Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0730992
Nº Convencional: JTRP00040189
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP200703150730992
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 710 - FLS. 160.
Área Temática: .
Sumário: I- Decorre do preceituado no artº 186º, nº 1 do CIRE que, para a insolvência ser qualificada como culposa, é necessário que interceda, em termos de causalidade - criando-a ou agravando-a -, a actuação do dever , que tem de ser dolosa ou com culpa grave.
II- Enquanto no nº 2 do citado artº se estabelece uma presunção "juris et de jure" da verificação dos sobreditos requisitos, com a inerente e inexorável atribuição de carácter culposo à insolvência, o respectivo nº 3 apenas contempla uma presunção "tantum juris" de actuação com culpa grave, à qual sempre deverá acrescer a demonstração de que a mesma criou ou agravou a situação de insolvência, para que esta possa ser qualificada de culposa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.

A Sra Administradora da Insolvência veio, ao abrigo do disposto no artigo 188° nº 2 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, apresentar parecer, propondo a qualificação da insolvência de B…………………, Lda, como culposa.

Alegou para o efeito que a insolvente não requereu a sua declaração de insolvência nem elaborou ou depositou as contas anuais relativas aos anos de 2001 a 2006.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, pelos mesmos fundamentos.

O gerente da insolvente C……………. deduziu oposição àquela qualificação, alegando que:
- à data de verificação dos pressupostos da insolvência, o CIRE ainda não se encontrava em vigor, razão pela qual não tem aplicação ao caso dos autos;
- o não cumprimento das obrigações declarativas fiscais, por si só, não é adequado a qualificar a insolvência como culposa.

Por se entender que o processo continha já os elementos suficientes, passou a conhecer-se do mérito, tendo-se decidido qualificar a insolvência de "B………….., Lda" como fortuita.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, de agravo, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:

1. O art. 186º nº 3, al. a) do CIRE estabelece uma presunção tantum juris, que atribui carácter culposo, sob a forma de culpa grave, aos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular sempre que os mesmos tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
2. Com a referida presunção pretendeu o legislador, em complemento e concretização da definição de carácter geral que consagrou no nº 1 do referido preceito legal, dispensar a prova do nexo causal entre a não apresentação à insolvência e o agravamento ou o surgimento da situação deficitária do devedor.
3. Tal dispensa implica, ao abrigo do disposto nos arts. 349º, 350º e 344º do Código Civil, a inversão do ónus da prova, passando este a caber ao devedor ou aos seus representantes legais no caso das pessoas colectivas, que deverão alegar e provar os factos que demonstrem que a não apresentação à insolvência não contribuiu para o agravamento da situação do devedor.
4. No caso dos autos, uma vez verificada a referida presunção e não tendo o devedor ou os seus representantes legais sequer alegado os factos de sentido contrário ao da referida presunção, deve a presente insolvência ser enquadrada de acordo com o previsto no nº 1 do art. 186º e, nessa medida, ser a mesma qualificada como culposa.
5. Ao decidir nos termos em que o fez na douta sentença de que se recorre, fez a Mma. Juiz a quo, uma interpretação desconforme ao que resulta da correcta interpretação do disposto nas disposições legais acima citadas.
Termos em que, revogando-se a decisão recorrida, se deverá qualificar a presente insolvência como culposa.

O Recorrido contra-alegou, concluindo pelo não provimento do agravo.
A Sra. Juíza sustentou a sua decisão.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Trata-se apenas de decidir se a insolvência declarada deve ser qualificada como culposa ou fortuita.

III.

Na decisão recorrida, foram considerados provados estes factos:
1. A insolvente encerrou de facto a sua actividade em 2001;
2. O encerramento fiscal ocorreu em Maio de 2004;
3. A presente insolvência foi requerida por "D………….., Lda" em 04/05/2006;
4. A insolvente não elaborou nem depositou as contas anuais relativas aos anos de 2001 a 2004.

IV.


Dispõe o art. 186º do CIRE:
1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto (...).
2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham (...).
3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial
(...)

Com referência ao regime previsto no nº 3 a) e b) desta disposição legal, entendeu-se na decisão recorrida que, tendo em conta a data da entrada em vigor deste diploma (art. 3º do DL 200/2004, de 18/08) – 15.09.2004 – nenhuma responsabilidade poderia ser assacada ao gerente da insolvente, no que respeita à obrigação de elaboração e depósito das contas.
Entendimento diferente foi adoptado no que respeita ao dever de apresentação à insolvência, por não poder deixar de considerar-se que o mesmo nasceu na esfera jurídica do gerente no momento da entrada em vigor do CIRE, aí se iniciando o prazo de 60 dias previsto legalmente para o efeito (art. 18º).
Nesta parte, a decisão não suscitou qualquer discordância.

Acrescentou-se, porém, na douta decisão:
Dispõe o artigo 186°/1 do CIRE que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O n° 2 do normativo em apreço enumera as situações em que a insolvência se considera sempre culposa, enquanto o n° 3 enumera as situações em que se presume a existência de culpa grave.
Ora, a formulação dos dois números é substancialmente diversa: enquanto a verificação das situações previstas no n° 2 conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa, a verificação dos factos previstos no nº 3 apenas faz presumir, de forma ilidível, a existência de culpa grave.
Mas mesmo verificando-se a presunção, por não ter sido ilidida, exige-se ainda a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela dita conduta culposa dos administradores.
No caso dos autos, independentemente de, em sede de audiência, poder o gerente provar factos tendentes a ilidir a presunção, o certo é que em lado algum dos autos se mostra sequer alegado que a falta de apresentação à insolvência tenha agravado essa situação, isto é, os autos não permitem concluir pelo nexo causal entre a omissão (ainda que culposa) do gerente e o agravamento da situação de insolvência.
Assim sendo, concluímos não se verificarem os pressupostos de qualificação da presente insolvência como culposa.

Analisada a referida disposição legal, subscreve-se sem hesitação a fundamentação exposta.
Da norma do art. 186º nº 1 resulta claramente que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que interceda em termos de causalidade – criando-a ou agravando-a – a actuação do devedor; actuação que tem de ser dolosa ou com culpa grave.
No nº 2 do mesmo artigo, estabelece-se uma presunção iure et de iure (considera-se sempre) da verificação daqueles requisitos; as situações aí previstas determinam, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência (1).
Mas, enquanto no nº 2 se considera sempre culposa a insolvência, no nº 3 apenas se estabelece uma presunção de culpa grave, presunção que é ilidível(2).
Neste caso, portanto, tem de demonstrar-se ainda que a actuação com culpa grave presumida criou ou agravou a situação de insolvência.

A este propósito, afirma-se(3) que a qualificação da insolvência como culposa exige uma relação de causalidade entre a conduta do devedor e o estado declarado de insolvência, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a “criação” ou “agravamento” da insolvência. Fora dos casos previstos no nº 2, deve ser provada a culpa e o nexo de causalidade (…). O nº 2 do artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a actuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.

No caso, como se salientou na decisão recorrida, não se apurou que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada pela omissão, mesmo que culposa, do gerente da insolvente.
Daí que não pudesse qualificar-se a insolvência como culposa.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.
V.

Em face do exposto, decide-se negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas – art. 2º nº 1 a) do CCJ.

Porto, 15 de Março de 2007
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
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(1) Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Vol. II, 14; Carvalho Fernandes, A Qualificação da Insolvência (…), em Thémis, 2005, Ed. Especial sobre o Novo Direito da Insolvência, 94.
(2) Autores e Obras Citadas, 15 e 94, respectivamente. Cfr. também Teles de Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2ª ed., 175 e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, 2ª ed., 68.
(3) Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins, CIRE Anotado, 2ª ed., 265 e 266.