Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0250359
Nº Convencional: JTRP00033759
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP200204150250359
Data do Acordão: 04/15/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV STA MARIA FEIRA
Processo no Tribunal Recorrido: 198/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CPC95 ART266-A ART456 N2
Sumário: Litiga de má fé, com negligência grave, o réu que, em acção de investigação de paternidade, alega não ter tido qualquer relacionamento, nomeadamente de natureza sexual, com a mãe da menor durante o período legal da concepção, violando o dever de probidade exigível a qualquer litigante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

RELATÓRIO

O Ministério Público intentou a presente acção de investigação de paternidade, contra o réu Rufino ......., com os sinais dos autos, pedindo que a menor Cristiana ....... seja reconhecida como filha do réu e ordenado o correspondente averbamento de tal paternidade, no respectivo assento de nascimento.
Alegou, em síntese, que, em 30/6/1999, nasceu a menor Cristiana ......., que apenas foi registado como sendo filha de Sílvia .........., sendo certo que é também filha do réu, já que foi fruto das relações sexuais havidas entre este último e aquela Sílvia ........
Citado, o réu contestou, negando ser ele o pai da aludida menor, alegando que se envolveu sexualmente com a mãe da menor, durante um período que decorreu entre o ano de 1994 e até Abril ou Maio de 1997. Porém, durante esse período de tempo a mãe da menor envolveu-se também, em termos sexuais, com outros homens. Afirma, ainda, que durante o período legal da concepção da menor, não manteve qualquer trato carnal com a mãe da mesma.
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Saneado, condensado e instruído o processo, após julgamento foi decidido :
a) Julgar procedente a presente acção e, em consequência, declarar a menor, Cristiana ........, nascida no dia 30/6/1998, na freguesia de ........, Concelho de ......., (com assento lavrado sob o n.º ...., da Conservatória do Registo Civil de ........) como filha do réu, Rufino ........ - melhor id. na PI.
b) Condenar o réu, como litigante de má fé, na multa de 7 UCs.
Custas para o réu (artº 446, nos 1 e 2,do CPC) - muito embora se tenha em consideração que o mesmo goza, até ao momento, de beneficio de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de custas".
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Inconformado, o réu apelou, tendo, nas alegações, concluído:
1ª- A lei exige haja correspondência exacta entre a verdade biológica e a jurídica.
2ª- Exigência que pressupõe um elevado grau de certeza, o que equivale a dizer, da prova.
3ª- A prova dos autos consubstancia-se, quase exclusivamente, nas declarações da mãe da menor.
4ª- O que se revela prova pouco consistente, tanto mais que por pudores pessoais, sexuais, éticos ou familiares, pode ser uma prova vinculada.
5ª- As demais testemunhas do A não viram ou participaram sequer na relação que a mãe da menor manteve com o Apelante, apesar de se afirmar muito próxima dela.
6ª- Não existem nos autos elementos probatórios suficientes, para se poder dar como provado que o Apelante teve relações de sexo com a mãe da menor no período legal de concepção, e menos ainda, que o tenham sido numa situação de exclusividade.
7ª- O facto de o Apelante não realizar exames periciais, em nada o pode prejudicar, nomeadamente no sentido em que o Tribunal valorou tal recusa, pois é um direito constitucional que lhe assiste.
8ª- A presunção da alínea e) n.º 1 do Artº 1871º do Código Civil, só tem aplicabilidade, desde que se prove, a existência de relações sexuais, que é o que, salvo o devido respeito, não resulta da prova produzida e plasmada na decisão quanto à matéria de facto.
9ª- Pela aludida falta de prova, deve a decisão ora sob recurso, ser alterada no que concerne aos n.ºs 11 a 13 da fundamentação da facto, nos termos da alínea b), n.º 1 do Artº 712º do C.P.C..
10ª- A fundamentação jurídica da sentença inculca dever existir prova convincente, cabal, da paternidade, atenta a complexidade de tal prova.
11ª- A douta sentença não atendeu ao ónus de prova do Apelado, antes aplicando, indevidamente, uma presunção legal, que exige o preenchimento de certas condutas, que são dadas como provadas, sem mais.
12ª- O não convencimento do tribunal não pressupõe que a tese seja falsa, a menos que se aceite a infalibilidade humana.
13ª- O tribunal a quo, fez valoração profunda e parcial, da recusa do Apelante em fazer exame pericial, o que não é aceitável.
14ª- A aceitar-se o douto entendimento do tribunal a quo, leva a que, a parte que não prove o que alega, seja condenada como litigante de má-fé, pois deduziu oposição contrária ao convencimento do tribunal.
15ª- A litigância de má-fé pressupõe dolo ou negligência grave, o que consubstancia um "vilipendiar" do bem justiça, o que o Apelante não fez, nem sequer foi feita prova cabal que convença da não verdade da sua alegação.
16ª- A pretensão ou alegação do Apelante é digna e lícita, tanto que o mesmo não se conforma com a bondade da decisão, que não tem condão de o convencer, por fragilidade de prova.
17ª- Também nessa parte, não há elementos nos autos que permitam dizer que o Apelante litigou com má fé.
18ª- A douta decisão viola o disposto nos Arts 342º, 344º e 1871º, 1, e), do Código Civil e 456º do C.P.C.
Nestes termos deve a sentença recorrida ser revogada, alterando-se a fundamentação de facto dos n.ºs 11 a 13, dando-se os mesmos como não provados e em consequência dar-se por não provada e improcedente a acção, absolvendo-se o Apelante do pedido e ainda absolvendo-se o mesmo da multa aplicada como litigante de má-fé, assim se repondo o Direito aplicável.
Na resposta às alegações, o magistrado do Ministério Público defende, em doutas contra-alegações, a manutenção do julgado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
2.1- OS FACTOS
Estão provados os seguintes factos:
1- No dia 30 de Junho de 1998, na freguesia ........, concelho de ......, nasceu a menor Cristiana ........
2- O assento de nascimento da menor foi lavrado, sob o n.º ..., mediante declaração da sua mãe, Sílvia ......., solteira, em 08 de Junho de 1998, na Conservatória de Registo Civil de ........, daí constando apenas a menção de maternidade.
3- A mãe da menor, Sílvia ......., nasceu em 15 de Novembro de 1975 e é filha de António ........ e de Maria .........
4- O réu nasceu em 25 de Dezembro de 1966 e é filho de Domingos ....... e de Maria Angela ........
5- O réu, Rufino ......., casou civilmente, em 03 de Julho de 1986, com Laura .......
6- A mãe da menor conheceu o réu durante o ano de 1992.
7- Em virtude do mesmo se deslocar habitualmente a um café que o pai daquela tinha no Lugar do ......, em ........., junto a uma obra em que aquele andava a trabalhar.
8- Decorrido cerca de um ano após esse conhecimento ambos passaram a manter, um com o outro, relações sexuais.
9- Em virtude do réu já ser casado na altura encontrava-se com a mãe da menor aos fins-de-semana, umas vezes na praia, outras vezes numa pensão, denominada ".......", em .......
10- Mantendo os dois, durante tais encontros, relações sexuais.
11- Tal relacionamento prolongou-se durante cerca de quatro anos, tendo terminado no momento em que o réu tomou conhecimento da gravidez da mãe da menor.
12- A mãe da menor, entre 02,de Setembro de 1997 e 01 de Janeiro de 1998, apenas com o réu manteve relações sexuais.
13- O nascimento da menor Cristiana ....... ocorreu em consequência das referidas relações sexuais mantidas entre a mãe da menor e o réu.
2.2- O DIREITO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
Desde já se adianta que a sentença recorrida se encontra bem fundamentada, de facto e de direito, pelo que este seria um típico caso de remissão para os fundamentos da decisão posta em crise( artº 713º, nº 5, do CPC).
De todo o modo, das alegações/conclusões do apelante resulta que o recorrente questiona a decisão sobre a matéria de facto, além da sua condenação como litigante de má fé.
Conclui o apelante que pela aludida falta de prova deve a decisão ora sob recurso ser alterada no que concerne aos n.ºs 11 a 13 da fundamentação de facto da sentença.
Naturalmente que o pretendido pelo recorrente é a modificação das respostas dadas aos quesitos n.ºs 6 a 8 da base instrutória, a que correspondem os n.º 11 a 13, da fundamentação de facto vertida na sentença posta em crise.
A decisão sobre a matéria de facto consta do despacho de fls. 73 e vº, tendo-se respondido positivamente à matéria de todos os números da base instrutória.
Vejamos se há fundamento legal para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
Como é sabido, a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artº 712º, do CPC.
Estes constituem as excepções à regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância.
No artº 655º, nº 1, do CPC, consagra-se o princípio da liberdade de julgamento - livre apreciação da prova - segundo o qual é concedido ao tribunal "apreciar livremente as provas, decidindo os juizes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto".
No caso em apreço, torna-se perfeitamente claro não ser aplicável a previsão das referidas alineas a) e c), do nº 1, do artº 712º, do CPC, pois que, por um lado, foram inquiridas testemunhas, por forma oral (não gravada) e, por outro, não foi apresentado documento novo superveniente.
Acresce que, a nosso ver, os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas ( al. b), do nº 1, do artº 712º, do CPC).
De todo o modo, dir-se-á que o recorrente pretende que a Relação desvalorize os depoimentos das testemunhas Silvina ..... e Maria de Lurdes ......, os quais, por terem sido prestados oralmente, não podem, agora, ser apreciados ou controlados. Acresce, por outro lado, que a Relação não tem razões para censurar a (livre) apreciação feita pelo julgador da 1ª instância sobre o valor da recusa do réu em efectuar o exame hematológico (artº 519º, n.º 2, do CPC).
Não se vislumbram, pois, razões para alterar o decidido na 1ª instância, sendo que este tribunal não tem mais qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal a quo, quando os fundamentos da decisão foram, no essencial, os depoimentos das testemunhas e a Relação não os pode controlar, já que não há registo fonográfico dos depoimentos prestados.
Tratando-se, como se trata, de uma acção de investigação de paternidade, em que a causa de pedir é o facto jurídico da procriação, ao Ministério Público competia alegar e provar (arts. 342º, nº 1, do CC e Assento do STJ n.º 4/83), os factos atinentes ao reconhecimento da paternidade, designadamente a exclusividade das relações sexuais entre o réu e a mãe da menor no período legal da concepção.
Ora, o Ministério Público logrou provar a pertinente factualidade conducente ao reconhecimento da paternidade do réu relativamente à menor Cristiana ....., como expressamente consta da fundamentação de facto e de direito da sentença recorrida.
Em nosso entender, a matéria de facto apurada, designadamente que o nascimento da menor Cristiana ...... ocorreu em consequência das referidas relações sexuais mantidas entre a mãe da menor e o réu, conduz, necessariamente, à procedência da acção, nos precisos termos ajuizados pela 1ª instância (arts. 1796º, n.º 2, 1798º e 1847º, do CC).
As razões de tal entendimento mostram-se adequada e desenvolvidamente expostas na douta sentença recorrida, sendo desnecessário repeti-las.
Em suma, a solução jurídica do presente pleito é precisamente a que foi acolhida na 1ª instância.
Por fim, a questão da litigância de má fé do réu.
Vejamos.
Nos termos do disposto no nº 2, do art. 456º, do CPC (redacção vigente), diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa;
c) ....
d) ....
Na redacção dada ao artº 456º, do CPC, antes da última revisão (DL nºs 329-A/95, de 12/12, e 180/96, de 25/09), o relevante é que exista uma “intenção maliciosa” (má fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
Não bastava a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais. No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida - dolo directo - ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial - dolo indirecto. No dolo instrumental faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável - Menezes Cordeiro ; “Da Boa Fé no Direito Civil” , I , Almedina , 1984 , pág. 380.
No Ac. do S.T.J., de 24/04/91, in A.J., 18º/28, afirma-se: “Os factos a que se refere o art. 456º, nº 2, do C.P.Civil, e cuja alteração consciente constitui litigância de má fé, são os factos que as partes alegam nos articulados para fundamentar o pedido e a oposição (...)".
Como se decidiu no Ac. do STJ, de 17/11/72, BMJ, 221º/164, só a lide essencialmente dolosa, e não a meramente temerária ou ousada, justificava a condenação como litigante de má fé.
Constata-se, porém, que na actual redacção do artº 456º, do CPC, releva não apenas o dolo mas ainda a negligência grave ou grosseira para o efeito da litigância de má fé.
O regime instituído após a última reforma do direito processual civil traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má fé pode fundar-se, além de numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave.
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C. Penal Português, 4ª ed., p. 48).
Feitas estas breves considerações de natureza normativa, doutrinal e jurisprudencial, analisemos a situação em apreço.
Na decisão recorrida concluiu-se que o réu deduziu uma oposição cuja falta de fundamento não ignorava, alterando a verdade dos factos e, desse modo, agido de forma reprovável.
Tal asserção decorre de se provarem factos que se contrapõem, frontalmente, aos que o réu alegou, designadamente quando refere (artigos 16º e 19º da contestação) não ter tido qualquer relacionamento, nomeadamente de natureza sexual, com a mãe da menor durante o período legal da concepção.
Concluiu, pois, o julgador a quo que a má fé com que o réu litiga é manifesta.
Ora, não podemos deixar de subscrever a conclusão da 1ª instância, pois que, a nosso ver, a actuação processual do réu não pode ser qualificada como meramente temerária ou ousada mas, pelo menos, gravemente negligente.
Diremos que, em face do alegado e do que ficou provado, o réu violou o dever de probidade exigível a qualquer litigante (artº 266º-A, do CPC).
Bem andou, assim, o julgador a quo ao sancionar o réu como litigante de má fé (alíneas a) e b), do nº 2, do artº 456º, do CPC).
Não foram violadas as disposições legais indicadas nas conclusões do recurso, que, assim, improcedem.
3- DECISÃO
Pelo exposto, considerando-se devidamente fundamentada a decisão recorrida, acorda-se em confirmar inteiramente os seus fundamentos, que aqui se dão por reproduzidos, julgando-se, em consequência, a apelação improcedente, confirmando-se, integralmente, tal decisão.
Custas pelo apelante.
Porto, 15 de Abril de 2002
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
Manuel David da Rocha Ribeiro de Almeida