Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0430932
Nº Convencional: JTRP00036956
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
Nº do Documento: RP200405270430932
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Para efeitos de se saber se essa reparação é excessivamente onerosa para o devedor, nos termos da parte final do artigo 566 n.1, não basta ter em conta apenas o valor venal do veículo, mas ainda, e cumulativamente, o valor que tem o uso que o seu proprietário extrai dele e que se computa pelo facto de o proprietário ter à sua disposição um automóvel que usa, de que dispõe e que a mera consideração do valor venal tout court sonega, elimina ou omite.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B............. veio propor a presente acção declarativa. de condenação sob a forma ordinária, contra Companhia de Seguros X.............., S.A. .

Pediu que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de Esc. 15.247.000$00, acrescida de juros de mora, a partir da citação, até efectivo e integral pagamento.

Como fundamento, alegou ter sido vítima de acidente de viação da responsabilidade do condutor do veículo segurado na Ré, do qual lhe advieram danos patrimoniais e não patrimoniais.

A Ré contestou, refutando a culpa do condutor do veículo seu segurado e imputando a responsabilidade do sinistro ao próprio Autor. Impugnou ainda a extensão dos danos invocados por este.
Concluiu pela improcedência da acção.

O Autor replicou.

Percorrida a tramitação normal, veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o Autor, de apelação, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:

1. O Tribunal «a quo» descredibilizou completamente a versão do acidente trazida pelo Autor, através de três testemunhas – C.............., D............ e E............ – desde logo pelos seus nomes não constarem da participação a fls. 109/110, elaborada pelo soldado da GNR, e por entender, sem fundamentação (cfr. resposta aos quesitos), serem depoimentos inconsistentes e contraditórios.
2. Para além de não se poder aceitar, ou sequer consentir que a referida participação policial encerre o rol de testemunhas presenciais a apresentar a julgamento – até porque se não retira de tal documento que as não há – muito menos se entende em que é que foram tais depoimentos inconsistentes e contraditórios.
3. Dos excertos desses depoimentos, que aqui se dão por reproduzidos, verifica-se que todos os três afirmam o mesmo de forma consistente: 1) o veiculo ligeiro seguia em contramão; 2) o ciclomotor não pode evitar a colisão e bateu na frente do veiculo do réu sendo falso que viesse em «cavalo».
4. Ao invés, inconsistente e contraditório foi definitivamente o depoimento da testemunha presencial apresentado pelo Réu, a sua passageira de nome F........... .
5. O excerto do seu depoimento, acima transcrito e que aqui se dá por integralmente reproduzido, é a máxima evidência de quem inquirida por três pessoas (advogados das partes e Juiz) não consegue dizer: 1) a moto vinha no ar; 2) caiu com a roda da frente em cima do capot do carro.
6. Algo demasiadamente fácil para se tentar diminuir com todo o nervosismo que efectivamente revelou mas que de todo tem a ver com a inexperiência de depor em tribunal mas mais com o facto de se ver obrigada a apoiar a falsa tese do Réu.
7. Aceitou sem reserva o tribunal a quo o depoimento desta testemunha (que curiosamente não consta da tão invocada participação policial que serviu para afastar outras mas não esta), mesmo reconhecendo que ao longo do depoimento não conseguiu concretizar e manter a sua versão.
8. Assim se entende que existiu erro de julgamento na apreciação da prova, porquanto é credível e consistente a prova das três testemunhos do Autor acima referidos, cujos depoimentos devem ser aceites, porque são testemunhas efectivamente presenciais, modificando-se assim a resposta ao quesitos 1, 2, 3, 5 e 6 para provados e em especial os quesitos 43, 45, 49 para não provado (quem disse que a mota vinha no ar? quem falou no ar a mais de um metro?).
9. Não se concebendo que alguém, intitulando-se perito-averiguador (G............) não tendo assistido ao acidente, pela análise de fotografias juntas com a contestação, ajude o tribunal a concluir que as marcas de pneu no capot do carro indiciam o ponto de embate, porquanto não conseguiu afirmar serem aquelas as marcas deixadas pela moto do Autor e porque dessas mesmo fotografias decorrem marcas de pneu também na porta do condutor, o que diz bem da razão de ciência desta testemunha.
10. O depoimento da testemunha C........... em conjugação com a do pai do Autor H............., cuja excertos aqui se dão por integralmente reproduzidos, também são inequívocas sobre a prova positiva do quesito 55°, que assim deve ser mudado para provado.
11. Em face do relatório de perícia médico-legal junto, entende-se que os quesitos 22, 23, 24 e 26 deverão ser respondidos como provados.
12. Por confronto com o croquis da participação policial, não impugnado e confirmado em audiência por quem o elaborou, a recta não tem cerca de 5 metros, mas 4,80, pelo que deverá ser respondido negativamente o quesito 39, assim se verificando pela posição dos veículos que quem de facto circulava fora de mão era o Réu.
13. Croquis e participação que ainda deverão sustentar uma mudança de resposta aos quesitos 2, 5 e particularmente aos quesito 39 e 43, em conjugação com a prova testemunhal acima aludida.
14. Porque aceitou como válido e sério o depoimento de H............ também a sua resposta positiva aos quesitos 26 e 27, cujo excertos aqui se reproduz, devem modificar a resposta dada para provada.
Por fim,
15. Ninguém, à excepção do Réu em depoimento de parte, confirmou o quesito 45, nem a testemunha F..........., devendo ser mudado então para não provada.
16. Daí que se impugne a resposta positiva que mereceu do tribunal, que só a poderá ter recolhido do depoimento de parte do próprio Réu, mas porque se trata de matéria favorável não admite confissão e assim dever ser considerada prova nula.
17. Assim, impugna-se a matéria dada como não provado dos quesitos 1, 2, 3, 5, 6, 22, 23, 24, 25, 26, 27 e 55, devendo ser respondida positivamente,
18. Bem como a matéria dada como provada nos quesitos 39, 43, 45, 47, 49, 50 e 51, que impugnada vai devendo ser respondido em termos negativos.
19. Tendo a sua convicção pelo motivos expostos acima mas também porque recorda que leu da contestação do Réu que 1) era o autor quem vinha em contramão (art. 24°); 2) que fugiu para esquerda em manobra de salvamento oferecendo a direita ao autor; 3) que dada a distancia de 10 a 15 metros não foi possível evitar o embate; e 4) que a moto se imobilizou a 12 metros do local do choque e não minimiza que tal versão tenha sido pura e simplesmente afastada pelos factos.
Termos em que deve alterar-se as respostas acima impugnadas, nos termos propostos, revogando-se a douta sentença recorrida julgando-se procedentes os pedidos 1) 2), 4) e 6) da p.i..

A Ré contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a Decidir

Decorre das conclusões acima indicadas que o Recorrente impugna a decisão da matéria de facto sobre vários pontos dessa matéria de facto.
Decidida esta questão, importará tomar posição sobre a questão de fundo, ou seja, decidir da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e, em caso afirmativo, fixar a indemnização que for devida.

III. Fundamentação

1. Impugnação da decisão de facto

O Recorrente pretende que sejam alteradas as respostas a estes quesitos:
- 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º e 55º - para provado;
- 39º, 43º, 45º, 47º, 49º, 50º e 51º - para não provado.

Antes de analisarmos cada um dos referidos quesitos, importará referir que uma das situações em que é admitida a alteração da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto é a prevista no art. 712º nº 1 a), segunda parte, do CPC: ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados e tiver sido impugnada, nos termos do art. 690ºA, a decisão com base neles proferida.
Neste caso, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados – art. 712º nº 2.

A prova, afirma Antunes Varela [RLJ 116-339], visa apenas a certeza subjectiva do julgador, não a certeza absoluta da verificação do facto; atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade (especialmente dos factos pretéritos e dos factos do foro interno de cada pessoa), tem de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas da espécie, para convencer o julgador da verificação ou realidade do facto.
Por outro lado, como se afirma no Ac. da Rel. de Coimbra de 3.10.2000 [CJ XXV, 4, 27], a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz e na formação dessa convicção não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio ou vídeo.
O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

O Recorrente começa por se insurgir contra a fundamentação da decisão de facto por não ter reconhecido credibilidade às três testemunhas que se apresentaram como presenciais: C............, D............ e E.............. .
Há que distinguir: a testemunha D............, como foi confirmado (pela própria testemunha e pelos depoimentos de I.................. e G...............), esteve no local, onde chegou logo após o Autor, por transitar atrás deste, também de motorizada. Segundo referiu, não assistiu ao embate, pelo que o seu depoimento poderia ser relevante sobre a velocidade a que seguia o Autor e sobre a posição em que ficaram os veículos e consequência do embate. No entanto, o depoimento sobre o primeiro ponto suscita desde logo sérias reservas: a afirmação de que o Autor vinha devagar, a cerca de 30 km/hora ou menos, é manifestamente contrariada por elementos objectivos – danos provocados pelo embate nos veículos, distância a que o Autor foi projectado (12/13 metros como foi referido) – e pelo depoimento de I............, em que se baseou a decisão (e até pelo depoimento “desconsiderado” de C............., que referiu que o Autor circulava a 50/60 km/hora).
Quanto às outras duas testemunhas, existem fundadas dúvidas sobre se estariam realmente no local, dúvidas que não derivam apenas do facto de os seus nomes não constarem da participação policial, como o Recorrente pretende fazer crer, mas também do próprio depoimento do Sr. agente participante e do depoimento de I............., ficando-se com a convicção de que apenas estariam presentes esta testemunha, condutor do veículo RQ, a sua acompanhante (a testemunha F.............), a testemunha D............., nas condições referidas e o Autor.
De qualquer forma, as inconsistências e contradições apontadas na motivação estão patentes nos depoimentos, como decorre de uma sua audição atenta, designadamente ao insistir-se (até pelo Sr. Juiz, com intervenção activa e correcta) no esclarecimento de determinados pontos: expressões como “eu acho que”, “não reparei bem”, “já não me lembro bem”, “foi há tanto tempo”, relativamente a afirmações feitas anteriormente, puseram termo a essas tentativas de esclarecimento.

Apesar disso, a ponderação dos restantes elementos de prova, valorados também positivamente pelo Sr. Juiz, impõe a alteração da decisão de facto em vários dos diversos pontos impugnados.
Relevam nessa ponderação:
Sobre os factos relativos ao acidente, o depoimento de I.............., condutor do RQ, que não é (como o Recorrente o apelida) Réu na acção; o depoimento parece isento, confirmando a convicção do Sr. Juiz, apresentando uma descrição do acidente que se harmoniza com o croquis da participação, assumindo quanto à condução do RQ uma versão que nem é favorável à Ré. O depoimento de L............., agente participante, que confirmou o teor da participação e a precisão das medidas indicadas no aludido croquis. O depoimento de F............., quanto ao modo como surgiu a motorizada do Autor, repentino e a cair sobre o capot do RQ. A generalidade dos depoimentos e as fotografias juntas sobre as condições da via no local.
Sobre as sequelas físicas resultantes do acidente para o Autor, o relatório do exame efectuado no IML.
Sobre a propriedade da motorizada conduzida pelo Autor, os depoimentos de H............... (seu pai) e de D.............. (seu amigo): o registo não é constitutivo e a viatura era efectivamente utilizada apenas pelo Autor, não se vislumbrando razão plausível para não aceitar a alegação deste, confirmada por essas testemunhas, de que é dono da motorizada, por lhe ter sido dada pelo pai.

Analisemos então cada um dos pontos de facto impugnados, pela ordem indicada:
Quesito 1º: O Autor circulava a uma velocidade não superior a 30 km/hora?
Resposta: Não provado.
Esta resposta deve ser mantida, pelo que já se referiu (depoimento de I............. e consequências do embate).

Quesito 2º: E bem dentro da sua metade da faixa de rodagem?
Resposta: Não provado.
A resposta tem de ser alterada, como decorre do depoimento do próprio condutor do RQ, que assumiu que conduzia o veículo com o lado esquerdo deste a ocupar parte da faixa contrária, tendo parado no local em que embateu; cfr. também o croquis da participação policial. Tendo em conta o âmbito do quesito, pode e convém esclarecer-se por onde circulava a motorizada.
Altera-se, pois, a resposta para:
Provado que o Autor circulava dentro da sua metade da faixa de rodagem, a cerca de 20 cm do eixo da via.

Quesito 3º: O acidente ocorreu numa curva pouco acentuada para a direita, atento o sentido de marcha do RQ?
Resposta: não provado.
Não se justifica qualquer alteração; foi unânime o reconhecimento de que a estrada, no local, se desenvolve em recta; é elucidativa a fotografia de fls. 40.

Quesito 5º: Quando o Autor alcançava a lomba, o segurado da Ré, invadiu a metade da faixa de rodagem em que transitava o .-VNG-..-..?
Resposta: Não provado.
Pelas razões referidas quanto à resposta ao quesito 2º, impõe-se a alteração desta resposta, que deve passar a ser:
Provado apenas que, no momento do acidente, o segurado da Ré ocupava em parte a faixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de trânsito, em cerca de 30 cm.

Quesito 6º: Indo embater violentamente no ciclomotor do Autor?
Resposta: Não provado.
Aceita-se esta resposta, uma vez que não estava propriamente em questão o embate (al. A) dos factos assentes) e ficou provado o contrário do que se perguntava sobre o veículo que embateu violentamente (cfr. quesito 50º).

Quesito 39º: No local, a via descreve uma recta com cerca de cinco metros de largura?
Resposta: Provado.
A resposta deve efectivamente ser alterada, uma vez que, como resulta do croquis da participação e foi aceite ao longo do julgamento, a largura da via é de cerca de 4,80 metros.
Assim, fica:
Provado que, no local, a via descreve uma recta com cerca de 4,80 metros de largura.

Quesito 43º: há lapso na referência a este quesito, uma vez que a resposta já é negativa, como o Recorrente pretende (cfr. fundamentação das respostas aos quesitos 2º e 5º).

Quesito 45º: Com as duas rodas do ciclomotor completamente no ar, a mais de um metro de altura?
Resposta: Provado.
Não há razão para alterar a resposta, face ao depoimento de I..............; acresce que, como foi referido em julgamento (G.............), sendo o desnível para a via onde ocorreu o embate muito acentuado, o facto (vir pelo ar) pode, mesmo sem se querer, acontecer a qualquer tipo de veículo se não se moderar a velocidade.

Quesito 47º: E a uma velocidade de 70, 80 ou mesmo 90 km/hora?
Resposta: Provado.
Considerando as razões já referidas a este respeito, afigura-se-nos que deve ter-se por provada apenas uma velocidade de cerca de 70 a 80 km/hora; tendo em atenção as condições da via e as características do veículo, não se concebe uma velocidade superior, que teria certamente consequências bem mais nefastas. Fica, pois:
Provado apenas (que o ciclomotor conduzido pelo Autor transitava) a uma velocidade de cerca de 70 a 80 km/hora.

Quesito 49º: O embate ocorreu quando a roda da frente do ciclomotor ainda seguia no ar?
Resposta: Provado.
Mantém-se a resposta face aos depoimentos de I................ e F............. e considerando os danos verificados em cada um dos veículos, que permitem concluir que o embate, frontal, não foi “farol contra farol” (o farol da motorizada não ficou danificado).

Quesito 50º: O RQ foi violentamente embatido na sua parte frontal esquerda?
Quesito 51º: E também em cheio sobre o capot pela parte frontal do ciclomotor?
Resposta: Provado.
Não há justificação para alterar as respostas, pelas razões referidas quanto ao quesito 49º.

Segundo o relatório do IML, o Autor, por via das lesões sofridas no acidente, para além da provada IPP de 10%, tem dificuldade em correr e apresenta ligeira claudicação, corrigível por palmilha.
Estes elementos devem servir de fundamento à alteração das respostas aos quesitos 22º e 24º, mantendo-se a resposta negativa ao quesito 23º (o Autor apresenta boa mobilidade do membro inferior direito).
Assim:

Quesito 22º: Do acidente resultaram para o Autor grandes dificuldades de movimento, nomeadamente limitações na flexão e na extensão do joelho direito?
A resposta não provado deve ser alterada para:
Provado apenas que, por virtude das lesões sofridas, o Autor tem dificuldade em correr.
Quesito 24º: O Autor sofre, e jamais recuperará, de notória claudicação na marcha, pelas lesões sofridas na perna direita, que definitivamente lhe dificultará a progressão?
A resposta não provado deve também ser alterada para:
Provado apenas que o Autor sofre de ligeira claudicação corrigível por palmilha.

As demais respostas impugnadas respeitantes aos danos (quesitos 25º, 26º e 27º) devem manter-se, por não ter sido produzida prova convincente sobre os correspondentes factos.

Por fim, no que respeita ao quesito 55º, a resposta deve ser alterada para provado, pelas razões referidas inicialmente. Assim,
Provado que o ciclomotor de matrícula .-VNG-..-.. havia sido objecto de doação verbal feita ao Autor pelo seu pai.

2. Os factos

Os factos a considerar, tendo em conta a decisão proferida e as alterações introduzidas no nº anterior, são os seguintes:
1. No dia 12 de Setembro de 1998, pelas 01H00, na Travessa ............., em .........., área desta Comarca, e dentro do perímetro urbano daquela freguesia, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o Autor, que conduzia o ciclomotor de marca Suzuki, com a matrícula .-VNG-..-.., no sentido Norte-Sul, e I..............., conduzindo um veículo ligeiro de marca Toyota ............., matrícula RQ-..-.., transitando na mesma estrada, em sentido contrário, ou seja, Sul-Norte.
2. Onde existe uma pequena lomba.
3. O estado do piso era irregular e em paralelos, apresentando alguns buracos.
4. No local, a via apresenta um declive de inclinação ascendente, muito pronunciada, que desemboca na Rua .............. .
5. No local em que a Travessa ............... entronca na Rua .............. forma-se uma lomba, pelo que não é possível aos condutores que circulem na Travessa avistarem os que seguem na Rua ................ .
6. Do lado direito, e atento o sentido de marcha, Sul-Norte, a via margina com muros de uma altura superior a dois metros.
7. Do lado esquerdo a via margina com algum arbustos e terra batida.
8. O Autor circulava dentro da sua metade da faixa de rodagem, a cerca de 20 cm do eixo da via.
9. No momento do acidente, o segurado da Ré ocupava em parte a faixa esquerda, atento o seu sentido de trânsito, em cerca de 30 cm.
10. No local, a via descreve uma recta com cerca 4,80 metros de largura.
11. O "RQ" acabara de iniciar a sua marcha.
12. E circulava a uma velocidade na ordem dos 20-30 Km/h.
13. Com os dispositivos luminosos ligados.
14. Quando o "RQ" passava junto da habitação com o nº .. da Travessa ............., eis que surge a circular em sentido contrário o ciclomotor conduzido pelo Autor.
15. Com as duas rodas do ciclomotor completamente no ar, a mais de um metro de altura.
16. E a uma velocidade de cerca de 70 a 80 Km/hora.
17. O embate ocorreu quando a roda de frente do ciclomotor ainda seguia no ar.
18. O "RQ" foi violentamente embatido na sua parte frontal esquerda.
19. E também em cheio sobre o capôt pela parte frontal do ciclomotor.
20. O Autor foi projectado no sentido em que seguia, para a berma da via, indo estatelar-se no solo.
21. Do acidente em causa resultou para o Autor fractura do fémur direito, joelhos valgos e várias contusões.
22. O Autor foi transportado ao Hospital de ........... onde, foi de imediato submetido a intervenção cirúrgica.
23. Ficando ali internado até ao dia 15.09.1998.
24. O Autor sofreu até à data duas intervenções cirúrgicas.
25. Apenas com os tratamentos e com as duas intervenções cirúrgicas a que foi submetido, o Autor sofreu padecimentos e dores.
26. Actualmente, o Autor continua a sentir dores designadamente ao efectuar marchas mais demoradas e ao fazer determinados esforços, principalmente nos períodos de inverno.
27. Dos ferimentos sofridos pelo Autor, em consequência do acidente, resultaram sequelas que acarretam uma IPP de 10%.
28. O Autor tem dificuldade em correr; sofre de ligeira claudicação corrigível por palmilha.
29. Por causa das consequências do acidente encontra-se o Autor privado de executar tarefas que exijam esforço, bem como de praticar desportos.
30. Não pode praticar desportos que exijam esforço físico, como o futebol.
31. O que lhe origina enorme desgosto, uma vez que era um dos seus grandes prazeres na vida.
32. O acidente deixou sequelas visíveis a olho nu (cicatrizes e mazelas) que inibem o Autor.
33. Desde a data do acidente até hoje, e fruto daquele evento, o Autor não mais pôde utilizar o ciclomotor sinistrado.
34. Do acidente resultaram também despesas hospitalares, médicas e medicamentosas, bem como de transportes.
35. Após o embate, o valor do salvado desse ciclomotor ascendia à quantia de Esc. 20.000$00.
36. O custo da reparação do ciclomotor, na altura, foi estimado em cerca de Esc. 550.911$00.
37. A forqueta da frente, a roda, o radiador, o escape, o banco, o depósito de combustível e o próprio quadro do ciclomotor conduzido pelo Autor, ficaram empenados ou destruídos.
38. Antes de o acidente ocorrer, tal ciclomotor valia, no máximo, Esc. 220.000$00 (valor venal).
39. O ciclomotor de matrícula .-VNG-..-.., de marca Suzuki, encontra-se registado na Câmara Municipal de .............., desde 03/09/1992, a favor de H.............. .
40. Esse ciclomotor foi objecto de doação verbal feita ao Autor pelo seu pai.
41. O Autor nasceu em 14/12/1980.
42. O Autor, à data do acidente, não exercia profissão remunerada.
43. A Ré, havia assumido a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula RQ-..-.., através do contrato de seguro titulado pela apólice n° ........... .
3. Pressupostos da responsabilidade civil

Rege, neste domínio, o princípio consagrado no art. 483º nº 1 do CC (como todos os preceitos adiante citados sem outra menção):
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
São assim pressupostos da obrigação de indemnização resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos:
- a existência de facto voluntário do agente; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquele [Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 525 e 526; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., 446].

Exige-se, deste modo, uma relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, e a possibilidade de formulação de um juízo de censura na imputação do facto, impendendo sobre o lesado o ónus da prova desses requisitos, designadamente da culpa, salvo havendo presunção legal – art. 487º nº 1.
O juízo de culpabilidade é apreciado pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso, como se estabelece no nº 2 do mesmo art. 487º, consagrando-se um critério de culpa em abstracto, a aferir pelo grau de diligência exigível do homem médio perante os condicionalismos da concreta situação ajuizada.

Segundo a factualidade provada, o acidente dos autos ocorreu nestas circunstâncias:
O veículo RQ circulava a uma velocidade reduzida, de cerca de 20/30 km/hora, no sentido ascendente, ocupando em parte o lado esquerdo da faixa de rodagem, em cerca de 30 cm.
O ciclomotor circulava em sentido contrário, à velocidade de cerca de 70/80 km/hora, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido, a cerca de 20 cm do eixo da via.
O embate entre os dois veículos foi frontal, a cerca de 20 cm do eixo da via, dentro da faixa de rodagem do ciclomotor.
A via tem, no local, cerca de 4,80 metros de largura, desenvolvendo-se em recta com pronunciada inclinação, sendo limitada à direita (sentido do RQ) por muro.
No local em que a referida via entronca com a Rua da Carriça forma-se uma lomba que não permite a visibilidade de uma para a outra via.
O Autor “saiu” dessa lomba com as duas rodas no ar, ocorrendo o embate quando a roda da frente do ciclomotor ainda seguia no ar.

Estes factos permitem concluir, sem sombra de dúvida, que ambos os condutores infringiram, objectivamente, regras da legislação estradal: o condutor do RQ, por ocupar em parte a meia faixa de rodagem contrária, o art. 13º nº 1 do C. Estrada.
A regra aí prevista foi também violada pelo condutor do ciclomotor, por não circular o mais próximo possível da berma do seu lado direito; este condutor infringiu ainda o disposto nos arts. 24º nº 1, 25º nº 1 e) e f) e 27º nº 1, por circular com velocidade excessiva, e o art. 90º nº 1 d) por transitar com a roda da frente levantada.

Todas estas infracções contribuíram para a verificação do acidente, sendo causais do mesmo.
Com efeito, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, adoptada pelo art. 563º, a causa juridicamente relevante de um dano é aquela que, em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante.
O que é essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que ele seja apenas uma das condições adequadas desse dano [Antunes Varela, Ob. Cit., 895]; poderá então verificar-se uma situação de concausalidade do dano e de concurso de culpas.

Ora, no caso, o embate entre os veículos ocorreu na faixa esquerda da estrada, considerando o sentido do RQ, derivando daí, desde logo, a contribuição causal e a culpa do condutor desse veículo: não fora a circulação deste a ocupar parte da faixa contrária e o acidente não teria ocorrido.
Porém, as circunstâncias que envolveram o acidente, a dinâmica deste e o modo como o ciclomotor transitava levam a concluir também pela contribuição culposa do condutor deste: o acidente verificou-se numa via relativamente estreita e em local sem visibilidade para quem proviesse da lomba aí existente; a forma como o ciclomotor “saiu” da lomba, em voo, a velocidade a que o fez, bem superior à adequada e à legalmente permitida, e a zona da via por onde seguia, muito perto do eixo da via, contribuíram também, decisivamente, para a eclosão do embate.

À primeira vista, poder-se-ia pensar que a responsabilidade do condutor do RQ é mais acentuada, por ocupar parte da meia faixa de rodagem contrária. Convirá considerar, contudo, estes elementos de facto: a largura da estrada, que é marginada pelo lado direito (sentido do RQ) por muro. Assim, numa condução normal, adequada às regras de trânsito, guardando uma distância razoável do referido muro, o veículo RQ, tendo em conta a largura média de uma viatura ligeira (1,70 m.), teria de transitar com o lado esquerdo sensivelmente sobre o eixo da via.
O ciclomotor é, notoriamente, um veículo com maior mobilidade e mais facilmente manobrável; atendendo à largura que ocupa poderia circular bem perto da berma (e não do eixo da via); uma velocidade adequada às condições do local permitiria uma reacção apta a evitar o embate, até porque o RQ seguia a velocidade reduzida. Reacção que, de qualquer modo, estava inviabilizada pela forma como o ciclomotor transitava (primeiro em voo e depois com a roda da frente levantada).

Ponderando estes elementos, crê-se adequado graduar em 50% a contribuição de cada um dos referidos condutores para a ocorrência do embate, sendo ambos responsáveis pelos danos daí decorrentes já que não se suscitam dúvidas quanto à verificação dos demais pressupostos indicados.
Por força do contrato de seguro, a Ré está obrigada a indemnizar os danos sofridos pelo Autor na referida proporção.

4. Indemnização

São objecto da obrigação de indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado.
Os danos patrimoniais são indemnizáveis quando constituam prejuízos emergentes ou lucros cessantes, sejam danos presentes ou futuros – art. 564º nºs. 1 e 2.
A regra geral é a da reparação in natura: aquele que está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º); a regra subsidiária, nos casos em que esta reparação natural não é possível, é a da indemnização em dinheiro, segundo a teoria da diferença, nos termos do art. 566º nº 1.
Os danos não patrimoniais são indemnizáveis quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art. 496º nº 1.

O Autor pretende ser indemnizado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos; no recurso restringe os primeiros ao dano futuro decorrente da incapacidade de que está afectado; aos danos materiais no ciclomotor e às despesas hospitalares.
Analisemos cada um dos danos invocados.

4.1. Dano futuro decorrente da IPP

O Autor pediu a este título o montante de 10.000.000$00.
Tinha na altura do acidente 17 anos de idade; não exercia qualquer actividade remunerada; ficou afectado de uma IPP de 10%.
Apesar de, na altura, não auferir rendimentos, não deve questionar-se o direito a que seja atribuída indemnização por este dano, sendo, na verdade, evidente, que a lesão corporal sofrida pode repercutir-se de uma forma negativa na capacidade física do Autor, comprometendo a sua capacidade de ganho no futuro [Cfr. Álvaro Dias, Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, 295]. Na falta de outros elementos, será de recorrer no cálculo da indemnização ao salário mínimo nacional [Trata-se, com efeito, de um valor mínimo seguro que, na falta de outros elementos, deve ser o adoptado, em detrimento de outros possíveis, como o rendimento médio nacional, sugerido por Álvaro Dias (Ob. Cit., 297); cfr. o Ac. do STJ de 3.6.2003, em http://www.dgsi.pt (proc. nº 03A1270)] (como o autor, aliás, defende).

Tratando-se de uma indemnização em dinheiro, o critério para a sua fixação, tendo em conta o princípio previsto no art. 562º e conforme entendimento jurisprudencial uniforme, consiste em atribuir-se uma quantia que produza, no período que houver de ser considerado, o rendimento correspondente à perda económica que se sofreu, mas de tal modo que, no fim desse período, essa quantia se ache esgotada [Entre outros, os Acórdãos do STJ de 4.2.93, de 8.6.93, de 5.5.94, de 11.10.94, de 16.3.99 e de 6.7.2000, CJ STJ I, 1, 128, I, 2, 138, II, 2, 86, II, 2, 89, VII, 1,167 e VIII, 2, 144].
Não sendo possível fixar o valor exacto do dano, o tribunal deve recorrer à equidade, não se estando, por isso, vinculado a critérios rígidos. Pode, contudo, recorrer-se, como referência ou elemento auxiliar de trabalho (e até por propiciar uniformidade de julgados) a tabelas financeiras usualmente utilizadas, como a indicada no Ac. da Relação de Coimbra de 4.4.95 [CJ XX, 2, 23].

Para este efeito, considerando o nível das taxas de juro praticadas, será adequada e prudente uma taxa referencial de 5%, tendo em conta um período de previsível estabilidade monetária, mas prevenindo eventual derrapagem; importa ainda atender, no longo prazo, ao crescimento do rendimento auferido decorrente da inflação - discreta segundo se prevê - de progressão na carreira e de ganhos de produtividade, que, no conjunto, pode estimar-se em 3%.

Por outro lado, não deve atender-se à idade de 65 anos como limite da vida activa, pois não é razoável ficcionar que a vida física desaparece no mesmo momento e com ele todas as necessidades. A pessoa pode continuar a trabalhar ou, simplesmente, a viver ainda por muitos anos, tendo nesta medida direito a perceber um rendimento como se tivesse trabalhado até àquela idade normal para a reforma.
Será assim mais curial atender à idade de 70 anos, sendo certo que esta idade já fica aquém da esperança média de vida em Portugal [Neste sentido, J.J. Sousa Dinis, CJ STJ, V, 2, 15; Acs. do STJ de 28.9.95 e de 16.3.99, CJ STJ III, 3, 36 e IV, 1, 167 e, bem assim, os Acs. do STJ de 11.1.2000 (Rev. 1005/99-1ª), de 29.2.2000 (R. 24/00-1ª), de 28.3.2000 (R. 244/00-1ª), de 3.5.2000 (R. 25/00-6ª) e de 3.5.2000 (R. 311/00-1ª), em www.cidadevirtual.pt/STJ/jurisp/bolanualciv00.html].

Com base neste critério e tendo em conta a idade do Autor, o referido salário e a IPP de 10% de que ficou afectado, atinge-se o montante de €13.500,00.

4.2. Reparação do ciclomotor

O autor pretende que lhe seja paga a importância de 550.911$00 para reparação do ciclomotor.
A ré defende que a reparação não é viável, quer do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista económico. Por um lado, mesmo com a total substituição das peças danificadas, a reparação não assegura as necessárias condições de segurança e estabilidade do veículo; por outro lado, o valor da reparação é muito superior ao valor venal (cfr. arts. 47º e segs. da contestação).
Aquela primeira razão oposta pela ré não se provou – resposta ao quesito 53º.
Importa apreciar a segunda razão, isto é, a excessiva onerosidade da reparação, sendo de considerar que ficou provado que o custo da reparação foi estimado em 550.911$00, que o ciclomotor valia, no máximo, 220.000$00, sendo o valor dos salvados 20.000$00 (factos supra 33., 35. 32.).

Já nos referimos à regra geral consagrada no art. 562º: aquele que está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Como afirma Antunes Varela [Ob. Cit., 904], o fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital à integridade das pessoas, dos bens e dos direitos sobre estes.
Se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa ou em estragos nela produzidos há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação ou substituição da coisa por conta do agente.
Acrescenta o mesmo Autor que nem sempre, porém, o recurso à reconstituição natural permite resolver satisfatoriamente a questão da reparação do dano. Há casos em que a reconstituição natural não é sequer possível, a par de outros em que ela não é meio bastante para alcançar o fim da reparação ou não é meio idóneo para tal.
A reconstituição natural deve considerar-se meio impróprio ou inadequado, quando for excessivamente onerosa para o devedor (art. 566º nº 1), isto é, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável.

Sobre este ponto, ensina Teles de Menezes Leitão [Direito das Obrigações, Vol. I, 353; cfr. também Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, 401; Almeida Costa, Ob. Cit., 637 e 638 e Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, BMJ 84-143] que a previsão legal deve ser interpretada restritivamente sob pena de se pôr em causa o direito do lesado a dispor do seu próprio património. Apenas quando a reconstituição natural se apresente como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa fé a sua exigência ao lesado, é que fará sentido excluir o seu direito à reconstituição natural.
Assim, como anota J. Vieira Gomes [Cadernos de Direito Privado, nº 3 (Julho/Setembro 2003), 61], a excessiva onerosidade não se reduz à mera verificação de que o custo da reparação é superior ao da substituição ou a considerações de que é ou não razoável em termos de racionalidade económica. A excessiva onerosidade só se pode decidir no caso concreto, atendendo e confrontando os interesses do lesado e os do lesante e determinando até que ponto é que é exigível ao lesante suportar o custo das reparações por tal corresponder a um interesse digno de tutela do lesado na integridade do seu património.

Nesta linha se tem pronunciado também a jurisprudência, designadamente em casos de reparação de veículos automóveis: para efeitos de se saber se essa reparação é excessivamente onerosa para o devedor, nos termos da parte final do art. 566º nº 1, não basta ter em conta apenas o valor venal do veículo, mas ainda, e cumulativamente, o valor que tem o uso que o seu proprietário extrai dele e que se computa pelo facto de o proprietário ter à sua disposição um automóvel que usa, de que dispõe e que a mera consideração do valor venal tout court sonega, elimina ou omite [Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 7.7.99, CJ STJ VII, 3, 16, de 11.5.2000, BMJ 497-348, de 16.11.2000, CJ STJ VIII, 3, 124 e de 27.2.2003, CJ STJ XI, 1, 112].
Por outro lado, como se afirma no citado Ac. do STJ de 11.5.2000, se a desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável, se apreende de elementos objectivos a permitir precisar que a mesma é idêntica para qualquer devedor, será o devedor que terá de requerer a conversão da obrigação da restauração natural em obrigação pecuniária através da alegação e prova de elementos que objectivem tal desproporção.

No caso, ficaram provados apenas os valores acima indicados, não tendo a ré acrescentado outras razões que possam ser ponderadas nos termos expostos.
Ora, perante esses valores, pode afirmar-se que é grande a diferença entre o valor comercial do ciclomotor e o da sua reparação.
Porém, podendo ser considerada onerosa, não há elementos que permitam tê-la por excessiva ou desproporcionada. A ré, a quem incumbia a prova de elementos que objectivassem essa desproporção (art. 342º nº 1), nada alegou nesse sentido, limitando-se à alegação dos aludidos valores.
Já se referiu, contudo, que o interesse do lesado na reparação não tem de ser equacionado apenas com o valor comercial do ciclomotor.
Importa, pois, concluir, como no citado Acórdão que a ré não cumpriu o ónus de prova de que as despesas com o conserto do ciclomotor impõem a conversão da obrigação de restauração natural em obrigação pecuniária.
O não cumprimento de tal ónus leva a considerar não afastada a pretensão do autor: a reconstituição natural do ciclomotor, ou seja, uma indemnização equivalente ao valor do conserto deste – 550.911$00 (€2.747,93).

4.3. Despesas hospitalares e médicas

Pretende ainda o autor ser indemnizado por estas despesas, pedindo que a respectiva liquidação seja relegada para execução de sentença.
Ficou efectivamente provado que do acidente resultaram lesões que geraram despesas hospitalares, médicas e medicamentosas (supra 34.). Nada se apurou sobre o respectivo montante.

Afigura-se-nos que deve distinguir-se o crédito do estabelecimento hospitalar e o crédito do autor, ambos compreendidos no referido facto.
No primeiro caso, não foi alegado que o autor tenha suportado qualquer despesa hospitalar ou, sequer, que esse pagamento lhe tenha sido exigido, sendo certo que ele é também responsável por tal pagamento, em proporção idêntica à da ré.
Assim e uma vez que o pedido de pagamento pelo estabelecimento hospitalar (cfr. art. 495º nº 2) não foi formulado nesta acção, não há que proferir, a esse respeito, qualquer condenação.

A situação é diferente quanto ás despesas médicas e medicamentosas suportadas pelo autor.
Neste caso, ficaram provadas as despesas (dano emergente), apenas não se tendo apurado o respectivo montante.
Assim, a ré deve ser condenada a indemnizar esse dano em montante a liquidar em execução de sentença, na proporção acima indicada (art. 661º nº 2 do CPC - na redacção anterior à introduzida pelo DL 38/2003, de 8/3 – art. 21º, mesmo tendo em conta, quanto a este, a alteração do DL 199/2003, de 10/9).

4.4. Dano não patrimonial

O Autor pretende que este dano seja valorizado em 3.000.000$00.
Dispõe o art. 496º nº 1 do CC que na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Em conformidade com o nº 3 dessa disposição, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º.
Deve atender-se assim, nos termos desta disposição, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica, do lesado e do titular do direito de indemnização e às demais circunstâncias do caso. Nestas podem incluir-se a desvalorização da moeda, bem como os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência [Antunes Varela, Ob. Cit., 607; Ac. do STJ de 23.10.79, BMJ 290-390].

Anotam ainda Pires de Lima e Antunes Varela [Cód. Civil Anotado, I, 4ª ed., 501] que o montante indemnizatório deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Em suma, essa compensação deve tender efectivamente a viabilizar um lenitivo ao lesado, com um alcance significativo e não meramente simbólico; todavia, deve observar uma ponderada e adequada proporção à gravidade do dano.

Com relevância para esta questão, apurou-se que:
- Do acidente resultou para o Autor fractura do fémur direito, joelhos valgos e várias contusões.
- Foi transportado ao Hospital de .............. onde foi de imediato submetido a intervenção cirúrgica, ficando ali internado até ao dia 15.09.1998.
- Sofreu até à data duas intervenções cirúrgicas.
- Apenas com os tratamentos e com as duas intervenções cirúrgicas a que foi submetido, o Autor sofreu padecimentos e dores.
- Actualmente, continua a sentir dores designadamente ao efectuar marchas mais demoradas e ao fazer determinados esforços, principalmente nos períodos de inverno.
- Dos ferimentos sofridos resultaram sequelas que acarretam uma IPP de 10%.
- O Autor tem dificuldade em correr; sofre de ligeira claudicação.
- Por causa das consequências do acidente encontra-se o Autor privado de executar tarefas que exijam esforço, bem como de praticar desportos, como o futebol, o que lhe origina enorme desgosto, uma vez que era um dos seus grandes prazeres na vida.
- O acidente deixou sequelas visíveis a olho nu (cicatrizes e mazelas) que inibem o Autor.

Estas consequências decorrem de acidente também provocado pelo próprio lesado; são relevantes e inequivocamente merecedoras da tutela do direito.
As lesões sofridas foram graves e as sequelas permanentes são acentuadas; deve atender-se ainda ao período de internamento, às duas intervenções cirúrgicas e ao período de tratamento, com as dores e inerentes preocupações.

Neste circunstancialismo, pelo que sofreu com o acidente e posterior tratamento, pelas dores e desgosto que suportou e irá suportar, pela limitação funcional que afecta não só a capacidade profissional mas também a qualidade de vida (com relevante dano de afirmação pessoal), entende-se justo e adequado, para compensar esse dano não patrimonial sofrido, considerando os actuais padrões de vida e a data da citação, o montante de €10.000,00.
5. As parcelas de indemnização acima indicadas totalizam €26.247,93, a que acresce o montante de despesas a liquidar.
Considerando a contribuição culposa do Autor no deflagrar do acidente, deve fixar-se a indemnização em € 13.123,97 e metade daquele montante de despesas. Sobre essas quantias incidem juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

IV. Decisão

Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência:
- julga-se a acção parcialmente procedente, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 13.123,97 e, bem assim, metade da importância, a liquidar em execução de sentença, relativa a despesas médicas e medicamentosas (referidas supra em III.4.3) suportadas pelo autor em consequência das leões sofridas no acidente dos autos, quantias, num e noutro caso, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação.
Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento.

Porto, 27 de Maio de 2004
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo