Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726765
Nº Convencional: JTRP00041141
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RP200803040726765
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 266 - FLS. 238.
Área Temática: .
Sumário: Encontrando-se os réus domiciliados em Portugal, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de acção em que se pede a resolução de contrato-promessa de compra e venda, celebrado também em Portugal, apesar de ter por objecto um imóvel situado na República da Guiné Bissau.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6765/07-2
Agravo
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – ………ª Vara de Competência Mista - proc. ………./06.6 TBVNG
Recorrentes – B…………….. e mulher
Recorridos – C…………….. e mulher
Relator – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Maria do Carmo
Desemb. Cristina Coelho

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – B…………….. e mulher D……………… intentaram no Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia a presente acção declarativa com processo ordinário contra C…………… e mulher E……………….. pedindo que:
A) – Se declare resolvido o contrato promessa celebrado entre autores e réus.
B) – Se condene os réus a restituir aos autores a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no valor de 49.879,78 €, acrescida de juros legais desde a citação e até efectivo pagamento.
Alegam os autores para tanto e em síntese que no dia 15.03.1997 celebraram com os réus um “contrato promessa de compra e venda”, pelo qual os réus prometeram vender aos autores, que lhes prometeram comprar, uma casa das quatro de que aqueles se intitulam proprietários e sitas em ……., sector de ……, Região de ……….., República da Guiné Bissau, implantada em mais ou menos 900 m2, tendo sido estipulado o preço de 5.000.000$00, a pagar em 10 prestações trimestrais, no montante de 500.000$00 cada uma, com início em 31.03.1997 e fim em 30.06.1999, o que se mostra integralmente cumprido.
Foi convencionado que a escritura se realizaria logo que o promitente comprador liquidasse integralmente o preço, tendo os réus ficado incumbidos de marcarem a dira escritura e avisar os autores para o efeito.
Mais se consignou que os promitentes vendedores já fizeram a entrega da posse do prédio a vender ao promitente comprador.
Os réus ainda não procederam ao necessário desanexação registral das referidas casas.
Os autores perderam definitivamente o interesse na concretização de tal negócio, pretendendo a resolução do dito contrato promessa, exigindo o dobro da prestação que efectuaram.
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Pessoal e regularmente citados, os réus vieram contestar o pedido formulado, pedindo a sua absolvição e ainda deduziram pedido reconvencional, pedindo que seja declarada a execução específica do contrato promessa a que se reportam os autos, adjudicando-se ao réu marido a propriedade plena do imóvel identificado no mesmo contrato promessa.
Para tanto, para além de impugnarem os factos alegados pelos autores, começam por excepcionar a incompetência internacional do tribunal português para apreciar e decidir a presente acção.
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Os autores vieram replicar pugnando, para além do mais, pelo competência dos tribunais portugueses para a presente acção, requerendo ainda a ampliação do pedido, ou seja, que se declare o contrato resolvido por impossibilidade do seu cumprimento, condenando-se os réus a devolverem aos autores as quantias que deles receberam; e que se declare que o contrato promessa está ferido por vício da vontade previsto no artº 251º do C.Civil e consequentemente que se declare o mesmo anulado por força do disposto no artº 287º do C.Civil.
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Os réus triplicaram, pugando pela inadmissibilidade dos pedidos ampliados.
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Foi designada audiência preliminar, no início da qual as partes acordaram na suspensão da presente instância por 30 dias.
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Não tendo sido alcançado acordo entre as partes, foi proferido despacho saneador onde se conheceu da competência internacional do tribunal português, quer para a acção quer para a reconvenção, e se decidiu pela incompetência em razão da nacionalidade dos tribunais portugueses e consequentemente absolveram-se os réus e os reconvindos/autores da presente instância.
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Os autores inconformados com tal decisão dela recorreram pedindo que se considere o tribunal de Vila Nova de Gaia internacionalmente competente para conhecer dos pedidos formulados pelos autores.
Os agravantes juntaram aos autos as suas alegações onde formulam as seguintes conclusões:
1ª – Os autores formularam pedidos cíveis com base em incumprimento de contrato promessa.
2ª – Em nenhum momento formularam qualquer pedido que implicasse a constituição de qualquer direito real na sua esfera jurídica.
3ª – O que está em causa nos pedidos dos autores são meros direitos obrigacionais.
4ª – O caso “sub judice” enquadra-se em qualquer das alíneas do nº 1 do artigo 65º do C.P.Civil.
5ª – O tribunal “a quo” na prolação da sentença violou o disposto no artigo 65º nº1 e suas alíneas e 74º nº1 ambos do C.P.Civil.
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Os réus juntaram aos autos as suas contra alegações pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

II - Tudo visto, cumpre decidir.
Os factos relevantes para a decisão do presente agravo são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.

III - Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos (cfr. artºs 690º nº 1 e 684º nº 3, ambos do C.P.Civil), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (artº nº 2 “ in fine” - do artº 660º do C.P.Civil), pelo que a questão a decidir nos autos consiste em:
- Saber se os tribunais portugueses, concretamente o tribunal “ a quo”, é competente em razão da nacionalidade para apreciar e decidir a presente acção?
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Na decisão recorrida consignou-se o seguinte:
“ (...) no que respeita aos factores de atribuição da competência aos tribunais portugueses, o artigo 65 do Código de Processo Civil formula vários critérios: do domicílio do R. – nº 1 al. a); da exclusividade – nº1 al. b); da causalidade – nº1 al. c) e da necessidade – nº 1 al. d).
A demanda posta a este tribunal contende directamente com a al. c).
As duas primeiras alíneas não se aplicam ao caso concreto, pela simples razão de que estamos perante um caso de exercício de um direito real de gozo sobre o bem prometido vender que se situa na República da Guiné Bissau.
De facto, está em causa, tal como as partes o afirmam nos seus articulados, o gozo dum bem imóvel sito na República da Guiné Bissau.
A alínea b) também não se aplica ao caso dos autos, já que a acção não tem de ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
Deste modo, o que verdadeiramente está em causa é se porventura algum facto que sirva de causa de pedi na acção que tenha sido praticado em território português.
A resposta é, de novo, negativa.
O que está em causa, no pedido dos AA, é o incumprimento por parte dos RR de um certo e determinado comportamento, facto esse culposo.
Ao longo dos articulados (AA e RR) nenhum desses comportamentos ou não comportamento se situa em território nacional. As únicas circunstâncias que ligam o processo a Portugal (leia-se Vila Nova de Gaia) é as partes terem cá residência e o dito contrato incumprido ter sido cá celebrado e assinado.
(...)”..
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Vejamos.
Pela presente acção vêm os autores, invocando a celebração, juntamente com os réus, de um contrato promessa de compra e venda relativo a um bem imóvel sito na República da Guiné Bissau, na qualidade de promitentes compradores, que cumpriram tudo a que se encontravam contratualmente obrigados, demandar os réus, na qualidade de promitentes vendedores, alegadamente porque estes, culposamente, incumpriram a obrigação a que se vincularam. Mais alegam os autores que face a tal incumprimento por parte dos réus, perderam o interesse na celebração do contrato prometido, pelo que pretendem por via da presente acção que seja declarado resolvido o referido contrato promessa e consequentemente os réus sejam condenados a devolver-lhes tudo o que prestaram, em dobro.
Como é sabido, o contrato-promessa, modalidade de contrato a que se referem os artºs 410º e segs. do C. Civil, é a convenção pela qual ambas as partes, (ou apenas uma delas), se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato.
O contrato promessa cria a obrigação de contratar, ou mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido, (obrigação de prestação de facto positivo, ou seja, a de celebrar o contrato prometido), cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol I, 10ª ed. pag. 308).
Destarte, manifesto é de concluir que por via da presente acção os autores não pretendem exercer ou fazer valer um qualquer direito direito real sobre o bem imóvel a que se reporta a promessa de compra e venda, mas tão só um direito de natureza obrigacional.
No caso em apreço nos autos, a situação para além de apresentar uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa – naturalidade das partes em conflito; residência das mesmas; dizer respeito ao cumprimento de um contrato promessa de compra e venda celebrado e assinado em Portugal – apresenta igualmente uma relação com uma ordem jurídica estrangeira – o bem a que se reporta o referido contrato promessa de compra e venda situa-se na República da Guiné Bissau.
Pelo que no caso como o dos autos, poderá ser legítimo colocar-se a questão da competência internacional do tribunal português onde a acção foi intentada.
A resposta a tal questão poderá ter de vir a ser encontrada no disposto nos artºs 65º e 65º-A, ambos do C.P.Civil.
Dispõe o artº 65º do C.P.Civil - (Factores de atribuição da competência internacional) que:
“1 – Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:
a) Ter o réu ou algum dos réus domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro;
b) Dever a acção ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
c) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
d) Não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.
Tal como resulta do teor da decisão recorrida, na verdade, o artº 65º do C.P.Civil formula, nas suas alíneas, vários critérios, a saber:
- o do domicílio do réu- nº1, al. a);
- o da exclusividade- nº1, al. b);
- o da causalidade- nº1, al. c);
- e o da necessidade- nº1, al. d).
No entanto, a competência internacional do tribunal só deve ser apreciada se da aplicação das regras da competência territorial não resultar a atribuição de competência aos tribunais portugueses.
Destarte, o critério do domicílio do demandado – al. a) do nº1 do artº 65º do C.P.Civil - só pode ser aplicado quando os tribunais portugueses não forem competentes segundo tais regras de competência territorial, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo C.P.Civil”, pág. 117.
No caso dos autos, importa pois atentar nas regras de competência territorial dos tribunais portugueses, designadamente no seu artº 74º nº1 do C.P.Civil onde se dispõe que:
“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento será proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu”.
Pelo que atentas as regras da competência territorial, - artº 74º nº 1 do C.P.Civil - os tribunais portugueses o são, efectivamente, competentes para a apreciar e decidir a presente acção, desde que o credor os tenha elegido para tal, como sucedeu.
Na verdade, “in casu” os autores na sua qualidade de credores da obrigação a que os réus se encontravam adstritos, escolheram intentar a acção destinada a declarar a resolução do dito contrato promessa, não no tribunal do local onde a obrigação prometida haveria de ser cumprida – celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel sito na República da Guiné Bissau – ou seja, nesse país, mas no tribunal do domicílio dos réus, ou seja, no tribunal de Vila Nova de Gaia.
Destarte, verdadeiramente, não se está perante um problema de competência internacional do tribunal português.
E assim encontrando-se os réus domiciliados em Portugal, mais propriamente na área da comarca de Vila Nova de Gaia, os tribunais portugueses, concretamente o tribunal “a quo”, são internacionalmente competentes para conhecer de presente acção, nos termos dos artºs 65º nº1 als. a), b) e c) e 74º nº1, ambos do C.P.Civil, apesar de o imóvel a se reporta o contrato promessa de compra e venda, celebrado e assinado no Porto - Portugal, cuja resolução se peticiona, se situar na República da Guiné Bissau.
Procedem as conclusões dos agravantes.
Pelo que a decisão recorrida, ou seja, na parte respeitante à acção, tem de ser revogada e substituída por outra que julgue o Tribunal de Vila Nova de Gaia competente em razão da nacionalidade para apreciar e decidir a presente acção.

IV – Pelo exposto, acordam os Juizes que compõem esta secção cível em conceder provimento ao presente agravo, consequentemente revogar a decisão recorrida, ordenando a sua substituição por outra que declare o tribunal “a quo” internacionalmente competente para a acção.
Custas pelos agravados.

Porto, 2008.03.04
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
Cristina Maria Nunes Soares Tavares Coelho