Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0753563
Nº Convencional: JTRP00040818
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CONTRATO DE ALUGUER DE VEÍCULO DE LONGA DURAÇÃO
Nº do Documento: RP200712030753563
Data do Acordão: 12/03/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 321 - FLS 170.
Área Temática: .
Sumário: Resolvido o contrato de aluguer de veículo de longa duração, são requisitos da providência cautelar subsequente para entrega da viatura os seguintes: a resolução do contrato e a não entrega do bem objecto do contrato de locação. O fundado receio de lesão dificilmente reparável a que alude o n.º 1 do art. 381.º do CPC não é aqui exigível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

A sociedade “B………., SA”, veio intentar a presente providência cautelar não especificada contra C………., pedindo que fosse ordenada, sem prévia audiência do requerido, a apreensão e entrega imediata à requerente do veículo automóvel da marca “Mitsubishi”, modelo ………. .
Alegou em fundamento que tendo celebrado com o requerido um contrato de aluguer de veículo de longa duração relativo ao veículo em causa com o início em 30.09.02 e o prazo de 60 meses, tendo aquele pago apenas parcialmente a prestação vencida em 05.08.05 e deixado de o fazer quanto àquelas vencidas posteriormente, veio a resolver esse mesmo contrato, sem que tivesse sido devolvido o veículo, chaves e documentos, encontrando-se por isso ilegitimamente em poder do requerido provocando a sua desvalorização e impedindo que promova contactos com interessados na sua aquisição, tendo deixado de pagar os respectivos prémios de seguro.
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Depois de ser declarada através do despacho de fls 41/42 a incompetência em razão do território do Tribunal Cível de Lisboa, foram remetidos os presentes autos ao Tribunal de Ovar, onde, pelo despacho proferido a fls 50 foi ordenada a citação do requerido.
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Designada audiência para inquirição das testemunhas e ouvida a única aí ouvida, foram dados como provados os seguintes factos;
1°. Em 30 de Setembro de 2002, a ora Requerente celebrou com o locatário, ora Requerido, um contrato de aluguer de veiculo automóvel sem condutor, no ………....., através do qual locou a esta um veículo de marca MITSUBISHI, modelo ………., com matrícula ..-..-UO.
2°. Contra o pagamento pelo locatário, ora Requerido, de 60 alugueres mensais, sendo o primeiro no valor de € 3.942, 01 (IVA incluído), e os restantes, no valor de 224,51 € (IVA incluído), cada um.
3°. O prazo do contrato foi de 60 meses, com início em 30-09-2002 e termo em 29-09-2007.
4°. Atento o lapso de tempo entretanto decorrido, e o facto de o veículo, identificado no artº 1º, corresponder a um bem de desvalorização acentuada, verifica-se que o seu valor actual não excede 8.858,00 €.
5°. A sociedade locadora, ora Requerente, efectuou a compra e procedeu ao pagamento do respectivo veículo.
6°. Por força do acordo referido, estabelecido entre requerente e requerido, a Requerente obrigou-se a alugar, sem condutor, o veiculo automóvel identificado no anterior artigo 1º.
7°. Assim, a Requerente pôs esse mesmo veículo à disposição do Requerido, que o passou a utilizar.
8º. O requerido obrigou-se a pagar à Requerente o valor dos alugueres mensais até final do prazo estabelecido no contrato.
9°. O Requerido, apenas pagou parcialmente o aluguer que se venceu em 05-08-2005, não tendo pago os que posteriormente se venceram.
10°. Nessa sequência a requerente enviou ao requerido a carta junta aos autos a fls. 31 e 32, em 04.08.2006, cujo teor se dá aqui por reproduzido, que não foi recebida pelo requerido.
11°. O veículo não foi restituído à requerente.
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Foi então proferida decisão que por considerar não ter havido resolução eficaz do contrato celebrado entre requerente e requerido, e não estar configurada a probabilidade quanto à existência do direito, o primeiro requisito para que fosse decretada a providência cautelar pedida, indeferiu-a.
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Inconformada, a requerente deduziu o presente agravo sobre tal decisão, referindo em sede de conclusões,
a) a agravante é a única proprietária do veículo automóvel objecto do contrato junto aos autos;
b) o requerido obrigou-se a efectuar o pagamento de um determinado número de alugueres;
c) o requerido não cumpriu pontualmente o contrato junto aos autos, pois deixou de efectuar o pagamento dos alugueres previstos contratualmente;
d) a agravante enviou, em 08-04-2006, ao requerido carta registada, com aviso de recepção, a comunicar a resolução do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor junto aos autos;
e) no entanto, tal carta foi devolvida à ora agravante com indicação de “não reclamada”;
f) a carta de resolução enviada pela ora agravante foi enviada para a morada indicada pelo locatário no contrato de aluguer junto aos autos;
g) o locatário não comunicou qualquer alteração de morada à ora agravante;
h) é, pois, manifesto que, o locatário não recebeu a carta de resolução porque não quis.
i) uma vez que, a mesma foi devolvida à ora agravante com a menção de “não reclamada”.
j) face ao exposto, a declaração de resolução enviada pelo ora agravante, apesar de não ter sido recebida pelo locatário, por culpa deste, pois foi avisado para reclamar a carta, é eficaz;
l) dado que, a ora agravante remeteu a carta ao locatário e colocou-a em condições de este a receber e conhecer o seu conteúdo, o facto de este não a ter reclamado apenas a si próprio pode ser imputável- Art. 224º do Código Civil;
m) é, pois, manifesto que, a agravante resolveu validamente o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor junto aos autos;
n) existindo fundamento para a ora agravante instaurar a providência cautelar não especificada;
o) deve ser revogada a douta decisão recorrida, ordenando-se a entrega à ora agravante do veículo alugado,
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A fls 115 foi ordenada a subida dos presentes autos, no qual situamos implicitamente a manutenção do decidido.
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Corridos os vistos legais, cumpre-nos então apreciar e decidir, tendo em atenção que seremos balizados pelas respectivas conclusões das alegações, sem prejuízo naturalmente daquelas outras cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no disposto nos artºs 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, e 690º, todos do CPC (Código de Processo Civil)[1].
A questão colocada através do presente recurso é a de saber se devemos considerar eficaz a resolução do contrato de locação celebrado entre as partes operada através do envio da primeira ao segundo de uma carta registada que veio a ser devolvida por não ter sido reclamada pelo destinatário, ou se a recepção dessa declaração implica o levantamento da carta, a sua aceitação dos serviços postais, sem a qual não há recebimento e consequentemente não pode produzir efeito.
A locação financeira, define o artº 1º do DL nº 149/95 de 24.06, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.
Tendo por objecto um bem móvel, ainda que sujeito a registo, deve ser celebrado por documento particular, e, em caso de incumprimento das obrigações que dele resultam, entre outras, para o locatário, a obrigação de pagar o preço, pode ser resolvido nos termos gerais, de acordo com o disposto nos artºs 3º, 10º, nº 1, e 17º, do DL nº 149/95, sendo os dois primeiros preceitos com a redacção dada pelo DL nº 265/97, de 02.10.
A resolução, prevista no artº 433º do Código Civil, CC, tem lugar quando ocorra um facto posterior à celebração do contrato que vem iludir a legítima expectativa da outra parte e tornaria a sua manutenção uma injustiça, assumindo como no caso vertente a forma de rescisão[2].
Com relevo para a questão vertente, a faculdade concedida ao locador pelo artº 21º, nºs 1 e 4, do mesmo DL nº 149/95 e com a redacção que resulta do DL nº 265/97, se, findo o contrato por resolução o locatário não proceder à restituição do bem locado, poder aquele requerer providência cautelar destinada à sua entrega imediata ao requerente.
Resulta do que fica mencionado que são requisitos da aludida providência cautelar, à qual são subsidiariamente aplicáveis as disposições gerais sobre providências cautelares previstas no Código de Processo Civil por força do nº 8 do artº 21º do diploma referido imediatamente acima, a resolução do contrato e a não entrega do bem objecto do contrato de locação, e não já o fundado receio de lesão dificilmente reparável, pressuposto a que alude o artº 381º, nº 1, daquele diploma[3].
Incidindo agora a nossa atenção sobre a resolução, que deve ter lugar nos termos gerais, através de declaração à outra parte, sem qualquer exigência de forma para a sua validade, tal como preceituam os artºs 436º, nº 1, e 219º do Código Civil, processou-se no caso vertente através do envio pela locadora da carta registada de fls 31/32 para o domicílio do locatário, aquele que consta do próprio contrato, em obediência de resto ao pactuado na cláusula 8ª das condições gerais do contrato de locação, carta essa que tanto quanto podemos alcançar das indicações de ocorrência registadas no verso do respectivo envelope pelos serviços postais, documento que encontra-se a fls 30, foi devolvida por não ter sido reclamada depois de inviabilizada a entrega em mão.
Tanto nos bastaria para considerar devida e eficazmente realizada a comunicação da resolução ao locatário, porquanto sendo uma declaração recipienda, é necessário tão só para produzir efeitos que seja levada até ao outro interessado, o que foi feito, não obstante o locatário não tenha recebido a carta contendo tal declaração, porém e tão só por não o querer fazer, recusando-se reclama-la, vale dizer, não quis tomar conhecimento do seu teor.
Do facto dado como provado no ponto 10 da matéria de facto, que a agravante/requerente enviou ao agravado/requerido a aludida carta junta aos autos a fls. 31/32 em 04.08.2006 que não foi recebida por este último, deve ser entendido com o sentido de que essa mesma carta contendo a declaração de resolução chegou efectivamente ao seu destinatário, que todavia dela se desinteressou, não a querendo mesmo tomar em seu poder, sendo de sublinhar que o registo tem como finalidade essencial permitir a constatação de que a aludida comunicação foi efectivamente enviada e chegou ao seu destinatário, permitindo que este desde então, se assim o quisesse, tomar conhecimento do seu conteúdo, não sendo necessário para que produza os seus efeitos que adopte uma atitude activa e a “receba”, isto é, a tome nas suas mãos, parecendo-nos totalmente infundada a atribuição de relevância à atitude de passividade ou alheamento por parte do destinatário a um ponto tal que inutilize a atitude da remetente.
Aliás, é nesse ponto fulcral atrás enunciado que encontramos o fundamento susceptível de reparo que inquinou irremediavelmente a decisão proferia, quando atribuiu, a nosso ver erroneamente, idêntico significado a recepção/recebimento a que faz apelo o conceito normativo decorrente da exigência de que a declaração resolutiva deve ser recipienda, à apreensão material por parte do destinatário da carta, a sua aceitação dos serviços postais, considerando que apenas com este acontecimento meramente naturalístico poder-se-ia considerar recebida ou recepcionada a declaração resolutiva.
Por outro lado, estando o locatário adstrito por via do princípio da boa fé previsto no artº 762º, nº 2, do CC, a deveres acessórios de conduta e de cooperação, a valorização da atitude de passividade, alheamento e silencio por parte do requerido, nos termos em que o foi na decisão em crise, seria um retrocesso naquilo que tem sido o caminho trilhado pelo legislador em sentido diametralmente oposto, sendo de ressaltar que na interpretação da lei, dispõe o artº 9º, nº 1, do mesmo diploma, deve sobretudo ter-se em conta a unidade do sistema jurídico[4].
Ora, nesse domínio há que atentar no artº 254º, nºs 3 e 4, do CPC, aplicável por força do artº 255º, nº 1, que regula as notificações às partes quando haja domicílio escolhido, e até a evolução do próprio DL nº 269/98, de 01.09, diploma que aprovou o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, posteriormente alterado pelo DL nº 107/95, de 01.07 com referência à alçada da Relação, dispõe no seu artº 2º, com a redacção dada pelo DL nº 383/99, de 23.09, que nos contratos reduzidos a escrito que sejam susceptíveis de desencadear os procedimentos indicados no preceito anterior, podem as partes convencionar o local onde se consideram domiciliadas, para efeito de realização da citação ou notificação em caso de litígio, sendo inoponível qualquer alteração do local convencionado a menos que disso tenha dado conhecimento mediante carta registada com aviso de recepção.
A alteração atrás mencionada foi introduzida por ter sido identificado como um importante factor de bloqueio do procedimento de injunção, podemos ler no respectivo preâmbulo, “o da frustração da notificação postal, pelo seu não levantamento pelos destinatários das cartas registadas expedidas”, e que havendo a fixação pelas partes do domicílio, “daqui decorre que, nos referidos procedimentos, se institua a presunção de citação ou de notificação pessoal em caso de insucesso na segunda tentativa”.
O requerido veio e reproduzir o mesmo comportamento passivo e de silêncio aquando da citação ordenada, o que parece evidenciar que não estamos perante uma mera ocorrência anómala mas sim diante de uma determinada tomada de posição, sendo de ter presente que nos situamos no domínio de uma providência cautelar em que tudo se basta com a mera probabilidade, uma “sumaria cognitio” da situação através de um procedimento simplificado e rápido, exigindo-se apenas a prova que a situação trazida pelo requerente é provável ou verosímel, bastando-se com a aparência desse direito, ou seja, um “fumus boni júris”.
Por último, ainda que não bastasse o que ficou referido, tendo havido citação do locatário/requerido e assumido ele o mesmo procedimento anterior, remetendo-se ao silêncio, tem este como efeitos, diz-nos o artº 385º, nº 5, CPC, os previstos no processo comum de declaração, a confissão dos factos alegados pelo requerente, “os respeitantes à relação de onde emerge o direito invocado e às especiais circunstâncias que justificam o recurso à tutela cautelar”[5].
Tendo portanto havido resolução validamente comunicada, e constatada a recusa do requerido/locatário em entregar o veículo objecto do contrato celebrado com a locadora, estão reunidos os pressupostos para que seja ordenada a entrega desse mesmo veículo como pede aquela segunda.
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Face ao exposto, acordam pois os Juízes que compõem a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o agravo deduzido e, revogando-se em consequência a decisão recorrida, ordena-se a entrega do veículo de marca MITSUBISHI, modelo ………., com matrícula ..-..-UO à agravante.
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Sem custas o presente recurso (artº 456º, 1, do CPC e 2º, nº 1, o), do CCJ).
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Porto, 03 de Dezembro de 2007
Paulo Neto da Silveira Brandão
Maria Isoleta de Almeida Costa
Abílio Sá Gonçalves Costa

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[1] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pg 358 e sgs; Aníbal de Castro, “Impugnação das Decisões Judiciais”, Petrony, 1981, pg 30; Manuel de Oliveira Leal Henriques, “Recursos Em Processo Civil”, Almedina, 1984, pg 28 e sgs Fernando Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª ed., pg 152 e sgs.
[2] Cf. Inocêncio Galvão Teles, “Manual dos Contratos em Greral”, pgs 349 a 354; Carlos Alberto da Mota Pinto “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pgs 476 -478.
[3] Cf. Ac STJ de 01.07.99, Processo nº 99B528, disponível em www.itij.pt
[4] Cf. Jorge Miranda, “Teoria do Estado e da Constituição”, 2002, pgs 626-626; José Oliveira Ascenção “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 2ª ed., pgs 21, 27, 184 e sgs; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. II, 4ª ed., pgs 144-145.
[5] Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, 3º vol. pgs 172-173.