Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634775
Nº Convencional: JTRP00039658
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÕES
Nº do Documento: RP20061026063775
Data do Acordão: 10/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 689 - FLS 109.
Área Temática: .
Sumário: I - A presunção derivada do artº 7º do CRP não garante os limites prediais que constam da descrição, mas tão só o facto jurídico em si.
II - Aquela presunção não funciona em relação aos elementos da descrição sempre que exista desconformidade entre esta e a realidade material do imóvel descrito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Nos autos de falência em que foi declarada falida B………., LDA, estão descritas no auto de apreensão de bens, além de outras, as seguintes verbas:
Verba nº 240: “Prédio urbano, constituído por um edifício destinado à indústria de confecções de cave e rés-do-chão, com 1080 m2 de área coberta e logradouro com 5608 m2, sito no ………. ou ………., descrito na C.R.P. Famalicão sob o nº 22418 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 171, da freguesia de ………., com o valor patrimonial de € 18.056,38”.
Verba nº 241: “Prédio rústico, sito em ………., com a área de 3400 m2, omisso na Conservatória e inscrito na matriz sob o art. 196 da freguesia de ………., com o valor patrimonial de € 265,70”.
A descrição da verba nº 240 corresponde à descrição que consta do registo predial.
Em avaliação posterior, efectuada por perito nomeado pelo tribunal, foi atribuído àquelas verbas o valor de € 258.811,20 e € 16.959,13, respectivamente.
No relatório de avaliação, consta que se mediu a construção da verba nº 240 e teve-se em conta apenas a área desta construção na atribuição do valor à referida verba, não se fazendo referência ao logradouro.
Foi designado o dia 19.02.04 para a venda dos bens imóveis apreendidos, por meio de apresentação de propostas em carta fechada, tendo sido aceite a proposta apresentada pela ora agravante C………., LDA para a verba nº 241, no valor de € 35.000,00.
A agravante depositou o preço e comprovou a liquidação do IMT.
Em 01.03.04, foi proferido despacho a ordenar ao liquidatário judicial a junção da certidão de registo de todos os direitos, ónus e encargos que incidem sobre os imóveis.
Em 29.03.04, o liquidatário judicial juntou aos autos um relatório elaborado por uma advogada, no qual se conclui que o artigo rústico 196º (verba nº 241 do auto de apreensão) é parte do logradouro do prédio urbano que constitui a verba nº 240 do auto de apreensão.
Com o referido relatório foi junto um levantamento topográfico, segundo o qual a área total do terreno das duas verbas é de 6185,00 m2, sendo a área coberta de 1568,00 m2 e a área descoberta de 4617,00 m2.
Em 08.04.04, o liquidatário judicial procedeu à rectificação do auto de apreensão de bens, eliminando a verba nº 241 e mantendo a verba nº 240.
Na sequência daquela rectificação, foi proferido despacho em 05.07.04, anulando o auto de abertura de propostas de 19.02.04.
A ora agravante recorreu desse despacho, que veio a ser revogado, com o fundamento de não ter sido cumprido o contraditório.
Ouvida a ora agravante, veio esta opôr-se à rectificação do auto de apreensão.
Em 17.05.06, foi proferido o seguinte despacho:
“A verba nº 240, apreendida para a massa falida, e que corresponde a um prédio inscrito e descrito na CRP, é constituída por um edifício destinado à indústria de confecções de cave e rés-do-chão, com 1080 m2 de área coberta e logradouro com 5608 m2, sito no ………. ou ………., descrito na Conservatória do registo predial nº 22.418.
A verba nº 241, que alegadamente corresponderia a um prédio rústico, corresponde sim ao logradouro do prédio da verba nº 240. Logo não havia lugar a nova apreensão do mesmo terreno. Pouco importa que exista um muro a separar os edifícios de parte ou da totalidade do logradouro. Se a verba nº 240 correspondia à totalidade do imóvel a verba nº 241 é excedentária, inexistente, nula e de nenhum efeito. Ora a proponente, C………., Ldª, em parte alguma refere que para além do logradouro da verba nº 240, com 5608 m2, exista ainda mais 3400 m2 de terreno. Não o diz nem o pode dizer porque sabe muito bem que esse artigo matricial rústico (criado pelas Finanças, ali e noutros locais desta Comarca, em todos os casos em que existia ao lado de um edifício, uns metros quadrados de terreno sem construções) corresponde ao logradouro do prédio urbano (verba nº 240) e integra a respectiva descrição parcial, acima transcrita.
Consequentemente houve um evidente erro no objecto anunciado ara venda, que no caso concreto da verba nº 241, nem sequer existe. Há apenas um prédio não dois prédios e o que existe e está devidamente descrito na Conservatória do Registo Predial corresponde à verba nº 240 (verba que não obteve qualquer proposta).
Pelo exposto anula-se o auto de apreensão no tocante à verba nº 241, que carece de objecto e, por isso, se elimina. Consequentemente anulam-se igualmente todos os actos posteriormente praticados nos autos que se mostrem afectados por essa nulidade, nomeadamente o acto e abertura e aceitação de propostas de 19/02/2004, a fls. 72, pois os anúncios e editais integram essa verba eliminada e a proposta aceite respeita a essa mesma verba, que se eliminou”.

Inconformada, a proponente C………., Ldª recorreu, formulando as seguintes

Conclusões
1ª - A agravante adquiriu o prédio rústico dos autos, pagando o respectivo preço e o correspondente Imposto sobre as Transmissões Imobiliárias.
2ª – Verifica-se que, nos próprios autos, é incontroverso e verdadeiro que o prédio vendido à agravante (também) tem existência física, estando separado fisicamente por um muro do prédio urbano que também integra o activo da massa falida.
3ª – O exercício do contraditório que o Tribunal agravado não tinha permitido à agravante (e que só o fez depois desta Veneranda Relação lho ter ordenado por Douto Acórdão proferido em agravo interposto pela aqui agravante) constitui infelizmente o cumprimento de uma mera formalidade que em nada alterou a Douta Decisão que já tinha sido tomada antes do exercício do contraditório.
4ª – A anulação da venda judicial dos autos foi feita apenas com base em elementos insuficientes para o efeito, tendo o liquidatário, unilateralmente e sem qualquer comunicação prévia ou pedido de autorização ao Tribunal ou à Comissão de Credores, decidido anular o artigo matricial em que o prédio rústico adquirido pela agravante estava inscrito.
5ª – Essa anulação de artigo matricial foi feita pelo liquidatário na sequência da ordem que o Tribunal agravado lhe tinha transmitido para registar na Conservatória do Registo predial a apreensão dos bens imóveis a favor da massa falida e nunca para anular aquele artigo matricial.
6ª – Mesmo aquando da comunicação dessa instrução (para efectuar o registo predial) ao liquidatário, este nada disse quanto ao prédio rústico, nomeadamente não suscitou qualquer reserva quanto à sua existência.
7ª – O liquidatário judicial procedeu à apreensão a favor da massa falida, tendo arrolado dois bens imóveis, um dos quais aquele que veio a ser vendido à agravante.
8ª – Foi promovida a venda judicial dos bens imóveis, devidamente separados e individualizados, tendo a agravante tido conhecimento dessa venda através dos anúncios respectivos, em que aqueles dois bens imóveis surgiam sempre separados e individualizados como dois prédios distintos e com inscrições matriciais diferentes.
9ª – A agravante apresentou a proposta de compra que veio a ser aceite sem qualquer reserva, tendo efectuado o pagamento da totalidade do preço e cumprido na íntegra as obrigações fiscais correspondentes.
10ª – A decisão da questão controvertida não se compadece com uma apreciação sumária e superficial como aquela que foi feita nestes autos, uma vez que o Tribunal agravado proferiu a Douta Decisão recorrida com base num relatório de uma distinta Advogada, a solicitação do liquidatário, que apenas parte de elementos formais e que resulta exclusivamente de uma busca de elementos prediais e matriciais, nada tendo verificado em termos físicos.
11ª – Mas mesmo aqueles elementos formais não permitem concluir da forma como o liquidatário agora se lembrou de concluir (tanto mais que, como são jurisprudência e doutrina unânimes, as confrontações e as áreas não estão incluídas na presunção de veracidade que o registo predial tem.
12ª – Acresce que o levantamento topográfico nada comprova, pois, como é sabido, quem indica os limites do terreno é quem encomenda o levantamento topográfico, pois que este em nada contribui para o esclarecimento da questão controvertida, nem adita o que quer que seja no sentido da pretensão do liquidatário.
13ª – Ao invés, verifica-se que, nos próprios autos, é incontroverso e verdadeiro que o prédio vendido à agravante (também) tem existência física, estando separado fisicamente por um muro do prédio urbano que também integra o activo da massa falida.
14ª – E porque as confrontações e a área do prédio urbano são verdadeiras e as confrontações e a área do prédio urbano não o são?
15ª – De resto, não deixa de ser curioso e sintomático o facto de agora, e só agora, o liquidatário “descobrir” a suposta inexistência da verba correspondente ao prédio rústico adquirido pela agravante, sendo caso para perguntar se à requerente tivesse sido adjudicado o prédio urbano não seria suscitada a questão de o mesmo não abranger a área integrada no prédio rústico (o logradouro), defendendo-se, nessa situação, a existência de dois prédios distintos (um urbano e um rústico), ao invés do que agora o mesmo afirma.
16ª – Assim, considera a agravante que dos autos, por muito que custe ao liquidatário, constam elementos suficientes para que a venda judicial já realizada se mantenha e o prédio rústico seja adjudicado à agravante, que confiou que o Tribunal (nele se incluindo o liquidatário por este nomeado) e o estado são pessoas de bem e só vendem aquilo que efectivamente existe.
17ª – Não pode, pois, defraudar-se a confiança de terceiros adquirentes e valores tão essenciais como a certeza e a segurança jurídicas.
18ª – A Douta Decisão recorrida viola o disposto nomeadamente nos artºs 889, 890, 894, 895, 899, 900 e 901 CPC, 1302, 1311, 1316 e 1317 do CC e 62 CRP.

A massa falida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
A Mª Juíza sustentou o despacho.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*

II.
Os factos com interesse para a decisão da causa são os constam do ponto anterior e encontram-se todos documentados nos autos.
*
III.
Questão a decidir (delimitada pelas conclusões da alegação da agravante - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
- Se a verba nº 241 deve ser eliminada do auto de apreensão de bens.

No despacho recorrido entendeu-se que os elementos constantes dos autos indicam que o prédio descrito sob a verba nº 241 não tem existência física, antes faz parte do logradouro do prédio descrito sob a verba nº 240. Como tal, ordenou-se a sua eliminação do auto de apreensão de bens e a consequente anulação do processado posterior, incluindo a diligência de abertura de propostas para venda daquela verba, na qual foi aceite a proposta apresentada pela agravante (que já depositou o preço oferecido de € 35.000,00).
Sustenta a agravante que, ao invés, os elementos constantes dos autos apontam para a existência de dois prédios, tal como estão descritos no auto de apreensão de bens, invocando a existência de um muro divisório.

Antes de mais, importa dizer que, apesar de nas suas conclusões, a agravante pôr em causa diversos actos do liquidatário judicial, o presente recurso não é o meio próprio para tal – os actos do liquidatário judicial são impugnados nos termos do artº 136º do CPEREF. Tal como não é o meio próprio para suscitar irregularidades da liquidação, das quais se reclama, como impõe o artº 184º do mesmo Diploma.
O presente recurso visa apenas a impugnação do despacho de 17.05.06, que ordenou a eliminação da verba nº 241 e a anulação dos actos posteriores.

Importa então saber se o artigo matricial rústico nº 196, descrito na verba nº 241 tem existência material autónoma ou se é parte integrante do logradouro do prédio urbano inscrito na matriz respectiva sob o artº 171 e descrito sob a verba nº 240.
Não está em causa a propriedade do prédio ou prédios acima referidos. Quer exista um único prédio, quer existam dois, a titular do respectivo direito de propriedade é sempre a falida, impondo-se a apreensão para a massa falida de um ou de outros (artº 175º, nº 1 do CPEREF).
Quer se conclua de uma ou de outra forma, a massa falida não será afectada e, consequentemente, não serão afectados os interesses dos credores. Aliás, a venda de um prédio inexistente representaria um acréscimo de património para a massa falida.
A principal interessada no esclarecimento da situação dos prédios é a agravante, pois, que, a ter havido erro na descrição, e a ser esse erro detectado apenas após a adjudicação da verba nº 241, seria sobre a agravante que impenderia o ónus de anular a venda de um prédio inexistente (cfr. artº 908º, nº 1 do CPC). Se a situação ficar esclarecida antes da adjudicação, serão devolvidas à agravante as quantias já despendidas, sem mais esforço da sua parte.

O prédio urbano inscrito sob o artº 171º está descrito na CRP como tendo a área total de 6688 m2, sendo 1080 m2 de área coberta e 5608 m2 de área descoberta.
Por seu turno, da inscrição matricial do artigo rústico nº 196º consta que o prédio tem a área de 3 400m2. Este artigo está omisso no registo predial.

Segundo o artº 7º do CRP, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Conforme é orientação maioritária da jurisprudência, a presunção derivada do artº 7º do CRP não garante os limites prediais que constam da descrição, mas tão só o facto jurídico em si[1]. Aquela presunção não funciona em relação aos elementos da descrição sempre que exista desconformidade entre esta e a realidade material do imóvel descrito[2].

Importa então averiguar se os elementos constantes dos autos espelham uma realidade diferente do que conta da descrição predial do prédio urbano inscrito sob o artigo 171.
O levantamento topográfico junto aos autos pelo liquidatário judicial é um documento particular, cujo conteúdo é de livre apreciação pelo tribunal (artº 366º do CC).
Aquele levantamento só por si não atesta a existência de um ou dois prédios, limitando-se a constatar a área total do local.
A área encontrada nesse levantamento topográfico é ligeiramente inferior à área total que consta da descrição do prédio urbano (artigo 171º): a área da descrição predial é 6.688 m2 (1080 m2 + 5608 m2) e a área indicada no levantamento topográfico é 6185 m2 (1568 m2 + 4617 m2).
A diferença entre aquelas áreas é apenas de 503 m2, não sendo, portanto, significativa, tendo em conta a área total, podendo facilmente ser atribuída a um erro de medição.
Há assim coincidência entre a área que consta da descrição predial e a área que consta do levantamento topográfico.
Acresce que, no relatório de avaliação das duas verbas, levado a cabo por um perito nomeado pelo tribunal, refere-se que houve deslocação ao local e que se mediu a construção existente no prédio urbano, omitindo-se qualquer referência à medição do logradouro do prédio urbano e à medição do prédio descrito sob a verba nº 241.
Na avaliação do prédio urbano teve-se em conta apenas a área da construção, não se fazendo qualquer referência à área do logradouro. Finalmente, avaliou-se a verba nº 241, tendo em conta a área que consta da descrição do auto de apreensão (e da inscrição matricial).
O que resulta daquele relatório de avaliação é que o perito encontrou um terreno sem construção, e avaliou-o como prédio rústico porque partiu do pressuposto da existência deste, já que ele constava do auto de apreensão. E usou como base da avaliação a área de 3400 m2 ali descrita, já que não consta do relatório que tenha medido o terreno.
Se mais terreno houvesse, o perito teria de o mencionar como logradouro do prédio urbano, e considerar a respectiva área na avaliação do prédio.
Os elementos constantes dos autos não só não contrariam a descrição predial do prédio urbano descrito sob a verba nº 240, como são coincidentes com ela, ressalvada a pequena discrepância de área acima mencionada.
Era sobre a agravante que impendia o ónus de provar a desconformidade entre a descrição predial e a realidade. Ora, esta não carreou para os autos quaisquer elementos de prova daquela desconformidade, limitando-se a alegar (sem provar) a existência de um muro a separar os dois prédios que afirma existirem.

O despacho recorrido fez assim uma correcta apreciação da factualidade provada, nada havendo a censurar-lhe.
*
III.
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, e, em consequência:
- Confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
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Porto, 26 de Outubro de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha

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[1] Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 22.11.78, BMJ 281-342; desta Relação de 27.06.89 e de 19.05.94, CJ-89-III-224 e CJ-94-III-213, respectivamente; da RE de 04.10.77, CJ-77-IV-905; da RC de 08.04.86, CJ-86-II-66.
[2] cfr. Ac. da RC de 02.02.93, CJ-93-I-28.