Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0121073
Nº Convencional: JTRP00033445
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
ESCRITURA PÚBLICA
FALTA
EFEITOS
SOCIEDADE IRREGULAR
NULIDADE
LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RP200201220121073
Data do Acordão: 01/22/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CIV STO TIRSO
Processo no Tribunal Recorrido: 743/99
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: CSC86 ART7 N1 ART36 N2 ART41 N1 ART51 N1 ART172 ART174 N1 E.
Sumário: I - Uma sociedade comercial não constituída por escritura pública é uma sociedade irregular, sendo aplicáveis às relações estabelecidas entre os sócios e com terceiros as disposições sobre as sociedades civis.
II - A falta de forma implica a nulidade do contrato de sociedade e a entrada desta em liquidação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Cível (2ª Secção) da Relação do Porto:

Goretti..... e marido, e Clarisse..... (por si e em representação de filho menor), todos devidamente identificados nos autos, intentaram, pelo -º Juízo do Tribunal de Competência Especializada Cível da Comarca de....., accão ordinária contra Armindo..... e mulher, pedindo que fossem os RR. condenados a reconhecerem a existência e manutenção em vigor de uma sociedade comercial por quotas, sob a forma irregular, constituída entre AA. e R., que fosse declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de sociedade por não ter sido reduzido a escritura pública e que fosse declarada a inexistência dessa sociedade, com vista à sua liquidação e partilha.
Alegaram para o efeito e em síntese que, em 1993, com o R. estabeleceram verbalmente um contrato de sociedade por quotas, depois reduzido a escrito particular, com vista à exploração de um estabelecimento comercial de restauração e café. Em 1995 acordaram as AA. com o R. em pôr termo à sociedade e liquidá-la, ficando adjudicado ao R. todo o passivo e activo e tendo este que pagar às AA. certas quantias. O não pagamento destas quantias implicaria a anulação do acordo de dissolução, assistindo então às AA., para além de fazerem suas todas as quantias recebidas do R., o direito de reingressarem na sociedade nas exactas condições acordadas aquando da sua constituição. Acontece porém que o R. não pagou às AA. parte das quantias acordadas. E dado que não interessa aos AA. o prosseguimento da sociedade em que estão contratualmente reingressados, há que declarar a nulidade do contrato de sociedade, com vista à sua liquidação e partilha.
Os RR. contestaram, concluindo pela improcedência da acção.
Após audiência preliminar, foi proferido saneador sentença, sendo o pedido dos AA. julgado improcedente.
É contra o assim decidido que vem interposto pelos AA. o presente recurso de apelação que, devidamente alegado, apresenta as seguintes conclusões:
1. Da matéria de facto dada como assente no ponto 8 da sentença recorrida não consta toda a matéria alegada no artº 9º da p.i., que lhe serviu de base, como também dela não consta o facto alegado no artº 33º da mesma p.i., tornando a redacção daquele deficiente e mesmo obscura e contraditória, e, em ambos os casos, deficiente o acervo da matéria dada como assente, pelo que, e constando do processo todos os elementos, deve a matéria de facto ser modificada ao abrigo do artº 712º do CPC.
2. A sentença recorrida ao não se pronunciar directamente sobre o pedido principal, consistente no reconhecimento e condenação do R. pelo incumprimento do auto intitulado acordo de "Resolução de Contrato de Sociedade Irregular", com todas as suas consequências, enferma da nulidade da al. d) do nº 1 do artº 668º do CPC (omissão de pronúncia).
3. Enferma também a sentença da nulidade da al. c) do nº 1 do artº 668º (oposição entre os fundamentos e a decisão).
4. O escrito junto com o apenso a estes autos e pelas partes denominado "Resolução de Contrato de Sociedade Irregular" consubstancia um acordo ou negócio sob condição suspensiva ou resolutiva, expressamente previsto nos artºs 270º e sgts do CC, que não foi devidamente valorado e qualificado na sentença, pelo que também nesta parte ocorre a nulidade da al. d) do artº 668º.
5. A sentença fez errado enquadramento legal ou errada interpretação da lei, não tendo em conta o disposto nos artºs 104º, nº 2 e 107º do CCom, 220º, 277º, 981º, nº 2 e 1019º do CC, e 36º, nº 2, 41º e 52º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
6. Deve ser revogada a sentença recorrida e ser substituída por uma outra que julgue a acção procedente e, por via disso, ser declarada a nulidade do contrato e a entrada da sociedade em liquidação, com as legais consequências.
7. Em última instância e caso assim se não entenda, deve, com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa e aos princípios da boa fé, serem os RR. condenados ao pagamento dos remanescentes ainda em débito, acrescidos dos juros.
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A parte contrária não contra alegou.
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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
E conforme se vê das conclusões supra extractadas, os apelante impugnam a sentença recorrida tanto na perspectiva de facto como na de direito.
Comecemos pela questão de facto:
No que tange ao ponto 8 da fundamentação fáctica da sentença recorrida os apelantes têm razão. A matéria que esse ponto encerra foi o tribunal a quo buscá-la ao artº 9º da p.i., que não foi especificadamente impugnado pelos RR., nem está em oposição com a defesa considerada no seu conjunto (muito pelo contrário). Portanto, o citado ponto 8 deveria ter a redacção integral constante do artº 9º da p.i.. Nesta parte e porque estamos perante facto plenamente provado (confissão ficta ut artºs 490º, nº 2 do CPC e 356º, nº 1 do CC), é a matéria de facto correspectivamente modificada, (nos termos do artº 712º, nº 1 b) do CPC) passando tal ponto a ter a precisa redacção constante do artº 9º da p.i..
De notar, em todo o caso, que é por demais evidente (como aliás reconhecem os apelantes) que só por lapso é que a Mmª juiz a quo não fez reproduzir toda a matéria alegada nesse artigo da p.i., pois que não se surpreende qualquer razão para que fosse feita uma reprodução meramente parcial.
No que respeita ao alegado no artº 33º da p.i. não têm os apelantes qualquer razão.
O que o tribunal tem que dar por assente são os factos materiais relevantes para a decisão da causa e não os factos processuais revelados nos autos ou nos apensos. Logo, não tinha cabimento dar como assente que os AA. haviam requerido procedentemente uma providência cautelar de arrolamento (tanto mais que o aí decidido é de todo irrelevante para a decisão da acção ut nº 4 do artº 383º do CPC), independentemente de nesta se terem junto certos documentos. Estes documentos têm-se para todos os efeitos juntos aos autos e são plenamente cognoscíveis pelo tribunal, pelo que sempre teriam (na medida em que o devessem ser) que ser atendidos para a decisão da acção.
Procede pois em parte a conclusão 1ª.
No mais considera-se insindicável e definitiva a matéria de facto que a sentença recorrida encerra, para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 6 do CPC.
Perante a factualidade que temos por assente, vejamos o mérito do recurso na perspectiva de direito.
a) Quanto à omissão de pronúncia acerca do pedido deduzido em primeiro lugar pelos AA.:
Este pedido foi o seguinte: que seja declarado e condenados os RR. a reconhecerem a existência e manutenção de uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada, sob a forma irregular, constituída entre as AA. e o R., por incumprimento, deste último, das obrigações assumidas no documento particular celebrado em 20/3/95.
Ora, como se vê de fls 58 e 59 a Mmª juiz a quo tomou posição sobre este pedido.
O que acontece é que solucionou a questão em termos desfavoráveis aos AA., e é verdadeiramente a discordância dos apelantes quanto ao decidido a esse título que está em causa. Podemos desde já adiantar até que, a nosso ver, essa solução não se apresenta correcta do ponto de vista jurídico.
Mas se efectivamente o tribunal se ocupou da questão, não há que falar em omissão de pronúncia.
Logo, improcede a conclusão 2ª.
b) Sustentam os apelantes de seguida que se verifica uma situação de oposição entre os fundamentos e a decisão e que a sentença faz uma errada aplicação da lei.
E aqui os apelantes têm razão.
Senão vejamos:
Está provado que em 1993 as AA. e o R. se associaram com vista a fazem funcionar, com fins lucrativos, uma sociedade por quotas. O acordo de vontades a que chegaram não foi formalizado por escritura pública (tal acordo foi verbal e só posteriormente, em 1994, foi feito consignar num escrito particular), conquanto houvesse o propósito de tal formalização logo desde o início. A sociedade assim constituída iniciou a sua actividade em Agosto de 1993. Porém, em Março de 1995 as AA. e maridos e o R. anuíram em pôr termo à sociedade, propondo-se dissolvê-la, nos termos fixados no escrito constante de fls 15 do processo apenso, escrito esse intitulado "Resolução de Contrato de Sociedade Irregular". Ficou assim acordado que todo o passivo e activo da sociedade eram adjudicados ao R., mas que este ficava obrigado a pagar às sócias certas quantias, das quais pagou parte. Mas já não pagou o remanescente (2.577.178$00 e 2.891.818$00), o que teria que ser feito até finais de Dezembro de 1996 e excepcionalmente até fins do ano de 1997. Ficou assente que «o não pagamento pelo R. de qualquer das prestações acordadas a qualquer uma das AA. implicaria a anulação do acordo de dissolução da sociedade, com a consequente não produção dos seus efeitos, passando a partir do incumprimento, a assistir às AA. o direito de reingressarem na mesma sociedade, nas exactas condições acordadas quando da sua constituição, revertendo para a sociedade o estabelecimento com todo o seu recheio, e sempre sem prejuízo de poderem fazer suas todas as quantias recebidas até então do R.» (sic).
Ora, desta matéria de facto resulta desde logo que estamos perante uma sociedade comercial irregularmente constituída, pois que a lei impõe que o contrato de sociedade seja celebrado por escritura pública (artº 7º, nº 1 do CSC). A essa sociedade podemos chamar, como aponta João Labareda (v. Novas Perspectivas do Direito Comercial, pág 186) de acordo com a terminologia tradicional, sociedade irregular (terminologia que não aparece no CSC, senão episodicamente no respectivo artº 174º, nº 1 e), que expressamente qualifica de irregular a sociedade que careça da forma legal).
Os sócios iniciaram a actividade para que se associaram, pelo que caímos na aplicação do nº 2 do artº 36º do CSC.
E deste normativo decorre que são aplicáveis às relações estabelecidas entre os sócios e com terceiros as disposições sobre as sociedades civis. Mas não decorre mais que isto. É importante atentar nesta realidade, sendo indevido extrapolar daqui para a ideia - que a sentença recorrida expressamente subscreve - que a sociedade irregular se transmuda (enquanto o contrato não for reduzido a escritura pública) numa sociedade civil, de sorte que a falta de forma não invalida o contrato de sociedade (na certeza de que o contrato de sociedade civil não está, em princípio sujeito a forma especial, ut artº 981º, nº 1 do CC).
Na realidade, a falta de forma implica a nulidade do contrato de sociedade comercial. Como diz Ferrer Correia (Temas de Direito Comercial e de Direito Internacional Privado, pag 139) a falta de forma bastante não poderá deixar de sujeitar o contrato à sanção da nulidade. O que se passa apenas é que quando os sócios dão início imediatamente às actividades sociais a lei é sensível à teia de relações negociais que se estabelecem, pelo que as consequências da declaração de nulidade fixado no direito comum (artº 289º, nº 1 do CC) não se revelariam adequadas ao caso (idem, pág 144). É por isso que a lei, conciliando os interesses em jogo, remete a solução estabelecida na lei para as sociedades civis, porém, repete-se, apenas no que tange às relações entre os sócios e com terceiros.
A melhor prova da bondade desta asserção retira-se aliás do que se dispõe no artº 172º do CSC: a falta de forma do contrato de sociedade impede a sociedade de existir, obrigando à liquidação da mesma, seja por iniciativa dos sócios, seja por iniciativa do Ministério Público.
E como se salienta no Ac desta RP de 6.10.97 (Col Jur 1997, 4º, pág 210) o artº 7º, nº 1 do CSC estabelece uma formalidade ad substantiam, pelo que, visto o disposto nos artºs 36º, 41º, nº 1, 51º, nº 1 e 172º do mesmo diploma, é nulo o contrato de sociedade comercial que não revista a forma legalmente imposta, podendo a consequente liquidação resultar de acordo dos sócios ou de determinação judicial na sequência da declaração de nulidade.
Ora, a matéria de facto que vem provada revela-nos que os sócios da sociedade irregular em questão acordaram, em 20 de Março de 1995, em dissolver a mesma. Simplesmente, essa dissolução ficou expressamente condicionada ao facto do R. pagar às AA. a compensação que lhes era devida, sob pena de reingresso destas na sociedade (logo, manutenção da sociedade) e de ficar sem efeito o acordo de dissolução. Esse acordo de dissolução ficou assim sujeito a uma condição resolutiva, de sorte que a não verificação da condição neutralizou (resolveu) a eficácia do acordo. Acontece que a condição não foi cumprida pelo R., e por isso na esfera jurídica das AA. (re)consolidou-se o direito de sócias, nas condições que já vinham estabelecidas no acordo reduzido a escrito em 18 de Fevereiro de 1994. As AA., independentemente de acesso aos bens sociais e efectiva apreensão ou detenção dos mesmos, como que reassumiram (na realidade, nunca a perderam) a qualidade de sócias e, desta forma readquiriu a sociedade a sua anterior textura pessoal (sócios). E da mesma forma que se tratava de sociedade irregular, assim se manteve.
Do que fica dito resulta que não podemos concordar com a solução jurídica que ao caso foi dada pelo tribunal a quo.
Desde logo, porque, dando-se como provada a aludida cláusula de reingresso se não se verificasse a condição do pagamento, dela não se retiram as devidas consequências, decidindo-se como se a mesma não tivesse sido acordada.
Depois, a invocação que na sentença se faz à disciplina do artº 1019º do CC não é pertinente, visto que a dissolução da sociedade foi acordada em termos condicionais. Não podemos desprezar a condição, como se ela não tivesse sido aposta ao negócio. Não se tratou de um acordo definitivo e incondicional de dissolução, que é o que está subjacente àquele normativo. Como assim, não era necessário qualquer acordo para reatar a sociedade. O não pagamento da totalidade da compensação devida pelo R. às AA. implicou só por si a neutralização do acordo e o reatamento da sociedade.
Acresce, o contrato de sociedade, por força da não verificação da condição a que o acordo de dissolução foi sujeito, manteve a sua existência, reassumiu-se, sendo que é legalmente nulo por falta de forma.
Por último, a nulidade pode ser declarada judicialmente, implicando a entrada da sociedade em liquidação, nos termos dos artºs 51º, nº 1 e 165º do CSC. Obviamente que o objecto da liquidação é o património (o acervo patrimonial) societário, decorrente da afectio societatis. Donde, o que os RR. alegam nos artºs 10º e segts da sua contestação, mesmo que eventualmente de factos reais se trate, em nada contende que a possibilidade de liquidação.
Portanto, conquanto não tenha qualquer cabimento jurídico a invocação no caso dos artºs 104º e 107º do Código Comercial (revogados desde 1986) - o que significa que não faz sentido falar-se em "inexistência" da sociedade, por irregular, como falam os apelantes - procedem as conclusões 4ª, 5ª e 6ª.
O que as apelantes reclamam na conclusão 7ª foi apresentado a título meramente subsidiário. Pelo que fica dito se vê que está prejudicado. Em todo o caso sempre se dirá que se trataria de pretensão sem qualquer pertinência, visto que os recursos visam a reapreciação das questões submetidas ao tribunal recorrido e não criar decisões sobre matéria nova. E do que se trata aqui é bem de um pedido que não foi apresentado ao tribunal a quo, logo inatendível por via de recurso.
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Decisão:
Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em conceder provimento à apelação e em consequência, revogando a sentença recorrida:
a) Declaram e condenam os RR. a reconhecerem a existência e manutenção da sociedade comercial por quotas, sob a forma irregular, constituída entre as AA. e o R., por incumprimento deste das obrigações assumidas no acordo celebrado em 20/3/95;
b) Declaram nulo o contrato de sociedade celebrado entre AA. e R., por não ter sido reduzido a escritura pública e determinam, nos termos do artº 52º, nº 1 do CSC, a entrada da sociedade em liquidação.
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Custas em ambas as instâncias pelos RR..
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Porto, 22 de Janeiro de 2002
José Inácio Manso Raínho
Eurico Augusto Ferreira de Seabra
Afonso Moreira Correia