Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0650304
Nº Convencional: JTRP00039821
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
IMPUGNAÇÃO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP200612040650304
Data do Acordão: 12/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 282 - FLS 90.
Área Temática: .
Sumário: O ónus de impugnação especificada, após a Reforma do Código de Processo Civil de 1995/96, é cumprido se a parte se limita a negar a verdade dos factos articulados, ainda que tal negação seja, meramente, reportada aos artigos da petição inicial onde foram alegados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto:
I
B………., veio deduzir embargos de executado, na execução que lhe foi movida por C………., S.A., alegando em resumo que:
A livrança junta aos autos titula um contrato de crédito nulo, por ser falsa a assinatura nele constante como sendo da embargante, sendo, consequentemente nula a declaração da embargante de autorizar a embargada a preencher a livrança.
Subsidiariamente e para a hipótese de não conseguir fazer prova de que não assinou o contrato alega que não lhe foi feita a entrega de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura, o que determina a nulidade do contrato de crédito.
Por outro lado, nem a circunstância de a embargante ter assinado o documento de renúncia ao direito de revogação pode alterar a declarada nulidade do contrato, pois essa renuncia só releva se o bem for entregue imediatamente, o que não aconteceu.
Pede, por consequência, que a execução seja liminarmente indeferida, por ser nulo o contrato de crédito e, em consequência, a declaração de autorização à embargada para preenchimento da livrança dada à execução e, assim, julgados procedentes os presentes embargos.

Contestou a embargada impugnando os factos alegados na petição, nomeadamente a falsidade da assinatura aposta no contrato de financiamento e alegando que a embargante reconheceu em documentos que assinou e actos que praticou, o direito de crédito da embargada.
Nenhuma das prestações acordadas foi paga, e após inúmeras interpelações e insistências, a embargante aceitou proceder à entrega da viatura à embargada, a fim de que esta procedesse à sua retoma e venda pelo melhor preço que vier a ser atribuído, dando para esse efeito o seu consentimento e autorização expressa e, solicitando ainda que, o produto da venda da viatura se destine à amortização do contrato, confessando-se simultaneamente devedora à C………., S.A. do remanescente em dívida.
Na mesma ocasião procedeu a embargante à entrega das chaves e documentos do veículo.
Actos estes que contradizem a alegação da embargante de que a assinatura do contrato de financiamento não é sua, e consubstanciam um abuso de direito.
Pediu que os embargos sejam julgados improcedentes.

Prosseguindo os autos, foi proferido saneador/sentença, na qual se julgou procedentes os embargos, com a consequência da extinção da acção executiva.

Inconformada com esta decisão, dela recorreu a embargada, da matéria de facto e de direito, concluindo as alegações pela seguinte forma:
1 - ) A embargada/apelante impugnou expressamente a factualidade dada como assente no ponto 2 da factualidade provada, ou seja, que no dia da assinatura do contrato não tinha sido entregue à embargante um exemplar do mesmo.
2 - ) A impugnação daquela factualidade corresponde à alegação/afirmação do seu contrário, ou seja, que o exemplar do contrato foi entregue à embargante no dia da sua assinatura – o que aliás já resultava do contexto de todo o articulado da embargada, apelante;
3 - ) Por ter sido expressamente impugnada, jamais poderiam ser dados como assentes os factos constantes do Ponto 2. da Factualidade Provada da sentença recorrida, por se tratar de matéria controvertida;
4 - ) A presunção decorrente do nº 4 do artigo 7º do Dec-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro, não consubstancia a existência de um ónus de alegação do facto positivo, mas apenas uma inversão do ónus da prova, relativamente aos factos alegados pelo devedor – cfr. artigo 350º nº 2 do Código Civil;
5 – ) O caso “sub judice” assemelha-se, quanto à questão da prova, a uma acção de simples apreciação negativa – cfr. artigo 343º nº 1 do Código Civil;
6 - ) A presunção do nº 4 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, refere-se unicamente à questão da responsabilidade pela inobservância ou pelo incumprimento das exigências legais;
7 - ) O nº 4 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro não estabelece qualquer presunção legal relativamente à observância ou ao cumprimento das regras e exigências legais propriamente ditas;
8 - ) A aplicação da presunção do citado artigo 7º nº 4 do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro, pressupõe, necessariamente, a demonstração, através da produção de prova, do incumprimento das exigências legais;
9 - ) A nulidade a que alude o disposto no artigo 7º nº 1 do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro, não é absoluta, pelo que pode ser sanada, através da confirmação do negócio – cfr. artigo 289º do Código Civil.
10 - ) A declaração de nulidade do contrato pressupõe a prévia sindicância aos factos alegados reveladores de actos confirmatórios do negócio levados a cabo pela embargante;
11 - ) Na questão do abuso de direito, a sentença recorrida ignorou toda a documentação constante dos autos – junta pela embargante – designadamente o “PEDIDO DE VENDA DA VIATURA”, o que a torna nula, atento o disposto no artigo 668º nº 1 do Código de Processo Civil;
12 - ) A sentença recorrida ignorou, igualmente, a confissão da embargante e o reconhecimento expresso que esta fez da existência e validade do contrato, que, para além de consubstanciarem uma confirmação do negócio (artº 288º do Código Civil), constituem a melhor demonstração do abuso de direito da embargante;
13 – ) A sentença recorrida violou, por tudo quanto se alegou, o disposto nos artigos, 6º e 7º do Decreto-Lei 359/91 de 21/09, artºs 334º, 343º, 350º, 288º do Código Civil e 490º e 668ºdo Código de Processo Civil..
Termina pedindo que seja revogada a sentença recorrida.

Contra-alegou a embargante concluindo que:
1- ) O normativo do artigo 6º nº 1 do Dec-Lei nº 359/91 de 21/09 estipula que um exemplar do contrato tem que ser obrigatoriamente entregue ao consumidor no momento da respectiva assinatura;
2 - ) A apelante tinha o ónus de alegar que se tinha verificado a entrega desse exemplar, sob pena de ser declarado nulo o contrato por inobservância do normativo do nº 1 do referido artigo 6º;
3 - ) Consta dos autos uma carta enviada pelo Serviço de Clientes da D………. à apelada, com data de 23/05/2001, que constitui o documento nº 6 da petição de embargos, em que se junta a cópia do contrato de crédito com o nº ……, supostamente celebrado entre o apelante e a apelada;
4 - ) Do teor desse contrato resulta que a data nele aposta foi o dia 5 de Março de 2001, logo em data muito anterior ao envio pelo correio de um exemplar para a apelada, como supra se refere;
5 - ) Perante esta factualidade o Banco apelante não arguiu a falsidade do referido documento nº 6, limitou-se a impugnar, cfr. artº 20º da sua contestação;
6 - ) O normativo do artigo 490º nº 3 do Código de Processo Civil, estipula que a declaração do réu de que determinado facto não é real, equivalerá a confissão, quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento;
7 - ) O Banco apelante não podia, nem pode, ignorar que foi enviado à apelada, em 23 de Maio de 2001, pelo correio, um exemplar de um contrato cuja data é muito anterior (5 de Março de 2001);
8 - ) Daqui resulta uma consequência que se revela fatal para a pretensão do apelante – é que tem-se por confessado e, logo, provado, que o exemplar do contrato foi enviado muito tempo após a sua celebração, o que é dizer que não foi entregue à consumidora um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura;
9 - ) Por outro lado e de acordo com o disposto no artigo 376º do Código Civil, tem-se por plenamente provado que o Serviço de Clientes do D………. emitiu a declaração datada de 23/05/2001 em que enviam para a morada da apelada uma cópia do contrato de crédito com o nº ….., por tal facto ser desfavorável ao Banco apelante;
10 - ) A apelante reproduz nas suas alegações uma declaração que, contrariamente àquilo que lamentavelmente pretende fazer passar, não foi da autoria da apelada nem corresponde à realidade;
11 - ) Não se verificou qualquer abuso de direito por parte da apelada e as razões aduzidas na douta sentença recorrida têm toda a pertinência e não podem ser modificadas;
12 – A douta sentença recorrida, não merece, pois, qualquer censura e deverá ser confirmada na íntegra, pois não enferma de qualquer nulidade e aplicou a lei deforma correcta e ponderada.
Pede, por fim, que a sentença recorrida seja confirmada julgando-se improcedente a apelação.
II
Na sentença recorrida, deram-se por provados os seguintes factos:
1 - ) A exequente é portadora de uma livrança, subscrita pela executada, que titula o montante de 2.330.385$00, com a data de emissão de 2001.03.05 e com vencimento em 2001.01.20, tendo aposta no seu rosto a menção “c……” (cfr. doc. junto a fls. 5 da acção principal, aqui tido por integralmente reproduzido);
2 - ) Na data da assinatura do contrato junto a fls. 12, deste apenso, não foi entregue à embargante um exemplar do mesmo (cfr. artºs 37 e 38 da petição de embargos e artº 42 da contestação);
3 – Subjacente à emissão e à entrega daquela livrança está a falta de cumprimento do contrato de crédito nº …, datado de 2001.03.05, através do qual a embargada empresta à embargante a quantia de 1.900.000$00, a reembolsar em 48 prestações mensais de 62.089$00 cada, com vencimento a 1ª em 2001.04.15, para aquisição de uma viatura automóvel (cfr. doc. junto a fls. 7 dos presentes embargos e aqui dado por integralmente reproduzido, excepto no que toca á assinatura da embargante nele aposta) (artigo 29º da petição de embargos);
3 – Deram-se por inteiramente reproduzidos os documentos juntos a fls. 6 a 11, 13 a 20 e 36).
4 – A embargante não pagou nenhuma das prestações sobreditas em 2 (cfr. artº 31 da contestação);
5 – A executada não pagou o montante titulado pela livrança nada do seu vencimento, nem posteriormente.
III
O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do C. P. Civil).
As questões a decidir são as seguintes:
a) Se a embargada satisfez ou não o ónus de impugnação especificada ao negar determinado facto através da simples menção do respectivo artigo da petição inicial.
b) Se a embargante incorreu em abuso de direito.

1. Do ónus da impugnação especificada
Comecemos por a apreciar da bondade da decisão que, considerando que a embargada não satisfez o ónus da impugnação especificada em relação a determinado facto, o deu como assente em sede de saneador/sentença.
Facto esse que a decisão de 1ª Instância assim enunciou sob o nº 2 da factualidade provada:
«Na data da assinatura do contrato junto a fls. 12, deste apenso, não foi entregue à embargante um exemplar do mesmo (cfr. artºs 37 e 38 da petição de embargos e artº 42 da contestação)».
Dos artigos 37º e 38º da petição de embargos extraem-se os seguintes factos:
a) a embargante devia ter recebido um exemplar do contrato no momento da sua assinatura;
b) a embargante só recebeu o contrato preenchido juntamente com a carta datada de 23/05/2001;
Relativamente aos mesmos a embargada deduziu a seguinte oposição:
“(...) impugna-se expressamente, o alegado nos artigos 36º a 40º da petição de embargos, e bem ainda as conclusões que a embargante daí pretende retirar, porquanto as mesmas são desprovidas de qualquer sentido”.
Importa assim apurar se com tal impugnação, a embargada satisfez ou não o ónus da impugnação especificada.
Embora a actual redacção do artigo 490º do CPC, na redacção dada pelo Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 não faça referência a tal forma de impugnação, ao contrário da anterior redacção, introduzida pelo artigo 1º do Dec-Lei nº 242/85 de 9/7 que, permitia no seu nº 5 que a impugnação se fizesse, «total ou parcialmente, por simples menção dos números dos artigos da petição inicial em que se narram os factos contestados», tem sido jurisprudencialmente entendido que, continua a ser válida a impugnação feita por simples menção dos artigos da petição inicial em que se narram os factos contestados, uma vez que a intenção do legislador, como se refere no preâmbulo daquele Dec-Lei, foi a de maleabilizar o ónus de impugnação especificada.
A esse respeito, pronunciou-se o Ac. STJ de 14-12-2004, in www.dgsi.pt/jstj, do seguinte modo:
Sumário: 1 - Após a reforma do Código de Processo Civil que entrou em vigor em 1.1.97 a impugnação, pelo réu, dos factos articulados na petição inicial não tem que fazer-se, como dantes, facto por facto, individualizadamente, de modo rígido; pode ser genérica.
2 - E tendo sido eliminado, por outro lado, o ónus de impugnação especificada, é de concluir que a contestação por negação deixou em princípio de ser proibida.
O ónus da impugnação especificada satisfaz-se, assim, com a simples negação da verdade dos factos articulados, desde que estes se concretizem, ainda que só pela menção dos números dos artigos da petição inicial em que os mesmos foram alegados.
No caso concreto, a embargante satisfez tal ónus de impugnação especificada.
Assim, haveria que levar ao probatório tal factualidade, escolhendo a versão, positiva ou negativa, em adequação ao respectivo ónus probatório.
No caso concreto o ónus probatório incumbe à embargada pelo que a versão da entrega do exemplar à embargante no momento da celebração do contrato, haverá de ser feita pela positiva.
Estando o ónus de impugnação especificada satisfeito e equivalendo este ao ónus de alegação, terá que ser dada à parte a possibilidade de o provar.
A 1ª Instância, salvo o devido respeito, confundiu o ónus de alegação e de impugnação com o ónus da prova, ao fundamentar “(a embargada) apenas impugnou a factualidade alegada pela embargante. Ora, a embargada tinha a obrigação de alegar que entregou um exemplar do contrato ao consumidor no momento da respectiva assinatura. Assim, verifica-se uma ausência de prova relativamente àquele dever” (sublinhado nosso).
O ónus de alegação reporta-se à descrição dos factos ou a sua impugnação, em sede de articulados, o ónus da prova, à sua comprovação ulterior em julgamento, e por isso, só poderá ser exercido nesta fase.
Uma vez que a embargada satisfez o ónus de impugnação especificada, tal facto – entrega do exemplar do contrato no momento da assinatura - deverá ser sujeito a probatório.
Procedem pois, as conclusões da Apelante.
IV
Face ao exposto, na procedência da apelação, acorda-se em anular a sentença recorrida para que seja elaborada uma base instrutória, com selecção dos factos, alegados e impugnados, com vista a permitir à embargada a prova da impugnação feita.

Custas pela Apelada.

Porto, 4 de Dezembro de 2006
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto