Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0457128
Nº Convencional: JTRP00037706
Relator: CUNHA BARBOSA
Descritores: EXECUÇÃO
CHEQUE
MÚTUO
NULIDADE
TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RP200502140457128
Data do Acordão: 02/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Os cheques, apresentados a pagamento fora do prazo de oito dias não podem constituir títulos executivos, enquanto documentos particulares (quirógrafos), quando referentes a obrigação que emerge de um negócio formal e sempre que a forma legal prescrita não tenha sido observada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:
No Tribunal Judicial de .........., .. Juízo Cível, sob o nº ..../03......., foi instaurada uma execução, com processo ordinário, por B.......... contra C.......... para pagamento da quantia de €12.186,78, acrescida de juros à taxa de 7% sobre aquela quantia, desde a citação e até integral pagamento.
Fundamenta o seu pedido em que:
- Exequente e executada celebraram, entre si, verbalmente, um contrato de mútuo no dia 15 de Abril de 2002, ascendendo a quantia mutuada a € 12.186,78;
- No sentido de solver a quantia mutuada, a mutuária/executada entregou à exequente/mutuante, com as datas e valores seguintes:
1. No dia 22.4.02, o cheque nº 001.........., sobre o Banco X.........., no valor de € 2.743,38;
2. No dia 20.5.02, o cheque nº 002.........., sobre o Banco X.........., no valor de € 2.743,40;
3. No dia 20.7.02, o cheque nº 003.........., sobre o Banco Y.........., no valor de € 3.500,00;
4. No dia 30.8.02, o cheque nº 004.........., sobre o Banco Y.........., no valor de € 3.200,00;
- Apresentados a pagamento, foram os mesmos devolvidos por falta de provisão, respectivamente:
1. No dia 09.07.02, o cheque nº 001.........., no valor de € 2.743,38;
2. No dia 09.07.02, o cheque nº 002.........., no valor de € 2.743,40;
3. No dia 14.08.02, o cheque nº 003.........., no valor de € 3.500,00;
4. No dia 30.12.02, o cheque nº 004.........., no valor de € 3.200,00;
- A executada, apesar de várias vezes instada para proceder ao pagamento da quantia em dívida, jamais o fez.
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Tal requerimento executivo veio a ser objecto de despacho liminar, no qual se proferiu a seguinte decisão:
“…
De concluir, portanto, que os cheques dados à execução não constituem títulos executivos, nos termos e para os efeitos do disposto na al. c) do art. 46º do CPC.
Atento o exposto, indefiro liminarmente o requerimento executivo, nos termos do disposto no artº 811º-A, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Civil.
…”.
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Não se conformando com tal decisão, dela a exequente interpôs recurso e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - Os compromissos são para cumprir;
2ª - Os cheques, embora fossem entregues ao Banco para pagamento, em momento posterior ao prazo de oito (8) dias, são, ainda assim, título executivo bastante; caso assim não se entendesse, estar-se-ia, praticamente, a admitir a necessidade de uma acção declarativa, contrariando claramente, o espírito da lei e a vontade do legislador, demonstrada pela ampliação do lote de títulos executivos, assim como pelo esforço constante no sentido de obter agilização do processo executivo – cfr. actual al. c) do artº 46º do CPC, DL nº 38/2003, de 8 de Março;
3ª - Mesmo admitindo a utilização do cheque como mero quirógrafo, ainda assim, não será ao exequente que cabe invocar a relação subjacente, visto que esta se presume por força do nº 1 do artº 458º do CC, caberá ao executado invocá-la, se o desejar, em sede de embargos.
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Não foram apresentadas contra-alegações, apesar de notificada a executada para os termos do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
Assim:
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2. Conhecendo do recurso (agravo):
2.1 – Dos factos assentes:
Com relevância para o conhecimento do recurso, tem-se por assente que a exequente/agravante alegou os factos constantes do requerimento executivo e supra enunciados no ‘relatório’.
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De conformidade com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso (cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º do CPC), temos que a questão a resolver é tão só uma, como seja a de saber se os cheques dados à execução constituem ou não título executivo.
Vejamos.
No despacho recorrido entendeu-se que os cheques não constituíam título executivo, quer porque não podiam valer como título cambiário já que apresentados a pagamento fora de prazo, isto é, para além dos oito dias para tanto concedidos (cfr. artº 29º da LUC), quer porque enquanto «…meros quirógrafos, ainda que acompanhados da alegação da existência e caracterização da obrigação causal no requerimento executivo, não têm força bastante para incorporar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, nem constituem títulos executivos à luz da al. c) do artº 46º do CPC.»
A agravante insurge-se contra tal entendimento, pretendendo que os cheques dados à execução constituem títulos executivos, quer como meros quirógrafos (documentos particulares), quer como títulos cambiários, ainda que, quanto a este último aspecto, a questão não tenha sido colocada de forma clara e aberta.
No que concerne a poderem considerar-se os cheques dados à execução como títulos executivos, enquanto títulos cambiários, afigura-se-nos manifesto não assistir qualquer razão à agravante, porquanto, como é pacífico, o disposto no artº 46º, nº 1, al. c) do CPCivil (anteriormente à introdução da nova redacção pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 8 de Março, tão só artº 46º, al. c)) não tem o condão de, relativamente à acção cambiária, revogar o estabelecido na Lei Uniforme dos Cheques quanto aos requisitos e condições para ser exercida a acção cambiária, isto é, quando se invoque tão só a relação cambiária e se pretenda obter o seu cumprimento por via da acção (executiva ou declarativa), devem ser tidos em conta os dispositivos legais contidos naquela Lei Uniforme [Ac. STJ de 29.2.2002, CJSTJ, Ano X, Tomo I-2002, pág. 65].
Ora, como bem se diz no despacho recorrido e resulta da matéria de facto alegada, os cheques dados à execução foram apresentados a pagamento para além dos oito dias mencionados no artº 29º da LUC, pelo que, nos termos do disposto no artº 40º do mesmo diploma legal, não é admissível a acção (execução) cambiária, por se não verificar, desde logo, uma das condições da acção neste normativo previstas – apresentação a pagamento em tempo útil.
Assim, quanto a tal aspecto, a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
Afastada a questão da exequibilidade dos cheques enquanto títulos cambiários, importa, agora, verificar se podem os mesmos, enquanto meros quirógrafos, constituir título executivo.
A solução da questão tem sido objecto de intensa controvérsia na doutrina e na jurisprudência, sendo que, no seio de ambas, se formaram diversas correntes e adoptaram as mais díspares soluções, em função das mais diversas especificidades que tais títulos apresentam.
Crê-se, todavia, que, nesta matéria, se distinguem e afirmam três grandes correntes (sem deixar de se reconhecer que, dentro de cada uma delas, se podem encontrar sub-correntes em função de determinadas especificidades), como sejam: uma, defendendo que o cheque (enquanto mero quirógrafo) constitui título executivo bastante, desde que no requerimento executivo se alegue a relação subjacente, por nele se não mencionar a causa da relação jurídica subjacente; outra, afirmando que o cheque é título executivo bastante, independentemente de se alegar ou não a relação subjacente, já que o mesmo enquanto documento particular conteria uma declaração unilateral de dívida e nos termos do artº 458º, nº 1 do CCivil o credor estaria dispensado de provar a relação fundamental, presumindo-se a sua existência, e, consequentemente, não tinha que a alegar; uma última, pretendendo que o cheque enquanto mero quirógrafo (documento particular), alegando-se ou não a relação subjacente, não pode constituir título executivo, porquanto o mesmo, por si só, não é susceptível de incorporar a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.
De notar que as três correntes se mostram afloradas nos autos, porquanto na decisão sob recurso se propugna a última (isto é, o cheque enquanto mero quirógrafo nunca poderá ser título executivo), e, por sua vez, a exequente/agravante, no requerimento executivo, parece enquadrar-se na primeira (isto é, o cheque como mero quirógrafo é título executivo desde que, no requerimento executivo, se alegue a relação subjacente), pois invoca a existência de um contrato de mútuo celebrado entre exequente e executada e os cheques ter-lhe-iam sido entregues para solver a quantia mutuada, enquanto, nas suas alegações de recurso, se enquadra na segunda corrente (isto é, a que pugna por ser o cheque, como mero quirógrafo, título executivo independentemente de se ter alegado a relação subjacente, já que dele resultava uma declaração unilateral de dívida e, nos termos do artº 458º, nº 1 do CCivil, se encontrava dispensada de provar a relação fundamental).
A tarefa que se nos impõe, numa primeira abordagem, consiste, de alguma forma, em optar por uma das enunciadas correntes, para, num momento posterior, verificar se no caso presente ocorre ou não alguma particularidade que determine solução específica.
Antes de mais convirá precisar que, contrariamente ao afirmado pela agravante/exequente em sede de alegações – cfr. conclusão 2ª, não é aplicável, mau grado se entenda que a alteração entretanto introduzida careça de relevância ao nível da decisão do presente recurso, ao caso presente a redacção introduzida ao artº 46º, nº 1, al. c) do CPCivil pelo artº 1º do Dec. Lei nº 38/2003, de 8 de Março, porquanto a tal obsta o disposto no artº 21º do último diploma legal mencionado, já que a presente execução se mostra instaurada em 13.2.2003, sendo até que o despacho recorrido se mostra proferido em 25.2.2003.
Ora, no artº 46º, al. c) do CPCivil, na redacção anterior à introduzida pelo artº 1º do Dec. Lei nº 38/2003, de 8 de Março, dispunha-se que

“…
À execução apenas podem servir de base:

c) - Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
…”.

Com a introdução de tal normativo visou-se facilitar a formação de títulos executivos de forma a incentivar um maior uso da acção executiva e sem necessidade de recurso à acção declarativa, objectivo este que não pode, obviamente, fazer precludir a necessária segurança ao comércio jurídico e trato das obrigações, sob pena de aquele se tornar caótico.
Tal objectivo resulta, desde logo, afirmado no preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12, em que se diz «…que se optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado. …/ Supõe-se que este regime – que se adita ao processo de injunção já em vigor – irá contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial. ...».
Ora, sem perder de vista tal escopo, impõe-se que passemos a abordar a questão que nos ocupa, como seja a de saber se o cheque enquanto documento particular (mero quirógrafo), isto é, precludida que se mostre a acção (execução) cambiária, pode constituir título executivo.
Tal questão, como nos dá conta a doutrina [J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva (à luz do código revisto), 2ª ed., pág. 53] e a jurisprudência [Cfr., por todos, Ac. STJ de 17.6.2003, www.dgsi.pt (proc. nº 03A1404)], foi já alvo de discussão mesmo antes da reforma de 1995/1996, sendo que a corrente maioritária se afirmava no sentido da resposta positiva, isto é, o cheque enquanto documento particular, portanto, que não pudesse valer como título cambiário e como tal fosse exequível, podia constituir título executivo, porquanto importava reconhecimento de obrigação pecuniária de valor determinado.
Actualmente, continua a ser corrente maioritária, quer na doutrina quer na jurisprudência mais recente, a que propugna uma resposta positiva a tal questão, isto é, defende que o cheque que seja insusceptível de valer como título cambiário, por prescrita a obrigação ou precludida a acção (execução) por falta de condições, pode, enquanto documento particular (mero quirógrafo), constituir título executivo, verificados que se mostrem os condicionalismos exigíveis à exequibilidade destes (documentos particulares) previstas na al. c) do artº 46º do CPCivil.
Por, na jurisprudência mais recente, vir sistematicamente a ser seguida a solução propugnada para tal questão por J. Lebre de Freitas [Ob. cit., págs. 53 e 54], crê-se que é de toda a utilidade passar a citá-la directamente tal como pelo mesmo é formulada, assim: «...Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente. / Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a se reportam emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221-1 CC e 223-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do regime do reconhecimento de dívida (art. 458-1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poderá ser impugnada pelo executado. ...».
Assim, tendo a exequente alegado a causa da obrigação no requerimento inicial, como seja, a de que os cheques foram emitidos a seu favor pela executada para solver a quantia mutuada por aquela a esta, ter-se-ia que, mau grado a acção (execução) cambiária com base nos cheques ser inadmissível legalmente (como já se deixou referido supra), nada obstaria ao prosseguimento da execução com base nos cheques considerados como meros quirógrafos.
Todavia, como claramente resulta do requerimento inicial, os cheques foram emitidos para solver a quantia mutuada de €12.186,78, em função de um contrato de mútuo celebrado, verbalmente, em 15 de Abril de 2002, entre a exequente e a executada.
Ora, como flui do disposto no artº 1143º do CCivil, o contrato de mútuo inferior a €20.000,00 e superior a €2.000,00, só é válido se for celebrado por documento assinado pelo mutuário, sendo, por isso, o mútuo alegado pela exequente um negócio jurídico formal, já que o mesmo tem como valor €12.186,78, forma essa que não foi observada, porquanto alega a exequente que o contrato de mútuo foi celebrado verbalmente.
Daí que, face ao ensinamento referido de J. Lebre de Freitas, os cheques dados à execução não possam valer como título executivo, enquanto meros documentos particulares (quirógrafos), porquanto, como se deixou expresso no ac. do STJ de 9.3.2004 [Proc. nº 034109, ‘in’ www.dgsi.pt], em caso análogo ao presente, «...o contrato de mútuo que, verdadeiramente, constitui a causa de pedir da execução (...) é um negócio formal. Por isso, como acima vimos, não pode a execução basear-se em qualquer declaração de reconhecimento de uma dívida sem causa, antes tem que se fundamentar no próprio título pelo qual o negócio foi concretizado. / Sendo impensável que o documento assinado pelo mutuário (ou escritura) essencial à celebração daquele contrato possa ser substituído pela simples subscrição de cheques que, além de tudo o mais, se lhe não referem. ...».
Temos, portanto, que, mau grado ter a exequente alegado a causa da obrigação no requerimento inicial, não podem, já que referentes a obrigação que emerge de um negócio formal – mútuo de valor superior a €2.000,00 (€12.186,78) -, os cheques dados à execução, não apresentados a pagamento dentro do prazo de oito dias, constituir títulos executivos.
Em conclusão, ter-se-á que, ainda que por outros fundamentos, improcedem as conclusões formuladas pela agravante e, consequentemente, ao agravo deve ser negado provimento.
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Concluindo e resumindo:
- Os cheques, apresentados a pagamento fora do prazo de oito dias, não podem constituir títulos executivos, enquanto documentos particulares (quirógrafos), quando referentes a obrigação que emerge de um negócio formal e sempre que a forma legal prescrita não tenha sido observada.
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3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) – negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida;
b) – condenar a agravante nas custas do recurso.
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Porto, 14 de Fevereiro de 2005
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes