Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00039093 | ||
| Relator: | JORGE FRANÇA | ||
| Descritores: | FURTO FORMIGUEIRO | ||
| Nº do Documento: | RP200604260611764 | ||
| Data do Acordão: | 04/26/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Indicações Eventuais: | LIVRO 439 - FLS 86. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | O enquadramento do furto, na previsão do artigo 207º, b) CP (furto formigueiro) depende da verificação simultânea dos seguintes pressupostos: (i) incidência da subtracção e apropriação sobre objectos comestíveis, bebidas ou produtos agrícolas; (ii) de pequeno valor e pequena quantidade; (iii) de imediata utilização e (iv) que se destinem a satisfazer uma necessidade indispensável do agente, cônjuge, ascendente, descendente, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO A encerrar os autos de inquérito nº .../05..PGMTS, que correram termos perante os serviços do MP na comarca de Matosinhos, o Digno Magistrado do MP viria a formular acusação contra o arguido B………., requerendo o seu julgamento em processo abreviado, imputando-lhe a prática de factos subsumíveis na previsão típica do artº 203º, 1 do CP. Remetidos os autos para julgamento, viria o M.mo Juiz do .º Juízo Criminal daquela comarca de Matosinhos a proferir despacho em que conclui nos seguintes termos: «Tratando-se, este, de um caso que preenche os requisitos do disposto na alínea b) do art. 207.º do Cód. Penal, carece o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal, nomeadamente para deduzir a acusação nos termos em que o fez (art. 48.º, 50.º, 285.º do C.P.P.), pelo que se encontra o procedimento enfermo de uma nulidade insanável (art. 119.º al. b), do C.P.P.). Face ao exposto, não pode ser a presente acusação recebida, por carecer do pressuposto processual de legitimidade.» Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motiva condignamente, concluindo nos seguintes termos: 1. Existe legitimidade do MP para deduzir acusação sendo que, em consequência, não subsiste qualquer nulidade insanável, designadamente a prevista na al. b) do artº 119º do CPP. 2. O MP deduziu acusação contra o arguido alegando que o mesmo se apoderou de quatro queijos de vaca que não lhe pertenciam e que o fez de forma voluntária e consciente, bem sabendo que actuava contra a vontade do legitimo proprietário e que o seu comportamento era proibido e punido por lei. 3. Do teor da acusação deduzida, que fixou o objecto do processo, não resulta que o arguido tenha actuado da forma descrita a fim de satisfazer necessidades básicas suas ou de outrem. 4. Nesta medida não poderia o M.mo Juiz presumir factos que ali não se encontravam descritos, baseado na circunstância de que, porque se trata de produtos alimentares de primeira necessidade, se afigura que os mesmos estivessem destinados «à utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente». 5. Tendo por base os factos descritos na acusação e o ilícito típico imputado ao arguido, considerando o preceituado no artº 49º do CPP, o MP tem legitimidade para deduzir acusação nos termos do disposto no artº 283º, pelo que inexiste, em concreto, a invocada nulidade insanável prevista no artº 119º, b) do mesmo CPP. 6. Mesmo que assim se não entenda, sempre é de concluir que a acusação deveria ter sido recebida. Considerando que o arguido se apoderou de quatro queijos de vaca e apesar de estes serem comestíveis, não é de presumir que com a subtracção dos mesmos, o arguido pretendesse consumi-los de imediato e que estes se destinasse à satisfação de uma necessidade básica, designadamente de fome. 7. O despacho recorrido violou o preceituado nos artºs 49º, 119º, b), 283º e 311º, 1, todos do CPP. 8. Pelo que deve ser substituído por outro que receba, nos precisos termos, a acusação deduzida nos autos. A arguida respondeu, pugnando pela manutenção do decidido. O M.mo Juiz recorrido proferiu despacho sustentando a sua decisão. Nesta Relação, o Ex.mo PGA apôs o seu visto. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Resumidamente, o M.mo Juiz recorrido fundamenta a sua decisão, de direito, nos seguintes termos: «O Ministério Público acusou B………. imputando-lhe a prática de um crime de furto p. e p. pelo artº 203.º, n.º 1, do Cód. Penal. Ora, dispõe o art. 203.º, n.º 1, do Cód. Penal, que “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” acrescentando-se no n.º 3 daquele preceito legal que o procedimento criminal por este crime depende de queixa. Assim sendo, aquele preceito quando estatui que “o procedimento criminal depende de queixa” conduz-nos à qualificação do crime como semi-público. Todavia de acordo com o estatuído no art. 207.º, al. b), do C. Penal “no caso do artigo 203.º...o procedimento depende de acusação particular …se a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for de valor diminuto e destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a).” Nos termos do art. 202.º, al. c), valor diminuto é “aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto.” Por outro lado, tem sido entendimento doutrinal e jurisprudencial que, o legislador ao incluir a incriminação deste “crime formigueiro” na categoria dos crimes dependentes de acusação particular, fá-lo atendendo à premência da satisfação de necessidades básicas do agente, pelo que este tipo de furto se refere, essencialmente, a coisas comestíveis, bebidas, em pequena quantidade e de pequeno valor, para utilização imediata pelo agente (Ac. STJ de 22 de Maio de 1997, CJSTJ, ano V, t. 2, p. 224).» Começaremos por dizer que, em tese geral, estamos de acordo com esta explanação teórica; aliás o mesmo parece acontecer com o Digno Recorrente. A questão é agora a de saber se o caso concreto, o “retalho da vida ou da realidade” que perante nós é trazido, é susceptível de, sem mais, cair na alçada dessa previsão típica. Quer-nos parecer que não. Com efeito, o despacho recorrido incorre em petição de princípio, ao dar como demonstrado aquilo que se impunha que demonstrasse. O enquadramento de um crime de furto na previsão do artº 207º, b), do CP, depende da verificação simultânea dos seguintes pressupostos: - incidência da subtracção e apropriação sobre objectos comestíveis, bebidas ou produtos agrícolas; - que se trate de coisas de pequeno valor e pequena quantidade; - imediatismo da utilização; e - destinação da utilização pelo agente, cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau. Ou seja, dada a necessidade de verificação cumulativa daqueles requisitos, que são os que resultam da correcta interpretação da norma do artº 207º, b), do CP, logo se constata que um deles não se verifica - pelo menos em termos indiciários, como nesta face processual se exigirá – no caso concreto: - que os bens subtraídos se destinem «a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente» ou de qualquer outra das pessoas já mencionadas. Com efeito, não resulta da acusação (que mantém, apesar de tudo, o seu valor meramente indiciário), que o arguido se encontrasse em situação que lhe permitisse integrar a respectiva conduta na previsão típica ora em referência. Tendo-se como certo, como se tem, que a previsão típica se refere à ocorrência de um estado de necessidade justificante (v., neste sentido, a anotação feita à norma em causa no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 130), desde logo se constata a sem razão da posição defendida no despacho impugnado por via de recurso, já que não atentou que tais factos não resultam da acusação; acresce que, ainda que não fora essa circunstância, é uma mera afirmação vaga, despegada da realidade, a conclusão que tira o M.mo Juiz no despacho recorrido, ao dizer, sem qualquer sustentáculo nos factos indiciários que o vinculavam tematicamente, que porque se trata de produtos alimentares de primeira necessidade, «se afigura destinarem-se á “utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente”». Todos nós, com frequência, procedemos à aquisição desse tipo de produtos de primeira necessidade, com vista ao consumo posterior, sem que, no momento da aquisição, se verifique que as necessidades que eles visam prover sejam imediatas. Nada nos diz que isso acontecesse com o arguido ou, mesmo, que ele não fosse dotada de meios financeiros susceptíveis de satisfazer essas necessidades, ou, sequer, que estas fossem prementes. Daí que se possa afirmar que a essa conclusão, indevidamente tirada, faltaram as necessárias premissas. Aliás, o M.mo Juiz recorrido acaba por colocar o dedo na ferida ao afirmar, no seu despacho de sustentação, citando o Prof. Faria Costa, que a previsão legal pretende abranger os casos em que está em causa «a satisfação de uma necessidade básica da pessoa (a fome)»; mas, sem demonstrar quais as premissas que lhe possibilitaram a extracção de tal radical conclusão, afigura-se-nos que tal exercício é ilegítimo, já que não se pode presumir. Finalmente, não se percebe como é possível afirmar, sem outros elementos, que quatro queijos de vaca se destinassem a satisfazer uma necessidade imediata do agente (!?), pois que o número é perfeitamente desadequado, o que afasta o imediatismo da necessidade. Assim sendo, não se verifica qualquer nulidade da acusação, designadamente a insanável prevista no artº 119º, b), do CPP (porque o MP, dotado da necessária legitimidade, promoveu o processo, de natureza semi-pública, na sequência de queixa da ofendida), razão pela qual não deveria a mesma acusação ter deixado de ser recebida em juízo. Termos em que se acorda em, no provimento do recurso, revogar o douto despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento. Sem tributação. Porto, 26 de Abril de 2006 Manuel Jorge França Moreira Manuel Joaquim Braz Luís Dias André da Silva |