Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0515927
Nº Convencional: JTRP00039068
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: INJÚRIA
Nº do Documento: RP200604190515927
Data do Acordão: 04/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 439 - FLS 143.
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime de injúria a pessoa que, dirigindo-se a um padre, disse que este "não era padre; não era nada".
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1.Relatório
No Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros, foram julgados em processo comum (n.º …/04..GAMCD) e perante tribunal singular os arguidos B………. e C………., devidamente identificados nos autos, tendo sido proferida a seguinte decisão:
“Termos em que, e com a convolação supra referida, julgo a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decido:
A) Absolver a arguida B………. da prática do crime de ameaça p. p. pelo art. 153º/2 do CP;
B) Condenar a arguida B………. como autora material de um único crime de injúrias, p. p. pelos arts. 181º, 184º, ambos do CP, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis Euros), no total de 960 € (novecentos e sessenta Euros) ou, em alternativa, em 107 (cento e sete) dias de prisão subsidiária.
C) Condenar o arguido C………. como autor material de um crime de injúrias, p. p. pelos arts. 181º, 184º, ambos do CP, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis Euros), no total de 300 € (trezentos Euros) ou, em alternativa, em 33 (trinta e três) dias de prisão subsidiária.
D) Julgar o pedido civil parcialmente procedente e, consequentemente, condenar a demandada B………. a pagar ao demandante D………. a quantia de 1.400,00 € (mil e quatrocentos Euros) e o demandado C………. a pagar ao mesmo demandante a quantia de 250 € (duzentos e cinquenta Euros), acrescendo sobre tais quantias juros de mora à taxa de 4% desde a prolação desta sentença e até integral e efectivo pagamento; no mais peticionado, absolver os demandados.
Condeno os arguidos nas custas (…)
Condeno o assistente nas custas (…)
Custas do pedido civil por demandante e demandados, na proporção dos decaimentos”.

Inconformados com tal decisão, os arguidos recorreram para esta Relação, impugnando a decisão proferida sobre matéria de facto, alegando, em síntese:
- existem pontos de facto incorrectamente julgados e provas que impunham decisão diversa da recorrida e, ainda erro notório na apreciação da prova.
- ainda que o tribunal entendesse que, após a ameaça ilícita do assistente, os recorrentes teriam proferido alguma expressão ofensiva, sempre os deveria ter dispensado da pena, nos termos do art. 186º/2 CP.
- não só inexistem os danos alegados, como os mesmos não podem ser consequência de qualquer comportamento dos recorrentes;
- o tribunal “a quo” deveria ter julgado improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente

O MP junto do tribunal “a quo”respondeu à motivação dos recursos, defendendo a sua improcedência e a manutenção integral da sentença recorrida.

O assistente respondeu igualmente à motivação dos recursos, defendendo a sua rejeição, por extemporaneidade (art. 414º/2 CPP) ou, caso assim se não entenda, a sua total improcedência.

O Ex.º Procurador-geral adjunto nesta Relação foi de parecer que os recursos foram apresentados tempestivamente (deram entrada em juízo dentro dos 3 primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo e foi paga a multa correspondente) e não merecem provimento.

Cumprido o disposto no art. 417º/2 CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos, procedeu-se a audiência de julgamento.

2.Fundamentação
2.1 Matéria de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 3 de Agosto de 2004, cerca das 10h40, o assistente D………., pretendendo verificar a captação de águas que abastecessem um prédio rústico do qual é comproprietário, sito em ………., na área desta comarca, captação essa que se situa num prédio da arguida, dirigiu-se a esta, pedindo-lhe autorização para entrar no prédio desta;
2. Contudo, a arguida, para além de não o ter autorizado a entrar na sua propriedade, e como este lhe dissesse que ia entrar por outro lado, dirigiu-se-lhe, dizendo que “se ele entrasse lá que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”, e que “andava a ganhar o pão com a imagem de Deus e dos Santos, era um gatuno, um trafulha, um selvagem, um filho da puta” e, ainda, que “tinha comido muitos feijões à sua custa, era um ordinário”, e “se era algum padre, era sim um aldrabão, era o diabo, e que não tinha filhos e se os tinha andavam abandonados”;
3. Mais tarde, compareceu também no local o arguido, filho da arguida, e que também se dirigiu ao assistente, dizendo-lhe “que não era padre, não era nada”;
4. Ao agirem da forma descrita, os arguidos fizeram-no de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção, concretizada, de ofenderem a honra e dignidade do assistente, quer enquanto ministro religioso, quer enquanto cidadão;
5. A arguida agiu ainda com o propósito de criar no assistente o receio de que, caso entrasse, atentaria contra a sua integridade física ou até a própria vida, de forma a constranger aquele a não entrar no prédio;
6. Tinham consciência de praticar actos proibidos por lei penal;
7. O assistente é o pároco de .........., e é pessoa respeitada e estimada;
8. O assistente sentiu-se ofendido na sua honra, consideração e dignidade, e intensamente desgostoso e profundamente revoltado, o que lhe causou sofrimento, e ficou com receio de, caso entrasse no prédio da arguida, esta poder atentar contra a sua integridade física ou até vida;
9. Antes da data aludida em 1, o assistente havia enviado uma carta ao companheiro da arguida, mas por esta recebida a 5.7.04, solicitando autorização para inspeccionar a captação, sem ter obtido resposta;
10. No circunstancialismo de tempo e lugar aludidos em 1, o assistente estava acompanhado de 3 pessoas, que ouviram as palavras dos arguidos;
11. A arguida é doméstica, e o companheiro e o filho, ora arguido, trabalham na extracção de areias, utilizando várias máquinas, e auferindo rendimentos não concretamente apurados, vivendo o agregado de forma remediada;
12. A arguida foi emigrante em França;
13. A arguida tem os antecedentes criminais que constam do seu CRC e que se dão por reproduzidos e o arguido não tem antecedentes criminais;
14. Os arguidos e assistente estão de más relações em virtude de questões ligadas à captação da água, tendo sido concedido ao assistente, por transacção homologada judicialmente, o direito de fiscalização da captação, no prédio da arguida.

E considerou não provados quaisquer outros factos, designadamente que:

- A arguida, ao agir com a intenção constante do facto provado 5, quisesse criar no ofendido o receio de que, a qualquer momento, atentaria contra a sua integridade física ou até a própria vida;
- O arguido dirigiu ao assistente as seguintes palavras: “gatuno; merda; era o diabo que ali andava”;
- O assistente, por causa da conduta da arguida, ficou cheio de medo e não foi sequer capaz, nos 8 dias após os factos, de sair de casa para celebrar missa, e deixou de passear a pé por perto da casa da arguida;
- O assistente sofreu durante semanas;
- O prédio de que o assistente é comproprietário é contíguo ao da arguida.

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e ponderação da prova produzida e examinada em audiência conjugada com as máximas da experiência e formas de depor dos vários intervenientes.
Assim, quanto aos factos provados, baseou-se nas declarações da arguida, na parte em que admitiu ter negado a entrada do seu prédio ao assistente e ter proferido as expressões “se ele entrasse lá que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”, e que o assistente estava acompanhado de mais pessoas, e que telefonou ao marido e filho, e que a GNR chegou ao local, chamada pelo assistente, e nas declarações do arguido, que admitiu ter proferido a expressão aludida em 3 dos factos provados; baseou-se outrossim nas declarações do assistente, que relatou os factos que no essencial se deram por provados, embora não totalmente, como se verá, no que toca ao arguido.
As declarações do assistente foram, no essencial, corroboradas pelas testemunhas E………., F………. e I………., que estavam presentes.
O Tribunal valorou ainda o depoimento de G………., agente da GNR, que compareceu no local, e ainda ouviu a arguida a chamar nomes (lembra-se de “ladrão”) ao assistente, mas que já não se lembrava se havia mais pessoas, admitindo que haveria, mas que estariam mais perto da estrada, e que não ouviu o arguido a proferir quaisquer injúrias (no sentido de palavrões dirigidos ao assistente); deve realçar-se que os próprios arguidos admitem a presença de várias pessoas com o assistente, pelo que, mesmo não se lembrando disso o agente, com precisão, tal facto não sofre dúvidas; assim, o depoimento do agente, pese revele alguns esquecimentos, foi valorado pois trata-se de uma pessoa isenta, que nenhuma relação tem com o caso.
O Tribunal valorou ainda o depoimento de H………., companheiro da arguida e pai do arguido, na parte em que admite que havia mais pessoas a assistir.
Face às declarações do assistente, corroboradas pelas testemunhas, incluindo pelo agente, no que toca à arguida (o agente ainda ouviu a arguida a chamar nomes ao assistente), não mereceu credibilidade a versão desta, no sentido de negar ter chamado outras expressões, para além das que admitiu.
No que toca aos danos, para além se serem do senso e experiência comuns, os mesmos foram corroborados pelo assistente e testemunhas que sobre eles depuseram.
Quanto aos factos não provados, não foi produzida prova, ou a mesma foi insuficiente, ou foi feita prova do contrário, sendo de realçar que:
- no que toca ao arguido, o Tribunal ficou com dúvidas sobre se ele teria proferido mais expressões para além das que constam em 3, já que, se o assistente e testemunhas de acusação o afirmam, o agente da GNR nega-o, dizendo que não proferiu injúrias; nem se diga que seria falta de lembrança (à semelhança da presença de mais pessoas) pois, face às palavras imputadas ao arguido, na acusação (gatuno, merda, diabo), não creio haver dúvidas de que o agente delas se lembraria, como se lembrou das proferidas pela arguida; e nem se diga que não se lembrou da expressamente admitida pelo arguido, pois trata-se de uma expressão bem mais neutra e com uma carga pejorativa bem menor, pelo que é perfeitamente crível que o agente não tivesse ficado marcado por ela;
- no que toca à ameaça, o Tribunal ponderou que a arguida, e como o próprio assistente admite, referiu que caso, se, o arguido entrasse, o refodia e lá ficava a rezar missa, o que significa que estamos perante um facto condicional, e que depende do assistente; quer dizer, a arguida não diz ao assistente que vai lá ficar a rezar missa, como facto dependente exclusivamente da sua vontade, mas põe uma condição, que depende da vontade do assistente: se entrar, fica a rezar missa.
Sendo assim, não se pode dizer que a arguida, a qualquer momento, sem mais, iria atentar contra a vida ou integridade física do assistente, nem se pode dizer que o assistente ficasse com receio de que, não entrando no terreno da arguida, esta quisesse atentar contra a sua integridade física ou vida.

2.2 Matéria de direito
Os arguidos insurgem-se contra a sentença recorrida, por entenderem que houve erro notório na apreciação da prova, não se provaram os factos dados como assentes, existem pontos de facto incorrectamente julgados e provas que impunham decisão diversa da recorrida. Ainda que o tribunal entendesse que os recorrentes teriam proferido alguma expressão ofensiva, após a ameaça ilícita do assistente, sempre os deveria ter dispensado da pena, nos termos do art. 186º/2 CP, e absolvido do pedido cível.
O assistente, na resposta, invocou a extemporaneidade dos recursos.

Vejamos então as questões suscitadas nos autos, começando pela alegada extemporaneidade dos recursos.

Os recursos foram interpostos via fax, remetido no dia 27-05-2005, entre as 23,30h e as 23,58h e, no dia seguinte (28-05-2005), foram solicitadas guias para o pagamento da multa respectiva (€ 44.50), ao abrigo do disposto no art. 145º do CPC.

A sentença recorrida foi depositada na Secretaria em 9-06-2005 e, nesse mesmo dia, entregue cópia à mandatária dos arguidos (fls.139).

O prazo do recurso é de 15 dias e conta-se a partir do depósito da sentença. Assim, o prazo para interposição do recurso, sem multa, terminava em 24-06-2005, sexta-feira. De acordo com o art. 145º, 5 CPC, o recurso podia ainda ser interposto (com multa) nos três dias úteis seguintes, os quais terminavam em 29 de Junho de 2005.
Tendo os recursos sido remetidos (via fax) em 27/05/2005 e tendo sido paga a multa a que alude o art. 145º CPC, verifica-se que os mesmos foram interpostos tempestivamente.
Improcede, deste modo, a questão prévia da tempestividade dos recursos, levantada pelo assistente.

ii) Recurso da arguida B……….
A recorrente começa por impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, (dando como provadas as expressões e palavras que lhe são imputadas na acusação) quando refere ter baseado a sua convicção, quanto aos factos provados, nas declarações da arguida, na parte em que admitiu ter negado entrada no seu prédio ao assistente e ter proferido as expressões “se ele entrasse lá que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”, pois em parte alguma das suas declarações a arguida admitiu ter proferido tais expressões.
Por outro lado, também ninguém ouviu a arguida dizer as demais expressões dadas como provadas no ponto 2 (que o assistente “era um selvagem”, “era um ordinário”, “se era algum padre, era sim um aldrabão, era o diabo, e que não tinha filhos e se os tinha andavam abandonados”) e a mesma negou tê-las proferido. Assim, não poderiam as mesmas ter sido dadas como provadas.

Quanto ao primeiro ponto, a recorrente tem razão. Lida a transcrição do seu depoimento, a mesma nunca admitiu ter proferido a expressão em causa (“se ele lá entrasse que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”) e, lida a convicção da matéria de facto, o julgador diz textualmente: “(…) Assim, quanto aos factos provados, baseou-se nas declarações da arguida, na parte em que admitiu ter negado a entrada do seu prédio ao assistente e ter proferido as expressões “se ele entrasse lá que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”.

Há aqui um claro e evidente erro na fundamentação da convicção. O julgador baseou a sua convicção na admissão, pela arguida, de um facto que ela não admitiu.

Contudo, conhecendo este Tribunal de facto e de direito, constando dos autos todos os meios de prova produzida (por ter havido documentação da mesma) e impugnando a recorrente a decisão proferida sobre da matéria de facto, nos termos do art. 412º,3 CPP, impõe-se saber se, perante a prova produzida, deve ou não considerar-se provada tal expressão – cfr. art. 431º, b) do C. P. Penal.

A nosso ver, há elementos bastantes para se considerar provada a expressão em causa, com fundamento nos depoimentos do assistente (fls. 253 “o senhor entra por aí e eu refodo-o e há-de ficar aí a celebrar missa…”) e das testemunhas E………. (fls. 271 “e ela diz que vos refodo a todos”), F………. (fls. 294 “chamou-lhe filho da puta e na altura também disse que se entrasse que o refodia”) e I………. (fls.311 “e ela diz, então vai lá, vai lá que te refodo, ficas lá a rezar missa…”. Estas testemunhas acompanhavam o assistente, assistiram aos factos e confirmaram ter ouvido tal expressão. Havia uma situação de tensão entre a ofendida e o assistente, pretendendo ele entrar no terreno da arguida (para verificar a captação de águas que abastecem um prédio rústico do qual é comproprietário, captação essa que se situa num prédio da arguida) e esta não permitindo tal entrada. Os depoimentos acima referidos merecem, por isso, credibilidade.
Entendemos, deste modo, que a prova produzida é consistente para se dar como provada a expressão em causa.

Quanto às demais expressões dadas como assentes no ponto 2 (designadamente que o assistente era um “selvagem”, “um ordinário”, “se era algum padre, era sim um aldrabão, era o diabo, e que não tinha filhos e se os tinha andavam abandonados”), alega também a recorrente que nem o ofendido nem as testemunhas referem ter ouvido tais expressões, pelo que as mesmas não poderiam considerar-se provadas.

Não é bem assim.

O ofendido referiu que a arguida lhe chamou vários nomes: “era gatuno, era trafulha, era isto, era aquilo, a viver à custa dos santos e de Deus; “que roubava as almas, que roubava a Igreja, que roubava tudo…”; “o senhor nem é padre nem é nada, o senhor é uma merda…o senhor é o diabo” – fls.254/ 255; a testemunha E……… também referiu que “ela falou muitas coisas… que ele estava-se a servir da igreja que roubava dinheiro aos santos …”, “encheu-o de gatuno, que ele que roubava os santos e aquilo” – fls. 272/273; a testemunha F………. referiu igualmente que a arguida disse que ele (ofendido)“vivia à custa da igreja, à custa dos santos …” – fls. 293. A testemunha G………., agente da GNR chamado ao local, também referiu ter ouvido a arguida chamar alguns nomes: “Disse que era ladrão, que era um padre falso, que andava a enganar o povo” – fls. 324.

Como decorre das expressões acima citadas (constantes da transcrição dos depoimentos gravados em audiência), resulta claro que a arguida chamou efectivamente nomes ao ofendido, cujo sentido apontava para a falta de honestidade no modo de viver à custa dos outros. Assim, as expressões dadas como assentes - “que andava a ganhar o pão com a imagem de Deus e dos Santos, era um gatuno, um trafulha” - decorrem claramente do contexto da prova produzida. Já as expressões “ordinário”, “selvagem”, “diabo” e “que não tinha filhos e se os tinha andavam abandonados”, não foram de facto referidas pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento (à excepção do próprio ofendido, que referiu a expressão “o senhor é o diabo”) e saem do sentido captado pelas testemunhas.
Julgamos por isso que a convicção do julgador se mostra possível e plausível, apenas quanto à expressão “que andava a ganhar o pão com a imagem de Deus e dos Santos, era um gatuno, um trafulha”.

Deste modo, o ponto 2 da matéria de facto deve ser alterado, nos seguintes termos:

“2. Contudo, a arguida, para além de não o ter autorizado a entrar na sua propriedade, e como este lhe dissesse que ia entrar por outro lado, dirigiu-se-lhe, dizendo que “se ele entrasse lá que o refodia e que ele ficava a dizer a missa”, e que “andava a ganhar o pão com a imagem de Deus e dos Santos, era um gatuno, um trafulha”.

A alteração da matéria de facto provada não afasta contudo a sua qualificação jurídica como crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Cód. Penal. As expressões proferidas pela arguida são depreciativas da pessoa do assistente, padre, tendo uma carga pejorativa evidente. Chamar-lhe “gatuno e trafulha” é o mesmo que chamar-lhe “ladrão”, ou seja, tem o sentido de lhe imputar um modo de vida desonesto e criminoso, sendo por isso expressões ofensivas da honra e consideração do assistente.

Contudo, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, não se verifica a agravação prevista no art. 184º do Cód. Penal. É certo que no ponto 7 da matéria de facto se deu como assente que o assistente era o pároco de ………. . Porém, para que se verifique a qualificativa do crime de injúria, prevista naquele preceito legal, é necessário que a “vítima seja uma das pessoas referidas na alínea j) do n.º 2 do art. 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas”. No caso em apreço não se verificava esta situação, pois o crime ocorreu quando o assistente pretendia fiscalizar a captação de águas, por motivos da sua vida privada.

Estão deste modo preenchidos os elementos do tipo do crime de injúria, previsto no art. 181º, n.º 1 CP (punido com pena de prisão até 3 meses, ou multa até 120 dias), sem a agravação prevista no art. 184º do C. Penal. A inexistência da referida agravação implica, pois, a redução da pena aplicada na decisão recorrida.

Tendo em conta as razões constantes da sentença, relativas à determinação concreta da pena, que nos parecem equilibradas, mas reportando-as à moldura penal correcta (ou seja, sem a agravação), justifica-se uma redução da pena na devida proporção. Assim, deve ser aplicada à arguida a pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, isto é, a multa global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), com a alternativa de 40 dias de prisão subsidiária (art. 49º, 1 do C. Penal).

Pretende ainda a arguida ser dispensada da pena, nos termos do art. 186º/2 da CP, já que, em seu entender, as expressões usadas decorreram de uma conduta “ilícita e repreensível do arguido”.

Julgamos porém que não tem razão.

Não se provou qualquer conduta ilícita ou repreensível do ofendido, que apenas pretendia verificar a captação de águas que abastecem um prédio rústico do qual é comproprietário, captação essa que se situa num prédio da arguida e, por isso, dirigiu-se a esta, pedindo-lhe autorização para entrar no prédio (cfr. ponto 1 da matéria de facto). Este pedido de autorização para entrar no terreno mostra que não houve qualquer acto ilícito ou repreensível do ofendido. Note-se, por outro lado, que a controvérsia sobre a captação da água do poço tinha sido objecto de transacção judicial, conforme consta da matéria dada como provada (ponto 14):
“Os arguidos e assistente estão de más relações em virtude de questões ligadas à captação da água, tendo sido concedido ao assistente, por transacção homologada judicialmente, o direito de fiscalização da captação, no prédio da arguida”.
Não havia assim por parte do ofendido qualquer atitude provocatória, mas apenas a tentativa de exercer um direito de fiscalização sobre a captação de água, no prédio da arguida. Deste modo, é evidente que não se justifica a pretendida “dispensa da pena”, ao abrigo do disposto no art. 186º/2 do Cód. Penal.

Quanto ao pedido cível, atento o seu valor e o da condenação, não é admissível recurso. Com efeito, nos termos do art. 400º, 2 do CPP o recurso da indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
No caso dos autos foi formulado pedido cível no valor de € 2.000,00 (dois mil euros) e a arguida foi condenada em €1.400,00 (mil e quatrocentos Euros). Tendo em atenção a alçada do tribunal de 1ª instância (€ 3.740,98 - art. 24º,1 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro) e o montante em que a arguida foi condenada, a decisão é irrecorrível.

iii) recurso do arguido
Relativamente ao recurso do arguido C………. (condenado também como autor material de um crime de injúrias, p. e p. pelos arts. 181º e 184º do Cód. Penal) apenas se deu como provado que o mesmo, dirigindo-se ao ofendido, lhe disse “que não era padre, não era nada”.

Ora, independentemente da questão levantada pelo recorrente, quanto à prova dos factos constitutivos da infracção, julgamos que o recurso merece provimento, por esta expressão não ser ofensiva da honra e consideração do ofendido.

Vejamos todavia este ponto com mais detalhe.

Como se escreveu no acórdão desta Relação e Secção, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” –Ac. de 12.06.02, Recurso 332 /02.

Também no Acórdão desta Relação, de 7-12-2005, proferido no processo 0515154, se dá nota de alguma erosão do significado histórico da honra, no recorte dos conceitos actuais de honra e consideração, citando FARIA E COSTA págs. 104-105, “Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004, PÁG. 104/105, na base de uma distinção entre a falta de educação e civismo e a ofensa da honra:
“(…) O acto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - e limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem, tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da Internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal” (…).

No caso dos autos, a expressão dada como assente (o assistente “não era padre, não era nada”), no contexto em que foi proferida, apesar de ter um sentido negativo e depreciativo, não atinge a honra e consideração do ofendido. Tal expressão significa que um “padre” deve ter uma especial conduta de vida, incompatível com a disputa de águas e a pretensão de fiscalizar a sua captação. Depreende-se assim que o arguido quis dizer que a atitude não era própria de um padre e, portanto, o ofendido não estava à altura do estatuto (de padre) que ostentava. Encontramo-nos numa zona de fronteira entre as expressões socialmente inadequadas e as expressões depreciativas da honra e consideração da pessoa visada. Se é certo que a expressão do arguido não denuncia “boa educação”, nem traduz socialmente a melhor forma de relacionamento entre vizinhos, também é verdade que não atinge valores ética e socialmente relevantes…. A expressão constante do ponto 3 dos factos provados é pois uma expressão incorrecta, mas axiologicamente neutra, não podendo por isso ser considerada ofensiva da honra e consideração do ofendido e, nessa medida, subsumível ao tipo legal do crime de “injúria”, p. e p. pelo art. 181º do Cód. Penal

Deste modo, entendemos que o recorrente deve ser absolvido do crime de injúria, por que foi condenado, assim como do pedido de indemnização cível.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:
a) Conceder parcial provimento ao recurso da arguida B………. e, consequentemente, modificar a matéria de facto, nos termos acima expostos, e condená-la como autora material de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Cód. Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, ou seja, a multa global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), com a alternativa de 40 (quarenta) dias de prisão subsidiária, mantendo no mais a decisão recorrida.
B) Conceder provimento ao recurso do arguido C………. e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e absolvê-lo do crime (injúria) e pedido de indemnização cível em que foi condenado.

Custas pela arguida, dado o seu parcial decaimento, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Porto, 19 de Abril de 2006
Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Augusto de Carvalho
António Guerra Banha
José Manuel Baião Papão