Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0335609
Nº Convencional: JTRP00036281
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ALD
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
Nº do Documento: RP200311270335609
Data do Acordão: 11/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: I - A locadora no contrato de aluguer de longa duração não é obrigada a proceder à resolução do contrato com recurso à acção judicial respectiva.
II - Para que a locadora veja deferida a providência cautelar inominada de apreensão do veículo não basta alegar que o locatário continuara a usar o veículo, com crescente desvalorização do mesmo, sendo necessário que se alegue que a conduta do requerido ia tornar impossível ou muito difícil o ressarcimento pela requerente dos prejuízos havidos com a demora na entrega do veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO:

C...,Lda., com sede no Porto,
intentou procedimento cautelar não especificado contra
Eurico..., residente na Travessa..., nº... Rés-do-chão Dtº 1170-004 Lisboa.

Alega factualidade visando a comprovação da existência do seu direito e justificando o receio invocado.

Na 1ª instância, o Mmº Juiz, decidiu inferir liminarmente o requerimento inicial por entender que o pedido formulado era manifestamente improcedente, já que “não se verifica o pressuposto (de que depende o decretamento da providência inominada requerida) de que a conduta (omissiva) do Requerido cause à Requerente “lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito” ( ou, melhor, da expectativa jurídica respectiva- que é, ..., a da restituição do veículo locado)” (sic).

Inconformada com tal decisão, a requerente interpôs recurso dessa decisão, recebido como de agravo, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes
conclusões:
1ª- Os factos vertidos e alegados na petição preenchem, uma vez provados, os pressupostos determinativos da providência cautelar comum requerida.
2ª- A gravidade da lesão e a sua difícil reparação resulta dos facto do não pagamento das rendas seguido da não entrega do veículo após resolução do contrato.
3ª- Tais factos são de molde a fundamentar o justo receio da requerente dessa gravidade e difícil reparação do dano.
4ª- Ao decidir como decidiu o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 381º e segts. do C.P.Civil.

O Mmº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.


2 . OS FACTOS E O DIREITO:

Como é sabido, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões das alegações de recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do C.P.Civil.

Começa a recorrente por dizer, nas suas alegações, que são duas as questões que pretende suscitar no presente recurso.
No entanto, nas conclusões esquece-se da primeira dessas questões, pois a ela não faz qualquer referência.
Sendo, como é, o objecto do recurso balizado pelas conclusões das alegações do mesmo, apenas sobre a segunda das questões aí suscitadas nos teríamos de pronunciar.
No entanto, algo diremos acerca da primeira das aludidas questões.

Assim, temos as seguintes questões a apreciar no presente recurso:
A primeira é saber se ao caso sub judice é de afastar a aplicação do estatuído no artº 1047º do CC, ou seja, se a locadora no contrato de aluguer de longa duração é, ou não, obrigada a proceder à resolução do contrato com recurso à acção judicial respectiva.
A segunda é saber se no caso presente estavam, ou não, preenchidos os pressupostos legais estabelecidos no artº 381º, nº1, do CPC para o decretamento da providência cautelar requerida.

· Quanto à primeira questão:
Entendeu-se na decisão recorrida que o contrato em causa não se podia considerar resolvido pela requerente, de forma válida, uma vez que, aplicando-se o disposto no artº 1047º do CC, a resolução do contrato, na falta de cumprimento por parte do locatário, tinha que ser decretada pelo tribunal, sendo nula a cláusula contida no artº 17º, nº4 do Dec.-Lei nº 354/86 que permite aquela resolução contratual com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais.
Apreciemos.

Ao contrato em causa nos autos - de aluguer de veículo automóvel sem condutor-aluguer de longa duração (ALD) - são aplicáveis as disposições especiais do citado Dec.-Lei nº 345/86, de 23.10, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 44/92, de 31.03 e as disposições gerais do contrato de locação.
Uma dessas disposições gerais é precisamente o citado artº artº 17º, nº4, que prevê à locadora a possibilidade de “rescindir” o contrato, caso as cláusulas contratuais não sejam cumpridas - como aconteceu no caso presente, em que o requerido deixou de pagar as prestações do aluguer do veículo automóvel.
É evidente que a expressão “rescindir” mais não significa do que resolver (cfr. Almeida Costa, Obrigações, 4ª ed., pág. 210 e Dicionário Jurídico, de Ana Prata, 3ª ed., pág. 522—que refere, a respeito do significado da expressão “rescisão”, que “ a lei chama a esta forma de extinção de contratos resolução ( vide arts. 432º e segs., C.C.”.

Não referindo o citado diploma - nem outro que conheçamos - se a aludida resolução contratual deve operar-se com recurso às regras da locação ou, ao invés, se tal deve ocorrer com recurso às regras gerais dos contratos -- maxime artsº 432º e 436º, do CC --, fica-nos esta dúvida para resolver.
Não cremos que a solução passe pelo recurso ao artº 1047º do CC, antes se nos afigura que no caso sub judice a resolução opera-se com recurso à supra referida regra geral dos contratos, não se alvejando, como tal, qualquer nulidade na cláusula do contrato em apreço que permite aquela resolução (cláusula XIV).
E porquê ?
Primeiro, porque, efectivamente, a lei permite, de forma expressa, que a resolução possa ser estipulada, quer por lei - o que ocorre, v.g., para a locação em geral (cfr. cit. artº 1047º CC) --, quer por convenção (cit. artº 432º, nº1, CC). E é precisamente esta convenção resolutiva que se prevê naquele artº 17º, nº4 - aliás, em sintonia com a liberdade contratual que neste domínio predomina (artº 405, CC).
Como diz Antunes Varela e Pires de Lima, Cód. Civil Anotado, vol. I, em anotação àquele artº 432º, “esta convenção pode coincidir com o próprio contrato. Normalmente é mesmo uma cláusula dele.” - como acontece no caso presente (clª. XIV).
Segundo, porque, ao contrário do que ocorre no arrendamento, no aluguer não umas das características típicas daquele: a renovação automática do contrato.
Como bem se escreveu no Ac. desta Relação, in Col. Jur. 2002, Tomo V, pág. 181, “Só o arrendamento, considerada essa sua vocação de renovação automática, exige a protecção e o aviso no caso solene que está subjacente à imposição do artº 1047º do CC, do decretamento pelo Tribunal da resolução do contrato fundada em incumprimento do locatário”.
Portanto, não vemos a mais pequena razão para se aplicar no caso sub judice o artº 1047º, do CC, como norma específica que é do arrendamento predial, permitindo ao senhorio a resolução do contrato verificado qualquer dos fundamentos de resolução contemplados na lei, deixando-se a resolução dos contratos de aluguer sujeita ao regime geral dos contratos, supra citado. Tal significa que a simples comunicação da locadora ao locatário pelo meio operado no caso presente (carta registada) é forma suficiente e válida para que se opere a aludida resolução (com aplicação, portanto, dos arts. 432º e 436º, nº1, CC), verificado que esteja o fundamento para tal (no caso presente, a falta de pagamento dos prestações do aluguer). Basta, portanto, que tenha sido convencionada, como foi, aquela forma de resolução contratual [Várias são as decisões já proferidas neste sentido, como se pode, entre outras, as publicadas in Col. Jur., ano 2001-IV-112 e V-204 ], para que seja válido o recurso à mesma.
Improcede, como tal, esta questão.

Quanto à segunda questão -- se no caso presente estavam, ou não, preenchidos os pressupostos legais estabelecidos no artº 381º, nº1, do CPC, para o decretamento da providência cautelar requerida.
Vejamos.
Com a reforma processual operada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12, as providências cautelares não especificadas, largamente enraizadas na nossa tradição como um meio de protecção de direitos ameaçados, foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», do qual consta a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar.
Assim, resulta do artº 381º do CPC que o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objectivo da acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC; d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.

Como elementos constitutivos do seu direito, à requerente incumbia a alegação e prova dos aludidos requisitos (artº 342º do CC).
Ora, não cremos que a requerente tenha alegado factos suficientes ao preenchimento do requisito referido supra sob a al. b) : a existência de “fundado receio de que outrem” - no caso, o requerido - "antes de proferida decisão de mérito, .........., cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito”. E não tendo alegado, sequer, essa factualidade, não pode fazer a prova (sumária) dos factos reveladores desse requisito ou pressuposto.

Efectivamente, o legislador condicionou a tutela antecipada ou conservatória à prova sumária do aludido fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável - o periculum in mora (requisito comum a todas as providências cautelares).
Como se dispõe na lei, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão [Ver o Ac. da Rel. de Évora, de 13.06.91, in BMJ nº 408º-673].
É que, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária (cfr. artº 385º, nº1, 2ª parte) - como, no caso sub judice, foi solicitado pela requerente (fls. 4)--, não se pode aceitar que seja qualquer lesão a justificar a intromissão na esfera jurídica do requerido, causando-lhe, porventura, um prejuízo do qual pode não ser compensado em caso de injustificado recurso à providência cautelar (artº 390º CPC).
Deve, assim, o juiz colocar na balança dos interesses, a par dos prejuízos que o requerente pretende evitar, também aqueles que, porventura, a decisão possa determinar na esfera jurídica do requerido, seguindo o padrão referido no artº 387º, nº2, do CPC.
Apenas as lesões graves e irreparáveis ou de difícil recuperação merecem a tutela provisória que o procedimento cautelar comum contem.
Assim, ficam afastadas do círculo de interesses que os procedimentos cautelares visam proteger, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, bem assim as lesões graves mas facilmente reparáveis.

“Fundado receio”, é aquele que é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade [Ver Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. I, pág. 684 e Ac. Rel. de Lisboa, de 26.05.83, in Col. Jur., 1983, tomo III, pág. 132] -- embora também é certo que o critério de aferição da expressão “fundado receio” não deve ser reconduzido à certeza inequívoca sobre a verificação in casu da situação de perigo.
Na apreciação do aludido justo receio” de grave lesão futura e dificilmente reparável, há que apreciar, de forma objectiva, todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, tendo em consideração os interesses em jogo por ambas as partes, as condições económicas de ambas, as condutas anteriores e posteriores do requerido e sua projecção nos posteriores comportamentos, etc.

Entendeu-se na decisão recorrida que no caso sub judice não se verificava este requisito, qual seja, de que a conduta (omissiva) do requerido causava à requerente "lesão grave ou dificilmente reparável" ao seu direito (de crédito).
Cremos que assim deve ser, de facto.
Efectivamente, não vêm alegados factos que permitam o preenchimento do aludido requisito.
O facto de ser normal que a continuação do uso do veículo pelo recorrido lhe causa depreciação, só por si nada diz, até porque também é certo que o recorrido continua obrigado a pagar as prestações do aluguer durante o período de utilização - ou, pelo menos, as correspondentes indemnizações.
O risco de perda ou deterioração da viatura é um risco do próprio negócio, risco inerente ao próprio gozo da viatura. Nada se alega e demonstra que, in casu, se vá além do risco normal.
Alegou a requerente que o requerido continuará a usar o veículo, com a crescente desvalorização do mesmo, correndo o risco de ver o veículo fora do mercado, com muito reduzido valor.
É isto verdade, sem dúvida, e indicia a existência de prejuízos para a requerente.
Porém, o que a requerente tinha de alegar - e não alegou - era que a conduta do requerido ia tornar impossível ou muito difícil o ressarcimento pela requerente dos prejuízos havidos com a demora na entrega do veículo.
Repare-se que, sendo o prejuízo sofrido apenas de natureza patrimonial, naturalmente que, atenta a possibilidade de reconstituição natural ou em dinheiro (cfr. artº 566º do CC), sempre pode a requerente ser ressarcida daquele prejuízo com recurso a outros meios patrimoniais oferecidos pelo devedor /requerido.
Não basta alegar que “o facto de o locatário ter deixado de pagar as rendas contratadas indicia fortemente que a sua capacidade para solver futuramente o crédito, a título das prestações já vencidas ou a título de indemnização, a que a locadora tem direito é completamente inexistente”.
Trata-se de mera alegação de conjectura e puramente conclusiva. Só que, como dissemos supra - citando o Professor Alberto dos Reis e um Ac. da Rel. de Lisboa--, o “fundado receio” é algo mais: é aquele que “é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade”.
Daqui que razão tenha o Mmº juiz a quo quando refere que podem existir várias razões para que o requerido tenha deixado de pagar os alugueres, as quais não têm necessariamente a ver com falta de fundos ou património para satisfazer tais obrigações.
E, como tal, com vista a obter suficientes indícios da incapacidade do requerido em satisfazer as obrigações para com a requerente, tinha esta que alegar e provar que o requerido não tem outros meios com que pagar a dívida emergente do contrato de aluguer, ou que vem incumprindo para com outros credores as suas obrigações, delapidando ou escondendo património no intuito de se furtar ao pagamento da dívida à requerente.
Nada disto foi alegado, antes se remeteu para os próprios termos da lei, produzindo afirmações conclusivas, algumas emergentes de uma lógica que nem sempre é corroborada pela realidade factual.

Do exposto se conclui que, face aos factos alegados no requerimento inicial da agravante, não vislumbramos que se verifiquem todos os requisitos exigidos por lei para o decretamento da requerida providência cautelar, designadamente, o periculum in mora .
Como tal, improcedem as conclusões das alegações da agravante.


DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela agravante.

Porto, 27 de Novembro de 2003
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha