Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0551108
Nº Convencional: JTRP00038070
Relator: CUNHA BARBOSA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RP200505160551108
Data do Acordão: 05/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Os cheques, a que faltem os requisitos ou condições que permitam a instauração da respectiva acção (execução) cambiária, podem, enquanto documentos particulares (quirógrafo) e ao abrigo do disposto na al. c) do art. 46º do Código de Processo Civil, servir de título de execução com vista à obtenção do pagamento da importância neles inscrita, desde que se alegue na petição executiva a causa da obrigação (relação subjacente), pois que esta não consta do título de crédito em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:
No .. Juízo Cível do Tribunal Judicial de .........., sob o nº ..../03......., por apenso à execução que lhe move B.........., Ldª, veio C.......... deduzir embargos de executado em que formula o seguinte pedido:
«Pelo exposto, deve Vª Exª receber os presentes embargos, seguindo-se os demais trâmites até final (cfr. artº 817º, nº 2 do C.P.C.), bem como, julgar procedente a oposição à execução e declarar extinta a execução, com as demais e devidas consequências legais daí decorrentes».
*
Fundamenta tal pedido, alegando, em essência e síntese, que:
- Os cheques dados à execução têm como data de emissão – 30.6.2003 -, sendo que foram apresentados a pagamento em – 24.6.2003, sem que o tenham de novo sido apresentados a pagamento, designadamente nos oito dias seguintes ao da sua emissão;
- Tais cheques, enquanto meros documentos particulares (quirógrafos), carecem de força executiva, por não importarem, desde logo e por si, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária já anteriormente constituída, sendo que não há ‘incorporação’ da pretensão, faltando-lhe a menção da obrigação subjacente que visava satisfazer.
Conclui pela procedência dos embargos.
*
Na sua contestação, a embargada exequente opõe-se aos embargos, alegando, em essência e síntese, que os cheques juntos aos autos, nos termos do artº 46º do CPCivil, enquanto documentos particulares assinados pelo devedor, importam a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária cujo montante seja determinado.
Mais alega que os cheques foram emitidos para pagamento de duas facturas: nº 001 de 17.4.2003, no valor de € 4.105,50; nº 002, de 31.3.2003, no valor de € 6.158,25.
Conclui pela improcedência dos embargos.
*
Foi elaborado despacho saneador/sentença em que se proferiu a seguinte decisão:
«Considerando o exposto, julgam-se os presentes embargos procedentes e, em consequência, sem título a execução movida contra o embargante. ...»
*
Não se conformando com tal decisão, dela a embarga/exequente interpôs recurso e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
1ª - O facto de o cheque não ter os requisitos exigidos pela LUCH tão só tem por consequência a prescrição da relação cartular;
2ª - Não deixa no entanto de valer como documento particular, e por conter uma ordem de pagamento ao Banco, é um reconhecimento unilateral da dívida;
3ª - Cabendo assim na definição do art. 46 do CPC;
4ª - A reforma processual de 1995 vai no sentido de evitar acções declarativas desnecessárias.
*
O embargante/executado apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
*
Mostram-se colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
Assim:
*
2. Conhecendo do recurso (apelação):
2.1 – Dos factos assentes:
Com relevância para o conhecimento do recurso, mostram-se assentes os seguintes factos:
a) – A exequente é legítima portadora de dois cheques, subscritos, assinados e entregues pelo executado: nº 003, sacado sobre o Banco X........., em 30.6.2003, no valor de € 4.105,50; nº 004, sacado sobre o Banco X........., em 30.6.2003, no valor de € 6.158,25;
b) – Tais cheques, datados de 30.6.2003, foram apresentados a pagamento em 24.6.2003, tendo sido devolvidos com a menção de ‘falta de provisão’.
2.2 – Dos fundamentos do recurso:
De acordo com as conclusões formuladas, as quais delimitam o objecto do recurso – cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º do CPCivil, temos que a questão a resolver é tão só uma, como seja, saber se afastada a acção cambiária, por falta dos requisitos legais dos cheques dados à execução, estes continuam a ter força executiva como documentos particulares (mero quirógrafo da obrigação).
Vejamos.
Na sentença sob recurso entendeu-se que «... quer porque o cheque foi apresentado fora do prazo previsto no art. 29, quer porque o módulo de cheque, apesar de devidamente preenchido, não importa a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, resulta claro que os documentos dados à execução não constituem título executivo».
A embargada/apelante, não impugnando o segmento da decisão que reconhece que os cheques dados à execução carecem de força executiva enquanto títulos cambiários, portanto, insusceptíveis de fundamentar uma execução cambiária, pretende, todavia, que os mesmos têm força executiva enquanto documentos particulares por revelarem um reconhecimento unilateral da dívida.
Do exposto resulta que, afastada a exequibilidade dos cheques enquanto títulos cambiários, resta verificar se, como pretende a embargada/apelante, os mesmos podem, enquanto meros quirógrafos, constituir título executivo.
A solução da questão, como já tivemos oportunidade de afirmar no Ac. desta Relação [Ac. TRP de 14.2.2005, proferido no proc. nº 7128/2004 (5ª Secção)] como relator e que seguiremos de muito perto, tem sido objecto de intensa controvérsia na doutrina e na jurisprudência, sendo que, no seio de ambas, se formaram diversas correntes e adoptaram as mais díspares soluções, em função das mais diversas especificidades que tais títulos apresentam.
Crê-se, todavia, que, nesta matéria, se distinguem e afirmam três grandes correntes (sem deixar de se reconhecer que, dentro de cada uma delas, se podem encontrar sub-correntes em função de determinadas especificidades), como sejam: uma, defendendo que o cheque (enquanto mero quirógrafo) constitui título executivo bastante, desde que no requerimento executivo se alegue a relação subjacente, por nele se não mencionar a causa da relação jurídica subjacente; outra, afirmando que o cheque é título executivo bastante, independentemente de se alegar ou não a relação subjacente, já que o mesmo enquanto documento particular conteria uma declaração unilateral de dívida e nos termos do artº 458º, nº 1 do CCivil o credor estaria dispensado de provar a relação fundamental, presumindo-se a sua existência, e, consequentemente, não tinha que a alegar; uma última, pretendendo que o cheque enquanto mero quirógrafo (documento particular), alegando-se ou não a relação subjacente, não pode constituir título executivo, porquanto o mesmo, por si só, não é susceptível de incorporar a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.
A tarefa que se nos impõe, numa primeira abordagem, consiste, de alguma forma, em optar por uma das enunciadas correntes, para, num momento posterior, verificar se no caso presente ocorre ou não alguma particularidade que determine solução específica.
Ora, no artº 46º, al. c) do CPCivil, na redacção anterior à introduzida pelo artº 1º do dec. Lei nº 38/2003, de 8 de Março (aplicável ao caso ‘sub judice’ por a execução se mostrar instaurada em 3.9.2003) dispunha-se que

“…
À execução apenas podem servir de base:

c) - Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
…”.

Com a introdução de tal normativo visou-se facilitar a formação de títulos executivos de forma a incentivar um maior uso da acção executiva e sem necessidade de recurso à acção declarativa, objectivo este que não pode, obviamente, fazer precludir a necessária segurança ao comércio jurídico e trato das obrigações, sob pena de aquele se tornar caótico.
Tal objectivo resulta, desde logo, afirmado no preâmbulo do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12, em que se diz «…que se optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado. …/ Supõe-se que este regime – que se adita ao processo de injunção já em vigor – irá contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial. ...».
Ora, sem perder de vista tal escopo, impõe-se que passemos a abordar a questão que nos ocupa, como seja a de saber se os cheques enquanto documentos particulares (meros quirógrafos), isto é, precludida que se mostra a correspondente acção (execução) cambiária, podem constituir título executivo.
Tal questão, como nos dá conta a doutrina [J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva (à luz do código revisto), 2ª ed., pág. 53] e a jurisprudência [Cfr., por todos, Ac. STJ de 17.6.2003, www.dgsi.pt (proc. nº 03A1404)], foi já alvo de discussão mesmo antes da reforma de 1995/1996, sendo que a corrente maioritária se afirmava no sentido da resposta positiva, isto é, o cheque enquanto documento particular, portanto, que não pudesse valer como título cambiário e como tal fosse exequível, podia constituir título executivo, porquanto importava reconhecimento de obrigação pecuniária de valor determinado.
Actualmente, continua a ser corrente maioritária, quer na doutrina quer na jurisprudência mais recente, a que propugna uma resposta positiva a tal questão, isto é, defende que o cheque que seja insusceptível de valer como título cambiário, por prescrita a obrigação ou precludida a acção (execução) por falta de condições, pode, enquanto documento particular (mero quirógrafo), constituir título executivo, verificados que se mostrem os condicionalismos exigíveis à exequibilidade destes (documentos particulares) previstas na al. c) do artº 46º do CPCivil.
Por, na jurisprudência mais recente, vir sistematicamente a ser seguida a solução propugnada para tal questão por J. Lebre de Freitas [Ob. cit., págs. 53 e 54], crê-se que é de toda a utilidade passar a citá-la directamente tal como pelo mesmo é formulada, assim:

«...Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente. / Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221-1 CC e 223-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do regime do reconhecimento de dívida (art. 458-1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poderá ser impugnada pelo executado. ...». (sublinhado nosso).

Do exposto importa concluir que os cheques, a que faltem os requisitos ou condições que permitam a instauração da respectiva acção (execução) cambiária, podem, enquanto documentos particulares (quirógrafo) e ao abrigo do disposto na al. c) do artº 46º do CPCivil, servir de título de execução com vista à obtenção do pagamento da importância neles inscrita, desde que se alegue na petição executiva a causa da obrigação (relação subjacente), pois que esta não consta do título de crédito em causa (cheques).
No caso ‘sub judice’, temos que a exequente, ora, embargada/apelante, limita-se a alegar, no seu requerimento executivo, que é legítima portadora dos cheques dados à execução, os quais estão vencidos e não foram pagos, não alegando minimamente a causa da obrigação, isto é, a razão da sua emissão e entrega, sendo que esta não consta, como já se deixou referido, de tais títulos de crédito, já que a obrigação abstracta neles incorporada é própria do regime cambiário aqui não invocável.
Assim, os referidos cheques, enquanto documentos particulares (quirógrafos), não dispõem de força executiva, já que desacompanhados da alegação da relação causal ou subjacente, pelo que não constituem títulos executivos ao abrigo da al. c) do artº 46º do CPCivil, improcedendo, desta forma, a apelação.
*
3. Decisão:
Nos termos supra expostos, acorda-se em:
a) – julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida;
b) – condenar a apelante nas custas do recurso.
*
Porto, 16 de Maio de 2005
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes