Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0633760
Nº Convencional: JTRP00039393
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: DIREITO DE SUPERFÍCIE
Nº do Documento: RP200607050633760
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 678 - FLS. 45.
Área Temática: .
Sumário: I- “Tanto é direito de superfície o direito de construir, efectivar a construção, como o direito sobre a construção existente em terreno alheio.
II- As situações são de natureza diferente, porque o direito de construir ou de plantar em terreno alheio é uma concessão «aedificandum» ou «adplantandum»,feita pelo proprietário do solo- uma autorização que se dá a outrem para construir.
III- O direito sobre construção já existente não é uma concessão para edificar, é um direito sobre uma construção já feita, do tipo de direito de propriedade.
IV- Não obstante o Estado tenha concedido licenças precárias isso não significa, que o Estado tenha transmitido por via contratual o direito de superfície.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

B…….. e marido C………., intentaram acção declarativa sob a forma ordinária, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo que fosse condenado a reconhecer os AA titulares de um direito de superfície sobre a parcela de 67,5 m2, do domínio público marítimo e como legítimos proprietários da casa que identificam no artº 5º da petição inicial.
Alegaram os autores que lhes foi atribuída a licença de ocupação de terreno com a área de 67, 5 m2, constituindo-se, assim, a favor dos AA um direito de superfície, já que desde há mais de 15,20 e mais anos, estão em poder de uma casa composta de rés-do-chão, destinado a habitação, sita na Avenida ……., nº ….., ……, Vila do Conde, confrontando do nascente e sul com Av. ……, Norte e poente com a ….., inscrito no art. 1013º da matriz urbana de Vila Chã e não descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde.
Alegaram ainda os autores que a ocupação é feita de forma pacífica, sem oposição de ninguém, sem interrupção usando e fruindo como coisa sua, locando o estabelecimento, explorando – o, habitando a cave e reparando o mesmo, preservando-o de terceiros, à vista de todos e com o conhecimento da Direcção Regional do Ambiente – Norte ora da Direcção Geral dos Portos.

Em contestação o Mº Pº em representação do Estado, ofereceu impugnou os factos na versão apresentada pelos autores e pediu a improcedência da acção.
Após instrução e julgamento julgou-se a acção improcedente por não provada e absolveu-se o Estado do pedido.

Os autores discordaram desta decisão e dela recorreram, tendo concluído as suas alegações ,pela forma seguinte:
1º- Provado que está que os AA. são donos e possuidores de uma construção composta por rés-do-chão, destinada a comércio e de cave, destinada a habitação, situada na Av. ……, n° …., Vila do Conde, confrontando do Nascente e Sul com Avenida ….., Norte e Poente com ….., inscrita na matriz urbana de Vila Chã, e não descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde (cfr, al. A) da Matéria Assente), ocupando o terreno de Domínio Publico Marítimo, com a área de 67,5 m2, pagando a taxa anual pelo direito de manutenção da casa naquele terreno (cfr. al. B) e C) da Matéria Assente), , restaria ao Tribunal julgar, pelo menos, procedente o pedido formulado pelos AA. na alínea b;
2- Esta questão não foi apreciada pelo Tribunal "a quo", apesar de não se encontrar prejudicada e de lhe incumbir o dever de apreciar todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (art. 660°, n° 2, do C.P.C.), o que configura omissão de pronúncia, que acarreta a nulidade de sentença, e se invoca nos termos do disposto no art. 668°, n° 1, al. d) do C.P.C.
Sem prescindir,
3- Mesmo que se entenda que inexiste omissão de pronúncia, o que não se concede, o certo é que o Tribunal deu como Provado (cfr. alíneas A, B E C) da Matéria Assente que os AA. são legítimos proprietários e possuidores da casa identificada no art. 5° da P.I., pagando a taxa anual pelo direito de manutenção da casa naquele terreno (cfn al B e C,).
4- Daí que, sempre deve o Tribunal julgar procedente a presente Acção no que concerne, pelo menos, ao pedido da al. b) formulado pelos AA, o que se requer.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a Acção procedente.
Por ser de JUSTIÇA

Houve contra-alegações onde se sustenta o decidido em sentença.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto provada.
I.- Os AA são donos e possuidores de uma construção composta por rés-do-chão, destinada a comércio e de cave, destinada a habitação, situada na Avenida ….., nº ….., Vila do Conde, confrontando do Nascente e Sul com Avenida ……, Norte e Poente com a ….., inscrita na matriz urbana de Vila Chã, e não descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde (cfr. al. A);
II.- Ocupando o terreno do Domínio Público Marítimo, com a área de 67,5 m2, pagando a taxa anual pelo direito de manutenção da casa naquele terreno (cfr. al. B) e C);
III.- Em 22 de Fevereiro de 1982, a Autora requereu ao Exmo. Capitão de Vila do Conde autorização para instalar na Praia de Vila Chã, uma barraca de madeira, tipo bar, desmontável, para venda de refrigerantes, gelados e outros produtos de consumo normal nas praias (cfr. al. D);
IV.- Juntou ao requerimento a memória descritiva, o projecto da barraca de madeira, tipo bar, desmontável e planta topográfica (cfr. al. E);
V.- A direcção Geral dos Portos emitiu parecer favorável ao deferimento da pretensão da Autora, desde que a barraca fosse desmontada no final de Setembro e retirados do local todos os materiais (cfr. al.F);
VI.- Na sequência daquele parecer a Capitania de Vila do Conde emitiu a respectiva licença para o ano de 1982 (cfr. al. G);
VII.-O local para onde foi pedida e autorizada a instalação e onde efectivamente se instalou a barraca de madeira tipo bar, situa-se na Praia da freguesia de Vila Chã (cfr. al. H);
VIII.-Em 1991 a B……… requereu ao Director dos Portos, autorização para venda da referida construção a D……. e E…….., o que lhe foi deferido (cfr. al. I);
IX.- Por requerimento de 8 de Outubro de 1991, D…….. e E…….. pediram autorização ao Director Geral dos Portos que o licenciamento da referida construção passasse a ser feito em seu nome, o que lhes foi deferido (cfr. al. J);
X.- Do ano de 1991 até 1997 as referidas licenças foram passadas anualmente, em nome de D…….. e E……… (cfr. al. L);
XI.- Os AA usaram e fruíram a construção referida em A), como coisa sua, o fizeram à vista de toda a gente e com o conhecimento de todos, há mais de 15, 20 e mais anos, sem qualquer oposição e sem interrupção (cfr. resposta aos quesitos 1, 2,3,4 e 5).
XII.- Os AA exploram aquela construção, habitando nela e preservando-a de terceiros (cfr. resposta ao quesito 6).
XIII.- Fizeram-no na convicção e certeza de que enquanto perdurasse a autorização do Director Geral dos Portos, exerciam um direito próprio (cfr. resposta ao quesito 7).
XIV.- O local onde se encontra instalada a barraca de madeira tipo bar, situa –se dentro da faixa de 50 metros de largura, a contar da máxima preia-mar de águas vivas e equinociais (cfr. resposta ao quesito 8).
XV.- No ano de 1991 até 1997, as licenças para instalar a barraca foram passadas anualmente em nome de D……… e E………. (cfr. resposta ao quesito 9).
XVI.- A partir do ano de 1999, caducou a última licença e desde então não foram concedidas novas licenças (cfr. resposta ao quesito 10).
XVII.- O último titular da licença, Miguel Galrão, foi notificado pela Direcção Regional do Ambiente Norte, para proceder à demolição da barraca tipo bar (cfr. resposta ao quesito 11).

b)-O recurso de apelação.
É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º,nº 3 e 690º, nº1 do CPC),salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1- Os recorrentes invocam a existência da nulidade com base no disposto art. 668°, n° 1, al. d) do C.P.C, porque entendem ter existido omissão de pronúncia quanto ao pedido que formularam sob a alínea b) na parte conclusiva da petição inicial.
Para sustentar a existência de omissão de pronúncia os recorrentes invocam os factos que foram fixados sob as alíneas A, B e C da matéria assente.

Efectivamente os autores recorrentes na sua petição inicial para além de formularam um pedido em que pedem a condenação do réu Estado a reconhecer que os autores são titulares de um direito de superfície sobre uma parcela de 67,5 mm, pediram também a condenação do réu a reconhecer que os autores são legítimos proprietários e possuidores da casa que identificam no artº 5º da mesma petição.

Contudo fácil é concluir, conforme o alegado na petição inicial e estruturação da causa de pedir, que os autores propuseram-se demonstrar tão só que eram portadores de um direito de superfície que lhes permitiu construir essa referida casa ocupando terreno do domínio público marítimo.
Portanto a casa, na alegação dos próprios autores, só foi construída (implantada no dizer de Oliveira Ascenção- Reais-5ª ed.pág.523) na sequencia da obtenção de licença de ocupação concedida aos autores, sendo nesse pressuposto que configuraram a existência do referido direito de superfície.
É importante aqui realçar este aspecto, porquanto tal constitui o cerne da questão a decidir.

2-Como referem Mota Pinto-Direitos Reais-Edição Almedina de 1972,pág. 290 “Tanto é direito de superfície o direito de construir, efectivar a construção, como o direito sobre a construção existente em terreno alheio.
As situações são de natureza diferente, porque o direito de construir ou de plantar em terreno alheio é uma concessão «aedificandum» ou «adplantandum»,feita pelo proprietário do solo- uma autorização que se dá a outrem para construir.
O direito sobre construção já existente não é uma concessão para edificar, é um direito sobre uma construção já feita, do tipo de direito de propriedade.
Enquanto o primeiro é um direito real autónomo, sobre coisa de outrem, o segundo é um direito de propriedade”.

Ora como resulta dos autos, aos autores foi concedida autorização para fazer uma construção, mas a título precário, sujeitando-se às regras impostas pelas autoridades que lhes concederam a respectiva licença para o efeito.
Mas ,tal como referido em sentença (onde se citam os diplomas jurídicos pertinentes que aqui nos dispensamos de voltar a repetir ), as licenças foram concedidas com as condições exaradas nas mesmas, donde se destaca que o foram a título precário, pelo período nelas constante e com a obrigação de respeitar todas as leis e regulamentos aplicáveis e obrigaram – se os autores a pagar uma taxa de ocupação do terreno ,sendo que da inobservância e qualquer das condições impostas resultava imediatamente a perda de todos os direitos na respectiva licença.
Os requerentes das licenças tomaram completo conhecimento das condições em que as licenças foram concedidas, com as quais se conformaram e obrigaram-se a cumprir integralmente, assinando os respectivos termos de responsabilidade.
Portanto não obstante o Estado tenha concedido essas licenças precárias isso não significou, como foi decidido (e com o que os recorrentes se conformaram deixando transitar a sentença nessa parte), que o Estado tenha transmitido por via contratual o direito de superfície aos AA .

3- Da prova produzida resultou, pois, claro que o Estado unicamente anuiu à utilização precária da parcela situada dentro do espaço do domínio público marítimo.
Não se constituiu assim para os autores um direito de superfície nos termos do artº 1524º do CC, tal como defendiam na petição inicial e reforçaram na réplica.
Da prova produzida resultou provado que não só que as licenças foram concedidas aos autores a título precário, como no que respeita à parcela com a área de 67, 5 m2 a mesma é pertença do Estado (domínio público marítimo) .
Como tal a propriedade da casa que nela foi construída ao abrigo da referida licença precária, não pode deixar de estar dissociada desta apreciação do pedido principal que os autores formularam relativamente ao reconhecimento desse direito pelo réu Estado.
O direito de propriedade sobre a casa que foi construída pelos autores no terreno de domínio público marítimo, sendo um direito de natureza diferente, não tem autonomia nesta acção já que os autores não o autonomizam na causa de pedir da acção como também o réu Estado não coloca em causa que a casa foi construída pelos autores, embora afirme que o foi em circunstâncias de autorização através da concessão de uma licença própria e precária permitida pelos artºs 17º e 18º do Dec. Lei 468/71, de 5 de Novembro(actualmente, arts. 5º e segs. do DL 46/94), mas sem que a concessão destas licenças implicasse o direito à indemnização no caso de haver necessidade de “ desfazer”, inutilizar ou modificar as obras a que se refere a concessão .

Como já se decidiu em Ac. desta Relação de 12-06-2003 – Relator Des. Pinto de Almeida- Processo: 0233166- Nº Convencional: JTRP00036398 -Nº do Documento: RP200306120233166-ITIJ/NET) “O direito de uso privativo concedido aos autores não é um direito real, tendo natureza obrigacional, extinguindo-se pelo decurso do prazo, por renúncia, rescisão ou por conveniência do interesse público: as licenças são, com efeito, precárias, podendo ser revogadas a todo o tempo sem que por isso o particular tenha direito a qualquer indemnização [Marcello Caetano, Ob. Cit., 941 e segs.; cfr. também Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, T II, 52 e segs e Pedro Gonçalves, A Concessão de serviços Públicos, 85 e segs].
Findo o prazo da licença, as instalações desmontáveis devem ser removidas e as fixas devem ser demolidas, salvo se o Estado optar pela reversão (art. 26º nºs 1 e 2 do DL 468/71 e 8º nº 1 do DL 46/94).
Decorre deste regime que os titulares do direito de uso privativo não detêm sobre o terreno por ele abrangido quaisquer poderes de natureza privada; apenas lhes são conferidos meros poderes de uso”.

4- Deste modo ao fazer-se na sentença a apreciação da questão do direito de superfície na perspectiva que vimos analisando, o pedido que os autores apresentaram na alínea b) do pedido ficou tacitamente prejudicado na sua apreciação, tal como decorre do disposto no artº 660º,nº 2 do CPC.
A improcedência do pedido relativo ao direito de superfície (que continha em si implícita a faculdade de terem os autores construído aquela casa) tornou prejudicada a apreciação sobre o invocado direito de propriedade da mesma casa, na perspectiva de o réu Estado poder ser ainda condenado a reconhecer aos autores tal direito.
Pois se apenas se provou que o Estado só autorizou essa construção aos autores nos termos das referidas licenças, como poderia o Estado ser condenado a reconhecer um direito de propriedade com o conteúdo que os autores lhe pretendem atribuir sustentado num direito de superfície que não se provou existir?
Esta apreciação implícita resulta, pois, com o devido respeito por opinião contrária, dos termos da própria sentença, onde aliás se teceram também apropriadas considerações no sentido de que a inscrição matricial da casa como prédio urbano nas circunstâncias da sua implantação em terreno do domínio público marítimo, só poder relevar aqui apenas para efeitos de tributação.
Aliás tais pedidos foram formulados em alíneas sequenciais mas cumulativamente, colocando-se inexplicavelmente como pedido principal o pedido de reconhecimento do direito de superfície que é um direito real menor (cfr. Ribeiro Mendes - O Direito de Superfície - in Revista da Ordem dos Advogados - ano 1972,Tomo I, pág.41 e ss).

5- Entendemos, pois, não existir a nulidade invocada com base na omissão de pronúncia, a qual a existir sempre poderia ser apreciada por este Tribunal nos termos do artº 715º, nº 2 do CPC, já que os autos fornecem os elementos necessários para chegar à conclusão que atrás explicitámos, no sentido de que a análise do pedido formulado na alínea b) estava associada ao pedido da alínea a) e como tal seria atingido pela mesma decisão de improcedência.

Nestes termos não assiste razão aos apelantes, não merecendo a sentença qualquer censura e por isso se confirma.

III- Decisão.

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 5 de Julho de 2006
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo