Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0421774
Nº Convencional: JTRP00035112
Relator: DURVAL MORAIS
Descritores: ALD
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP200405040421774
Data do Acordão: 05/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: O contrato de aluguer de longa duração (ALD) pode ser validamente resolvido por uma das partes por incumprimento da outra, não carecendo a resolução de ser judicialmente decretada (artigo 436 do Código Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I - B....., SA, com sede na Rua....., no...., intentou a presente acção sob a forma ordinária, contra C.... e D....., residentes em....., pedindo:
a) Seja declarada a resolução do contrato celebrado com os Réus, com efeitos a partir de 17/04/2002;
b) A condenação dos RR. a restituírem o veículo identificado;
c) A condenação dos Réus a pagar a quantia de 782,87€, correspondente aos alugueres vencidos e não pagos e respectivos juros, acrescida de juros de mora vincendos à taxa contratual fixada acrescida de 4%, sobre o montante de 657,27€; desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento;
d) A condenação dos Réus a pagar o prémio do seguro, no montante de 173,66€, correspondente às mensalidades do seguro e respectivos juros, acrescida de juros vincendos à taxa contratual fixada, acrescida de 4% sobre 148,80€, desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento;
e) A condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia que se vier a determinar em sede de execução de sentença, correspondente à mora na restituição do veículo, prevista na cláusula 17ª do contrato;
f) A condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia que se viera a calcular em execução de sentença, a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos por esta suportada em razão directa da resolução contratual, prevista na alínea b) da cláusula 16ª do contrato.
Alegou, em síntese, ter celebrado com os Réus um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor de longa duração, não tendo estes procedido ao pagamento das mensalidades a que se obrigou.
A Autora procedeu à resolução do contrato em 17/04/2002.
Os Réus não procederam à entrega do veículo, nem ao pagamento das rendas em dívida.

Uma vez citados nas suas pessoas, os Réus não contestaram.

Foi dado cumprimento ao artº 484º, não tendo a A. alegado.

Finalmente, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando os RR. a:
- pagar à A. a quantia de € 657,27, de alugueres vencidos;
- pagar à A. a quantia de € 173,66, das mensalidades de seguro e juros, acrescida de juros vincendos à taxa contratual, acrescida de 4% sobre 148,80 €.

Inconformada a Autora apelou, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª- Os Réus não pagaram as mensalidades vencidas aos dias 27 dos meses de Agosto a Outubro de 2001, Dezembro de 2001, Janeiro e Fevereiro de 2002 (artº 6° da P.I);
2ª- A apelante interpelou os Réus para que liquidassem aquelas mensalidades vencidas por carta de 18 de Março de 2002 (artº 7° da P.I);
3ª- A apelante, por carta de 17 de Abril de 2002 comunicou a resolução do contrato nos termos convencionados, solicitando de novo o pagamento das quantias em aberto e a restituição da viatura (artºs 8° e 9° da P.I);
4ª- Os Réus não procederam à devolução da viatura nem pagaram as quantias em dívida (artº 11° da P.I).
5ª- E, continuam a usufruir e a circular com a viatura em causa (artº 11° da P.I);
6ª- O contrato de aluguer de veículos automóveis sem condutor, está sujeito ao regime especial fixado pelo DL 354/86 de 23 de Outubro.
7ª- Estabelece o artigo 17º que a empresa de aluguer, como o é a aqui apelante, tem o direito de “Rescindir o contrato nos termos da Lei”.
8ª- Tal remissão do nº 4 do art. 17º, só pode entender-se como uma remissão para o regime geral da resolução dos contratos previsto nos artigos 432º e ss. do C.Civil, maxime a norma do artigo 436º do mesmo Código que refere que "a resolução do contrato pode fazer-se mediante comunicação à outra parte".
9ª- Estando assim, facultada à apelante o direito de resolver o contrato de aluguer do veículo referido por simples comunicação por escrito aos Réus, como efectivamente o fez, ao abrigo do disposto não só na clausula 16ª das condições gerais do referido contrato, mas também dos artigos 432º e 436º do C. Civil.
10ª- Não seria consentâneo com as normas legais, considerar nulas as cláusulas que prevêem a resolução do contrato, quando é a própria lei substantiva, na parte referente aos contratos em geral - art. 432º C. Civil - que concede tal possibilidade desde que resulte de convenção, e o certo é que a cláusula de resolução está expressamente prevista no contrato.
Termina, pedindo se revogue a sentença em crise, ordenando-se a sua substituição por outra a proferir.

Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
a) A Autora exerce a actividade de aluguer de veículos, com ou sem condutor.
b) No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com os Réus, em 23/07/2001, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, junto a fls. 10 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo por objecto um veículo de marca “Aprilia Estrada”, com a matrícula ..-..-SA, pelo prazo de 61 meses, contra o pagamento de um aluguer mensal no valor de 276,04€, o primeiro; e de 106 € os demais, acrescidos de IVA.
c) A viatura em causa foi entregue aos Réus no dia 23/07/2001.
d) Os Réus não pagaram os alugueres vencidos de 27/08/2001 a 27/10/2001, nem o aluguer vencido em 27/12/2001 bem como todos os que se venceram posteriormente.
e) Por força da cláusula 12º das condições gerais do contrato, os Réus ficaram obrigados a custear, relativamente ao prazo de duração do aluguer, um seguro, cujo beneficiário seria a Autora, que abrangesse as eventualidades de perda e deterioração, casuais ou não, do veículo, bem como um seguro de montante ilimitado que abrangesse a responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela sua utilização, tendo ficado convencionado que os Réus pagariam o respectivo prémio.
f) Os Réus não pagaram as mensalidades relativas a Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro de 2001, nem as de Janeiro e Fevereiro de 2002.
g) A Autora interpelou a Ré, por carta registada com aviso de recepção datada de 18/03/2002, junta a fls. 12 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para proceder ao pagamento dos alugueres vencidos e juros de mora, sob pena de “(…) considerarmos resolvido o contrato em apreço (...)”.
h) A Autora, através de carta registada com aviso de recepção datada de 17/04/2002, junta a fls. 14 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, recebida pelos Réus, comunicou a estes que “(...) vimos pela presente informar que nesta data resolvemos o contrato (...)”.
i) Até hoje, os Réus não pagaram qualquer quantia à Autora nem procederam à devolução do veículo locado.
Consideramos ainda provado por documento:
j) Mostra-se ainda clausulado que, "para além dos mais casos previstos na lei, o presente contrato poderá ser resolvido extrajudicialmente por iniciativa da B....., SA, sempre que o locatário incumpra definitivamente alguma das suas obrigações. O incumprimento temporário, ou como tal reputado, quer de obrigações pecuniárias, quer de outras, tornar-se-á definitivo pelo envio pela B....., SA para o domicílio ou sede do locatário de carta registada intimando ao cumprimento em prazo razoável (que desde já é fixado, para todas as obrigações, em oito dias) e pela não reposição nesse prazo da situação que se verificaria caso o incumprimento não houvesse tido lugar”(cláusula 16º, a).
l) “Como consequência da resolução do contrato, a B....., SA terá o direito de retomar o veículo, reter as importâncias pagas pelo locatário e de exigir as vencidas e não pagas até à data da resolução, bem como a de ser indemnizado pelos prejuízos resultantes da resolução do contrato” (cláusula 16º c).
m) “Se, cessando o aluguer, por decurso do prazo, denúncia ou resolução, o locatário não devolver atempadamente o veículo, a B....., SA terá direito, a título de cláusula penal por esta mora na devolução, a receber uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito se o aluguer permanecesse em vigor e por um lapso de tempo igual à mora” (cláusula 17º).

III - O DIREITO.
São as seguintes as questões a resolver:
a) Resolução do contrato de aluguer de longa duração;
b) Direito à restituição do veículo.
1ª QUESTÃO (resolução do contrato):
Escreveu-se na sentença em crise, a respeito da resolução do contrato:
“…Haverá sempre que levar em consideração o disposto no artº 1047º do Código Civil, nos termos do qual a resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal”.
E mais adiante:
“Como tal, não se pode considerar anteriormente resolvido, de forma válida, o contrato de aluguer em causa…”.
Que dizer?

Reportam-se os autos os autos a um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor - aluguer de longa duração (ALD), celebrado entre a Autora e o Réu.
Trata-se, portanto, de um contrato de aluguer, de feição especial, a que são aplicáveis, para além das disposições especiais previstas no Dec. Lei n° 354/86 de 23/10, com a alteração introduzida pelo DL n° 44/92, de 31/3, pelas normas gerais dos contratos de locação, pelas disposições gerais dos contratos e pelas cláusulas estabelecidas pelos contraentes que não estiverem em contradição com aquelas quando de ordem imperativa.
Considera a sentença em crise que, no tocante ao modo de efectivar a resolução do contrato de aluguer em causa, aplica-se o disposto no art° 1047° do Cód.Civil, que impõe que a resolução desse contrato seja decretada pelo Tribunal.
Com o devido respeito, não partilhamos tal entendimento.
Como vem sendo defendido por grande parte da jurisprudência, que aqui inteiramente sufragamos, o contrato de aluguer de veículos sem condutor pode ser resolvido por simples comunicação ao contraente que não cumpriu (cfr., neste sentido, a título de exemplo, Acs. da Rel. Lisboa, de 2/10/1998, BMJ, 480-534 e de 11/11/1999, Co1.Jur. 99, T. V, Pág. 83; e da Rel. Porto, de 21/11/2002, Co1.Jur. 2002, TV, pág. 180).
No mesmo sentido, aliás, vai o também recente Acórdão desta 2a Secção, de 4/12/2001 (cfr. Col. Jur. 2001, T. V, pág. 204 e seguintes).

Dispõe o art. 17°, n° 4 do Dec.Lei n° 354/86, que é “lícito à empresa de aluguer sem condutor retirar ao locatário o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais».
Este normativo não refere a forma que deve traduzir a resolução, isto é, se a forma prevista na lei geral dos contratos (art° 432° do Cód.Civil), se a constante desse o art° 1047° para o contrato de locação.
Porém, não nos parece que o legislador, ao aludir no referido art° 17°, n° 4 aos “termos da lei”, estivesse a pensar na intervenção obrigatória do tribunal para o decretamento da resolução do contrato, como o impõe o citado art° 1047°, o que, de resto, nem sequer se harmonizava com a duração limitada do contrato de aluguer
Como bem se assinala no Acórdão desta Secção de 4/12/2001, acima citado, “seria redutor e incongruente com as normas legais - art° 9° do C. Civil -, como temos visto sustentar e sufragamos inteiramente, considerar nulas as cláusulas que prevêem a resolução desse mesmo contrato, quando é a própria lei substantiva, na parte referente aos contratos em geral, que o prevê e permite e, nomeadamente, no art° 432°, n° 1 do C. Civil, quando concede tal possibilidade desde que resulta de «convenção», como vem a ser o caso, uma vez que a cláusula resolutiva está expressamente configurada no contrato.”

Dúvidas não temos que a interpretação mais correcta do referido art° 17°, n° 4 será a de que a resolução do contrato de aluguer de veículo sem condutor pode ser feita por simples comunicação ao locatário incumpridor, como é permitido pelo art° 436° do Cód.Civil.
Assim sendo, ao contrato dos autos devem ser aplicadas as normas relativas aos contratos de aluguer do art. 17°, n° 4, do Dec.Lei 354/86 .
Aliás, o artº 436°, n° 1 do Cód.Civil estabelece que a resolução do contrato se pode fazer mediante declaração à outra parte.
Estamos certos que o art' 1.047° do C. Civil, norma em que o MO Juiz «a quo» se baseou para justificar a sua decisão, tem de ser entendida como específica para o caso de resolução de um contrato de arrendamento predial e tal só por banda do senhorio, sendo imperativa para essas situações, mas não deve ser aplicada aos contratos de aluguer de veículos automóveis sem condutor, sob pena de se olvidar todo o restante ordenamento jurídico que com os contratos têm afinidade.
O contrato de aluguer de automóveis tem natureza especial, que, como acima se referiu, se regula, no essencial, pelas normas do Dec. Lei que o institui, pelas normas gerais do contrato de locação de coisas móveis, pelas disposições gerais dos contratos, e pelas cláusulas estabelecidas pelos contraentes, que não as contradigam quando imperativas.
A resolução traduz-se na destruição da relação contratual, operada por acto posterior da vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.
«A resolução é a destruição da relação contratual, operada por acto posterior de um dos contra entes, com base num facto posterior à celebração do contrato» - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. II, 3ª ed, pág.242.
Ela pressupõe que um dos contraentes viola a convenção, o que permite ao contraente que cumpriu ou se apresta a cumprir libertar-se do vínculo contratual.
Assim, a Autora tinha fundamento legal para extinguir a relação contratual por resolução
(art°801 ° do Cód.Civil e cláusula 16º, a) do contrato de aluguer junto com a petição inicial).
Procedem, nesta parte, as respectivas conclusões.

A A, para além do mais, pediu a condenação dos RR. a pagar-lhe “a quantia que se vier a calcular em execução de sentença a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos por esta suportados em razão directa da resolução contratual”.
A este respeito, escreve-se na decisão em crise:
“Por último, pretende a Autora o que se vier a determinar em sede de execução de sentença, a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos suportados pela Autora em razão directa da resolução do contrato, prevista na alínea b) da cláusula 16ª do contrato.
Uma vez que, como já referimos à abundância, o contrato não foi validamente resolvido, então o pedido em causa tem necessariamente de improceder.”

É bom de ver que tal decisão, face à, por nós julgada, válida resolução do contrato efectuada pela A., não se pode manter, antes se impondo a condenação dos RR., também quanto a este pedido.
2ª QUESTÃO (restituição do veículo):
Escreveu-se na decisão recorrida:
“…Em consequência de tal decisão, então terá necessariamente de improceder o pedido relativo à restituição do veículo.
Com efeito, não se encontrando o contrato validamente resolvido, então o mesmo continua a vigorar em pleno, pelo que os réus têm direito à manutenção do gozo do prédio.
Competiria à Autora, de acordo com este entendimento, ter peticionado expressamente a resolução do contrato pelo tribunal, com base no não pagamento dos alugueres convencionados, o que não foi feito.”
Que dizer?

Dispõe a cláusula 16ª c) que, “Como consequência da resolução do contrato, a B....., SA terá o direito de retomar o veículo, reter as importâncias pagas pelo locatário e de exigir as vencidas e não pagas até à data da resolução, bem como a de ser indemnizado pelos prejuízos resultantes da resolução contrato” (cláusula 16° c).
Assim, perante a válida resolução do contrato em causa, o pedido de restituição do veículo tem também de proceder.

Pediu também a Autora a condenação dos RR. “a pagarem-lhe a quantia que se vier a determinar em sede de execução de sentença, correspondente à mora na restituição do veículo.”

A este respeito, escreveu-se na decisão em recurso:
“Tal como nos pedidos anteriores, a Autora fundamenta este pedido na resolução do contrato por ela operado em 17 de Abril de 2002.
Porém, sabemos já que tal resolução não é por nós considerada válida, pelo que tal pedido terá de improceder.”

Em face da por nós tomada posição quanto à validade do contrato, também esta decisão se não pode manter.
Procedem, nesta medida, as conclusões da alegação da apelante.
***
IV - Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação, em função do que se condena os RR a:
a) Restituir o veículo à Autora;
b) Pagar à Autora a quantia que se vier a calcular em execução de sentença correspondente à mora na restituição do veículo;
c) Pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos por esta suportados em razão directa da resolução do contrato.
No mais, se mantendo o decidido em 1ª instância, quanto à condenação dos RR..
- Custas pelos RR..

Porto, 04 de Maio de 2004
Durval dos Anjos Morais
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho