portugal, se concretiza sob a forma de lei ou decreto-lei - vide pág. 227 da obra citada do Dr. Miguel Henriques e art. 112°, nº 9 da CRP.

Ora, a aludida Directiva do Conselho 84/5/CEE foi, como se referiu, transposta para a legislação nacional, tendo tal transposição, iniciada com o DL nº 522/85, de 31/12, ficado completa com a publicação do DL nº 3/96, embora, por força da fixação da taxa de conversão das moedas dos países integrantes da zona do euro, tenha tido lugar a conversão do capital mínimo obrigatoriamente seguro para o montante global de € 600.000 por sinistro - art. 1° do DL nº 301/2001, de 23/11.

E, se é certo que alguma jurisprudência opina no sentido da total revogação do nº 1 do art. 508° do CC pelo art. 6° do DL nº 522/85 - entre outros ainda não publicados vide o Acórdão desta Relação nº 165/02 de 2002/07/09 in Boletim de Sumários de Acórdãos nº 19, págs. 3 e 4 -, e alguma da doutrina a que tivemos acesso sobre tal matéria opina no sentido da mesma revogação, ainda que de âmbito meramente parcial, uma vez que "os montantes mínimos e reputados suficientes de seguro obrigatório automóvel, estabelecidos por sucessivos decretos-leis em transposição da Directiva, são também os limites máximos de indemnização para efeitos do art. 508° do CC, a partir do momento em que os valores nele previstos ficaram abaixo daqueles" - vide anotação do Prof. Calvão da Silva in RLJ 134°/121 -, já, por outro lado, outra jurisprudência - CJSTJ X, II, 55 - e doutrina - Scientia Jurídica 292/97 - defendem que o indicado normativo da codificação substantiva civil não foi objecto de revogação por parte daquele indicado preceito da regulamentação específica do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Porém, para a apreciação de qual daquelas duas indicadas teses deve colher aceitação, há, todavia, em nosso entender, e como elemento de absoluta relevância para tal análise, que averiguar quais os fins tidos em vista pelo conteúdo daquela indicada Directiva, em contraponto com o escopo tido em vista pelo referenciado normativo da codificação substantiva civil.

Com efeito, o quantitativo indicado naquele diploma comunitário reporta-se, exclusivamente, ao capital mínimo que, no domínio da responsabilidade civil automóvel, deve ser objecto do seguro obrigatório, enquanto que, por outro lado, o conteúdo do aludido art. 508° do CC prende-se com o valor máximo indemnizatório susceptível de atribuição ao lesado em consequência de acidente de viação fundado na responsabilidade objectiva.

Ora, sendo o contrato de seguro aquele pelo qual uma empresa seguradora, mediante uma retribuição a satisfazer pelo respectivo tomador, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à satisfação da indemnização referente aos prejuízos resultantes da ocorrência de um determinado evento futuro e incerto - vide "Contrato de Seguro" do Dr. José Vasques, pág. 94 -, de tal resulta que a sua função primordial, e única, se traduz, no que especificamente respeita à cobertura da responsabilidade civil decorrente da circulação automóvel, em garantir o pagamento ao terceiro-lesado, da indemnização, que, por via amigável ou judicial, lhe venha a ser atribuída, indemnização esta em que, para a determinação do respectivo montante, nomeadamente quando a sua liquidação resultar de decisão judicial, é absolutamente irrelevante o valor referente ao capital seguro - arts. 483º e 508º do CC.

Assim, radicando-se a razão de ser daquela atribuição patrimonial a terceiro, resultante da celebração do contrato de seguro, na cobertura da responsabilidade patrimonial que venha a impender sobre o segurado, em consequência de indemnização que pelo mesmo haja de ser satisfeita, este específico fim de tal contrato, porque não directamente condicionado ao efectivo quantitativo a ressarcir pelo lesante, mas sim ao montante do capital coberto por tal garantia, não permite hipotetizar a ocorrência de qualquer correlação directa entre a indemnização a fixar e o valor ressarcível objecto da referida cobertura, nomeadamente no que respeita ao imediato e automático reflexo das modificações que venham a ter lugar no valor do capital seguro, em relação ao montante máximo a que pode ascender a indemnização arbitrada, salvo se o quantitativo desta última tiver sido objecto de indexação legal àquele capital.

Com efeito, embora a atribuição de uma indemnização a um terceiro-lesado constitua o pressuposto para a efectivação da responsabilidade assumida pela entidade seguradora, já, por outro lado, e inversamente, a existência de seguro, ou o valor por este coberto, não constituem pressuposto para a fixação do montante indemnizatório a atribuir ao lesado.

E, por outro lado, a inexistência de qualquer interdependência entre aquelas duas apontadas situações - montante da indemnização a fixar e capital seguro -, pode manifestamente extrapolar-se dos diplomas legais que regulamentam cada uma das mesmas.

Temos, assim, que, no respeitante à responsabilidade pelo risco, o normativo vigente onde aquela se contempla - art. 508° do CC -, decorre da alteração efectuada à primitiva redacção do mesmo pelo DL nº 190/85, de 24/06, alteração essa consistente na substituição do montante pecuniário taxativamente fixado para tal indemnização, pela indexação do mesmo a um múltiplo do valor da alçada da relação, e que foi justificado por este padrão de referência ser periodicamente actualizado, o que, à data da publicação daquele diploma, se mostrava vir a ser efectuado em ritmo adequado - vide preâmbulo daquele diploma -, padrão este, aliás, contrário ao propugnado pelo Prof. Sinde Monteiro, que opinava a referida indexação ao salário mínimo nacional - vide BMJ 331°/5 e segs.

Ora, à data da publicação daquele indicado diploma, a alçada da Relação era de esc. 400.000$00 - DL nº 264-C/81, de 03/09 -, enquanto que o limite mínimo do capital obrigatoriamente seguro, relativamente aos veículos automóveis ligeiros, ascendia apenas a esc. 700.000$00- DL nº 408/79, de 25/09 -, donde pois decorria que o lesado se poderia encontrar em sérias dificuldades para ser ressarcido dos danos sofridos em consequência de acidente de viação imputável a culpa, efectiva ou presumida, do lesante, ou resultante da mera responsabilidade pelo risco.

Assim, e para obviar a tais inconvenientes, a alteração do aludido normativo civil apenas começou a vigorar a partir de 1 de Janeiro de 1986 - DL nº 381-B/85, de 28/09 -, isto é, simultaneamente, ao início da vigência do DL nº 522/85, diploma este que, como foi já objecto de anterior referência, aumentou para esc. 3.000.000$00 por lesado, o capital mínimo objecto do seguro obrigatório.

Por seu turno, esta alteração foi justificada, não só pela aludida indexação dos valores indemnizatórios respeitantes à responsabilidade pelo risco, como também pela necessidade de adequação daquele indicado capital à Directiva 84/5/CEE - vide preâmbulo do referido DL nº 522/85.

Ora, e, como vem referido no estudo do Prof. Nuno Oliveira in Scientia Jurídica nº 292, págs. 97 e segs., se fosse de considerar que o valor máximo da indemnização a atribuir ao lesado, em caso de responsabilidade objectiva, se pautava pelo correspondente ao do seguro obrigatório, não seria muito racional que se verificasse, simultaneamente, a entrada em vigor de dois diplomas legais, um dos quais continha a revogação tácita de parte do conteúdo do outro, situação essa, todavia, não impossível já que então seria atendível aquele cuja data de promulgação fosse mais recente - vide "Interpretação e aplicação das leis" de Francesco Ferrara, pág. 192 -, bem como careceria de qualquer justificação a alteração ao estatuído no nº 2 do art. 508° do CC, levada a cabo pelo art. 16° do DL nº 423/91, de 30/10, por então esta se traduzir na indexação da indemnização sob a forma de renda anual a um factor de indexação que se encontrava já do antecedente revogado.

E, igualmente se pode colher um argumento, no sentido de que o montante mínimo fixado para o seguro obrigatório não corresponde ao limite máximo indemnizatório da responsabilidade objectiva, através da análise do conteúdo das normas aplicáveis à responsabilidade dos titulares da exploração de alojamentos turísticos, quanto aos danos resultantes das instalações de gás que os equipem.

Com efeito, o DL nº 449/85, de 25/10, veio estatuir a responsabilidade civil, de natureza objectiva, daqueles agentes, nos termos do art. 509°, nº 1 e 510°, nº 1 do CC, criando, simultaneamente, um seguro obrigatório de tal responsabilidade - arts. 1º, nºs 1 e 7 e 3°, nº 3 -, seguro este que veio a ser posteriormente regulamentado, sem qualquer expressa referência ao valor do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel - vide Portaria nº 490/87, de 11/07 -, situação esta que seria absolutamente incompreensível e incongruente, e inclusive contraria ao preceituado no nº 3 do art. 9° do CC, no caso de antecedentemente ao início da sua vigência se ter verificado a revogação tácita daquele limite máximo da responsabilidade pelo risco, para o qual tal diploma regulamentar remete.

Por outro lado, parece-nos ter havido por parte do legislador da codificação substantiva civil, uma evidente e clara intenção de não fazer equivaler o limite máximo da responsabilidade pelo risco ao valor do seguro obrigatório, já que, dada a simultaneidade do início da vigência dos diplomas que alteraram os referidos valores -- 1 de Janeiro de 1986 -, desde logo seria, e será, utópico imaginar, que o valor da alçada dos tribunais de 2ª instância poderia alguma vez atingir um montante em que o seu dobro correspondesse ao quantitativo mínimo do seguro obrigatório indicado na Directiva já então publicada.

É certo que aquele indicado diploma comunitário, e no que respeita à cobertura dos danos materiais e corporais dos lesados, não estabelece qualquer distinção entre a responsabilidade culposa, culpa efectiva ou presumida, e a responsabilidade pelo risco - art. 1°, nº 1 -, consignando-se, inclusive, nos seus considerandos, que os montantes até à concorrência dos quais o seguro é obrigatório devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, o que leva a concluir, portanto, que, para ser dado integral cumprimento ao fim por aquela Directiva pretendido, terá, a priori, de haver lugar à substituição do factor de indexação do montante indemnizatório da responsabilidade civil pelo risco, pelo valor correspondente ao do seguro obrigatório, permitindo, desde logo e dessa forma tal alteração, uma efectiva e permanente actualização daquele montante máximo relativo à indemnização a atribuir ao lesado.

E, caso se entendesse ser de aplicar o princípio da prevalência da aplicação do direito comunitário sobre o direito nacional, tal interpretação enfermaria de manifesta inconstitucionalidade, por falta de observância da imposição constitucional relativa à forma de transposição daquelas normas comunitárias - arts. 8°, nº 3 e 112º, nº 9 da CRP e 249°, 3° § do TCE.

Temos, pois, que, perante o que vem de explanar-se, não assiste a este Tribunal competência específica para apreciar a aludida omissão do Estado Português, consubstanciada na violação do estatuído no art. 10° do TCE no que tange à não transposição para o direito interno nacional do integral conteúdo da 2ª Directiva Automóvel (84/5/CEE) - vide págs. 280 a 283 da obra antecedentemente referida do Dr. Miguel Henriques -, omissão essa que, embora gravemente lesiva do ressarcimento dos danos sofridos pelos lesados em caso da ocorrência de responsabilidade objectiva, não pode, por falta de normativo legal de tal permissivo, ser suprida pelos órgãos jurisdicionais nacionais, pelo que, consequentemente, não poderão merecer acolhimento deste Tribunal as conclusões 4ª) a 7ª).

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III- RECURSO DA RÉ COMPANHIA SE SEGUROS...

A- Nas conclusões que apresentou nas suas alegações, esta recorrente vem restringir a sua discordância, relativamente à sentença proferida, aos seguintes pontos:

- valor da alçada a considerar; e
- inexistência de juros de mora.

Não foram apresentadas pelo A quaisquer contra alegações.
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B- Assim, na decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância, a ora recorrente foi condenada no pagamento ao A da quantia de esc. 6.000.000$00 - € 29.927,88 -, uma vez que o montante da alçada da Relação é, de acordo com a redacção do art. 24° da LOFTJ, de € 14.963,94, vindo agora sustentar a Ré, que tal valor não pode exceder € 19.951,92 - conclusões 1ª) a 3ª).

Ora, de acordo com o decidido, e que, pelos motivos explanados em II - D da presente peça não se mostra susceptível de alteração quanto à natureza da responsabilidade a imputar ao segurado da ora recorrente, a indemnização arbitrada teve por fundamento a responsabilidade pelo risco, correspondendo o valor máximo da mesma ao dobro da alçada do tribunal de 2ª instância, em conformidade, aliás, com o disposto no art. 508°, nº 1, 1ª parte, do CC.

Porém, à data da ocorrência do acidente a que se reportam os autos - 1997/09/07 -, a alçada do tribunal da Relação ascendia ao montante de esc. 2.000.000$00 - art. 20°, nº 1 da Lei nº 38/87, de 23/12 -, valor este que foi alterado para esc. 3.000.000$00 pela actualmente vigente Lei nº 3/99, de 13/01 - art. 24°, nº 1.

Todavia, se uma situação jurídica se acha já constituída à data da entrada em vigor da lei nova, nomeadamente porque sendo a mesma de constituição instantânea, como ocorre com os acidentes de viação, se produziu já o facto que a faz surgir, tal situação subsistirá imutável perante a lei nova, verificando-se, dessa forma, uma espécie de sobrevigência, sob o domínio daquela última lei, de uma situação criada à sombra da lei antiga - vide art. 12°, nº 2, 1ª parte, do CC e "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil" do Prof. Baptista Machado, pág. 69.

Temos, assim, que o valor atendível para efeitos da determinação do quantitativo indemnizatório terá de ser aferido pela lei vigente à data da ocorrência do evento gerador de tal ressarcimento, não podendo, portanto, lançar-se mão, para a efectivação daquele cálculo, de elementos que se não mostravam para tal aplicáveis à data da ocorrência do mesmo, ou seja, desde logo fica precludida a possibilidade de lançar mão do factor de indexação do valor da alçada da Relação, reportado ao momento temporal da decisão, pelo que a indemnização a arbitrar ao lesado terá de ser de € 19.951,92, como correspondente ao valor máximo legalmente estabelecido para a responsabilidade pelo risco.

Procedem, pois, as conclusões 1ª) a 3ª).
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C- Alega, igualmente, a recorrente/seguradora que, destinando-se os juros moratórios a fazer face aos efeitos da inflação, a impossibilidade de actualização da indemnização fixada, atento o limite constante do art. 508º do CC, preclude a possibilidade de vir a ocorrer qualquer condenação nos mesmos - conclusões 4ª) a 6ª).

Com efeito, na decisão impugnada, a indemnização arbitrada ao lesado foi acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação - vide fls. 308.

Ora, a referida indemnização, em consequência do facto gerador da ocorrência do acidente haver sido enquadrado no domínio da responsabilidade objectiva, ficou, como se aludiu, legalmente limitada ao montante correspondente ao dobro da alçada da Relação - art. 508º, nº 1, 1ª parte, do CC.

E, no âmbito da responsabilidade pelo risco, o devedor fica constituído em mora desde a citação - art. 805°, nº 3, parte final, do CC -, decorrendo do preâmbulo do diploma legal que introduziu tal redacção ao referido normativo - DL nº 262/83, de 16/06 -, que, através da referida alteração, foi tido em vista estabelecer um termo inicial específico da mora do lesante-devedor .

Na verdade, e no que se refere à responsabilidade objectiva, não foi objecto de consagração legal a constituição do lesante em mora a partir do momento da ocorrência do evento gerador da indemnização, contrariamente ao estatuído no âmbito da responsabilidade decorrente da prática de facto ilícito, - art. 805°, nº 2, al. b) do CC -, pelo que a redacção introduzida pelo referido DL nº 262/83 teve, em nosso entender, por objectivo, e dada a análoga natureza da indemnização resultante da responsabilidade em ambas fundada; colmatar tal omissão, através da fixação do indicado termo inicial para o ressarcimento da responsabilidade pelo risco.

Por outro lado, com a redacção dada àquele indicado normativo relativo à mora, pretendeu consagrar-se um agravamento da indemnização exigível do devedor responsável pelo dano, por forma que a demora no seu pagamento, com a contínua desvalorização da moeda, não resulte em benefício do lesante - vide "Anotado" dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, 4ª edição, pág. 65.

Ora, se é certo, como antecedentemente se referiu, que o montante indemnizatório a atribuir ao lesado se encontra pré-fixado no que respeita ao seu valor máximo, de tal não resulta que, entre o momento da ocorrência dos danos que a referida indemnização se destina a reparar, ainda que parcialmente, e o momento em que a mesma é integrada na esfera patrimonial do lesado, através do seu pagamento, se não verifique erosão da moeda, nomeadamente tendo em linha de consideração a inexistência de uma inflação de valor zero, só por utopia hipotetizável.

Assim, a sufragar-se a tese sustentada pela Ré COMPANHIA DE SEGUROS..., tal redundaria, em caso de responsabilidade pelo risco, e com fundamento na determinação, por via legal, do montante máximo a que poderia ascender a indemnização a satisfazer pelo lesante, a inserir no domínio da responsabilidade civil extracontratual o princípio nominalista inerente às obrigações pecuniárias - art. 550° do CC -, o que manifestamente contraria a natureza daquela indemnização como uma obrigação de valor - "Inflação e direito civil" do Prof. Pinto Monteiro, pág. 23.

Pode, pois, concluir-se que, no estrito âmbito da responsabilidade objectiva, em que o montante da indemnização liquidada exceda o valor máximo para a mesma legalmente fixado, só através da atribuição de juros moratórios se torna possível contrabalançar a desvalorização monetária sofrida pelo quantitativo indemnizatório arbitrado, durante o período temporal que decorre entre a propositura da acção e a fixação da referida indemnização.

Improcedem, portanto, as conclusões 4ª) a 6ª).
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IV- Perante o exposto, decide-se:

- julgar improcedente o recurso interposto pelo A; e
- julgar, em parte, procedente o recurso interposto pela Ré COMPANHIA DE SEGUROS... e, em consequência, altera-se a sentença apelada, condenando-se aquela no pagamento ao A da quantia de esc. 4.000.000$00, ou seja, na moeda com actual curso legal € 19.951,92 - dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos -, no mais se confirmando a sentença apelada.

Custas, em ambas as instâncias, na proporção dos respectivos vencimentos e decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o A .
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PORTO, 12 de Junho de 2003
José Joaquim de Sousa Leite
António Domingues Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu