Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636918
Nº Convencional: JTRP00039982
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PEDIDO IMPLÍCITO
ARRENDAMENTO HABITACIONAL
DIVÓRCIO
CESSÃO TÁCITA
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
RECONHECIMENTO
Nº do Documento: RP200701180636918
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 702 - FLS. 59.
Área Temática: .
Sumário: I) - Se o Autor, numa acção de reivindicação, se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, este pedido deve considerar-se implícito naquele.
II) – A atitude da Ré, ao informar o senhorio, que o seu marido, arrendatário habitacional, não voltava a habitar a casa morada do casal por ter ocorrido separação de facto (e depois divórcio), e que ela se manteria a habitá-la, revela a assunção por parte da Ré da qualidade de arrendatária, assim evidenciando acordo tácito para cessão da posição de arrendatário.
III) – Se na sequência do divórcio – não foi comunicada ao senhorio – pelo Tribunal ou pelo Conservador a transmissão do arrendamento, tal transmissão não produziu quanto a ele qualquer efeito; todavia, se não obstante o divórcio o senhorio, foi informado desse facto pela Ré e tem vindo a proceder à actualização das rendas e a recebê-las da Ré sabendo que ela continua residir na casa objecto do arrendamento tem de concluir-se que aceitou a cessão da posição contratual de arrendatário.
IV) – Tendo-se transmitido, validamente, para a Ré a posição de arrendatário, a acção de reivindicação do imóvel improcede na vertente da restituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B……………. veio propor esta acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, contra C……………..

Pediu o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio urbano parcialmente ocupado pela Ré e a condenação desta a restituir-lhe a casa sobradada que habita e que integra o dito imóvel.

Como fundamento, alegou que o direito de propriedade sobre o referido imóvel está inscrito a seu favor e que a Ré ocupa uma das casas sobradadas que o compõem sem qualquer título e sem autorização da A, recusando-se a restitui-la.

A R. contestou, alegando que D……………, o seu ex marido e primitivo arrendatário da casa em apreço, cedeu-lhe tacitamente a sua posição de locatário em 1987 e com o consentimento da A e do seu marido, entretanto falecido. Invocou o abuso do direito da A, porquanto esta sabe que a Ré se encontra a residir naquela casa há mais de 30 anos. Caso assim se não entenda, deverá considerar-se que, em 1987, celebrou um contrato de arrendamento verbal com a A e o seu marido, pois estes acederam a que a Ré habitasse na casa desde então. Pagou sempre as rendas, que eram recebidas pelo falecido marido da A e pela A.
Respondendo, a A alegou que, em 1968, concluiu um contrato de arrendamento verbal com o então marido da Ré e que só teve conhecimento da morte deste no início de 2005, altura em que também tomou conhecimento de que o mesmo já se encontrava divorciado da Ré e que o divórcio ocorrera em 1987. A A consentiu que a R continuasse a habitar na casa, somente porque estava convicta que esta ainda permanecia casada com o primitivo inquilino. Por tal facto, recebia as rendas e emitia os respectivo recibos em nome do ex-marido da Ré, D…………...

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, tendo a Ré sido absolvida do pedido.

Discordando do decidido, interpôs recurso a Autora, de apelação, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:
1. A douta sentença recorrida é nula por não se ter pronunciado, como devia, quando à peticionada condenação da apelada em reconhecer o direito de propriedade da apelante sobre o imóvel dos autos (alínea d) do nº 1 do art. 668° do CPCivil).
2. A douta sentença recorrida devia ter julgado a acção totalmente procedente, condenando a apelada a reconhecer o aludido direito de propriedade e a restituir a casa sobradada dos autos, que esta ocupou, à apelante.
3. A apelada não tem qualquer título que suporte essa ocupação.
4. Inexiste qualquer fundamento legal que determine a recusa dessa restituição.
5. Assim, a sentença recorrida violou o disposto no art. 1311° do C.Civil.
6. Com efeito, no que respeita a essa restituição, dos autos resulta claramente a incomunicabilidade da posição de arrendatário à apelada bem como a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre o antecessor da apelante e o ex-marido da apelada.
7. A prova de qualquer facto impeditivo da recusa da restituição da casa dos autos à apelante, atendendo à presunção do registo consignada no art. 7° do C.R.Predial, cabia à apelada (cfr. nº 2 do art. 342° do C.Civil).
8. Não se provou qualquer cedência tácita ou expressa mesmo que a apelante tivesse reconhecido a apelada como beneficiária dela.
9. Pelo contrário, provou-se que a apelante permitiu que a apelada permanecesse na casa dos autos por estar convencida que esta continuava casada com o titular, como inquilino, do contrato de arrendamento (facto nº 15 da douta sentença recorrida).
10. O facto de a apelante saber, desde data indeterminada, anterior a 29.12.1993, que esse inquilino (actual ex-marido da apelada) deixou de ter residência permanente na casa dos autos e que a apelada se manteria a habitá-la, não é determinante nem permite concluir qualquer cedência ou comunicabilidade do arrendado uma vez que, face à lei vigente à data do divórcio e à do citado conhecimento, o senhorio nada podia opor a essa circunstância sendo obrigado a aceitar a manutenção do contrato de arrendamento com esse primitivo inquilino (art. 1093° nºs 1 i) e 2 c) do C. Civil e art. 64° nºs 1 i) e 2 c) do RAU).
11. Nos contrato de arrendamento a lei a aplicar é a que vigore à data dos factos que possam determinar consequências para a vigência ou alteração dos vínculos assumidos naqueles contratos (Ac. do STJ, de 6/7/2001, in BMJ 499-300 e Ac. do STJ, de 12/2/2004, proc. 03B4105, in www.dgsi.pt).
12. A comunicabilidade da posição de arrendatário ao cônjuge do inquilino, para ser eficaz relativamente ao senhorio depende sempre da comunicação prevista no art. 1038°, alínea g) do C.Civil.
13. Nem no prazo de 15 dias a contar do divórcio nem nunca essa comunicação de cedência ou decisão judicial para efeitos daquela comunicabilidade foi provada ter sido feita.
14. Mantém-se pois o regime geral de incomunicabilidade do arrendamento dos autos a favor da apelada, consignado nos arts. 1110°-1 do C.Civil e art. 83° do RAU, uma vez que a apelada não logrou provar o regime exceptivo previsto, respectivamente, nos nºs. 2 a 4 do art. 1110° do C. Civil ou no art. 84° do RAU.
15. De resto, mesmo que essa prova exceptiva tivesse sido feita, sempre essa comunicabilidade não produzia efeitos ou seria inexistente de valor prático, face à ineficácia, tanto no sentido amplo como restrito, determinada pela falta de comunicação exigida pela alínea g) do art. 1038° do C. Civil.
16. Assim o contrato de arrendamento dos autos caducou em 24 de Setembro de 2002, tendo-se mantido titulado pelo ex-marido da apelante até essa data, apesar da ocorrência do divórcio em Maio de 1987, não sendo despiciendo e até releve que a apelante apenas teve conhecimento desses dois factos somente em início de 2005.
17. Estão, por conseguinte, preenchidos os requisitos da caducidade do contrato de arrendamento dos autos constantes do corpo e da alínea d) do art. 1051° do C.Civil.
18. Na douta sentença recorrida, para além do art. 1311° do C. Civil, violaram-se ou interpretaram-se incorrectamente as normas jurídicas supra indicadas, porquanto deveriam ter sido no sentido de concluir pela inexistência de qualquer fundamento legal que permitisse decidir pela recusa da restituição da casa dos autos à apelante.
Termos em que se deve conceder provimento à presente apelação e, por via disso, acordar-se na anulação da douta sentença recorrida e na substituição da decisão pela que condene a apelada a reconhecer o direito da propriedade da apelante sobre o prédio urbano de que faz parte a casa dos autos e a restituir essa casa à apelante, com todas as necessárias e legais consequências.

A Ré contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
- Caducidade do arrendamento por não se ter transferido eficazmente para a Ré a posição de arrendatário.

III.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A A. B……………… tem inscrito a seu favor o direito de propriedade sobre o prédio urbano designado como "E………….", composto de morada de duas casas sobradadas e térreas, com cortinha, sito na …………, nº …., na freguesia de ……., concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 00178/070489 inscrito na matriz urbana sob o artigo 642.
2. A Ré ocupa uma das casas sobradadas referidas em 1).
3. Por acordo verbal, o marido da A. deu de arrendamento a D……………, então marido da Ré, o imóvel identificado em 2), onde este e a Ré residiram até 1987.
4. O acordo mencionado em 3) realizou-se em 1965.
5. Em 22.05.1987, o casamento entre D…………… e a Ré foi dissolvido por divórcio.
6. A A. sabia que D…………… e a Ré estavam separados e que tinham deixado de viver juntos na casa referida em 2).
7. Em data indeterminada, mas anterior a 29.12.1993, a Ré deslocou-se a casa da A. e do seu marido a informá-los que o seu marido não voltaria a habitar a casa e que Ré se manteria a habitá-la.
8. Na sequência da matéria de facto dada como provada em 7), o marido da A. aceitou que a Ré continuasse a residir na casa sobradada indicada em 2).
9. Desde o momento em que o marido da A. aceitou que a Ré continuasse a residir na casa sobrada indicada em 2), até à presente data, o marido da A. e, depois, a própria A. têm vindo a proceder à actualização anual das rendas, comunicando todos o aumentos à Ré.
10. A Ré sempre pagou os aumentos ao falecido marido da A. e à A..
11. O falecido marido da A. e a A. sempre receberam as rendas pagas pela Ré e fizeram seu esse dinheiro.
12. A A. tem conhecimento desde há mais de 30 anos que a Ré habita a casa indicada em 2).
13. Somente no início de 2005, a A. tomou conhecimento da morte de D……………., tendo apurado, nessa altura, que tal facto tinha ocorrido em 24 de Setembro de 2002.
14. Somente no início de 2005, a A. teve conhecimento de que a Ré e D……………… se encontravam divorciados, tendo então apurado que o divórcio ocorrera em Maio de 1987.
15. A A. permitiu que a Ré permanecesse na casa referida em 2) porque estava convencida que esta continuava casada com D…………...
16. Devido às circunstâncias descritas em 13) e 14), a A sempre emitiu o recibo mensal da renda em nome de D……………., tendo-o entregue a quem vinha pagar essa renda, fosse a Ré ou terceiro.

IV.

1. Nulidade da sentença

A Recorrente sustenta que a sentença é nula por omissão de pronúncia – art. 668º nº 1 d) do CPC – por não se ter pronunciado sobre o pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado na p.i..

Embora sem reflexos práticos, mesmo quanto a custas, deve reconhecer-se tal omissão na parte injuntiva da sentença.
Na verdade, apesar de, na fundamentação, se ter apreciado o referido direito da Autora e de se ter concluído pelo reconhecimento de que a A. é efectivamente proprietária do dito imóvel – com base na presunção derivada do registo, nos termos do art. 7º do C. Reg. Predial – a final não foi proferida decisão explícita sobre tal direito; a acção foi, aliás, julgada totalmente improcedente.

Dispõe o art. 1311º nº 1 do CC que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
A acção de reivindicação aí prevista é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela(1).
A causa de pedir desta acção é complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do autor, como a ocupação abusiva do imóvel pelo réu(2).
Por outro lado, são dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o pedido de reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e, bem assim, o de restituição da coisa (condemnatio)(3).
Afirma, a este respeito, Menezes Cordeiro que a acção de reivindicação compreende (esses) dois pedidos concomitantes(4).
Também Oliveira Ascensão ensina que na reivindicação devem combinar-se, parece que necessariamente, dois pedidos, como resulta do art. 1311º nº 1: - o reconhecimento do direito real, e; - a consequente restituição da coisa(5).
De forma idêntica, afirma Carvalho Fernandes que, relativamente à conformação do pedido a dirigir ao tribunal, pode dizer-se que há um principal e outro secundário. O principal é o do reconhecimento da titularidade do direito, porquanto a condenação do réu na restituição constitui, na própria letra da lei, uma consequência da procedência daquele pedido(6).

É certo que perspectivando-se a acção de reivindicação apenas como de condenação, não pode deixar de concluir-se que o reconhecimento da existência do direito será um pressuposto e não um pedido concomitante com o da entrega da coisa(7).
A este propósito, diz Alberto dos Reis que os pedidos da acção de reivindicação (de reconhecimento do direito e de condenação na entrega) não são substancialmente distintos; a cumulação é aparente, sendo a multiplicidade de pedidos de carácter processual(8).
Refere também Anselmo de Castro que nas acções condenatórias sobre direitos reais se reúnem dois juízos, um de apreciação - implícito - e outro de condenação - explícito. O tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da existência e violação do direito do demandante; simplesmente as duas operações, apreciação e condenação, não gozam de independência(9).
Por isso se vem aceitando que se o autor se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, este pedido deve considerar-se implícito naquele(10).

No caso dos autos foram formulados expressamente os dois pedidos que caracterizam a reivindicação; se pode dizer-se que o primeiro é pressuposto necessário do segundo, o certo é que aquele foi formulado autonomamente.
Que pode ser assim formulado resulta directamente do teor do citado art. 1311º nº 1.
Por outro lado, se a acção de reivindicação envolve necessariamente um juízo declarativo sobre a existência do direito, o pedido que vise expressamente a declaração desse direito deverá ter uma correspondente decisão.
A tal não obsta o facto de esse pedido ser pressuposto ou meio do pedido condenatório e de poder considerar-se existir apenas uma cumulação aparente de pedidos. Se aquele pedido é formulado expressa e separadamente, caso não se prove o segundo (dominante na perspectiva da acção condenatória), o pedido de declaração subsiste devendo ser objecto de decisão (vem-nos à memória o que se passa no concurso aparente de crimes quando não se prova o crime mais grave).
O que não parece curial é provar-se a matéria de facto em que assenta o pedido e este ser julgado improcedente.
Já se tem entendido, aliás, que o autor pode optar entre a cumulação de pedidos - de declaração e de condenação - ou cingir-se à mera dedução deste último(11) (por aquele estar implícito neste).
E já se decidiu que, se numa acção de reivindicação se provar apenas o direito de propriedade, a acção procede quanto ao pedido de reconhecimento desse direito e improcede quanto ao pedido de restituição(12).

Assim, do facto de se ter entendido que ficou provado fundamento que obsta à restituição apenas decorrerá a improcedência do segundo pedido formulado pela A..
Quanto ao primeiro pedido, tendo sido reconhecido na sentença que a A. é proprietária do imóvel referido na acção, esse pedido deve proceder.
Deve, pois, suprir-se a apontada omissão – art. 715º nº 1 do CPC – proferindo-se decisão sobre tal pedido declarativo (que não de condenação).

2. Caducidade do arrendamento

A Recorrente sustenta que estão preenchidos os requisitos da caducidade do contrato de arrendamento, previstos no art. 1051º d) do CC, por duas razões:
- Por se manter o regime geral de incomunicabilidade, não tendo a Ré feito prova do regime previsto no art. 1110º nºs. 2 a 4 do CC (aqui aplicável, como se decidiu, por o divórcio ter ocorrido em 1987);
- Por, mesmo que tivesse feito essa prova, ela ser ineficaz, por virtude de falta da comunicação exigida pelo art. 1058º g) do CC.

Essencial na fundamentação da sentença foi ter-se considerado existir declaração tácita do marido da Ré, de transmitir para esta a sua posição de arrendatário, e a aceitação da Autora, revelada pelos factos acima indicados sob os nºs. 10, 11 e 12.
Sobre tal juízo, a Recorrente apenas afirmou que não ficou demonstrado qualquer acordo, tácito ou expresso, ou qualquer acção judicial sobre a atribuição da posição de arrendatário à apelada, sendo que o ónus desta prova lhe competia (art. 342º nº 2 do CC).
Sem razão, parece-nos.

Embora a lei, neste ponto, seja especialmente exigente, a univocidade dos facta concludentia, na declaração tácita, como afirmava Manuel de Andrade(13), afere-se por um critério prático, empírico e não por um critério lógico. Existirá ela sempre que, conforme os usos da vida, haja quanto aos factos de que se trata toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões) - ainda que porventura não esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra significação. Em tal caso deverá reputar-se tacitamente declarada aquela vontade.
No mesmo sentido, C. Mota Pinto(14), ao afirmar que a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido do auto-regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade.
É, aliás, esse o sentido expresso do próprio art. 217º nº 2: ... factos que com toda a probabilidade a revelam.
No caso, sabemos que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo marido da Ré, já na constância do casamento destes.
Foi o marido da Ré quem deixou de habitar na casa de morada do casal, aí tendo permanecido a Ré, antes e depois da dissolução do casamento por divórcio (em 22.05.1987).
A Ré deslocou-se a casa da Autora e do seu marido a informá-los de que o seu marido não voltava a habitar a casa e que ela continuava a habitá-la, o que foi aceite pelo marido daquela.
Assim, não há qualquer dúvida de que o arrendamento foi celebrado para instalação da casa de morada do casal, mantendo essa finalidade durante a separação de facto até ao divórcio.
Neste condicionalismo, admite-se que o marido da Ré nem se visse como verdadeiro titular exclusivo do arrendamento (embora o fosse formalmente, mesmo que, porventura, por pura casualidade).
Por outro lado, o seu comportamento – ao sair do lar conjugal e não manifestando qualquer discordância – perante a Ré ou a Autora – quanto à permanência aí da Ré, tem implícito o acordo quanto a esta situação.
O próprio silêncio das partes sobre esta questão no processo de divórcio (cfr. certidão de fls. 118 e segs.) faz presumir uma situação de acordo quanto à manutenção do statu quo(15), que era, no caso, o da utilização do locado pela Ré, cônjuge do arrendatário.
Como refere Carvalho Fernandes(16), na vida social os actos das pessoas valem não só pelo seu conteúdo próprio, mas também por aquilo que com segurança e razoabilidade deles se pode extrair.
Assim, o comportamento do marido da Ré e todo o circunstancialismo referido, vistos de fora, na perspectiva de um declaratário médio e sensato, revela implicitamente, com toda a probabilidade, a vontade de que a Ré continuasse a habitar a casa (porventura com os filhos, o que não foi alegado), com a qualidade de arrendatária.
A atitude da Ré, ao informar que o marido não voltava a habitar a casa e que ela se manteria a habitá-la, confirma isso mesmo, revelando a assunção daquela qualidade.
Parece-nos, assim, demonstrado o acordo tácito para a cessão da posição de arrendatário para a Ré.

A Recorrente suscita, porém, a questão da ineficácia dessa transmissão por lhe não ter sido comunicada.
Embora na sentença não se tenha abordado esta questão expressamente, reconheceu-se implicitamente a sua irrelevância, ao afirmar-se que o direito da Ré de suceder ao ex-marido na posição de inquilino, por força do divórcio, é um direito potestativo, livremente exercitável que inelutavelmente se impõe ao senhorio.
Na verdade, nessa situação, a possibilidade de transferir o direito ao arrendamento para o cônjuge não depende de consentimento do senhorio. Como afirma Pereira Coelho(17), no caso de divórcio, a lei sacrificou deliberadamente o interesse do senhorio ao interesse da protecção da casa de morada de família.

A questão que se põe é a de saber se o acordo dos cônjuges é, só por si, eficaz para operar a transmissão do arrendamento, como se decidiu, sem intervenção do tribunal.
Questão que supõe que a transmissão ocorreu na sequência do divórcio da Ré, como parece admitir-se no recurso (mas sem apoio na factualidade provada, tendo em conta a resposta restritiva ao quesito 2º, em que se perguntava se por altura do divórcio, a Ré se deslocou a casa da Autora e marido a informá-los do seu divórcio ..., o que não se provou).

Dispunha o art. 1110º nº 2 do CC (aqui aplicável, como se disse) que, obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição de arrendatário fique pertencendo a qualquer deles.
Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir (...) – nº 3.
A transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por efeito de acordo ou decisão judicial, deve ser notificada oficiosamente ao senhorio – nº 4.

Este regime vinha já da Lei nº 2030, de 22.6.1948, que, no art. 45º nº 3, dispunha:
A transmissão do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por acordo ou decisão judicial, só produzirá efeitos em relação ao senhorio, se for requerida a sua notificação dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de separação ou de divórcio ou da decisão proferida pelo tribunal de menores.
No regime aqui aplicável, o referido prazo foi eliminado; a proposição "só produzirá efeitos em relação ao senhorio" foi substituída pela seguinte: "deve ser notificada oficiosamente ao senhorio".

Observa Pereira Coelho(18) (a propósito de idêntico regime previsto no art. 84º do RAU) que não exige a lei o consentimento do senhorio para a transferência do direito ao arrendamento, como resultaria do princípio geral do art. 424º nº 1 do CC. Basta que a transferência lhe seja notificada; e deve sê-lo oficiosamente pelo juiz ou pelo conservador do registo civil, conforme os casos (...). No caso de divórcio litigioso, a transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, acordada entre os cônjuges (art. 84º nº 1 do RAU e art. 1407º nºs 2 e 4 do CPC) ou decidida pelo juiz, nos termos do art. 84º nº 2 do RAU, deve igualmente ser notificada pelo juiz ao senhorio. A partir da notificação, deve o senhorio reconhecer o cônjuge do arrendatário como seu arrendatário e passar em nome dele os recibos de renda.

Decorre deste regime que o destino da casa de morada de família há-de ser decidida (tratando-se de divórcio litigioso) em tribunal(19): por acordo dos cônjuges, que o tribunal há-de agarrar com ambas as mãos(20), homologando-o, ou por decisão de atribuição do juiz; a transferência deve, em qualquer caso, ser notificada oficiosamente ao senhorio.
A este propósito, salienta Januário Gomes(21) que a transferência da posição do arrendatário opera com o trânsito em julgado da decisão do juiz ou com o despacho homologatório do juiz ou do conservador, sendo notificada ao senhorio.

Pois bem, no caso, a questão do destino da casa de morada de família não foi solucionada por qualquer dos meios referidos, no Tribunal onde correu o processo de divórcio.
Assim, a cessão tácita da posição de arrendatário, que acima afirmámos ter ocorrido, não se impõe ao senhorio, nos termos previstos no art. 1110º nºs 2 e 4.

Ficou provado, contudo, que:
Em data indeterminada, mas anterior a 29.12.1993, a Ré deslocou-se a casa da A. e do seu marido a informá-los que o seu marido não voltaria a habitar a casa e que Ré se manteria a habitá-la (supra nº 7).
Na sequência desse facto, o marido da A. aceitou que a Ré continuasse a residir na casa sobradada indicada em 2) (nº 8).
Constata-se, portanto, por estes factos, que a cessão operada para a Ré foi comunicada ao senhorio (foi o marido da Autora quem celebrou o contrato de arrendamento – supra nº 3), que a aceitou.
Para além desta aceitação, ficou provado que, até à presente data, o marido da A. e, depois, a própria A. têm vindo a proceder à actualização anual das rendas, comunicando todos o aumentos à Ré (9º); que a Ré sempre pagou os aumentos ao falecido marido da A. e à A. (10º) e que o falecido marido da A. e a A. sempre receberam as rendas pagas pela Ré e fizeram seu esse dinheiro (11º).
Assim, ocorreu a aceitação da cessão e, bem assim, reconhecimento da beneficiária da cedência, como tal, sendo, por isso, esta válida e eficaz – arts. 1038º f) e 1049º do CC.

É certo que se provou que, somente no início de 2005, a A. – a proprietária do prédio locado (facto nº 1) – teve conhecimento de que a Ré e D……………. se encontravam divorciados e que a A. permitiu que a Ré permanecesse na casa porque estava convencida que esta continuava casada com D…………… (supra, factos 14 e 15).
Parece, porém, que o erro da Autora não releva, uma vez que não se provou que, na altura em que ocorreu a cessão, a Ré não estivesse ainda casada, não se tendo apurado que a cessão tenha sido motivada pelo divórcio (cfr. a referida resposta restritiva ao quesito 2º).
Por outro lado, devendo o caso subsumir-se na previsão do art. 1687º nº 1 do CC(22), uma vez que o marido da Autora, não sendo dono, agiu legitimado com o consentimento desta, há muito que a situação se consolidou por decurso do prazo previsto no nº 2 da mesma disposição legal.

Assim, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, conclui-se, como na sentença, que a posição contratual de locatário do marido da Ré se transmitiu validamente para esta, que continuou, desde então, a ocupar legitimamente o locado, o que obsta à restituição do prédio pedida pela Autora (arts. 1311º nº 2 do CC).

Resta acrescentar que, como acima se aflorou, a procedência do primeiro pedido formulado pela Autora não se repercute nas custas – art. 449º nº 1 do CPC.

V.

Em face do exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, em consequência, na procedência parcial da acção:
- declara-se que a Autora é titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito nos arts. 1º a 3º da p.i.;
- mantém-se o mais decidido.
Custas pela Apelante.

Porto, 18 de Janeiro de 2007
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
________
(1) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., 112.
(2) Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, V, 65.
(3) Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit., 113. Cfr., entre outros, os acs. da Rel. do Porto de 16.3.89, BMJ 385-603 e da Rel. de Coimbra de 10.5.88, CJ XIII, 3, 63 e de 30.5.90, BMJ 397-572.
(4) Direitos Reais, 1993, 590.
(5) Direitos Reais, 4ª ed., 373.
(6) Lições de Direitos Reais, 2ª ed., 252.
(7) Cfr. Ac. do STJ de 24.1.95, CJ STJ III, 1, 39.
(8) Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, 147 e 148.
(9) Lições de Processo Civil, I, 1970, 179.
(10) Pires de Lima e Antunes Varela, Ibidem; entre outros, os acs. do STJ de 2.3.78, BMJ 275-219 e da Rel. de Coimbra de 20.10.87 e de 21.2.95, BMJ 370-619 e 444-715.
(11) Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 17ª ed., 37 (nota 2 ao art. 4º).
(12) Ac. da Rel. de Coimbra de 30.5.90, BMJ 397-572.
(13) Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 132.
(14) Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., 423.
(15) Neste sentido, Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 353 e Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 464.
(16) Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª ed., 227.
(17) RLJ 122-207; também em Curso de Direito de Família, Vol. I, 2ª ed., 667 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª ed., 650
(18) Curso Cit., 670.
(19) Neste sentido, Pereira Coelho, Ob. Cit., 662 (nota) e Salter Cid, Ob. Cit., 334.
(20) Como sugestivamente afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit., 649.
(21) Arrendamentos para habitação, 2ª ed., 162.
(22) Neste sentido, Pereira Coelho, Ob. Cit., 403.