Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0724495
Nº Convencional: JTRP00040896
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXECUÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP200711120724495
Data do Acordão: 12/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 259 - FLS 199.
Área Temática: .
Sumário: O conhecimento oficioso da incompetência em razão do território, em matéria de execução, abrange apenas (para além do nº 2) a primeira parte do nº 1 do art. 94º do CPC (redacção da Lei 14/2006, de 26/4), isto é, a regra do tribunal do domicílio do executado. Excluídos desse conhecimento ficam as situações respeitantes às opções aí concedidas ao exequente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

A ora recorrente “B………., S.A.”, com sede em ………., ………., Vale de Cambra, vem interpor recurso do douto despacho proferido no tribunal judicial dessa comarca, nos autos de execução para pagamento de quantia certa, que aí correm seus termos contra a executada “C………., Lda.”, com sede no ………., ………., n.º .., ………., Tomar, intentando ver revogada essa decisão da 1.ª instância que declarou oficiosamente incompetente em razão do território o tribunal da comarca de Vale de Cambra e competente o da comarca de Tomar ou aquele em que o banco sacado tem o seu estabelecimento principal (com o fundamento aduzido no douto despacho de que o que releva para o caso é o domicílio da executada ou do lugar em que a obrigação deva ser cumprida), alegando, para tanto e em síntese, que não concorda com essa conclusão a que chegou o Mm.º Juiz ‘a quo’ no despacho recorrido, pois que lhe não era sequer possível conhecer oficiosamente da competência territorial do tribunal, como de resto já acontecia antes da nova redacção introduzida nos artigos 94.º e 110.º do Código de Processo Civil pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril. Acresce que nos encontramos aqui “perante uma execução dispensada de despacho liminar”, pelo que se não “vislumbra a oportunidade do despacho liminar em causa, que consubstancia a prática de um acto não admitido por lei – uma nulidade”. Em tais termos, “deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se que o mesmo seja substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução no Tribunal recorrido”.
Não foi apresentada qualquer resposta.
O Meritíssimo Juiz sustentou o decidido.
Nada obsta ao conhecimento deste recurso.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) A recorrente “B………., S.A.”, sedeada em ………., ………., Vale de Cambra, intentou a 24 de Janeiro de 2007 no Tribunal Judicial da comarca de Vale de Cambra a presente execução para pagamento de quantia certa (dívida comercial), dando à execução três cheques do “D………., S.A.”, num valor global de 4.301,61 (quatro mil, trezentos e um euros e sessenta e um cêntimos), acrescidos dos juros vencidos e vincendos, contra a executada “C………., Lda.”, sedeada no ………., ………., n.º .., ………., Tomar (vidé o douto requerimento de fls. 2 a 3 dos autos, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido e, bem assim, a data de entrada nele aposta, complementado pelos cheques que constituem os documentos de fls. 6 dos autos).
2) Mas por despacho do Mm.º Juiz do processo de 27 de Fevereiro de 2007, foi considerado territorialmente incompetente para a execução o tribunal da comarca de Vale de Cambra e competente o tribunal da comarca de Tomar ou o tribunal do local “em que o sacado tem o seu estabelecimento principal, calculando-se que seja Lisboa ou Porto”, também nos seguintes termos: “(…) Ora, face ao exposto, do ponto de vista da competência territorial para a presente acção é aplicável o disposto no artigo 94.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado, podendo o exequente optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deva ser cumprida quando o executado seja uma pessoa colectiva, sendo este o caso dos autos. Trata-se de uma questão de conhecimento oficioso, como resulta do preceituado nos artigos 110.º, n.º 1, alínea a) e 94.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Civil. Sendo, ‘in casu’, o domicílio da executada situado no concelho de Tomar, competente para a execução é o Tribunal que aí se situa (...), ou o Tribunal territorialmente competente no local em que o sacado tem o seu estabelecimento principal, calculando-se que seja Lisboa ou Porto (…)” – (vidé a douta decisão de fls. 16 a 17 dos autos, cujo teor aqui igualmente considero como reproduzido na íntegra).
3) Entretanto, a 09 de Abril de 2007 foi a executada citada nos autos para os termos da execução e deste recurso, conforme o ofício de fls. 34 e o aviso de recepção de fls. 35 dos autos, não se tendo apresentado a dizer nada.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão deste Tribunal é a de saber se o Mm.º Juiz do processo podia conhecer oficiosamente do problema da competência territorial do Tribunal para apreciar a presente execução e, no caso de se afirmar que sim, se o competente é o Tribunal judicial da comarca de Vale de Cambra __ onde a execução se mostra instaurada __, se o Tribunal judicial da comarca de Tomar __ onde a executada tem a sua sede __, ou se os das comarcas de Lisboa ou Porto __ onde o banco sacado nos cheques estará sedeado. É isso que, “hic et nunc”, está em causa, como se vê das conclusões do recurso que foi apresentado. Mas ainda antes haverá que ver, nos termos que vêm suscitados pela recorrente, se o Meritíssimo Juiz “a quo” podia sequer proferir despacho naquela ocasião do processo executivo ou praticou, ao fazê-lo, alguma nulidade. [De assinalar é que, ao fim e ao cabo, a recorrente acaba por não vir colocar em crise a bondade da decisão do Meritíssimo Juiz “a quo” quanto à efectiva não competência em razão do território do Tribunal judicial da comarca de Vale de Cambra para os termos da presente execução. Contra o que verdadeiramente se insurge é, antes, que tal pudesse ter sido conhecido “ex officio” pelo Tribunal.]
Vejamos, pois.

I – Quanto à questão da oportunidade do despacho proferido, é para notar que a recorrente, para concluir pela sua ilegalidade, o qualificou como despacho liminar – e estaríamos perante execução em que não há lugar a esse despacho liminar, nos termos do disposto no artigo 812.º-A, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil. Este o pressuposto de que parte a recorrente.
Mas tal não parece correcto, pois que se não tratou aqui da prolação de qualquer despacho liminar. O processo veio ao juiz, não para que ele proferisse despacho liminar, mas para que se pronunciasse sobre um requerimento que lhe foi dirigido pelo senhor solicitador de execução (a fls. 14 dos autos) a pedir para lhe “conceder autorização para a obtenção de informações protegidas por sigilo ou confidencialidade às entidades e com os objectivos a seguir identificados” __ ao abrigo do artigo 833.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. É que, na verdade, não havia lugar (como, realmente, não houve) à prolação de qualquer despacho liminar, sendo a penhora para ser efectuada sem a citação prévia da executada (vidé fls. 13 dos autos e o estatuído no artigo 812.º-B, n.º 1 do mesmo Código).
Assim, foi por ocasião daquela apresentação do processo ao juiz para se pronunciar sobre o mencionado requerimento que ele aproveitou para declarar a incompetência do seu Tribunal em razão do território. E se se verificar, a seguir, que isso podia ter sido feito “ex officio”, como o foi, nada obstaria, então, a que tivesse ocorrido precisamente no momento processual em que ocorreu.
Não colhe, por isso, este argumento invocado pela recorrente e dali não adveio, portanto, qualquer nulidade que inquinasse os autos.

II – Já quanto à possibilidade do conhecimento oficioso da incompetência territorial, adiantando razões e salva sempre melhor opinião que a nossa, dir-se-á que temos que lhe dar resposta negativa, pelo que o recurso terá que proceder, sendo, para já, competente territorialmente para apreciar a presente execução o tribunal da comarca de Vale de Cambra, que o mesmo é dizer que o Mm.º Juiz ‘a quo’ não podia conhecer oficiosamente a questão da eventual incompetência territorial do seu Tribunal. E é assim porque a lei como tal o quis, sendo esse o regime legal que nos rege nesta matéria.
Efectivamente, nos termos do n.º 1 do artigo 94.º do Código de Processo Civil __ na redacção introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 14/06, de 26 de Abril __, “salvos os casos especiais previstos noutras disposições, é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado, podendo o exequente optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deva ser cumprida quando o executado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do exequente na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o executado tenha domicílio na mesma área metropolitana”. Tal a regra geral de competência em matéria de execuções, como consta da epígrafe do artigo.
E, segundo o seu normativo 110.º, n.º 1, alínea a) __ também na redacção introduzida por tal Lei n.º 14/2006 __, “a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes: a) nas causas a que se referem o artigo 73.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 74.º, os artigos 83.º, 88.º e 89.º, o n.º 1 do artigo 90.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 94.º”.
A recorrente entende que apenas em relação a “casos especiais previstos noutras disposições” é que o Tribunal podia conhecer oficiosamente da questão da incompetência territorial, por ser essa a primeira parte do n.º 1 do artigo 94.º do Código de Processo Civil a que se refere a citada alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º.
Defendemos, porém, que a mencionada primeira parte do n.º 1 do artigo 94.º tem que se estender à expressão “é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado”, e só a partir daí é que começará a segunda parte do preceito, reportada às opções que o legislador concedeu ao exequente por outros tribunais que não o do domicílio do executado. E em relação a essas opções que foram concedidas ao exequente é que não pode haver conhecimento oficioso da incompetência territorial (pois que se o legislador entendeu deixar a questão à liberdade do exequente, não poderá o Tribunal meter-se nisso sem que primeiro o executado suscite o problema e, só depois, apreciar se tais opções foram, caso a caso, bem ou mal escolhidas pelo exequente).
Como assim, em matéria de execuções, relativamente à competência do tribunal do domicílio do executado __ que é a regra __ é que o juiz pode conhecer oficiosamente do problema, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil. No mais, não o poderá fazer “ex officio”. E isso por duas ordens de razões:
a) A primeira porque é preciso não esquecer a razão de ser e a génese do preceito. Ele surgiu introduzido pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, a qual teve origem na Proposta de Lei n.º 47/X (in Diário da Assembleia da República, II.ª Série-A, nº 69, de 15 de Dezembro de 2005), cuja exposição de motivos explica ser intenção do Governo, na sequência da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio (Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais) a melhoria da resposta judicial, libertando os Tribunais da excessiva litigância que os sobrecarrega – ‘maxime’ em Lisboa e Porto –, designadamente com a “introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento das obrigações”, possibilitando um aproximar da justiça ao cidadão, defender o consumidor e melhorar o equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível. Por isso é que nestes casos, atento o interesse público subjacente, se introduziu a regra do conhecimento oficioso pelo tribunal da incompetência territorial. Nos demais, onde se não fazem sentir tais prioridades, ou porque se trata de pessoas colectivas, que melhor se podem defender ou executados com domicílio nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, onde são fáceis as deslocações, optou-se por deixar a escolha do tribunal territorialmente competente na mão do exequente. E, neste caso, faz sentido que a apreciação da incompetência territorial não seja oficiosa, mas apenas se vier a ser suscitada pelo executado. Esta a génese e a razão de ser do preceito.
b) A segunda razão tem a ver com o elemento sistemático, com a inserção do preceito na economia do Código, por comparação com outras situações nele previstas. E verificamos, por exemplo, que idêntico regime ficou previsto para os casos da primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º (tal qual como no nosso caso da primeira parte do n.º 1 do artigo 94.º), em que a incompetência territorial do Tribunal também pode ser conhecida oficiosamente. E tal primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º também inclui uma série de casos precisamente até às opções que são dadas ao credor, as quais constituem a segunda parte do preceito, já não de conhecimento oficioso. No artigo 94.º funciona da mesma maneira, ambos os casos (n.os 1 dos artigos 74.º e 94.º do CPC) tendo uma primeira parte que vai até às opções dadas ao credor ou ao exequente. A metodologia seguida foi, por coerência e identidade de razões, a mesma nos dois preceitos e ninguém (nem a recorrente) defenderia que não é assim no caso do artigo 74.º. Pelo que também o não poderá fazer consistentemente no caso do artigo 94.º, que ora nos ocupa.

De regresso ao caso “sub judicio”, constatamos que o Meritíssimo Juiz “a quo” acabou por conhecer “ex officio” da questão da incompetência territorial do seu Tribunal numa situação que não estava incluída na mencionada primeira parte do n.º 1 do artigo 94.º do Código de Processo Civil e, por isso, não podia tê-lo feito. Porque a sociedade executada é uma pessoa colectiva estava na mão da exequente optar pela instauração da execução noutro tribunal que não o do regime-regra do domicílio da executada, nos termos da segunda parte do artigo 94.º, n.º 1. E a análise sobre essa opção da exequente __ afinal se a execução foi bem ou mal instaurada no Tribunal judicial da comarca de Vale de Cambra __ já se insere na apreciação da incompetência territorial, mas só se for suscitada pela executada, nos termos conjugados dos artigos 94.º, n.º 1, “ab initio” e 110.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil (na jurisprudência importa ler, também neste sentido, o recente acórdão desta Relação de 20 de Novembro de 2007, tirado no processo n.º 4322/07-2, também relativo à comarca de Vale de Cambra e ainda não objecto de publicação).
Como assim, num tal enquadramento fáctico e jurídico, tem a recorrente razão nas objecções que levanta ao trabalho do Meritíssimo Juiz “a quo” __ e, embora se aduzam aqui argumentos diversos dos que vêm invocados, não deixa de se chegar à mesma conclusão __ tendo, por isso, que alterar-se o decidido e revogar-se o despacho da 1.ª instância. É o que se decidirá.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em dar provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.
Sem custas (artigo 2.º, n.º 1, al. g) do C.C.J.).
Registe e notifique.

Porto, 11 de Dezembro de 2007
Mário João Canelas Brás
António Luís Caldas Antas de Barros
Cândido Pelágio Castro de Lemos