Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0731516
Nº Convencional: JTRP00040588
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: CIRE
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
MEDIDAS DECRETADAS
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP200709130731516
Data do Acordão: 09/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 729 - FLS 117.
Área Temática: .
Sumário: I – As normas do art. 189º, nº2, als. b) e c), do CIRE, quando estabelecem o dever de se decretar a inabilitação, bem como a inibição para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos, por determinado período (2 a 10 anos), das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, não são inconstitucionais.
II – Para que o incumprimento das obrigações previstas no art. 186º, nº3, als. a) e b), do CIRE implique a qualificação da insolvência como culposa, necessário é que fique demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento dessas obrigações e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1) - No Processo de Insolvência nº …./05.0TBSTS, em que é insolvente “B………., LDA”, veio o Administrador da Insolvência emitir parecer no sentido de ser qualificada a insolvência como fortuita.
O MP pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa.
Ouvidos os gerentes (e únicos sócios) da insolvente – C………. e D………. -, como aqueles que podem ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa, vieram estes requerer que a insolvência seja qualificada como fortuita.

2) – Em tentativa de conciliação, não se alcançou acordo.
Dispensando a produção de prova, por desnecessárias por as questões suscitadas não demandarem outra prova que a já constante dos autos, o Senhor Juiz proferiu sentença a qualificar a insolvência como culposa.
Julgou afectados pela qualificação os referidos gerentes da “B………., Lda”.
Mais decretou a inabilitação desses gerentes/administradores por três anos bem como a sua inibição, por igual período, “para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa”.

3) - Inconformadas com essa decisão, dela recorrem os mencionados C………. e D………. .
Alegando extensa e doutamente, concluem prolixamente:

Os Recorrentes foram declarados inabilitados e inibidos de exercer as actividades previstas na alínea c) do n.º 2 do art.º 189.° do CIRE, em consequência da qualificação como culposa da insolvência da sociedade comercial de que eram gerentes, pela via de incidente processual que correu seus termos por apenso ao processo onde foi decretada a insolvência dessa sociedade.

2ª A inabilitação de uma pessoa afecta negativamente o estatuto jurídico de uma pessoa humana, ou seja, parcela ou limita a sua capacidade de gozo e exercício de direitos. A inabilitação de uma pessoa tem por fundamento a protecção dos interesses do inabilitando, sendo por isso uma estatuição, e tem como causa uma ou mais (ou mais) das hipóteses taxativamente previstas no art.º 152.° do CC. A sentença que decreta a inabilitação especificará a medida e o alcance da inabilitação, ou seja, especificará as incapacidades de gozo e exercício de direitos. A inabilitação é decretada nos termos do processo especial previsto nos art.ºs 944.° e segts. do CPC, onde se prevêem procedimentos de apreciação rígida da verdade material seguindo os termos do processo ordinário em tudo o que aí não está previsto, não só em termos dos articulados, como da instrução, que não admite a prova por confissão, espécies e instâncias de recurso. Substantiva e processualmente as coisas são assim, como decorrência do disposto nos art.°s 1.°, 2.° e 26.° da CRP.
Perante o disposto nestas normas, constitucionais e ordinárias, o instituto da qualificação da insolvência em geral e a norma que permite a declaração da inabilitação em particular (esta a do art.° 189.° 2, b) do CIRE), bem como a norma do n°. 3 do art°. 18°., que consagra numa presunção “iuris et de iure” de um facto ilícito, e ainda os art.ºs 185.° a 191.°, 36.° 1, 7.° 3 e 9.° do CIRE, são inconstitucionais, porque violam o disposto naqueles art.ºs 1.°, 2.° e 26.º da Constituição, bem como os seus art.ºs 9.°, b), 13.°, 25.°, 20.° 1 e 4, 18.° 1 e 2, 9.° 1 do CC, e princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição.


A inibição de uma pessoa para o exercício de determinadas actividades, não só afecta negativamente o estatuto jurídico de uma pessoa, em termos civis, afectando-a ainda em termos infamantes, porque pressupõe uma actividade delituosa. A inibição é uma pena acessória, pressupondo por isso a aplicação de uma pena principal de prisão ou multa ao inibido. Por isso, a inibição só poderá ser decretada em processo penal, onde o arguido possa exercer todas as garantias de defesa, o qual terá estrutura acusatória, respeitará o princípio do acusatório, e será julgado pelo juiz natural e nunca por via incidental em processo de natureza de execução universal (patrimonial), com base em todas as normas e princípios constitucionais invocados na conclusão anterior, e ainda no disposto no art.º 32.° 1, 2, 5 e 9 da Constituição.
Ao permitir o julgamento dos factos, em processo civil e por via incidental, o disposto nas normas do CIRE, mencionadas na conclusão anterior, são inconstitucionais, em específico, agora, o disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 189.° do CIRE.


A decisão recorrida violou todas aquelas normas, devendo ser por isso revogada, e o procedimento de qualificação da insolvência arquivado.


A decisão recorrida deverá ainda ser revogada porque não citou a devedora para os termos da qualificação (salvo erro ou omissão involuntária). A citação da devedora essencial e insanável, sendo certo que, para os termos da qualificação, a devedora não é representada pela Administradora da insolvência (art.º 81.° 5 do CIRE). Essa nulidade decorre do disposto nos art.ºs 193.°, 195.°, 228.° e 235.° do CPC. Sem a intervenção da devedora, os seus administradores não podem ser declarados inabilitados e inibidos.


A decisão recorrida deve ainda ser revogada porque os Recorrentes não foram confrontados em libelo (petição ou acusação) devidamente especificado por artigos, não foi produzida prova dos factos, nomeadamente quanto aos elementos internos do ilícito (vontade e consciência), nem a causa foi objecto de discussão pública. Estes elementos são da estrutura própria de uma acção de estado.


O instituto da qualificação da insolvência, pela de incidente em processo de execução patrimonial universal, é impróprio de um Estado de direito, assumindo especial gravidade quando decide da capacidade civil e liberdade de terceiros, que não são parte na execução. Tal armadura legislativa é uma imposição do imperialismo económico, em forma de hiperconcentração capitalista, que reduz a pessoa humana ao papel de produtor-consumidor. Sendo certo que aos Tribunais não foi cometida a função de declarar o direito objectivo, a eles cabe curar, autónoma e independentemente, em nome do povo, da juridicidade das intenções legislativas. Por isso, quando o legislador não respeita o fundamento ético-jurídico que deve impregnar as normas legislativas, e, mais ainda, quando subverte esse fundamento, para atender a injustos, desumanos e localizados interesses, outra coisa não lhes resta que declarar a inconstitucionalidade de tais intentos.


Esta intenção legislativa, como tantas outras (p. e.x, a da al. c) do n.º 1 do art.º 46.° do CPC), outra coisa não significa que obediência ao Hipercapital, que sufoca, com a sua propaganda, todo um povo sofredor, sugando o seu trabalho, e, quando mais não tem para dar, expõe-no na praça pública, em publicações e registos de todo o tipo.

Revogar a decisão recorrida, e, mais que isso, proclamar a inconstitucionalidade do instituto da qualificação da insolvência em geral, e dos art.ºs 18.° 3 e 189.° 2, b), c) e d), em particular, do CIRE, e um acto (porque os adjectivos não lhe cabem) de JUSTIÇA!

O MP contra-alegou em defesa da confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

4) – Na decisão recorrida vem dado como provado:
a) – A insolvente “B………., Lda” encontra-se registada na Conservatória de Registo Comercial de Santo Tirso sob a matrícula ………, sendo seus gerentes e sócios C………. e D………. .
b) – Os oponentes não depositaram as contas anuais da insolvente relativas aos anos de 2002 e seguintes.
A que se acrescenta (documentalmente demonstrado):
c) - O que consta do relatório em 1) e
d) - Por sentença de 24 de Julho de 2005, foi declarada a insolvência da “B………., Lda”.
e) – Tendo a sua constituição e a designação de gerentes sido levadas ao registo pela Insc. 1 – Ap. 41/……..

5) - Mais se faz constar como factualidade provada, na fundamentação da sentença recorrida, que:
f) – A insolvente despediu todos os seus trabalhadores, sem lhes pagar as quantias devidas, em 31/01/2005, mais de três meses antes da instauração da acção de insolvência.

6) – Sendo pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito do recurso (arts. 684º/3 e 690º/1 e 3, do CPC) cumpre averiguar e decidir:
- da alegada inconstitucionalidade;
- da invocada nulidade da decisão recorrida por a sociedade insolvente não ter sido citada para os termos do incidente;
- se a decisão recorrida deve ser revogada por os “recorrentes não foram confrontados em libelo (…)”;
- da verificação dos requisitos da insolência culposa.

7) – Os recorrentes fazem extensas e profundas considerações, e não só jurídicas, sobre o Princípio da Dignidade Humana, inscrito no artigo 1º da CRP, derivando para toda uma série de princípios decorrentes, tudo no sentido do tribunal dever afastar a aplicação das normas que regulam o incidente de qualificação (como culposa) da insolvência e estatuem sobre os efeitos dessa qualificação para as pessoas por ela afectadas, em virtude da afronta a um tal princípio (e decorrentes), em subordinação ao “imperialismo económico, em forma de hiperconcentração capitalista que reduz a pessoa humana ao papel de produtor-consumidor”.
Não se entrando, por não ser essa a função que nos compete, em análise dos méritos e deméritos dos sistemas ou dos modelos sociais e económicos, e, embora se concordando que os belos princípios (mesmo afirmados na CRP) não têm, mais vezes do que seria desejável, conformação ou efectivação prática, não pode esquecer-se que o juiz, que deve obediência à lei, não pode afastá-la (por discordâncias ideológicas e) a pretexto de ser injusto e imoral o seu conteúdo (arts. 203º da CRP, 3º da Lei 3/99 e 8º/2 do CC), salvo se afrontar, e na medida em que afrontar, as normas ou os princípios constitucionais (arts. 204º e 280º/1 da CRP), sendo de ter sempre presente que “o conteúdo do direito e da moral a que se deve obediência” é o fixado pelo legislador[1], e que os princípios e valores a respeitar são, antes de mais, os (genericamente) consagrados na própria lei.

7.1) – Os apelantes afirmam a inconstitucionalidade do instituto da qualificação da insolvência em geral e da norma que permite a declaração da inabilitação em particular - art.° 189º/2, b) do CIRE[2] - bem como da norma do art°. 18°/3 que consagra numa presunção “iuris et de iure” de um facto ilícito, e ainda dos arts. 185.° a 191.°, 36.°/1, 7º/3 e 9.° do CIRE, por violarem o disposto naqueles arts. 1.°, 2.° e 26.º da Constituição, bem como os seus art.ºs 9.°, b), 13.°, 25.°, 20.° 1 e 4, 18.° 1 e 2, 9.° 1 do CC, e princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição;
Estabelece o artigo 204.º da CRP, que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
O vício da inconstitucionalidade reporta-se a normas jurídicas e não a institutos ou a diplomas legais; só a aplicação daquelas pode ser recusada por afrontarem a lei fundamental ou os princípios nela consagrados.
O facto do instituto da inabilitação constar do CC para determinadas situações previstas no artigo 152º do CC, visando essencialmente a protecção do inabilitado, e essas situações, para ser decretada a inabilitação, deverem ser apuradas em processo especial (arts. 944º e sgs. do CPC), não impede o legislador ordinário de estender o estatuto de inabilitado a outras situações (neste caso, a insolvência culposa constitui nova causa de inabilitação, além das previstas no artigo 152º do CC), mesmo que não com o objectivo último da protecção (suprir a falta de qualidades) do visado (o inabilitado por razões de falência culposa só poderá ter alguma semelhança com a inabilitação por prodigalidade) e até como uma penalização para determinadas condutas (do devedor insolvente e dos administradores responsáveis pela insolvência) como não está impedido de criar, no âmbito da discricionariedade de conformação normativa que lhe assiste, um procedimento ou processo diverso (do previsto no CPC), mais simples e célere, para aí apurar as circunstâncias justificativas da inabilitação (contanto que seja assegurado o efectivo exercício do direito de defesa e a inabilitação, se entendida como sanção, não se mostre injustificada e desproporcionada à conduta que se quer censurar).
As normas desses diplomas legais (CC e CPC) não sobrelevam as normas constantes do CIRE, encontram-se no mesmo patamar hierárquico, nem sequer são por estas afastadas ou contrariadas (que prevaleceriam, por especiais se com elas estivessem em oposição).
Reportando-se o vício da inconstitucionalidade a normas jurídicas, o recurso para afastar a aplicação dessas normas pressupõe que foram aplicadas na decisão de que se recorre, na decisão impugnada. De contrário, se a norma não foi aplicada não faz sentido pretender a sua desaplicação, como sucede com diversas das apodadas de inconstitucionais pelos recorrentes.
Decorre que a apreciação incide sobre as normas concretamente aplicadas na decisão recorrida – maxime, arts. 18º/3, 189º/2, als. b) e c).

7.2) - A propósito do artigo 18º/3, ao contrário da posição expressa pelos apelantes, não consagra essa norma a presunção (iuris et de iure) de qualquer facto ilícito.
O dever de apresentação à insolvência não é uma criação do CIRE, nada inovando este diploma, nesse aspecto. Trata-se de obrigação já imposta pelo CPC (arts. 1140º, 1315º e 1316º) e pelo CPEREF (artigo 6º), cuja inobservância poderia sujeitar aqueles que a deviam observar a gravosas penalizações e a responsabilidade civil.
Não se vê que norma ou princípio constitucional possam violar essas normas quando impõem a determinadas pessoas (artigo 19º) o cumprimento de uma obrigação, necessária ao regular funcionamento do comércio e da vida económica e para evitar maiores prejuízos para os credores. Como escreve, Carvalho Fernandes/João Labareda[3] “a razão do estabelecimento do dever de apresentação do insolvente é a de propiciar, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, na convicção de que o seu arrastamento apenas pode gerar mais inconveniente e prejuízos”.
Essa obrigação é imposta pelo artigo 18º/1 e, no nº 3, não se estabelece a presunção de um qualquer facto ilícito mas apenas do conhecimento da data da situação de insolvência. Nem parece razoável que o titular da empresa, verificados os factos alinhados no artigo 20º/1, al. g), possa desconhecer essa situação, que constituem factos presuntivos da situação de insolvência. A presunção é uma ilação que a lei ou julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349º do CC). É uma decorrência da lógica e da experiência.
O facto ilícito está na omissão do cumprimento do dever de apresentação.
O prazo para a apresentação conta-se da data do conhecimento da insusceptibilidade de cumprimento generalizado das obrigações prevista no artigo 3º/1. A norma do artigo 18º/3 apenas estabelece presunção de conhecimento dessa situação, decorridos, pelo menos, três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações de algum dos tipos previstos no artigo 20º/1, al. g). Presunção (inilidível) do conhecimento da situação, que se não afigura irrazoável, antes corresponderá ao que normalmente sucede, nem parece admissível que, perante um tal incumprimento, o devedor ou o seu administrador desconheça uma tal situação, a não por negligencia grosseira ou inaptidão para o exercício da função.
Não obstante a presunção consagrada nessa norma, não está o titular da empresa ou o gestor impedido de provar que o facto que conduz à presunção não se verifica (com o que os ora apelantes nem se preocuparam), não sendo impedido ou prejudicado o direito à tutela judicial efectiva, do ponto de vista da limitação do direito de defesa, pelo que a norma não afronta norma ou princípio constitucional, como sejam as normas dos arts. 1º, 2º e 20º/1 e 4 da CRP e os princípios nelas consagrados.

7.3) – Está-se perante um processo de natureza cível.
As medidas (mesmo que se entendam como penalizações) previstas na lei a que ficam sujeitas as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa não têm natureza penal ou de coimas, antes operam estritamente no domínio civil. A própria lei tem o cuidado de expressar que a qualificação (como culposa ou fortuita) da insolvência no incidente processual criado para o efeito não é vinculativa para da decisão de causas penais (artigo 185º (que os apelantes também entendem inconstitucional sem que indiquem e se vislumbre razão alguma). Não produz efeitos em eventual procedimento criminal a que haja lugar ou para qualificação da conduta do devedor ou outras pessoas na situação de insolvência como crime, nos termos dos arts. 227º e seguintes do Código Penal.

Estatui o artigo 189º/2, alíneas b) e c) - em conformidade com o artigo 2º/7 e 8 da Lei de autorização - que, sendo a insolvência qualificada como culposa, o juiz decreta, como principais efeitos substantivos dessa qualificação (nomeadamente quanto á capacidade jurídica), a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos e declara essas pessoas inibidas, pelo mesmo período, para o exercício do comércio e para o desempenho de determinados cargos.
Estas medidas, ao menos no que respeita à inibição, nada têm de inovadoras em relação ao regime anterior (em que a inibição decorria automaticamente da declaração de falência – arts. 1189º do CPC e 148º do CPEREF, o que não sucede no inovador incidente de qualificação da insolvência).
Essas normas [(artigo 189º/2, b) e c)] não afrontam as normas constitucionais citadas, nomeadamente os arts. 1º, 2º e 26º - este enquanto reconhece a todos os cidadãos o direito à capacidade civil e proíbe as restrições a essa capacidade.
No entanto, o próprio texto constitucional prevê restrições à capacidade civil “nos casos e termos previstos na lei” (artigo 26º/4), pelo que não impede em absoluto as limitações à capacidade e exercício de direitos (excepto por motivos políticos). O que proíbe é que essa restrição seja arbitrária, prepotente e injusta, sem objectivo e injustificada.
O que igualmente estabelece o artigo 18º/2 da CRP “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, contanto que as restrições sejam gerais e abstractas, não tenham efeito retroactivo nem diminuam a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (dispõe o nº 3). Por isso que as restrições são admissíveis, dentro dos parâmetros previstos nessas normas.

Em consequência da qualificação da insolvência como culposa, e da imposição aos responsáveis de alguma das penalizações (com efeitos puramente civis) previstas no artigo 189º/2, não se viola os princípios da dignidade humana (artigo 1º da CRP) ou do estado de direito democrático (artigo 2º dessa Lei).
O princípio da dignidade da pessoa humana significa o ‘reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República’[4], como organização que deve servir o homem, ‘como sujeito e não objecto, como fim e não meio de relações jurídico-sociais’, constituindo a dignidade da pessoa humana ‘a trave mestra de sustentação e legitimação da República e da respectiva compreensão da organização do poder político’[5]. Dele decorre o reconhecimento de direitos fundamentais, como direito á vida e integridade física e moral, direito á liberdade, à igualdade ou à identidade pessoal, e a proibição de tortura ou maus tratos, penas desumanas e degradantes ou de discriminação.

Como se verifica em Gomes Canotilho/Vital Moreira[6], o princípio do Estado de direito democrático (consignado no artigo 2º da CRP) “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios … que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”, no fundo um conjunto de regras e princípios que visam a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça. Ideia que perpassa a jurisprudência do Tribunal Constitucional[7] que considera que “no princípio de Estado de Direito vai implicada uma ideia de protecção ou garantia dos direitos humanos e uma ideia de vinculação dos poderes públicos ao “direito justo”, que tendo como pedra de toque a salvação da dignidade do homem como pessoa, e dominado por uma ideia de igualdade, não devendo nela haver lugar para a prepotência e para o arbítrio”.
O legislador tem o poder e o dever de conformação dos actos normativos e a protecção da confiança dos cidadãos, como elemento base do princípio do Estado de direito, não é absoluto. As “instância legiferantes” não podem ficar impedidas de “realizar novas exigências de justiça e de concretizar as ideias de ordenação social positivamente plasmadas na constituição”[8]. A satisfação das necessidades colectivas e defesa dos valores sociais impõem que esse princípio ceda ‘face às exigências de carácter social, com vista à realização de outros interesses genéricos que se sobreponham aos da protecção dos direitos e expectativas dos cidadãos”, não devendo, porém, essa confiança ser afectada de forma arbitrária e excessiva ou desproporcionada relativamente à realização dos interesses de carácter geral.

Lê-se no preâmbulo do DL 53/200 (que aprova o CIRE) “quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quem aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais”.
Nem se esquece que à liberdade de escolha de profissão e actividade (a que podem ser feitas restrições justificadas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade) – artigo 47º da CRP – corresponde a responsabilização pelo exercício dessa profissão ou actividade, que implica, desde logo, o cumprimento das normas a que obedece e/ou condicionam o seu exercício.

São objectivos da reforma do regime da insolvência, além de outros, a celeridade do processo e a responsabilização dos titulares da empresa ou dos administradores de pessoas colectivas pelas insolvências culposas, com o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, objectivo que não seria alcançado se, nessas situações, não sobreviessem quaisquer consequências (nefastas) para os responsáveis que hajam contribuído para a insolvência da empresa, pois que “a coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais varados actos prejudiciais para os credores”[9]. Entre essas consequências (nefastas) para os responsáveis pelas insolvências culposas encontram-se a inabilitação por um período determinado bem como a inibição temporária para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos.

Pela constatação de que uma das causas de insucesso de muitos processos de recuperação residiu no seu tardio início porque o devedor não era suficientemente penalizado pela não atempada apresentação, e com o intuito de promover o cumprimento do dever de apresentação à insolvência estabelece-se para quem incumpre esse dever a presunção de culpa grave dos administradores responsáveis pelo incumprimento, para efeitos de qualificação da insolvência como culposa.

Com frequência, o devedor ou os administradores da pessoa colectiva, perante uma situação de insolvência, não tomam sequer qualquer iniciativa de promover a apresentação e definir a situação da empresa, deixando arrastar a situação e o “desaparecimento”, de facto, da empresa, com os gravosos prejuízos para os credores. E saindo os administradores incólumes dessa actuação, no mínimo, gravemente negligente.
É face à constatação de toda esta situação frequente que se cria um incidente célere e simples de qualificação da insolvência, se consagram algumas presunções de actuação culposa dos administradores com reflexos na qualificação da insolvência e se estabelecem penalizações para o devedor ou os administradores culpados (desde que tenha agido com culpa grave ou com dolo, não se vendo que a lei seja demasiado exigente na sua responsabilização).
Não existe qualquer fenómeno de protecção à “hiperconcentracção capitalista” mas de censura para quem não cumpre (com dolo ou culpa grave) as suas obrigações.
“A inabilitação consagrada no CIRE visa, primariamente, o interesse dos credores, ou, mesmo, em geral do tráfego jurídico, e assume um carácter sancionatório predominantemente preventivo”[10]. As medidas de protecção aos credores e penalizadoras para os responsáveis pela insolvência culposa não são arbitrárias, injustas ou prepotentes, antes se justificam pela protecção devida aos credores e ao regular tráfego do comércio jurídico, ao interesse colectivo do regular desenvolvimento da actividade económica e empresarial.
Eventuais restrições que se entendam existir ao direito à capacidade civil se justificam pela necessidade de protecção de tais interesses.
Pelo que não ofendem as normas ou os princípios consagrados nos arts. 1º, 2º, e 26º/1 da CRP ou dos princípios delas decorrentes.

7.4) - Para afirmar a desconformidade constitucional do artigo 189º/2, al. c), os apelantes chamam à colação, ainda, o artigo 32º (nºs 1, 2, 5 e 9), preceito que estabelece sobre as garantias de defesa em processo criminal.
Como atrás se referiu, está afastada qualquer relevância da qualificação da insolvência (como culposa ou não) nas causas penais. No incidente que tem como objectivo apurar se o devedor tem culpa na situação de insolvência ou se existem terceiros responsáveis pela mesma[11], está afastada a possibilidade de nele se efectuar o apuramento de qualquer responsabilidade penal ou contra-ordenacional (de que natureza for) do devedor ou dos administradores do insolvente. Nem se vê que as medidas que possam afectar o devedor ou os administradores do insolvente, na presença de uma insolvência culposa, previstas no artigo 189º/2, als. b) e c), “tenham natureza sancionatória que caia fora do âmbito da capacidade civil ou comercial” e que o “incidente de qualificação da insolvência “seja abrangido pelo conceito constitucional de «quaisquer processos sancionatórios» a que se refere o nº 10 do art. 32º da Constituição”[12].
Ao estabelecer-se um procedimento incidental próprio (com carácter inovador) para apurar a responsabilidade do devedor ou dos seus administradores na situação de insolvência, com eventuais efeitos apenas no âmbito da capacidade civil e comercial das pessoas afectadas, não sai afrontado o artigo 32º (ou qualquer dos outros preceitos citados pelos recorrentes) da Constituição, seja em que dimensão for.

8) – Quanto à nulidade invocada. Após a realização da assembleia de apreciação do relatório apresentado pelo Administrador (arts. 155º e 156º), qualquer interessado pode alegar, por escrito e nos 15 dias seguintes, o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa.
Não consta do processo que qualquer interessado o tenha feito.
Para o mesmo efeito, haja ou não alegação dos interessados, o administrador deve apresentar parecer fundamentado e documentado, sobre os factos para a qualificação da insolvência, terminando por formular uma proposta de qualificação e identificará as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa (artigo 188º/2).
Na espécie, o administrador apresentou parecer fundamentado e formulou a proposta de qualificação da insolvência como fortuita.
Com vista no processo, o MP, na base dos elementos factuais fornecidos no parecer do administrador, entendeu que a insolvência deve ser qualificada como culposa.
Porque não houve parecer coincidente (pela casualidade da insolvência), do administrador e do MP, determina a lei (artigo 188º/5) que o juiz manda notificar o devedor e citar aqueles que possam ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa, para se oporem em 15 dias, assim fazendo funcionar a regra geral do contraditório (que deve ser respeitado ao longo de todo o processo – arts. 3º/3 do CPC, e 20º da CRP). De qualquer forma, a citada norma do CIRE manda notificar o devedor para que se possa pronunciar sobre o parecer que propõe a qualificação da insolvência como culposa e alegar o que bem entender em contraposição dessa qualificação.
A falta da notificação constitui omissão de formalidade prescrita por lei, com evidente influência no exame e decisão da causa, tanto assim que, sendo alegada alguma das situações subsumíveis ao disposto no artigo 186º/3, ou não se articulando situações inscritas nas diversas alíneas do nº 2, pode o devedor alegar razões que contrariem a qualificação da insolvência como culposa, com o aditamento das provas para o efeito.
Faculdade que se frustra, com violação do princípio do contraditório e do direito de defesa, se não lhe é dado conhecimento dos pareceres do administrador e do MP, com a documentação que, eventualmente, os acompanhe e, assim, sonegada fica a possibilidade de afastar as imputações feitas pelo administrador ou pelo MP e os efeitos resultantes da qualificação da insolvência como culposa.
Mas não tem de ser citada, como bem se extrai do citado artigo 188º/5.
Só os terceiros que possam ser afectados (e indicados nos pareceres) pela qualificação da falência como culposa devem ser citados pessoalmente, o que se mostra cumprido no processo.
Na espécie, foram citados os dois únicos sócios e gerentes, em quem se presume representada a sociedade (para os efeitos do incidente) e, por outro lado, a ter-se praticado nulidade, por omissão de acto imposto por lei e relevante para a decisão (artigo 201º/1 do CPC), a irregularidade deveria ser arguida no prazo geral (artigo 205º/- in fine – desse código), para apreciação do tribunal onde a mesma tem lugar, o que não aconteceu, só vindo a ser suscitada nas alegações de recurso.
A falta de citação do devedor (não imposta) não importa nulidade nem a revogação da decisão recorrida.

9) – Dizem os apelantes que a decisão deve ser revogada porque não “foram confrontados em libelo (petição ou acusação) devidamente especificado por artigos, não foi produzida prova dos factos, nomeadamente quanto aos elementos internos do ilícito (vontade e consciência), nem a causa foi objecto de discussão pública. Estes elementos são da estrutura própria de uma acção de estado”.
A afirmação poderia ter consequências, implicar nulidade da decisão, por violação do contraditório e do direito de defesa.
Situação que não é a dos autos.
Ao conhecimento das pessoas que possam ser afectadas pela qualificação da insolvência devem ser levados os factos que lhe são imputados (sem que a lei imponha uma forma articulada, para que aqueles possam contraditá-los, alegar outros que afastem os seus efeitos e requerer ou oferecer as provas que entendam convenientes (artigo 188º/5 e 7, 20º/1 da CRP e 3º do CPC) para fazer prevalecer as suas razões.
Na espécie, os recorrentes foram citados nos termos determinados pelo artigo 188º/5, com cópias dos pareceres do administrador e do MP, vieram apresentar a sua “defesa” (se incorrectamente direccionada, sibi imputet) e arrolaram testemunhas. Do parecer do administrador constam as situações de facto imputadas aos apelantes e em que o MP se apoia para o seu parecer.
Foram convocados para uma tentativa de conciliação (frustrada), em cuja realização se não grande utilidade.
Certo é que não teve lugar a produção da prova oferecida, porque se entendeu desnecessário, face aos elementos que já contavam do processo. E é dever do tribunal evitar actos inúteis, diligências desnecessárias.
De facto, confrontados com as imputações descritas no relatório do administrador da insolvência, nenhum facto articulam os (ora) apelantes tendente a afastar essas imputações, a sua culpa nas condutas afirmadas e, até mesmo, a irrelevância dos comportamentos imputados na situação de crise da empresa. Não lhes fazem qualquer referência.
A verificação objectiva desses factos faz presumir a culpa (grave) dos administradores, pelo que, não tendo estes alegado circunstância alguma para afastar a culpa, em virtude dessa presunção, os “elementos internos do ilícito (vontade e consciência)” – nas palavras dos recorrentes - têm-se por presentes. Quem tem a seu favor a presunção legal está dispensado da prova do facto que a ela conduz.
E ao contrário do que afirmam, não é proibida a prova por confissão (dos factos em que se baseia a decisão pela inabilitação e inibição). Nem os (ora) apelantes estavam afectados de incapacidade para confessar os factos descritos no parecer do administrador (nem o inabilitado, situação em que não se encontravam, está, em absoluto, incapaz para confessar – artigo 553º/2 do CPC) e para que remete o parecer do MP.
Em nenhum facto contrariado pelos recorrentes, na sua “oposição” à qualificação da insolvência como culposa, assentou a decisão recorrida.
Os factos julgados provados estão provados por documento.
Tendo o julgador entendido que esses factos bastavam à decisão (e nos quais se baseou), inútil se tornaria a produção de qualquer outra prova e, consequentemente, o prosseguimento do processo para audiência.
Não foi omitido acto ou diligência que coarctasse ou limitasse o direito de defesa, que vicie a sentença, pelo que improcede a questão.

10) - Requisitos da qualificação da insolvência como culposa.
A decisão recorrida concluiu pela qualificação da insolvência como culposa por dois fundamentos, a saber:
- o não cumprimento da obrigação de requerer a declaração de insolvência no prazo de 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência (artigo 18º/1 do CIRE) e
- o não cumprimento da obrigação de depositar as contas anuais na Conservatória do Registo Comercial.
Cita-se do seu texto: “No parecer que emitiu, o digno magistrado do Ministério Público pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa, tendo por base as presunções previstas no art. 186º, nº 3, al. a) e b), do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
(…)
Tratam-se de presunções iuris tantum que, dada a sua natureza, permitem que os Administradores eventualmente afectados pela qualificação da insolvência aduzam prova em contrário, de forma a ilidir a presunção de culpa grave.
Na situação vertente, o parecer de qualificação incidiu exactamente em ambas as mencionadas presunções, cujos fundamentos se acham comprovados, uma vez que os oponentes não negaram que não tivessem requerido a insolvência no prazo legal ou que não tivessem depositados as contas anuais na competente Conservatória.
De facto, conforme ficou provado na sentença proferida nos autos principais, a insolvente despediu todos os seus trabalhadores, sem lhes pagar as quantias devidas, em 03/01/2005, portanto mais de três meses antes da instauração da presente acção, o que integra a presunção iuris et de iure (inilidível) de conhecimento da situação de insolvência” (nos termos do artigo 18º/3.

Apesar de se operar com esta alegada conduta da insolvente, não se fez constar como factualidade provada na sentença recorrida nem sequer consta da sentença falimentar (que remete para a alegação das requerentes da insolvência), sendo certo que não foi a devedora que requereu a insolvência (no prazo imposto na lei ou em qualquer outro prazo) mas credores, suas (ex.) trabalhadoras.

Foi verificada a situação de insolvência da “B………, Lda” (artigo 3º/1) pela verificação dos factos presuntivos alinhados nas alíneas b), c), e g) – II e g) – III, do artigo 20º/1.
Verifica-se que a qualificação da insolvência assentou nas situações previstas no artigo 186º/3, als. a) e b) ou seja:
- incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência e
- incumprimento da obrigação do depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial.
E determina o artigo 18º/1 que o devedor deve requerer a declaração de insolvência nos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação prevista no artigo 3º/1, isto é, de que “se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

A noção de insolvência culposa é fornecida pelo artigo 186º/1 – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Em consonância com o disposto no artigo 2º/6 da Lei nº 39/2003, de 22/8 (lei de autorização).
Essa qualificação importa que tenha havido uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito) que:
- tenha criado ou agravado a situação de insolvência,
- essa conduta seja dolosa ou com culpa grave e
- tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo[13].

Sucede que, no nº 2 desse artigo, estabelece-se que “considera-se sempre culposa[14] a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham” praticado algum dos factos aí previstos, cujo elenco se considera taxativo[15].
Na presença de algum dessas situações de facto (ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo), a insolvência tem de ser qualificada como culposa.
Presume-se iuris et de iure que a actuação dos administradores (e dolosa ou com culpa grave) e que essa conduta criou ou agravou a situação de insolvência. Não se admitindo prova em contrário.

In casu, não foi imputada à insolvente e aos administradores apelantes uma conduta dessa natureza ou, pelo menos, na sentença não se lhe faz referência nem fundamenta a decisão. Antes se apelou exclusivamente ao estabelecido no nº 3 do artigo.
Prescreve-se nesse artigo 186º/3 que “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.
Em contraposição com o texto do nº 2, entende-se que aí se estabelecem presunções iuris tantum, podendo ser ilididas por prova em contrário[16] (artigo 350º/2 do CC). Estabelece a norma uma presunção de culpa dos administradores quando incumpram alguma dessas obrigações, o que não bastará, sem mais, para qualificar a insolvência como culposa.

Na decisão impugnada são aplicadas as disposições do artigo 18º/1 e 3, que estabelecem:
“1 – O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrito no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la.

3 –Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 20º”.
Este artigo consagra um dever do devedor de, verificada e conhecida a situação de insolvência, se apresentar à insolvência, sob pena de gravosas consequências. A apresentação deve ter lugar nos 60 dias subsequentes à data do conhecimento da situação de insolvência ou “à data em que devesse conhecê-la”, estabelecendo o nº 3 uma presunção inilidível de conhecimento da situação de insolvência. Presume-se (iuris et de iure) que o devedor titular de uma empresa tem conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses do incumprimento generalizado das obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do artigo 20º/1. A verificação objectiva dessa situação importa o dever de apresentação á insolvência, sem que a violação dessa obrigação implique a “presunção inilidível da insolvência”[17].

O que, pela decisão recorrida e pela sentença de declaração da insolvência, se verificou, no caso em análise, pois que, tendo a insolvente despedido todos os trabalhadores em 31/01/2005, sem que lhes pagasse as quantias a eles devidas, não requereu a declaração de insolvência, não obstante passarem mais de três meses sobre aquela data [(arts. 18º/3 e 20º/1, al. g), subalínea iii)].
Daí se concluir pela omissão do dever de apresentação, conduta subsumível ao disposto no artigo 186º/3, al. a), pois que o devedor não requereu a declaração de insolvência nesse prazo, presumindo-se, assim, culpa grave dos seus administradores (nessa omissão).
Como também não se procedeu ao depósito das contas anuais desde 2002, em que se presume culpa grave dos seus administradores (al. b) nessa conduta omissiva.

As presunções consagradas neste preceito (artigo 186º/3) reportam-se à conduta omissiva dos administradores. Presume-se culpa grave (o que pode ser afastado por prova do contrário) no incumprimento dessas obrigações.
Porém, não se estabelece, nessa norma, uma presunção de que a insolvência é culposa (ao contrário do que acontece com a verificação dos factos alinhados no nº 2 desse artigo). Apenas que, ao não requererem a insolvência do devedor ou ao não procederem ao depósito das contas, os administradores agiram, por omissão, com culpa grave. É este o sentido que melhor se adequa ao texto legal (artigo 9º/3 do CC).
Nessa situação, e demonstrada a culpa dos administradores, para se concluir que a insolvência é culposa importa, em atenção do disposto no nº 1 do artigo, a verificação dos demais requisitos, nomeadamente o nexo de causalidade entre a conduta omissiva dos administradores e a situação de insolvência do devedor[18].
Para se qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário que esses factos ou omissões tenham criado ou agravado a situação de insolvência, para o que não basta, como nos parece evidente, a simples verificação objectiva desses comportamentos omissivos (por exemplo, em que é que o não depósito das contas contribuiu para a situação de insolvência?). Faria algum sentido, só porque se não procedeu ao depósito das contas, qualificar a insolvência como culposa, com os efeitos nefastos e graves para as pessoas visadas, se esse facto não tiver influência na situação de insolvência? Seria uma “sanção” demasiado onerosa e desproporcionada para uma omissão irrelevante para a falência.
Ora, nenhum facto vem provado, e nem sequer é alegada qualquer situação nesse sentido, de que se possa concluir que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essas omissões dos apelantes.
Em qualquer dos pareceres (do administrador e do MP – o parecer deste nem descreve os factos em que se apoia para a posição afirmada, limitando-se, de forma pouco clara, a remeter para o parecer do administrador – “… de facto, a simples verificação de alguma das situações apontadas – como enumerou no seu parecer – faz funcionar a presunção de culpa dos administradores da insolvente”) nada é afirmado que leve concluir que tais factos tiveram alguma influência na situação do devedor como, nesse sentido, nada vem afirmado na sentença.
Bastou-se com a verificação do incumprimento das obrigações de apresentação à insolvência e depósito das contas, e deles se presumiu, indevidamente, a culpa grave na insolvência.
Que há culpa grave no incumprimento das citadas obrigações, presume-se. Mas não se presume – e não vem provado – que o incumprimento dessas obrigações determinasse ou agravasse a situação de insolvência do devedor.
Não vêm demonstrados os requisitos da insolvência culposa, pelo que a mesma deve ter-se como fortuita, procedendo o recurso.

11) – Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação procedente, revogar a douta sentença recorrida e e qualifica-se a insolvência como fortuita.
Custas pela massa da insolvência.

Porto, 13 de Setembro de 2007
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira

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[1] P. Lima/A. Varela, CCAnotado, I, 3ª Ed., 27
[2] Diploma legal a que pertencem as normas citadas sem outra referência.
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, I, 123.
[4] Ver Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 7ª Ed., 225.
[5] Gomes Canotilho/vital Moreira, em Constituição Anotado, ª Ed., I, 198
[6] Ob. citada, pág. 205.
[7] Ver Ac. 282/91, de 23/5/91, sumariado em ITIJ/net.
[8] Gomes Canotilho, ob. cit., 260.
[9] Preâmbulo do DL 53/2004.
[10] Carvalho Fernandes, em “Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente”, na revista THEMIS, 2005 – Edição Especial, pág.97.
[11] A. Raposo Subtil (e outros), Código s Insolvência e da Recuperação de Empresas, 261.
[12] Ac. do Tribunal Constitucional nº 395/2006, de 27/6, em ITIJ/net.
[13] Ver Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, II, pág. 14.
[14] Itálicos nossos.
[15] Idem.; Carvalho Fernandes, em “Qualificação da Insolvência”, na revista THÉMIS, 2005, Edição Especial, 94.
[16] Idem, pá. 15, A. Raposo Subtil e outros, em Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, 2ª ED., 266.
[17] Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., I volume, 14.
[18] Ver Ac. desta Relação do Porto, de 15/03/07, em dgsi.pt,proc. 0730992.