Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0330973
Nº Convencional: JTRP00036061
Relator: VIRIATO BERNARDO
Descritores: FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
HIPOTECA LEGAL
Nº do Documento: RP200303200330973
Data do Acordão: 03/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J OVAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPEREF98 ART152.
Sumário: O artigo 152 do Código dos Processo Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência de 1998 não abrange as hipotecas legais, continuando estas a poderem constituir créditos privilegiados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no tribunal da Relação do Porto:

I - Nos autos de falência que pendem na comarca de ........., da empresa A.........., Lda, foi declarada a falência com a data de 12/06/02, e no período de trinta dias, fixado para apresentação das reclamações de créditos, vieram vários credores reclamar os seus créditos, como decorre de fls. 126 a 127 destes autos, para onde se remete.

Entre esses créditos contam-se, a par de um crédito laboral, um outro crédito do montante de € 125.196,82 do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social Delegação de .........., (doravante Instituto), proveniente de dívidas de contribuições e beneficiado com uma hipoteca legal.

Na graduação de créditos o Sr. Juiz entendeu que só o crédito reclamado pelo trabalhador José ..........., requerente da falência, beneficiaria de um privilégio especial (exceptuada a parte relativa a uma cláusula penal).

Os demais créditos, entre os quais o do Instituto, foram considerados créditos comuns.

Considerou-se, assim em síntese, que a hipoteca legal registada que favorece o Instituto não é atendível e não foi atendida como crédito privilegiado, por não se encontrar expressa na lei, não fazendo sentido deixar de fora do alcance do art. 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência (CPEREF), as hipotecas legais de que beneficiam as instituições públicas, o que seria “retirar com uma das mãos o que dava com a outra”, citando Carvalho Fernandes e João Labareda.

Nessa linha de raciocínio a graduação dos créditos foi feita pelo seguinte modo, na parte aqui relevante:

Quanto ao prédio rústico sito em ............., inscrito na matriz sob o art. 58 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ........, sob o nº ......../...... (sobre o qual estava registada hipoteca legal em benefício do Instituto):
1º - O crédito do requerente da falência o trabalhador José ..........
2º - Os demais créditos – todos com excepção do anterior foram considerados comuns -, em paridade e sujeitos a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos mesmos.

Não se considerou, pois, a hipoteca legal como constituindo um crédito privilegiado.

Inconformado com tal sentença dela apelou o Instituto apresentando alegações que remata com as seguintes conclusões:

1. O Apelante viu o seu crédito graduado como comum através de despacho de verificação e graduação de créditos proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de ......., invocando para o efeito o art. 152 do C.P.E.R.E.F..
2. Tal fundamentação legal é aplicável tão somente aos privilégios creditórios, privilégios estes que se extinguem, passando os respectivos créditos a ser exigidos como comuns, com as limitações decorrentes da parte final do art. 152º do CPEREF.
3. O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de ......... reclamou os seus créditos no montante total de 125.196,82, sendo 96.760,30 de contribuições não pagas declaradas nas folhas de remunerações respeitantes aos meses de Março/99, Junho/99 a Janeiro/01, e respectivos juros de mora vencidos até Junho/2002, no montante de €23.922,47 e ainda €643,59, respeitante a juros de mora relativos a contribuições respeitantes aos meses de Abril/99 e Maio/99, pagas fora do prazo legal.
4. O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de ........, constituiu uma hipoteca legal a qual foi registada pela Ap. .../........ para garantia da divida de contribuições referente aos meses de Março/99, Junho/99 a Junho/00, no valor de €82.082,05 (16.455.974$00) e juros de mora, no valor de € 9.409,53 (1.886.442$00), vencidos até Novembro de 2000, sobre o imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de ........, freguesia de .........., com a descrição predial nº ......./.....
5. Deve, por isso, ser graduado como privilegiado o crédito do apelante pelo produto da liquidação do imóvel supra identificado, uma vez que apenas se extinguem os privilégios creditórios de acordo com o art.152º do C.P.E.R.E.F..
6. Foram por isso violados os artigos 686°, 687°,705° e 708° do Código Civil, uma vez que as hipotecas legais constituídas, tem como finalidade a protecção dos credores hipotecários e a possibilidade de ser pago pelo produto ou valor de certos bens móveis ou imóveis.
7. Bem como foi dada ao art. 152º do CPEREF uma interpretação manifestamente "contra legem".
8. Devendo assim, ser rectificado o despacho de verificação e graduação de créditos. graduando-se o crédito do apelante como privilegiado no lugar competente.
9. Pelo que, pelo produto do bem imóvel apreendido para a massa falida e, atendendo à não aplicação do regime do art. 152º do C.P.E.R.E.F. à hipoteca legal, nos termos expostos, deverá graduar-se a hipoteca legal constituída pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de ......., pelo produto da liquidação do imóvel supra identificado, como crédito privilegiado no 2.º lugar imediatamente a seguir ao crédito do trabalhador e requerente da falência,
10. e, logo após, a parte remanescente do crédito a par dos restantes créditos comuns, rateadamente, se necessário.
11. E pela mesma ordem, para os restantes bens integrantes da massa falida.
Conclui pedindo a rectificação da sentença de verificação e graduação de crédito do apelante devendo ser considerado como privilegiado e colocado no lugar que lhe competir.

Corridos os vistos cumpre decidir.

II – Os elementos acima indicados são os suficientes para a resolução deste recurso.

III – Mérito do recurso:

Delimitado como está o âmbito do recurso pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é a de saber se a hipoteca legal constituída pelo Instituto, deve ou não ser considerada como crédito privilegiado.

A presente questão não é nova mas continua polémica.

Vejamos.

No art. 200º do CPEREF, seu nº 2, diz-se que a graduação é geral para os bens da massa falida e é especial para os bens que respeitem direitos reais de garantia.
E no seu nº 3, preceitua que na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente de penhora (...).

Dispõe por sua vez, o artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (aprovado pelo DL n° 123/93, de 23 de Abril, alterado pelo DL n° 315/98, de 20 de Outubro):

"Com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança Social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou da falência.

Extinguiram-se, assim, os privilégios creditórios de certas entidades, entre elas as instituições de segurança social.

A explicação de tal regime foi a de estender ao Estado e a outras entidades os deveres sociais de solidariedade das empresas em situação económico-financeira difícil, chamando-as “a dar exemplo de participação no sacrifício comum”, ao que no preâmbulo da lei se considera como “doutrina verdadeiramente revolucionária”.

A questão a decidir neste recurso consiste em saber se essa extinção operada no art. 152º, citado, abrange as hipotecas legais das referidas instituições.

Os Acórdãos do STJ de 18/06/02, in CJ, II, 114, bem como ac. do mesmo Tribunal de 3/3/98, in BMJ, 475, 548, já se pronunciaram quanto a questão idêntica a esta, decidindo que a norma do art. 152º citado, não abrange as hipotecas legais.

Também naquele ac. de 18/06/02, se referencia um outro ac. do mesmo Tribunal de 8.02.2001, Proc. Nº .../.. -, no qual se sustenta que a não referência no artigo 152º à hipoteca legal (à semelhança do que ocorre com o nº 2 do artigo 200º do CPEREF) foi operada muito de caso pensado pelo legislador.

Tais acórdãos do nosso mais alto Tribunal merecem a nossa inteira concordância.

Neles, em especial no mais recente, seguiu-se uma forte e bem elaborada argumentação, que aqui, data venia, ainda que em síntese, acompanharemos no essencial, e de perto.

Assim importa, antes de mais, distinguir os privilégios creditórios das hipotecas legais.

Privilégio creditório é o direito conferido a certos credores de serem pagos com preferência sobre os demais, em atenção à natureza dos seus créditos, independentemente de registo (artigo 733º do Código Civil (CC)).

Os credores são "privilegiados em atenção à origem dos seus créditos - causas que vêm indicadas em todos os privilégios, mobiliários (gerais ou especiais) ou imobiliários, referidos nos artigos 736º e segs.
Todo o privilégio tem por fonte a lei, não havendo privilégios nascidos de negócio jurídico, ao contrário do que acontece normalmente com as restantes garantias.

A hipoteca é a garantia especial que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores. pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros (artigo 686º, nº 1).
De salientar, pois, a natureza do objecto da hipoteca - coisas imóveis ou equiparadas -, sendo a natureza (imobiliária) dos bens por ela abrangidos que justifica a solução excepcional de a eficácia da hipoteca depender do seu registo, mesmo em relação as partes (artigo 687º).

Atendendo à sua fonte o artigo 703º distingue três espécies de hipotecas: as judiciais, as voluntárias e as legais, estas resultando imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes" (artigo 704º).
"As hipotecas legais resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, e podem constituir-se desde que exista a obrigação a que servem de segurança – cfr. art. 704º do CC, enumerando-se no art. seguinte os credores com hipoteca legal.
A hipoteca legal , não têm existência sem o registo acto que constitui – Antunes Varela, ob. citada, p. 557.

A sentença recorrida considerou que se impõe interpretar extensivamente aquela norma de modo a nela ver incluída a hipoteca legal a par dos privilégios creditórios cessados.

Embora, a solução não esteja isenta de dúvidas, o que resulta da divisão da doutrina e até da jurisprudência.
Assim no sentido da decisão destes autos na 1ª instância, vejam-se Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência", 38 ed., 1999, p. 404, A.; Nunes Carvalho, "Revista de Direito e de Estudos Sociais", Janeiro/Setembro de 1995; p. 86; divergindo, Salvador da Costa, "O Concurso de Credores", 1998, 1998, p. 329, António Silva Rito, "Privilégios Creditórios na nova legislação sobre Recuperação e Falência da Empresa", in Revista da Banca nº 27, Julho/Setembro 1993, p. 103.
Seguimos o entendimento jurisprudencial assinalado no acórdão que aqui acompanhamos de perto.

É que o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9°, nº 2, do CC).
Ora a norma em apreço como no preâmbulo da lei, refere-se sempre, e tão-só, a privilégios creditórios, não havendo referência a outra garantia, nomeadamente à hipoteca legal, nem se vislumbrando quaisquer elementos que pudessem sustentar a pretendida extensão da previsão legal, como se diz no acórdão citado.
Acresce que o nº 3 do artigo 9º do CC impõe ao intérprete que presuma que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" mormente quando usa expressões da técnica jurídica (Baptista Machado, em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador cit., p. 182).

O legislador não podia ignorar aquela diferenciação, entre privilégios creditórios e hipotecas.

E se deixou "no olvido as hipotecas legais'; se o legislador "entendeu por bem não se pronunciar sobre essa "omissão", a interpretação correcta a fazer é que estamos perante um "caso não regulado" (intencionalmente), que não um "caso omisso" - por outras palavras, justifica-se concluir que deparamos com um silêncio eloquente, significativo de que o legislador não quis abranger aquelas garantias (as hipotecas legais), de que as quis excluir da extinção que decretou, em suma, de que quis restringir essa extinção aos privilégios creditórios e só a eles – idem, mesmo acórdão.

Assim, entendemos com a jurisprudência e a doutrina citadas que o art. 152º não abrange as hipotecas legais, continuando estas a poderem constituir créditos privilegiados.

Procede, assim, a apelação.

IV - Decisão:

Face ao exposto procede a apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida que não atendeu à hipoteca legal constituída pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de ........ como crédito privilegiado.
E decide-se, em consonância com o explanado supra, em graduar no 2º lugar, e imediatamente a seguir ao crédito do trabalhador e requerente da falência, tal crédito, para efeito de ser pago pelo produto da liquidação do imóvel acima identificado, em conformidade à garantia resultante da hipoteca legal em causa.

Custas pela massa falida.

Porto, 20 de Março de 2003
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo
António José Pires Condesso