Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0733856
Nº Convencional: JTRP00040766
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: CIRE
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP200710250733856
Data do Acordão: 10/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 735 - FLS 55.
Área Temática: .
Sumário: Dentro dos respectivos e bem amplos poderes inquisitórios, para julgamento e decisão do incidente da qualificação da insolvência – art. 11º do CIRE – pode o juiz basear a sentença em factos mesmo não alegados pelas partes, contanto que sobre os mesmos tenha havido a possibilidade da parte se pronunciar, sob pena de violação do direito de defesa (arts. 3º, nº/s 1 e 3 do CPC e 20º da CRP).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1) – Por apenso ao processo de insolvência …./05 – do .º juízo Cível de Santo Tirso – em que foi declarada insolvente “B………., Lda”, veio o Exmo. Administrador, no incidente de qualificação da insolvência, juntar parecer no sentido da insolvência dever ser qualificada como fortuita, descrevendo a factualidade subjacente e expressando os fundamentos para assim concluir.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido do Sr. Administrador esclarecer o seu parecer, mormente as contradições que diz apresentar entre os factos que este descreve e a conclusão formulada (omissões dos deveres de apresentação à insolvência e da elaboração e depósito das constas anuais na conservatória do registo comercial), o que foi determinado.

Na sequência da referida notificação, o Sr. Administrador da Insolvência veio juntar esclarecimento do seu parecer, concluindo como anteriormente, no sentido da qualificação da insolvência como fortuita.

Seguidamente, o Exmo. Magistrado do Público – baseando-se apenas no incumprimento das obrigações de apresentação à insolvência e de submissão a fiscalização e depósito, na conservatória do registo comercial, das contas anuais de 2003 e 2004 – emite parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

Na sequência da notificação prevista no art. 188°/5 do CIRE[1], vieram a devedora e o seu único sócio gerente – C………. - deduzir oposição, alegando que tudo foi feito para evitar a insolvência e se não fosse o incumprimento por falta de pagamento de um credor jamais se verificaria falta de pagamento aos trabalhadores e Segurança Social.
Daí a expectativa da desnecessidade de apresentação à insolvência, tendo inclusivamente sido apresentado um plano de pagamento em prestações da dívida à Segurança Social.
E que a falta de depósito das contas anuais na Conservatória não se deveu a acto intencional, mas a lapso formal, sendo que nenhum credor ou terceiro reclamou ou alegou qualquer prejuízo decorrente dessa omissão.
Concluem que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.

Após a “condensação da matéria de facto”, sem censura de qualquer interessado, seguiu a causa para instrução com a realização da audiência de julgamento.
A final, foi proferida sentença em que
- se qualifica como culposa a insolvência de “B………., Lda”;
- se considerou afectado por tal qualificação o seu gerente C………. e
- se decretou a inabilitação do identificado gerente por um período de seis anos,
- se declarou a sua inibição, por igual período, para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e
- se determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo oponente afectado pela qualificação e condenou o mesmo na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos.

2) - Inconformados com a sentença, dela recorrem a insolvente e o referido gerente afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
Doutamente alegando, concluem:
“A) Não podem os oponentes e ora agravantes conformarem-se com a decisão, sentença, do Tribunal de 1ª Instância, pela qual decidiu:
“- qualificar como culposa a insolvência de “B………., Lda”, e considerar afectada por tal qualificação o seu gerente C………., com domicílio fixado nos autos;
- decretar a inabilitação do identificado gerente por um período de seis anos, bem como a sua inibição, por igual período, para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
- determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo oponente afectado pela qualificação e condenar o mesmo na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos”;
B) Tendo sido declarada a insolvência da B………., Lda., veio o administrador da insolvência emitir parecer e esclarecimento àquele, nos termos do artigo 188º nº 2 do CIRE, o qual concluiu e propôs a qualificação da insolvência como fortuita;
C) Nessa sequência, veio o Ministério Público pronunciar-se no sentido de que fosse a insolvência declarada culposa, para tal, invocou, somente e em exclusivo, a presunção da existência de culpa grave, por incumprimento, do previsto no artigo 186° nº 3 alínea a) e b) do CIRE;
D) Os aqui agravantes, notificada e citado, respectivamente, que foram, vieram nos termos do artigo 188° nº 5 do CIRE, deduzir a respectiva oposição, invocando além do mais que, não existe qualquer culpa grave, no incumprimento de tais deveres e/ou obrigações, e designadamente, tal incumprimento jamais foi determinante de um agravamento da situação económica da insolvente;
E) Vejamos, tudo foi feito, no bom sentido, para evitar a insolvência e não fosse o incumprimento, a falta de pagamento, essencialmente, por parte de um cliente, para quem a insolvente no período estava a trabalhar quase em exclusivo, jamais, se verificaria o incumprimento, designadamente à segurança social e trabalhadores;
F) Daí a expectativa real, da desnecessidade, porventura, da apresentação à insolvência, tanto mais, que no sentido de regularizar entretanto o incumprimento junto da segurança social, foi apresentado um pedido de pagamento da dívida em regime de prestações;
G) De igual modo, nenhuma culpa grave existiu, na omissão de submeter à fiscalização as contas anuais ou de as depositar na conservatória do registo comercial, aliás, nenhum credor ou terceiro reclamou ou alegou qualquer prejuízo decorrente do não depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial;
H) Pelo exposto, nenhuma culpa grave existiu no incumprimento do previsto no artigo 186º nº 3 alínea a) e b) do CIRE, em contrário do defendido pelo Ministério Público, e como tal, deve a insolvência ser qualificada como fortuita;
I) Sucede que, o Tribunal de 1ª Instância motivou, decidiu sobre a matéria de facto e aplicou o direito, concluindo que a insolvência foi culposamente provocada, tendo por base os pressupostos mencionados no artigo 186º nº 1 e 2 alínea a) e d) do CIRE, e, não os pressupostos mencionados no artigo 186º nº 3 alínea a) e b) do CIRE, invocados pelo Ministério Público, para pronunciar-se no sentido de que a insolvência seja declarada culposa;
J) Sendo certo que, os agravantes só àqueles pressupostos invocados pelo Ministério Público, deduziram a sua oposição;
K) E, além do mais, sob pena e em clara violação do princípio do contraditório, artigo 3° do Código de processo Civil, jamais o Tribunal de 1ª Instância poderia fazer valer-se dos pressupostos mencionados no artigo 186° n° 1 e 2 alínea a) e d) do CIRE;
L) O que constitui, designadamente, no que a esta parte toca, a nulidade da sentença, artigo 668° nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil;
M) Quanto aos pressupostos que o Ministério Público, em exclusivo invocou, para a presunção da existência de culpa grave, por incumprimento, do previsto no artigo 186° nº 3 alínea a) e b) do CIRE, para se pronunciar no sentido de que seja a insolvência declarada culposa;
N) Ou seja, pela omissão do dever da apresentação à insolvência por incumprimento generalizado num período superior a seis meses das contribuições e cotizações à segurança social, e, pela não submissão à fiscalização e respectivo depósito na competente conservatória do registo comercial, das contas anuais respeitantes aos anos de 2003 e 2004;
O) Com o devido respeito, dúvidas não existem, que tais pressupostos, “in casu”, estão afastados ou ilidida tal presunção de culpa grave, pois, não resultou provado qualquer culpa grave, no incumprimento de tais deveres e/ou obrigações, e designadamente, tal incumprimento jamais foi determinante para a criação ou agravamento da situação económica da insolvente;
P) Não pode assim a insolvência ser qualificada como culposa;
Q) Por mera cautela, e a admitir-se o contrário, o que não se admite e contra o que se espera, sempre se dirá que, por tudo o quanto acima ficou exposto e bem como, tendo em consideração os legítimos direitos, liberdades e garantias do agravante C………., afectado por tal qualificação da insolvência como culposa, será sempre de considerar como desproporcionado e exagerado a inabilitação e inibição do mesmo por um período de seis anos;
R) A douta decisão do Tribunal de 1ª Instância, violou assim por erro de interpretação das normas jurídicas contempladas no artigo 3° e 668° nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil, artigo 186° nº 1, 2 alínea a) e d), e 3 alínea a) e b) do CIRE.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve reparar-se o agravo e, em consequência, revogar-se a decisão do Tribunal de 1ª Instância, substituindo-a por decisão que qualifique a insolvência como fortuita, seguindo-se os ulteriores termos legais até finai, com o que V. EXCIAS. farão
Sã, Serena e Objectiva JUSTIÇA”.

Não existe contra-alegação.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

3) - Face às conclusões das alegações, que delimitam o âmbito do recurso (arts. 684º/3 e 690º/1 e 3, do CPC), importa decidir:
- inexistência de culpa grave no incumprimento dos deveres de apresentação à insolvência e submissão das contas anuais a fiscalização e ao seu depósito na conservatória do registo comercial;
- violação do princípio do contraditório;
- nulidade da sentença;
- irrelevância da omissão da apresentação à insolvência, fiscalização e depósito das contas para a situação de insolvência e
- desproporcionalidade e exagero do período de inabilitação e inibição.

4) - Na sentença recorrida vêm provados os seguintes factos:
1. A insolvente encontrava-se matriculada na Conservatória de Registo Comercial da Trofa sob o nº 5607/020402, constando de tal matrícula como sócio único e gerente C………. .
2. A insolvente não concluiu as contas anuais de 2004, nem depositou alguma vez as contas anuais na Conservatória de Registo Comercial.
3. Em 27 de Junho de 2005, a insolvente instaurou acção contra D………., pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 97.152,27, acrescida de juros vencidos no montante de € 6.102,60, bem como vincendos até efectivo pagamento, alegando para o efeito um crédito emergente de serviços prestados entre Julho e Novembro de 2004, alturas em que deveriam ter sido pagos.
4. A insolvente tinha ao seu serviço diversos equipamentos, cujo destino e localização é desconhecido do Liquidatário e não foi apreendido, equipamentos esses que deram origem a acção para reconhecimento de créditos instaurada por parte da entidade que cedeu à insolvente o respectivo gozo e fruição, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, contrapartidas essas que não foram pagas pela insolvente.
5. A insolvente, antes da declaração de insolvência, vendeu a terceiros parte dos equipamentos que utilizava, nomeadamente declarou transferir a propriedade de diversos veículos e máquinas para o nome do sócio gerente, o que, em alguns casos, deu origem a pedido de registo posterior à entrada da acção especial de insolvência e antes da respectiva sentença.
6. Em 03.02.2005, a insolvente solicitou à Segurança Social o pagamento das contribuições até tal data em dívida em prestações, o que foi indeferido

Por via dos documentos juntos, considera-se ainda provado:
7. Por sentença de 02/11/2005, transitada em julgado a 16/01/2006, foi declarada a insolvência de “B………., Lda”.
8. A acção de insolvência foi intentada por E………. (ex. trabalhador da empresa insolvente), em 02.09.2005.

5) – Não resultou provada a restante materialidade alegada na oposição, mormente que a insolvente, caso obtivesse procedência na acção referida em 3), tencionava proceder ao pagamento à Segurança Social e seus trabalhadores.

6) - Não foi impugnada a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, pelo que cumpre acatar a factualidade que vem julgada provada na sentença recorrida (sem prejuízo de outra que deve considerar-se).

7) – A insolvência da empresa recorrente assentou na seguinte factualidade:
“1. Q requerida é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do registo Comercial da Trofa, sob o nº 5607/02002, sendo seu sócio gerente C………. .
2. O objecto dele consiste na construção civil, desaterros, terraplanagens e execução de tapetes betuminosos.
3. Ao seu serviço, nessa actividade, trabalhou o requerente desde 01.05.2005, mediante acordo de trabalho com um prazo certo, exercendo as funções de motorista de peados e recebendo a remuneração mensal de € 500.
4. A requerida deixou de pagar o salário aos seus trabalhadores, o qual em 06.05.2005, enviou carta à requerida a rescindir o contrato de trabalho com efeitos imediatos, pelo não pagamento do salário do mês de Fevereiro de 2005, encontrando-se em dívida, naquela data, os meses de Fevereiro a Abril de 2005.
5. Os demais trabalhadores da requerida, que se despediram por falta de pagamento, são credores da quantia de, pelo menos, € 14 500.
6. Além de não ter pago aos trabalhadores da requerida, que se despediram por falta de pagamento deixou de pagar as suas dívidas, designadamente à Direcção Geral das Contribuições e Impostos, Segurança Social e Fornecedores.
7. A requerida não tem actividade visível, não se encontrando os seus veículos e máquinas no estaleiro, bem como ali não se encontram quaisquer trabalhadores” - conforme certidão da sentença, junta a estes autos de recurso.

8) – A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, tendo sido, na espécie, qualificada como culposa (artigo 185º). Como decorre do artigo 186º/1 do CIRE, a insolvência é culposa quando resultar de uma actuação, com dolo ou culpa grave, do devedor ou dos seus administradores (de direito ou de facto), nos três anos anteriores ao início do processo.
A par desta noção, contempla-se, nas diversas alíneas do nº 2 desse artigo, um elenco (taxativo) de comportamentos dos administradores (de facto ou de direito), quando o devedor não seja uma pessoa singular, que importam, inilidivelmente, a qualificação da insolvência como culposa. Verificada alguma dessas situações, presume-se, iuris et de iure, a existência de dolo ou culpa grave e que essa conduta dos administradores determinou a situação de insolvência ou contribuiu para essa situação, ou seja, presume-se a culpa e o nexo de causalidade entre esses comportamentos e a situação de insolvência.
Nesses casos, a insolvência é sempre culposa.

Já nas alíneas a) e b) do nº 3, desse mesmo artigo 186º, apenas se estabelecem presunções de culpa grave, ilidíveis por prova em contrário (artigo 350º/2 do CC). Há culpa grave se os administradores do devedor, que não seja uma pessoa singular, incumprirem alguma das obrigações em referências nessas alíneas – omissão do dever de elaborar as contas, de submetê-las a fiscalização ou depositá-las na conservatória do registo comercial e omissão do dever de apresentação à insolvência no prazo legal (artigo 18º).
Incumpridos estes deveres, presume-se culpa grave nesses comportamentos omissivos.
Culpa que o devedor ou das pessoas, que possam ser afectadas pela qualificação da insolvência, podem ilidir por prova em contrário.

A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitirem o cumprimento desses deveres, actuaram com culpa grave.
Provadas essas omissões, fica provada a culpa mas, para a qualificação da insolvência como culposa, exige-se ainda a prova do nexo de causalidade entre essa conduta omissiva e a situação de insolvência.

Sem prejuízo do que se dirá quanto à omissão do dever de apresentação à insolvência, é seguro que, na espécie, a devedora não se apresentou à insolvência (esta foi requerida por um credor) nem elaborou as contas anuais (pelo menos, as de 2004) nem depositou quaisquer contas na conservatória do registo comercial.
Perante esta situação teriam de ser os recorrentes a provar factos que afastassem a culpa no incumprimento desses deveres, omissões que permitem esconder a situação do devedor perante terceiros, seus credores.
Se, por um lado, quanto ao incumprimento do dever de apresentação à insolvência, ainda invocam a expectativa de uma receita (pagamento de serviços por um cliente, para o que foi mesmo instaurada uma acção) que poderia evitar a insolvência (sem que o alegado crédito bastasse para satisfazer as obrigações vencidas da insolvente – do relatório do administrador detectam-se créditos reclamados superiores a € 400 000,00) e foi feito pedido de pagamento das quantias devidas à Segurança Social em prestações (o que foi indeferido), quanto à omissão do depósito das contas (e mesmo do fecho das contas de 2004), nenhuma razão se aporta ao processo, que não seja a de tratar-se de “mero lapso formal” (ao longo do tempo de actividade!), o que – e independentemente de qual seja “esse lapso”, que se não identifica - não constitui justificação que afaste a culpa grave.

Por outro lado, como se verifica dessa materialidade (ainda que bem minguada e que a qualificação da insolvência, pelas consequências que podem advir para as pessoas afectadas, bem pode justificar indagação pelo tribunal de vasta e concreta factualidade, quando alegada, mas não sendo de esquecer que o juiz não está limitado à alegação dos “interessados” - no sentido de credores, devedor, pessoas que possam ser afectadas pela qualificação, administrador e Ministério Público -, como decorre do artigo 11º) provada, não se circunscreve qualquer justificação que afaste a culpa grave do gerente da empresa nessas condutas omissivas, nomeadamente no que toca à omissão do depósito das contas.
Pelo que a questão improcede.

9) – Alegando que a decisão recorrida assentou apenas no disposto no artigo 186º/1 e 2, als. a) e d) do CIRE, e não nos pressupostos mencionados no nº 3 desse artigo (quais sejam - não apresentação á insolvência e não elaboração das contas anuais, submissão a fiscalização e seu depósito na conservatória do registo comercial) invocados pelo MP, para se pronunciar pela qualificação da insolvência como culposa, e porque os oponentes apenas a estes pressupostos deduziram oposição, não poderia a decisão recorrida valer-se de tais pressupostos (não alegados pelo MP, já que o administrador pronunciou-se pelo carácter fortuito da insolvência), há clara violação do princípio do contraditório.
Nessa interpretação da sentença recorrida feita pelo recorrente, labora-se em erro.
Já que esta não conclui que a insolvência é culposa com base nos “pressupostos mencionados no artigo 186º nº 1 e 2 alínea a) e d) do CIRE”.
Cita-se dessa sentença: “a maior parte do equipamento da insolvente desapareceu sem qualquer explicação por parte do seu sócio gerente …
Tal desaparecimento foi, pelo menos em parte, acompanhado da acção do sócio gerente no sentido de, poucos meses antes da insolvência e, em alguns casos já depois desta ter sido peticionada, haver declarado transferir a propriedade de diversos veículos para seu nome pessoal, assim os ocultando à massa e deles dispondo em seu proveito pessoal.
Porém, o parecer emitido pelo Ministério Público não se quadrou nestes índices irrefutáveis, valendo eles apenas em sede instrumental, mormente para quantificação da duração da inabilitação e inibição para o exercício do comércio, caso se venha a reconhecer que a insolvência foi culposa”.
Ou seja, se bem que o tribunal recorrido tenha concluído pela ocorrência das situações previstas nas citadas alíneas a) – desaparecimento e ocultação de bens do devedor – e b) – disposição dos bens do devedor em proveito pessoal - não recorreu a esses índices para a qualificação da insolvência como culposa; apenas os utilizou “em sede instrumental”, para quantificar a duração do período de inabilitação e inibição para o exercício do comércio, “caso se venha a reconhecer que a insolvência foi culposa[2]” em funções dos índices previstos no artigo 186º/3 do CIRE, em que o MP se baseou para motivar o seu parecer.
E conclui que a insolvência é culposa porque os “oponentes não só não lograram provar nenhum facto que legitimasse o afastamento dos efeitos presuntivos” baseados nesses dois índices, isto é, não provaram factos que permitissem afastar a presunção de culpa grave, que “não obstante a falta de prestação e depósito de contas e de apresentação à insolvência, os seus dirigentes em nada contribuíram para tal situação de insolvência ou para o respectivo agravamento”.
Os outros “índices”, relacionados com o desaparecimento e utilização de bens do devedor em proveito pessoal (do gerente), não funcionaram como fundamento da conclusão pela insolvência culposa, antes como elementos instrumentais de quantificação dos períodos de inabilitação e inibição da pessoa afectada pela qualificação da insolvência como culposa.

Não vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
Os recorrentes foram notificados do relatório do administrador e do parecer do MP.
Limitaram a sua “defesa” a afastar a imputação de culpa grave no incumprimento dos deveres de apresentação à insolvência, elaboração, submissão a fiscalização e depósito das contas.
Não se pronunciam quanto a qualquer factualidade ínsita no relatório do Administrador que pudesse responsabilizá-los, enquadrando-se nalguma das previsões do artigo 186º/2.
Foram notificados dos documentos juntos, nenhuma oposição ou observação lhes fizeram, nomeadamente quando dos mesmos resultam condutas de “dissipação” dos bens da insolvente, quando já se encontrava numa situação de insolvência de facto.
Foram notificados da “base instrutória” e dela não reclamaram, por excesso ou insuficiência.
Como estabelece o artigo 11º “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”, conferindo aos juiz amplos poderes inquisitórios em detrimento do dispositivo.
Não é alegado que quaisquer elementos do processo tenham sido sonegados ao controle dos recorrentes, isto é, que sobre eles não tenham tido oportunidade de se pronunciar. Acompanharam todas as fases do processo e tiveram oportunidade de se pronunciar, isto é, exercer defesa efectiva, pelo que não há violação do contraditório, princípio basilar do processo civil e que deve ser (e foi) observado ao longo de todo o processo (artigo 3º do CPC).

10) – Quanto à alegada nulidade, por conhecimento de questão de que o tribunal não podia conhecer, adianta-se, desde já, a inverificação de um tal vício da sentença.
Ao tribunal foi colocada a questão da qualificação da insolvência e foi sobre essa questão que o tribunal se pronunciou, independentemente de apenas se basear nas razões alegadas pelo MP ou em outras que os factos provados propiciassem, mas por aquele não alegados.
É nula a sentença quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (artigo 668º/1/d do CPC), nulidade que representa a sanção pela violação do disposto no art. 660º/2, do CPC, preceito que impõe ao julgador o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação mas, por outro lado, de só poder ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo tratando-se de questões do conhecimento oficioso.
O excesso de pronúncia determinante da nulidade em causa refere-se aos pontos essenciais de facto e de direito que constituem o centro do litígio, seja no que respeita ao pedido como às excepções; não respeita às razões ou argumentos desenvolvidos para fundamentar determinada decisão. As questões a que alude o mencionado preceito centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa.

Ora bem, entendem os recorrentes que estaria vedado ao Senhor Juiz recorrido basear a decisão (pela insolvência culposa) com apelo aos “pressupostos” mencionados no artigo 186º/2, als. b) e d), quando MP apenas apela à violação das obrigações a que se reportam as normas do nº 3 do mesmo artigo, e o Administrador pronunciou-se pelo carácter fortuito da insolvência.
Já se verificou que não é bem assim, já que a decisão teve por base essencial a omissão de cumprimento dos deveres mencionados nesse nº 3 e não nas referidas alíneas do nº 2.
Mas a eventual nulidade não se dissiparia por essa constatação, já que sempre se teria atendido às “infracções” mencionadas nessas alíneas do nº 2, pelo menos, para quantificar o tempo de duração da inabilitação e inibição.

Não ocorre a invocada nulidade da sentença.
O que está em causa é a qualificação da insolvência e apenas sobre essa questão se pronunciou o tribunal. Não conheceu para além da controvérsia suscitada pelas diferentes posições do MP, Administrador e Recorrentes.
O que pode ter sucedido é o tribunal recorrer a factos não alegados pelas partes (a que, em regra, se opõe o artigo 664º do CPC, como decorrência do princípio do dispositivo), o que não implica a nulidade da sentença, que respeita a vício intrínseco desta peça processual. Mas desde que os factos tenham sido alegados e se mostrem provados, o juiz é livre na sua qualificação jurídica, como decorre desse preceito.
Sucede que, como atrás se expressou, dentro dos poderes inquisitórios bem amplos do Juiz (no que toca ao julgamento do incidente da qualificação da insolvência – artigo 11º) para decidir o incidente, pode basear a sentença em factos mesmo não alegados pelas partes. Pelo que improcede a questão da nulidade.

11) - Da irrelevância da omissão da apresentação à insolvência, fiscalização e depósito das contas para a situação de insolvência.
11.1) - Não se dispõe de factualidade que permita afastar qualquer influência do incumprimento desses deveres para a insolvência. Mas a questão não se deve colocar nesses termos, antes se essas omissões determinaram ou agravaram a situação de insolvência.

Como se afirmou atrás, no artigo 186º/2 elencam-se situações que, uma vez provadas, determinam a qualificação da insolvência como culposa. Na ocorrência de alguma dessas condutas dos administradores do devedor, presume-se – iuris et de iure - o dolo ou a culpa grave e o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Verificada alguma dessas ocorrências, a insolvência será sempre culposa.
O que não acontece com o incumprimento das obrigações a que alude o artigo 186º/3. Aqui, provada alguma das omissões dos deveres aí elencados, presume-se – iuris tantum – a culpa grave do administrador na omissão. Culpa grave essa que pode ser afastada pelo devedor ou pessoa que possa ser afectada pela qualificação, mediante prova em contrário.
Mas, nas hipóteses desse nº 3, já não se presume o nexo de causalidade, que a omissão determinou a situação de insolvência a empresa ou para ela contribuiu, agravando-a. Pelo que, além da prova de algum desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram[3].
De contrário, e não obstante o incumprimento dos deveres de elaboração, submissão a fiscalização e depósito das contas, sem que os factos revelem esse relação de causa-efeito, não é possível qualificar, sem mais, a insolvência como culposa.

Nessa interpretação das normas do artigo 186º/3, a simples a omissão dos deveres de apresentação, elaboração, submissão a fiscalização (se exigida por lei – a devedora é uma sociedade unipessoal) e depósito das contas, não importam a qualificação da insolvência como culposa.
E, como a partir dos factos provados na sentença recorrida, nenhum deles indicia sequer contributo algum do incumprimento desses deveres para a situação de insolvência, a inexistirem outros fundamentos para a qualificação desta como culposa, a pretensão recursiva teria de ser acolhida.
Anota-se que, a ter-se por base apenas a materialidade factual vertida nessa sentença, nem seria possível concluir, com segurança, o incumprimento da obrigação imposta pelo artigo 18º, de apresentação à insolvência. Só com recurso à factualidade que serviu de motivo à declaração de insolvência (acção em que o recorrente não é propriamente parte) poderá chegar-se a essa conclusão [cfr. alínea 4) dessa factualidade, atrás reproduzida – a interpretar-se que na data aí mencionada se generalizou o incumprimento das dívidas laborais e à segurança social, não obstante este facto constar “alegado” no relatório do administrador)].
Não sendo o incumprimento das obrigações mencionadas no artigo 186º/3, na dimensão demonstrada na sentença, fundamento para qualificar a insolvência como culposa, irrelevante se torna tecer outras considerações, in casu, quanto à verificação da omissão do incumprimento desses deveres.

11.2) – Não obstante a insuficiência dos factos alinhados sob a alínea 2) da factualidade provada e da não apresentação à insolvência (que não consta dessa factualidade, e apesar das reservas atrás feitas) para se qualificar a insolvência como culposa, não decorre que se deva considerar fortuita se dos autos constarem assentes outros factos que determinem aquela qualificação.
Como já se afirmou, a factualidade provada não foi impugnada.
“No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes” – artigo 11º. Contanto que sobre esses factos tenha havido a possibilidade da parte se pronunciar, sob pena de violação do direito de defesa (arts. 3º, nºs 1 e 3, do CPC, e 20º/ da Constituição da república). Também já se referiu que, quanto aos factos que vêm provados, não se viola o direito de defesa, pois que os recorrentes tiveram a oportunidade de sobre essas questões se pronunciar (de notar que, no relatório, é alegado o desaparecimento de bens da insolvente e a alienação de outros – e a falta de colaboração do gerente para a sua detecção). Aliás, quando os recorrentes falam em violação do contraditório, não é nesta vertente, mas no facto de terem servido de fundamento – dizem – à decisão imputações que não eram as mencionadas no parecer do Ministério Público.
Assente fica que, para se qualificar a insolvência, podem ser considerados factos não alegados pelas partes (prevalecendo neste processo o princípio inquisitório sobre o dispositivo do processo civil) e que o juiz não está limitado pela posição das partes quanto à qualificação jurídica dos factos, vejamos se a materialidade relevante demonstra uma insolvência culposa.

Como estabelece o artigo 186º/2, é sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros
(…).
O que, na decisão impugnada se entendeu verificado, atento o que se alinha nas alíneas 4 e 5 da matéria de facto. Sob aquela provou-se “a insolvente tinha ao seu serviço diversos equipamentos, cujo destino e localização é desconhecido do Liquidatário e não foi apreendido, equipamentos esses que deram origem a acção para reconhecimento de créditos instaurada por parte da entidade que cedeu à insolvente o respectivo gozo e fruição, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, contrapartidas essas que não foram pagas pela insolvente”.
Não se concretiza o equipamento que a insolvente tinha ao seu serviço e, daí, decorre não se especificar ou quantificar a parte dos bens desaparecidos ou ocultados (ou de cujo destino e localização o liquidatário desconhece – como consta do facto e do relatório do administrador), não sendo possível qualificar a parte dos bens “desaparecidos” como “parte considerável” do património da insolvente (e os bens de destino desconhecido não representa a totalidade do equipamento que esta tinha ao seu serviço).
Por outro lado, não está assente a contribuição do administrador da insolvente para o desaparecimento “desse” equipamento.
É certo que, pelo que o parecer do administrador indicia, não revelou qualquer contributo para a localização dos bens que se dizem desaparecidos, como de resto, o processo é exemplo perfeito da inércia dos credores para localizar esse património (não obstante a intenção do legislador colocar o processo de insolvência nas mãos dos credores, visando a satisfação dos seus direitos), não revelando o menor interesse para colaborar com o administrador, apesar de estarem em causa essencialmente interesses seus. Mas, a contrario, não é de concluir, sem outros elementos, que o “desaparecimento” dos (desses) bens resultou de actuação daquele. Estranha-se a ocorrência de um furto tão radical (o escritório da empresa ficou “limpo”, face ao que vem dito no relatório do administrador), para justificar a falta de informação ao Administrador do destino dos bens “alienados”, mas também não foi averiguada a sua realidade no processo. A concluir somos pela não subsunção dos factos descritos sob o nº 4 da materialidade assente à hipótese da alínea a) citada.

Noutra vertente, se afirma que poucos meses antes do início do processo de insolvência e, em alguns casos, já depois desta ter sido peticionada, o administrador da insolvente dispôs de bens desta, alguns a seu favor, assim os ocultando à massa. Conclusão assente no que vem provado na alínea 5 da matéria de facto.
Refira-se que, pelo que o processo indicia, os bens mais valiosos da devedora eram os seus veículos. Trata-se de uma pequena sociedade unipessoal que se dedicava à construção civil – desaterros, terraplanagens e execução de tapetes betuminosos.
E certificam os documentos juntos a disposição de diversos veículos a favor do sócio (único) e gerente da insolvente, pouco tempo antes do pedido de insolvência, pedindo-se o registo da propriedade de alguns deles já após o início da acção.
Tal conduta subsume-se ao disposto no artigo 186º/2, als. a) e d), a implicar a qualificação da insolvência como culposa, improcedendo o recurso nesta parte.
Qualificação que não vincula em eventuais causas penais que tenham lugar relacionadas com a concreta insolvência.

12) – Da desproporcionalidade e exagero do período de inabilitação e inibição.
Como decorre do artigo 189º/2, als. b) e c), qualificada a insolvência como culposa, o juiz decreta a inabilitação das pessoas afectadas pela qualificação e declara a inibição das mesmas pessoas para o exercício do comércio e desempenho de cargos nos órgãos de sociedade comercial, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 a 10 anos. Este período deve ser graduado de acordo com a apurada responsabilidade do administrador no desencadear ou agravamento da insolvência.
Na decisão recorrida decretou-se a inabilitação e inibição por seis anos.
A qualificação da insolvência como culposa assenta em presunções.
Apesar da conduta do administrador de dispor de alguns dos bens da insolvente, mesmo a seu favor, seria mais grave se fosse esse facto a causa efectiva da insolvência, o que em termos efectivos se não demonstra (embora se presuma), e não represente essa conduta já uma tentativa de “salvar” alguns desses bens duma real situação de insolvência, sonegando-os à massa, não obstante os inerentes prejuízos para os credores (que, como se referiu, não revelaram interesse pela situação dos bens da “falida”, já que foi nula a colaboração com o administrador) e a inerente censurabilidade de tal conduta.
Por outro lado, não resulta contributo das omissões previstas no artigo 186º/3 para essa situação de insolvência. E não é de afastar alguma contribuição para essa situação a dívida indiciada (que não provada nem averiguada – ver al. 3 da matéria de facto) de um cliente da insolvente, dívida que, pelo seu montante, poderia despoletar ou agravar a situação económico/financeira da insolvente.
Por isso, se entende ser excessivo o período por que foram impostas as “sanções” à pessoa afectada pela qualificação, pelo que deve esse período ser reduzido a três anos.

13) – Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em dar parcial provimento ao agravo e, em consequência decide-se:
a) se bem que por razões diferentes, manter a qualificação da insolvência como culposa,
b) reduzir para três anos o período de inabilitação e inibição a que fica sujeita a pessoa – C………. - afectada pela qualificação da insolvência como culposa,
c) no mais, manter a decisão recorrida e
d) condenar os agravantes nas custas do recurso na proporção de quatro quintos, ficando as demais a cargo da massa.

Porto, 25 de Outubro de 2007
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira

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[1] Diploma legal a que pertencem as normas citadas sem outra referência.
[2] Todos os itálicos são nossos.
[3] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, II, pág. 15; Carvalho Fernandes, em THEMIS, 2004 (edição Especial), págs. 94/94; Raposo Subtil e outros, em Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, 2ª edição, págs. 26/265.