Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0355846
Nº Convencional: JTRP00037044
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
PRÉDIO RÚSTICO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
DEPÓSITO DO PREÇO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RP200406280355846
Data do Acordão: 06/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - O depósito do preço devido, no prazo estabelecido no artigo 1410 n.1 do Código Civil, é condição de procedência da acção de preferência.
II - Tendo tal acção sido proposta, em 11 de Julho de 1997, já na vigência do artigo 1410 n.1 do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.68/96, de 31 de Maio (que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997), mas tendo a preferência por fonte um contrato de compra e venda anterior à data da entrada em vigor deste diploma, deve aplicar-se a lei nova.
III - Assim, sob pena de caducidade do direito, os Autores/preferentes deveriam ter efectuado o depósito do preço nos quinze dias seguintes à propositura da acção.
IV - Findando tal prazo em férias judiciais do Verão, o preço poderia ter sido depositado no primeiro dia útil após o seu término.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de ............., B................ e esposa C.............. instauraram contra D............... e esposa E................ e F................ e esposa Estrela G.............. acção declarativa, com processo sumário (distribuída sob o n.º .../.., da ..ª Secção), pedindo que:
a)Seja reconhecido aos AA o direito de preferência na compra e venda do prédio rústico n.º ... da freguesia de ..................;
b)Havendo para si o prédio vendido pelo preço declarado na escritura;
c)Seja ordenada a substituição dos RR adquirentes pelos AA na escritura pública de compra e venda apresentada sob o doc. 2.
Os Réus contestaram, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Os Autores vieram ampliar o pedido, nos termos do disposto no art. 273, n.º 2 do CPC, pedindo que seja ordenado o cancelamento do registo feito com base na escritura pública de compra e venda celebrada entre o Réu comprador e os Réus vendedores (ampliação que foi admitida por despacho de fls. 89 e 90).
Foi proferido saneador sentença, em que se julgou a acção improcedente, absolvendo-se os Réus (só por lapso, certamente, se não acrescentou “do pedido”). Em custas condenaram-se os Autores.
Os Autores apelaram para esta Relação, concluindo a sua alegação de recurso, deste modo:
1.O direito de preferência nasce no acto de comunicação legal e morre, por caducidade, passados os oito dias se o preferente deixar passar o prazo sem resposta, ou, caso não haja comunicação legal, nasce no acto de celebração da escritura pública de compra e venda de imóvel e caduca seis meses após a data do conhecimento do contrato e seus elementos essenciais e tem eficácia “ex tunc”, pelo que a sentença em recurso viola os arts. 416 e ss. do CPC e bem assim o art. 18 do DL 384/88, de 25.10.
2.A sentença viola ainda o art. 419, n.º 1 in fine do CC, porquanto nenhum dos outros confinantes quis ou manifestou vontade de preferir, pelo que o exercício do direito de preferência por banda dos AA é independente e autónomo e, desta forma, tem suporte legal.
3.Definidas as posições das partes há que analisar os factos alegados, submetê-los a julgamento e apreciar a bondade dos mesmos de forma a cumprir a lei, pelo que a sentença violou, frontalmente, os arts. 3.º, o princípio do pedido e do contraditório, 3.º-A, ou seja, violou o princípio da igualdade das partes, art. 510, n.º 1 al. b), porquanto o estado do processo não permitia nem permite conhecer do pedido e ainda o art. 668, n.º 1 al. b) e d) do CPC, porquanto a Sr.ª Juiz não apreciou os argumentos dos AA e não extraiu dos mesmos as óbvias ilações.
Nas contra-alegações, os RR pugnaram pelo improvimento do recurso.
Pelo processo apenso (n.º .../.., da ..ª Secção), do mesmo Tribunal, B............. e esposa C............... (os mesmos autores da acção proposta em primeiro lugar) instauraram acção declarativa, na forma sumária, contra H................ e esposa I............... e F............... e esposa G.................. (os segundos, também réus da outra acção) pedindo que:
a)Seja reconhecido aos AA o direito de preferência na compra e venda do prédio rústico ... da freguesia de ..................;
b)Seja reconhecido aos AA o direito de haverem para si o prédio vendido pelo preço de 800.000$00, preço declarado na escritura;
c)Seja ordenada a substituição dos RR adquirentes pelos AA na escritura pública, apenas quanto ao mencionado prédio;
d)Seja reconhecida aos AA a isenção do pagamento do imposto de sisa e ordenada a sua restituição aos RR adquirentes.
Os Réus contestaram, concluindo pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção caso haja procedência da acção.
Houve resposta.
Os Autores requereram a ampliação do pedido, pedindo que seja ordenado o cancelamento do registo feito a favor dos Réus adquirentes (ampliação admitida por despacho de fls. 52).
No saneador, foi declarada procedente a excepção de caducidade invocada pelos Réus, absolvendo-se os mesmos do pedido. Em custas, condenaram-se os Autores.
Os Autores apelaram, concluindo:
1.Em acção de preferência, é tempestivo o depósito do preço e outras despesas efectuadas pelo preferente a favor do adquirente no contrato de compra e venda desde que feito antes da citação dos RR, pelo que a sentença violou a letra e espírito do art. 1410 do CC.
2.Sendo a matéria do art. 1410, na redacção do DL 68/96, de 31 de Maio, de carácter substantivo e tendo entrado este em vigor em 1 de Janeiro de 1997, não pode ser aplicado a uma situação factual ocorrida em 9 de Dezembro de 1996, data do nascimento do direito de preferência ou data da compra e venda, pelo que ao aplicar tal normativo, a sentença violou a letra e espírito dos arts. 12 e 1410 do CC e bem assim as disposições do normativo apontado.
3.A Sr.ª Juiz só deve conhecer da bondade da causa de pedir e pedido quando disponha de todos os dados factuais, documentais e legais que lhe permitam avançar para a sentença com segurança, pelo que a sentença recorrida viola a letra e espírito do art. 510, n.º 1 al. b) do CPC.
Nas contra-alegações, os Réus pugnaram pela improcedência do recurso.
Ambas as acções foram, oportunamente, apensadas por despacho que transitou em julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Os recursos são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrentes das respectivas alegações (arts. 684, n.º 3 e 690, n.º 1 do CPC).
Estamos, como vimos, em face de acções de preferência intentadas pelos mesmos Autores, que, em ambas, fazem derivar a sua preferência da qualidade de proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, em situações de venda de prédios a não proprietários confinantes, nos termos do art. 1380, n.º 1 do CC.
Comecemos pela apelação interposta no processo principal (n.º 155/97):
Considerou-se, na sentença recorrida, que havendo vários prédios confinantes do prédio vendido (o inscrito sob o n.º ... da matriz predial rústica da freguesia de ...............), como os próprios Autores admitem no art. 6.º da petição inicial, incumbia aos Autores alegar que de todos os proprietários confinantes são aqueles que, pela preferência ou pela licitação, obtêm a área que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
Que não o tendo alegado (nem sequer que os restantes proprietários confinantes não pretendem preferir) também já não o podem provar, sendo a consequência disso a improcedência da acção.
Sustentam os Autores, no recurso, o seu direito de preferência, afirmando, ainda, que o estado do processo não permite conhecer do pedido, devendo o mesmo prosseguir os seus termos.
A questão fundamental que se coloca é, assim, a de saber se, na acção destinada a exercer o direito legal de preferência, conferido pelo art. 1380, n.º 1 do CC, sendo vários os proprietários com direito de preferência, compete ao autor alegar ser ele o proprietário que, pela preferência, obtém a área que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
É que, conforme se estabelece no art. 1380, n.º 2 do CC, sendo vários os proprietários com direito de preferência, cabe este direito:
a)No caso de alienação de prédio encravado, ao proprietário que estiver onerado com a servidão de passagem.
b)Nos outros casos, ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
Ora, sobre a matéria, julgamos ser a melhor doutrina a defendida pelo Prof. Antunes Varela, na RLJ Ano 115, p. 282 e ss., onde, a dado passo, se escreve o seguinte:
“Pelo que respeita ao direito potestativo de preferência, no caso sub iudice, para haver legitimidade do lado activo, ou seja, como autor, basta que o requerente seja, nos termos do artigo 1380, 1, do Código Civil, proprietário do terreno confinante do prédio rústico alienado.
Não é preciso provar, nem sequer alegar, ao contrário do que parece depreender-se da leitura do acórdão, que o requerente seja dono do prédio cuja área, pelo exercício da preferência, mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
Esse é um factor ou elemento que interessa, não à legitimidade das partes nem à procedência da acção instaurada pelo preferente contra o adquirente (e o alienante), mas à procedência da acção instaurada por um dos preferentes contra outro ou outros preferentes”. [Veja-se, ainda, RLJ Ano 116, p.282]/[Em sentido diverso, decidiu o Ac. da RP de 6/2/1976, publicado na CJ Ano 1976, Tomo I, p. 96, com este Sumário:
“Havendo vários proprietários confinantes do prédio vendido e em relação ao qual se pretende exercer o direito de preferência não basta alegar que se é proprietário confinante daquele, mas tem de se fazer a prova de que de todos os proprietários confinantes é aquele que, pela preferência ou pela licitação, no caso de igualdade de circunstâncias, obtém a área que mais de aproxima da unidade de cultura fixada para a respectiva zona. Isto porque cada um dos concorrentes preferentes é titular de um direito de preferência autónomo e distinto, em vez de um direito pertencente em comum, a vários interessados. O que há verdadeiramente é direito iguais e concorrentes”]
De acordo com o entendimento que perfilhamos, não podia, portanto, a acção ter sido julgada improcedente, no saneador, como foi.
Sendo controvertida entre as partes a matéria de facto atinente à caducidade da acção de preferência (v. arts. 13 e ss. da petição inicial, impugnados na contestação), impõe-se que o processo prossiga, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, nos termos do preceituado no art. 511 do CPC.
Passemos à apelação interposta no processo apenso (n.º .../..):
Considerou-se, na decisão recorrida, que tendo a acção sido proposta em 11 de Julho de 1997, o depósito do preço devido devia ter sido efectuado até 28 de Julho de 1997 (dado que o dia 26 era um sábado), ou seja, nos 15 dias seguintes à propositura da acção, conforme dispõe o art. 1410, n.º 1 do CC, não se suspendendo em férias judiciais, por ser um prazo de natureza substantiva.
Tendo sido tal depósito do preço efectuado em 26 de Setembro de 1997, caducou o direito de preferência que os Autores pretendiam exercer.
Pelo que, se declarou procedente a excepção da caducidade invocada na contestação, absolvendo-se os Réus do pedido.
Defendem os Autores, no recurso, que o depósito do preço devido foi efectuado em tempo, por ter sido feito antes da citação dos Réus, tendo a decisão recorrida violado a letra e o espírito do art. 1410, n.º 1 do CC (redacção actual).
Mais: a tempestividade do depósito do preço efectuado sempre resultaria do disposto no art. 1410, n.º 1 do CC, na redacção anterior, (a actual é a que lhe foi dada pelo DL n.º 68/96, de 31/05), já que estando em causa um prazo de natureza substantiva, seria aquela a aplicável ao caso sub judice.
Vejamos.
Antes de mais, qual a lei aplicável ao caso (o problema é de aplicação da lei no tempo).
Tendo a acção de preferência sido proposta em 11 de Julho de 1997, já na vigência do art. 1410, n.º 1 do CC, na redacção dada pelo DL n.º 68/96, de 31 de Maio (que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997), mas tendo a preferência por fonte um contrato anterior à data da entrada em vigor deste diploma (a compra e venda alegadamente realizada em violação da preferência é de 9 de Dezembro de 1996), deve aplicar-se a lei nova ou a lei antiga, no que se refere ao prazo do depósito do preço devido pelo preferente?
Na verdade, o regime é diferente, conforme for uma ou outra a lei aplicável.
Enquanto a lei actual manda que o depósito do preço devido seja efectuado nos quinze dias seguintes à propositura da acção, a lei antiga determinava que esse depósito fosse efectuado nos oito dias seguintes ao despacho de citação dos réus.
Segundo pensamos, a lei aplicável é a actual.
Embora seja princípio aceite, na doutrina e na jurisprudência, que o reconhecimento judicial do direito de preferência retroage os seus efeitos ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc, [RLJ n.º 3435, p. 468 e ss.] já a qualidade de titular do direito de preferência deve ser aferida em relação à data em que o mesmo é exercido, por ser esta a solução que resulta da segunda parte do n.º 2 do art. 12 do CC (“mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”). [Decidiu-se no Ac. do STJ de 20 de Maio de 1975, publicado no BMJ n.º 247, p. 155, que “Nos termos da segunda parte do n.º 2 do artigo 12 do Código Civil de 1996, à acção proposta para o exercício do direito de preferência aplicam-se as disposições contidas nesse Código, embora a preferência tenha a fonte num contrato anterior à data da sua entrada em vigor” (ponto I do respectivo Sumário)]
Não parece, de facto, haver dúvidas de que o depósito do preço devido, no prazo estabelecido no art. 1410, n.º 1 do CC, é condição de procedência da acção de preferência. [Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, p. 232.
Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, em Notas ao Código Civil, vol. V, p. 178, refere-se ao depósito do preço, na acção de preferência, como elemento constitutivo do direito de preferência. Também, entre outros, os Acs. da RC de 8 de Maio de 1979 e de 13 de Abril de 1999, in respectivamente, CJ Ano 1979, Tomo 3, p. 972 e BMJ 486-370.
Segundo Mário Júlio de Almeida Costa, em artigo critico publicado na RLJ Ano 129, p. 194 e ss., tal como se encontra estabelecido, o depósito do preço constitui um pressuposto da apreciação do pedido formulado na acção de preferência.]
Segundo defendem os Autores, desde que o depósito do preço fosse efectuado antes da citação dos Réus (como, no caso, aconteceu), a sua tempestividade não poderia ser negada.
Em nosso entender, porém, tal interpretação (da parte final do n.º 1 do art. 1410 do CC, na sua actual redacção), é indefensável, desde logo, porque não tem o mínimo suporte na letra da lei, já que, nos termos do normativo citado, se exige que o preferente “deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção”.
Obedeceu, como se sabe, a alteração legislativa introduzida pelo DL n.º 68/96, de 31 de Maio, à necessidade de adaptar a parte final do n.º 1 do art. 1410 do Código Civil à eliminação genérica do despacho liminar, pela reforma do Código de Processo Civil de 1995/1996.
Dito isto. Como tem sido pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o prazo de 15 dias para depósito do preço necessário ao exercício do direito de preferência, a que alude o art. 1410, n.º 1 do CC, é um prazo de caducidade, de natureza substantiva, correndo a seguir à propositura da acção. [v., por exemplo, Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., p. 323; Ac. da RL de 22 de Outubro de 1992, CJ XVII, Tomo IV, p. 180; Ac. do STJ de 30 de Janeiro de 2001, CJ Acs. do STJ, Ano IX, p. 84]
A sua contagem efectua-se nos termos das disposições conjugadas dos arts. 296 e 279 do CC.
Daqui resulta, no nosso caso, que o terminus do prazo do depósito do preço (que se iniciou em 12 de Julho de 1997), se transferiu, de acordo com o disposto na parte final da alínea e) do art. 279 do CC, para o primeiro dia útil após férias judiciais.
Tendo sido efectuado tal depósito do preço em 26 de Setembro de 1997, foi intempestivo, o que conduz à caducidade da acção de preferência, como se decidiu na 1.ª instância.
Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em:
_ Julgar procedente a apelação interposta do despacho saneador proferido no processo principal, revogando a decisão recorrida e determinando que o processo prossiga os seus termos, com a selecção dos factos assentes e a organização da base instrutória;
_ Julgar improcedente a apelação interposta do despacho saneador proferido no processo apenso, confirmando a decisão recorrida;
Custas pela parte vencida (em ambos os processos e instâncias).
Porto, 28 de Junho de 2004
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues