Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0230570
Nº Convencional: JTRP00034443
Relator: SALEIRO DE ABREU
Descritores: DANO
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200205020230570
Data do Acordão: 05/02/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 835/00-3S
Data Dec. Recorrida: 10/12/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ART566 N1.
Sumário: O lesado por danos materiais num veículo automóvel, proveniente de acidente de viação só seria ressarcido do prejuízo que teve, com o pagamento do valor comercial do veículo, deduzido do valor dos salvados, se se tivesse demonstrado que poderia adquirir no mercado um veículo em tudo idêntico ao acidentado, por preço igual ao apurado valor comercial do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
Albino ..... intentou, na ... Vara Cível do Porto, a presente acção com processo ordinário destinada a exigir a responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra a Companhia de Seguros, S. A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de esc. 3.662.882$00, acrescida de juros desde a citação, como indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido cerca das 9h30 do dia 7.8.1999, na Via de Cintura Interna, Porto, em que foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula ...-...-..., propriedade do Autor e por ele conduzido, e o veículo comercial ligeiro de matrícula ...-...-..., conduzido por Luís Miguel ..... .
Alegou, em síntese, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do IH; que, em consequência do acidente, o automóvel do A. sofreu diversos danos, cuja reparação importou em esc. 2.583.882$00; que, com a paralisação do veículo, teve um prejuízo de esc. 1.079.000$00; e que a responsabilidade civil por danos causados pelo IH encontrava-se transferida para a Ré.
A R. contestou, impugnando a existência do acidente.
Houve réplica.
Proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto tida por assente e elaborada a base instrutória, o processo seguiu a sua normal tramitação, tendo, a final, sido proferida sentença condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de esc. 2.583.882$00, acrescida de juros de mora à taxa de 7% desde a citação, e absolvendo-a do mais peticionado.
Inconformados, apelaram quer a Ré, quer o Autor.
A Ré rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O autor não mandou reparar o seu veículo, nem pediu a condenação da ré a mandar repará-lo;
2. Nem essa reparação se justificaria, por sendo de apenas 600 contos o valor dos “salvados” do veículo do autor após o acidente, a sua reparação ter sido orçamentada em 2.583.882$00,
3. E por ser de apenas 1.200 contos a diferença entre o valor comercial do veículo do autor antes e depois do acidente;
4. Além de excessivamente onerosa e de técnica e economicamente injustificável, nomeadamente em face do princípio estabelecido no artº I6º do D.L. 2/98, não vir minimamente demonstrado que só a reparação in natura do veículo do autor o reporia na sua situação económica anterior ao acidente;
5. Ante a desmesurada diferença de valores, de mais de 2.500 contos para a reparação e 600 contos dos "salvados", o bom senso, a justiça e a equidade mandam se opte pela solução que, reparando o autor dos danos sofridos com a perda do seu veículo, é a menos onerosa para quem tem a obrigação de indemnizar.
6. É o que resulta do disposto nos arts 562° e 566° do CCivil e do princípio de que a obrigação de indemnização não pode ser fonte de enriquecimento, o que decorreria da douta sentença recorrida, ao proporcionar ao autor um valor comercial muito superior ao do seu veículo antes do acidente, ou seja os 2.583.882$ + os 600 contos dos "salvados";
7. Disposições que a douta sentença recorrida violou.
Pede que a Ré seja condenada a pagar apenas uma indemnização de esc. 1.200.000$00.
Por sua vez, o Autor, nas conclusões da alegação do respectivo recurso, defende que deve condenar-se a Ré em importância a liquidar em execução de sentença no tocante aos danos com o aluguer de um veículo de substituição.
Autor e Ré, enquanto apelados, pugnam pela improcedência do recurso da contra-parte.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II.
Não tendo sido impugnada a matéria de facto, nem havendo lugar à sua alteração, dão-se aqui como reproduzidos os factos considerados provados na sentença recorrida, para a qual se remete, nos termos do art. 713º, nº 6 do CPC.
III.
Apelação da Ré:
Como se disse supra, a Ré foi condenada a pagar ao A. a quantia de esc. 2.583.882$00, importância orçamentada para a reparação do seu veículo.
A questão que neste recurso se coloca é a de saber se o custo dessa reparação se apresenta como excessivamente oneroso para a R., tendo em conta o valor comercial do veículo e o dos “salvados”.
Vejamos:
O princípio geral que preside à obrigação de indemnizar é o da restauração ou reposição natural, ou seja, o de que a reparação de um dano deve reconstituir a situação que existiria se não tivesse havido a lesão (art. 562º do CC).
Como escrevem P. de Lima e A. Varela, CC anotado, 2ª ed., pág. 506, "o fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes". Assim, "se o dano (real) consistiu na destruição (...) de certa coisa (veículo, ...) ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação ou substituição da coisa por conta do agente".
Aquele princípio só é substituído ou completado pela indemnização em dinheiro, nos termos do art. 566º, nº 1, em três situações taxativas: quando for impossível a restauração natural, quando esta não reparar integralmente os danos ou quando a restauração in natura for excessivamente onerosa para o devedor.
Previsão legal que, segundo Teles Menezes Leitão, Obrigações, I, 352/353, "deve ser interpretada restritivamente sob pena de se pôr em causa o direito do lesado a dispor do seu património".
Como exemplo, escreve este autor que, no caso de danos em automóvel e pretendendo o lesado continuar a usá-lo, "não faria sentido autorizar-se o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro".
A regra é, portanto, a reparação natural. A indemnização em dinheiro é subsidiária, ou excepção, pois só tem cabimento nos casos de impossibilidade ou insuficiência da reconstituição natural ou da sua excessiva onerosidade para o devedor.
A restauração natural é excessivamente onerosa para o devedor e, por isso, meio impróprio ou inadequado, “quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável” (P. de Lima e A. Varela, ob. e loc. citados).
No caso sub judice, ficou provado que, na data do acidente, o valor comercial do veículo do Autor era de esc. 1.800.000$00; sofreu danos cuja reparação foi orçamentada em esc. 2.583.882$00; e o valor dos “salvados” é de cerca de esc. 600.000$00.
Ora, no quadro fáctico em análise, se pode considerar-se que a restauração é onerosa, já não pode dizer-se que há um excesso exagerado, desmesurado ou desproporcionado relativamente o valor do veículo.
Acresce que, na ponderação desta questão, deve ter-se em conta não só a diferença entre o valor venal da viatura e o custo da reparação, mas também o seu valor de uso.
Como se escreveu no Ac. do STJ, de 16.11.2000, CJ/STJ, 2000, III, 124, o valor de um veículo automóvel, para efeitos de determinação da “excessiva onerosidade”, se mede cumulativamente pelo seu valor de mercado e “pelo valor que tem o uso que o seu proprietário extrai dele, e que se computa pelo facto de o proprietário ter à sua disposição um automóvel que usa, de que dispõe, de que disfruta, e que a mera consideração do valor venal “tout court” sonega, elimina ou omite”.
O veículo do A. podia satisfazer as necessidades deste, enquanto que a quantia correspondente ao seu valor comercial pode não conduzir à satisfação de tais necessidades.
Dir-se-á ainda que, e como é sabido, o “valor comercial” de um veículo é um valor que muitas vezes não corresponde ao valor real do mesmo, e designadamente ao preço que um comprador final terá de pagar pela sua aquisição.
O A. só sairia ressarcido do prejuízo que teve, com o pagamento do valor comercial do veículo, deduzido do valor dos salvados, se se tivesse demonstrado que poderia adquirir no mercado um veículo em tudo idêntico ao acidentado, por preço igual ao apurado valor comercial do mesmo (vd. Acs. do STJ, de 7.7.99, CJ/STJ, III, 16 e da RE, de 26.4.2001, CJ, 2001, V, 262) . Factualidade essa que a Ré nem sequer alegou.
Não há, pois, uma onerosidade excessiva da restauração natural.
Deste modo, não cumprindo a Ré a sua obrigação primeira de reparar, impõe-se que pague ao A. a quantia necessária para que possa ele ordenar a reparação, sendo certo que nada há que permita afirmar que ela não vai proceder.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso da Ré.
IV.
Recurso do Autor:
O A. peticionou o pagamento da quantia de esc. 1.079.000$00 por alegado custo do aluguer de um veículo em substituição do sinistrado durante 24 dias (quase 45 contos por dia !).
Tal pretensão foi julgada improcedente porque – escreveu-se na sentença- “o Autor não logrou provar que o custo do aluguer de tal veículo tivesse ascendido a 1.079.000$00 e que o tivesse vindo a pagar”.
Entende o A./recorrente, porém, que deve relegar-se para execução de sentença a liquidação desse dano.
Terá razão?
Como dispõe o art. 564º, nº 1 do CC, o dever de indemnizar compreende todos os prejuízos causados.
A matéria de facto que vem provada evidencia que, em consequência dos danos sofridos pelo veículo do A., este ficou privado da sua utilização.
Tal privação consubstancia, em princípio, um dano, pois que o veículo deixa de proporcionar ao lesado o proveito consequente da sua utilização. Por isso, recai sobre o responsável a obrigação de suportar as despesas ou prejuízos decorrentes dessa privação ou mesmo, se necessário, proporcionar ao lesado um veículo de substituição.
Mas, se é certo que muitas vezes a vida pessoal, familiar ou profissional deste justificam ou mesmo exigem ter ao seu dispor um veículo, há que reconhecer que nem sempre tal sucederá.
Assim sendo, só em caso de manifesta necessidade se justificará o aluguer de um veículo para substituição temporária do acidentado. Terá de verificar-se um nexo causal entre o acidente e o aluguer de um veículo de substituição. O facto de se ficar privado do uso de um veículo em consequência de acidente não confere, sem mais, automaticamente, o direito ao aluguer de um outro em sua substituição. Não existirá tal direito se, v.g., só esporadicamente se usar o veículo.
Ora, no caso em apreço, o A. não alegou minimamente qual a concreta afectação que dava ao seu veículo, nem as razões que determinaram o aluguer de um outro, mormente durante o referido período de 24 dias (porquê durante esse período - pergunta-se - e não durante todo o demais tempo de paralisação do seu automóvel?).
Só perante a alegação e prova da factualidade pertinente seria possível concluir ou não pela justeza ou necessidade do aluguer, ou seja, pela verificação de um verdadeiro dano, como consequência adequada do acidente.
Assim sendo, não estando em causa apenas a fixação do quantum indemnizatório decorrente de um dano por que a Ré seja responsável, não há fundamento para o recurso ao disposto ao nº 2 do art. 661º do CPC.
Improcedem, por isso, as conclusões da apelação do A.
V.
Nestes termos, julgam-se improcedentes ambos os recursos, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Porto, 2 de Maio de 2002
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo