Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0336084
Nº Convencional: JTRP00036672
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: SOCIEDADE
DISSOLUÇÃO
HABILITAÇÃO
Nº do Documento: RP200312110336084
Data do Acordão: 12/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J V N GAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Dissolvida uma sociedade, ainda que com o encerramento da liquidação, mas conhecido o facto apenas quando se proceder à sua citação, haverá que aceitar a habilitação dos respectivos sócios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

1- Y..........., S.A. instaurou execução para pagamento de quantia certa com processo ordinário contra G..........., Ldª, pedindo o pagamento da quantia de 7532,20€ e juros respeitante a uma dívida titulada por cheque.

No desenvolver das diligências de citação da executada, veio a constata-se que a mesma foi dissolvida por escritura Pública de 21.03.2002 .
Em 18 de Fevereiro de 2002, foi proferido despacho a mandar notificar a exequente desta situação, documentada nos autos e na sequência do mesmo , nada tendo sido dito nos autos e antes (em 18.03.03) de ter sido deduzido pela exequente o incidente de habilitação em apenso (deduzido em 25.03.03) foi decidido, a fls. 42 e vº, indeferir o requerimento executivo nos termos dos artºs 494º-c) e 811º-A, nº 1-b) e 820º do CPC, dado que a executada por ter sido dissolvida e liquidada não tinha personalidade jurídica, e que não era suprível, entendendo-se não ser caso de aplicação do disposto nos artºs 371, nº 2 do CPC, nem do artº 162º do Código das Sociedades Comerciais.
Foram pedidos esclarecimentos sobre a não aplicação nesta decisão do disposto no nº 2 do artº 371º do CPC.
Em resposta a esse requerimento reconheceu-se existir um lapso que se traduziu na referência ao artº 371º nº 2 do CPC, o que se mandou eliminar, mas manteve-se no mais a decisão de indeferimento do requerimento executivo.

A exequente discordou desta decisão e dela recorreu, tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
1. Resulta do despacho requerido que perante a extinção da Sociedade Comercial demandada nos presentes autos, esta não dispõe de personalidade jurídica ou judiciária, existindo uma excepção insuprível, conduzindo ao indeferimento liminar do requerimento executivo.
2. O Meritíssimo Juiz a quo considera, como tal, inaplicáveis ao presente caso os artigos 277.° e 371.°, n.° 2 do Código de Processo Civil, sem explicar o motivo para essa não aplicação, a qual, à luz da Lei, se afigura necessária e apresentando uma explicação inconsequente para a não aplicação do art.° 162.° do Código das Sociedades Comerciais.
3. Decidiu mal Meritíssimo Juiz a quo ao indeferir o requerimento executivo, na medida em que, perante os factos verificados e carreados para os autos, sempre seria de aplicar os artigos 277.°, n.°- 1 e 371.°, n.° 2, ex vi art.° 374.°, n.° 3, todos do Código de Processo Civil.
4. Fundamenta incorrectamente também a não aplicação do art.° 162.° do Código das Sociedades Comerciais, a qual ocorre, ela sim, por se ter a Executada extinto antes da apresentação da execução.
5. A não aplicação ao caso sub iudice do art.°- 371.°, n.° 1 do Código de Processo Civil deixaria este artigo vazio de sentido e inaplicável a qualquer situação concebível, contrariando os ditames do artigo 9.°- do Código Civil.
6. Verificando-se a extinção, por dissolução e liquidação em escritura pública, de uma sociedade comercial, a qual é levada a registo na véspera da apresentação contra esta de requerimento executivo em juízo, só por intermédio das diligências de citação poderia a Exequente ter conhecimento da extinção da Executada.
7. Haveria pois, necessariamente, que aplicar o disposto no art.° 277.°, n.°- 1 do Código das Sociedades Comerciais, suspendendo-se de imediato a instância,
8. Pendente do requerimento do incidente de habilitação dos sócios da Executada, apresentado nos termos do art.° 371.°, n.° 2, ex vi art.°- 374.°, n.°- 4, do Código de Processo Civil.

Entretanto a exequente em 25 de Março de 2003, na sequência da certidão de registo comercial junta aos autos de execução que lhe fora notificada, e da qual consta a dissolução da executada por escritura pública de 21 de Março de 2002, veio deduzir incidente dos requeridos sócios da executada.
Em despacho liminar proferido em 24.04.03, este incidente de habilitação de sócios foi também indeferido, não só porque se entendeu não ser admissível a habilitação, como o disposto no artº 162º do CSC, porque a liquidação já estava encerrada á data da propositura da acção, sendo que se referiu que nos casos aí previstos nem é necessária a habilitação. E o art. 163º do mesmo CSC exige a propositura de novas acções.
Foram também pedidos esclarecimentos quanto a esta decisão por a mesma não se compreender nem conjugar com o disposto nos artºs 371-2 e 374-3 do CPC.
Em resposta proferiu-se decisão a manter o despacho, onde se fez salientar que “já havia sido proferido despacho na execução devidamente notificado, mas esclareceu-se, mais uma vez, que a posição tomada entendia que a suspensão e posterior habilitação (artºs 276º e 374º do CPC) terá lugar nos casos de extinção da pessoa colectiva, por exemplo por virtude de fusão”.

Foi assim, também, interposto recurso da decisão que indeferiu liminarmente o incidente de habilitação e no final das respectivas alegações formularam-se as seguintes conclusões:
1-Resulta do despacho requerido que perante a extinção da Sociedade Comercial demandada nos presentes autos, anterior à apresentação do requerimento executivo, não é de aplicar o disposto no artigo 162.°- do Código das Sociedades Comerciais e que
2-distinguindo-se a extinção da dissolução, ao caso em apreço não seria de aplicar a suspensão e subsequente habilitação, previstas nos artigos 276.°, n.°- 1, alínea a), 371.°, n.°- 2 e 374.°, n.° 3, todos do Código de Processo Civil.
3-Decidiu mal o Meritíssimo Juiz a quo ao indeferir o requerimento de habilitação, na medida em que, perante os factos verificados e carreados para os autos, sempre seriam de aplicar os artigos 276.°, n.° 1, a), 277.°, n.° 1 e 371.°, n.° 2, ex vi arts 374.°, n.°- 3, todos do Código de Processo Civil.
4. A distinção proposta no despacho recorrido entre a dissolução e a extinção de sociedade comercial não releva para aferir da aplicabilidade das normas identificadas supra.
5. Findo o período de liquidação de uma sociedade dissolvida nos termos legais, ela terá, forçosamente, de ser considerada extinta.
6.É, aliás, contrária à própria letra da Lei (vide artigo 276.°-, n.22 do Código de Processo Civil) a alusão contida no despacho recorrido, aclarado por despacho de 25.05.2003, à fusão como um exemplo em que, ao contrário das situações de dissolução de sociedades comerciais, acompanhada de liquidação encerrada, seria de suspender a instância e proceder a habilitar os sócios.
7. Bem ao contrário, pois, a suspensão da instância apenas não ocorrerá quando ocorra a transformação ou fusão da sociedade ou quando a extinção determine a impossibilidade ou inutilidade da lide (o que não sucede nestes autos)
ou, também,
8. quando seja de aplicar o disposto no artigo 162.° do Código das Sociedade Comerciais, situação que, no caso presente, e salvo melhor opinião, efectivamente poderá não ocorrer, por a extinção ter antecedido a propositura da acção.
9. A não verificação da excepção contida no referido artigo 162.°- determina a imediata aplicação do regime-regra dos já citados artigos 276.°, 277.° e 371.° e segs. do Código de Processo Civil.
10. A não aplicação ao caso sub iudice do art.°- 371.°-, n.° 2 do Código de Processo Civil deixaria este artigo vazio de sentido e inaplicável a qualquer situação concebível, contrariando os ditames do artigo 9.°- do Código Civil,
11. Verificando-se a extinção, por dissolução e liquidação em escritura pública, de uma sociedade comercial, a qual é levada a registo na véspera da apresentação contra esta de requerimento executivo em juízo, só por intermédio das diligências de citação poderia a Exequente ter conhecimento da extinção da Executada.
12. Haveria pois, necessariamente, que aplicar o disposto no art.° 277.°, n.°- 1 do Código do Processo Civil, suspendendo-se de imediato a instância,
13. Pendente do requerimento do incidente de habilitação dos sócios da Executada, apresentado nos termos do art.° 371.°-, n.°- 2, ex vi art.°- 374.°, n.°4, do Código de Processo Civil.
14. 0 despacho recorrido viola, assim, as regras constantes dos artigos 276.°-, 277.°-, 371.°, n.° 2 e 374.° do Código de Processo Civil.

2- A matéria de facto , não impugnada, em que se fundamentam os recursos de agravo, é a que sinteticamente se descreveu no relatório, e porque a mesma se encontra documentada nestes autos, dá-se aqui por inteiramente reproduzida nos termos do artº 713º nº 6 do CPC.

Apreciação dos factos e do direito.

Sendo que é pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 691º, nº 1 , 690º, nº1 e 2 do CPC), vejamos pois do seu mérito.

Os despachos que foram objecto de interposição de recurso de agravo estão interligados e por isso a sua apreciação irá ser conjunta.
Ao decidir-se primeiro o indeferimento do requerimento executivo, criou-se uma situação, como aliás se reconhece, que levou a que também se indeferisse o incidente de habilitação.

3-Vamos, pois, apreciar o primeiro despacho onde foi decidido a fls. 42 e vº indeferir o requerimento executivo nos termos dos artºs 494º-c) e 811º-A, nº 1-b) e 820º do CPC, porque se constatou que a executada tinha sido dissolvida e liquidada e portanto não tinha personalidade jurídica.

De facto o requerimento executivo deu entrada em juízo no dia 30 de Abril de 2002 e a dissolução e encerramento da liquidação da executada ocorreu por escritura pública de 21.03.2003 e levada a registo em 29.04.02 (um dia antes da propositura da acção executiva).
Esta situação de dissolução foi conhecida nos autos quando se procedia às diligências para se citar a mesma para os termos da acção executiva.
Pelo facto de ocorrer a dissolução da sociedade com o encerramento da liquidação entendeu-se não ser aplicável o artº 162º do CSC e porque desde o início da acção executiva, a executada não tinha personalidade judiciária é que foi indeferido o requerimento executivo.
Neste despacho tinha-se feito inicialmente referência ao disposto no artº 371-2 do CPC, mas em rectificação posterior deu-se a mesma como não escrita.
Significa isto que a decisão recorrida não enfrentou a problemática do prosseguimento da execução à luz desta disposição, fixando-se na aplicação do artº 162º do CSC.

4-No artº 371, nº 2 do CPC dispõe-se que “Se, em consequência das diligências para citação do réu, resultar certificado o falecimento deste, poder-se-á requerer a habilitação dos seus sucessores, em conformidade com o que nesta secção se dispõe, ainda que o óbito seja anterior à propositura da acção”.
Esta situação de habilitação incidental, por falecimento do réu antes de instaurada a demanda, no domínio do CPC de 1876 (que foi objecto do Assento de 21 de Julho de 1931) só era consentida quando o falecimento ocorresse na pendência da lide, mas isso foi definitivamente alterado com o Código de 1939, essencialmente dominado por um justo critério de economia processual.
Como nos refere Eurico Lopes Cardoso-in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 2ª edição, pág.296, logo nos projectos deste Código se estendeu a esfera de aplicação do incidente ao caso de a morte do réu ter ocorrido antes de proposta a acção, mas ser conhecida pela certidão negativa passada pelo funcionário encarregado de o citar.
Trata-se portanto de uma excepção ao principio geral de que a habilitação só é permitida quando o falecimento ocorra “na pendência da causa” e isso veio a ficar no texto do nº 2 do artº 371º do CPC, que ainda hoje se mantém.
Neste caso como refere este autor, o incidente torna possível o aproveitamento do processo instaurado contra o réu falecido e consequentemente a acção considera-se proposta, contra os sucessores habilitados, não na data em que a habilitação é deduzida ou em que eles são chamados a juízo, mas sim naquela em que a petição inicial deduzida contra o falecido deu entrada no tribunal.
Neste mesmo sentido se expressa Salvador da Costa- Os incidentes da Instância, pág.213, ao referir que se trata de “uma situação anómala em que, no fundo, releva o accionamento de uma pessoa sem personalidade jurídica e, consequentemente, sem personalidade judiciária, na qual não há, em rigor, modificação subjectiva da relação processual, porque ela se constitui ab initio com os sucessores do réu falecido ou da pessoa colectiva extinta” (cfr. Também Manuel Augusto gama Prazeres- Dos Incidentes da Instância no Actual CPC-Braga-1963, pág.274).
Rodrigues de Bastos - Notas ao CPC- Vol II, 3ª edição, pág.143, muito embora considere que o legislador adoptou uma solução aberrante, não deixa de entender que com base no disposto no nº 2 do artº 371º do CPC, “Provada documentalmente a morte do réu, pode qualquer das pessoas com legitimidade para tal, nos termos do nº 1 requerer a habilitação dos sucessores do falecido, quer o óbito tenha ocorrido depois de proposta a acção, quer tenha ocorrido antes, sem necessidade de se alegar e provar que o facto não era do conhecimento do autor contemporaneamente à propositura da acção. Por virtude disso pode o autor demandar pessoa falecida, isto é, desprovida de personalidade jurídica e, portanto, também de personalidade judiciária”.

5-Ora reportando-nos agora ao caso concreto, verificamos que foi efectivamente no desenvolvimento das diligência de citação da sociedade executada que veio a ser conhecido que a mesma fora dissolvida em data anterior à da apresentação do requerimento executivo e a dissolução com o encerramento da liquidação foi registada precisamente no dia anterior (29.04.02) ao da apresentação desse requerimento (30.04.02).
Nos despachos recorridos fez-se aplicação do disposto no artº 162º do CSC e com base neste dispositivo entendeu-se que a executada sociedade não existindo já desde o início da acção executiva, não se poderia falar em acção pendente.

Na verdade nos termos do Artigo 162.º do CSC, havendo acções pendentes em que a sociedade seja parte continuam as mesmas após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5 e a instância (nº2) não se suspende nem é necessária habilitação.
Porém, esta disposição, como se constata, é destinada a facilitar, o prosseguimento das acções pendentes contra os sócios, perante a extinção da sociedade, parte na acção.
Não é o caso dos presentes autos, onde a acção ainda não se tinha iniciado, dado que decorriam ainda os trâmites para citação da ré.
Para a situação das acções pendentes em que for parte uma pessoa colectiva que se extinga na pendência, é que funciona aquela disposição do artº 162º do CSC conjugada com o nº 3 do artº 374º do CPC.
A situação dos autos é a do artº 371º, nº 2 do CPC, ou seja, constatado no processo documentalmente que ao citar-se a sociedade que a mesma se encontra dissolvida, deve notificar-se o autor dessa situação e daí decorrerá que nos termos dos artºs 276º nº 1 e 277º nº 1 do CPC, se tenha de ordenar a suspensão da instância, pois não há dúvida que findo o período de liquidação de uma sociedade dissolvida nos termos legais, ela terá, forçosamente, de ser considerada extinta.
Segundo Lebre de Freitas-CPC-Vol.1º, pág. 633, neste caso, o tribunal só deverá decretar a suspensão da instância se a habilitação for requerida após notificação ao autor do resultado negativo da diligência.
Sendo assim, o autor terá de requerer a respectiva habilitação incidental dos sócios da executada para com eles prosseguir na execução.
E será com a habilitação incidental (que se distingue da habilitação principal e da habilitação legitimidade [-Cfr. também J. Castro Mendes-Direito Processual Civil-II, AAL pág.236; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório-Vol.II, pág.149 e Santos Silveira-Questões Subsequentes em Processo Civil, pág. 432 e ss e Lopes Cardoso-Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil-2ª ed. pág.287 e ss] que constitui um dos meios de modificar a instância quanto à pessoas e substituir uma das partes - artº 270-a) do CPC, que o processo principal poderá voltar a prosseguir.

6-Dito isto, entendemos que não estamos em presença de caso de aplicação do artº 162º do CSC, porque não se tratou de extinção da sociedade executada na pendência da acção, mas sim de situação de aplicação do disposto no artº 371º nº 2 do CPC.
E como tal, dissolvida a sociedade ainda que com o encerramento da liquidação, mas conhecido no processo apenas quando se procedia à sua citação, haverá que aceitar a habilitação dos respectivos sócios, dentro do principio de economia processual que presidiu ao que se dispôs no nº 2 do artº 371º do CPC.
Para tanto e uma vez que a exequente notificada da razão da não citação da executada veio a instaurar incidente de habilitação dos sócios da executada, haverá que suspender a instância na acção executiva e ordenar o prosseguimento de processamento do incidente de habilitação nos termos do artº 372 do CPC.
Cremos ser este o alcance do actual artº 371º nº 2 do CPC,

Nestes termos procedem ambos os agravos, assistindo, por isso razão à agravante.
7- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em dar provimento aos agravos e em consequência revogam-se os despachos recorridos, que devem ser substituídos por outros onde se suspenda a instância na acção executiva e se ordene o prosseguimento de processamento do incidente de habilitação nos termos do artº 372º do CPC.
Sem custas -artº 2º-1-o) do CCJ.
Porto, 11 de Dezembro de 2003
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz