Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726400
Nº Convencional: JTRP00041143
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
EXAME
Nº do Documento: RP200803040726400
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 266 - FLS. 233.
Área Temática: .
Sumário: A faculdade prevista no art. 647º do CPC – realização da audiência previamente à conclusão do exame para determinação dos danos – apenas pode ser requerida pelo autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1.
B…………… SA, demandada em processo decorrente de acidente de viação a tramitar no Tribunal Judicial de Moimenta da Beira deduziu em tais autos pretensão de realização da audiência de discussão e julgamento, previamente à conclusão de exame para determinação dos danos, ao abrigo e nos termos do artº 647º do CPC.
O Sr. Juiz a quo indeferiu, por despacho, tal pretensão no entendimento que a faculdade prevista em tal normativo é concedida exclusivamente ao autor que não já ao réu.

Inconformada recorreu deste despacho

Alega para tanto que:

Contra si foram instaurados por C………….. e D……………., Procedimentos Cautelares para Arbitramento de Indemnização Provisória com o nº ……/97 e o nº …../98.

No 1º daqueles procedimentos foi arbitrado em 1.496,39€ (300.000$00) mensais a quantia a pagar pela ora agravante à requerente C………….. e em 149,64€ (30.000$00) mensais a quantia a pagar pela agravante ao requerente D……………., a iniciar-se a 02/01/1998, “tendo todavia em conta que nunca estará a Requerida obrigada a pagar mais do que o valor da presente acção de 6.600.000$00” (32.920,66€).
No 2º daqueles procedimentos foi arbitrada em 1.745,79€ (350.000$00), mensais a quantia a pagar pela requerida, ora agravante, à requerente C…………, “a iniciar-se em 30/04/2001, e a qual se deve manter até ao momento em que lhe seja efectivamente processado o pagamento da indemnização definitiva, na acção de que o presente procedimento é dependência”.
Em razão destes dois procedimentos cautelares a requerida e ora agravante alega já ter pago aos autores prestações mensais que totalizaram 32.920,66€, e somente à autora, e até Maio de 2007, 127.442,67€.
O que tudo perfaz, até Maio de 2007, o valor global de 130.363,33€ (32.149.961$13).

Posteriormente em 18/02/1998 os requerentes instauraram contra a requerida e outros a respectiva acção definitiva.
Nesta acção os autores formularam pedidos no valor de 659.665,07€ (132.250.973$00).
Nela são ainda Intervenientes outros participantes no acidente que também impetraram indemnizações à ré.
Sendo, assim, formulados contra a agravante pedidos no valor global de 720.889,35€.
Atento o valor já pago pela Agravante, até Maio deste ano de 2007, aos Autores C………….. e D…………. (130.363,33€), para pagamento dos restantes danos eventualmente sofridos por estes Autores e pelos demais Autor e Intervenientes, sobram 493.134,04€, sendo certo que o valor global dos pedidos formulados nestes autos excedem em 97.391,98€ o valor da responsabilidade civil transferida para a Agravante através da apólice supra referida.

2.
Rematando, a final, as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – A Declaração do Direito do Homem determina que “toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra actos que violem direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição por pela lei”.

2 – Na afirmação desta aquisição civilizacional a Constituição da República Portuguesa deixou expresso no seu texto o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, que determina que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo;

3 – Na senda desse primado constitucional, no Código do Processo Civil afirma-se que “nas acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil, se a duração do exame para a determinação de danos se prolongar por mais de 3 meses, pode o juiz a requerimento do autor, determinar a realização da audiência (...)”;

4 – A presente acção é de indemnização fundada em responsabilidade civil, nela intervindo como Ré a Agravante;

5 – Esta acção entrou em juízo no dia 18/02/1998, tendo sido ordenada a realização dos exames periciais para determinação do dano em direito civil por despacho notificado às partes litigantes através de carta datada de 28/06/2004, pelo que já decorreram mais de 3 meses sobre essa data, sem que a Agravante tenha sido, até ao presente notificada da elaboração e junção aos autos dos relatórios periciais;

6 – A Agravante encontra-se a pagar à Autora C…………. uma renda mensal como reparação provisória do dano, de 1.745,79€, vencida desde 30/04/2001 até ao momento em que lhe seja efectivamente processado o pagamento da indemnização definitiva, o que até ao presente perfaz o valor de 127.442,67€;

7 – Pagou já a Agravante à mesma Autora e ao seu filho, o Autor D………….., também a título de renda mensal como reparação provisória do dano, a quantia de 32.920,66€.

8 – A Agravante rejeita a culpa do condutor do veículo que segura no deflagrar do acidente em questão nestes autos, imputando essa culpa a um condutor terceiro e/ou à própria Autora C…………, sendo que o limite da responsabilidade civil que assumiu com a apólice em questão é de 623.497,37€ e o valor dos pedidos nestes autos formulados pelos Autores e Intervenientes é de 720.889,35€;

9 – Intervindo como parte neste processo a Agravante tem direito, nos termos do art. 23º/4 da CRP a que esta causa seja objecto de decisão em prazo razoável, direito este que se impõe com mais acuidade atento os valores já pagos pela Agravante; o limite contratual da sua responsabilidade; a decisão proferida no procedimento cautelar de fixar o limite da renda a pagar não nesse limite contratual mas num evento de prazo incerto que, a continuar o processo com a lentidão que o tem vindo a caracterizar, poderá fazer exceder o próprio limite contratual; o facto de se poder ter que vir a aplicar nestes autos o disposto no art. 16º do DL522/85 de 31/12; por fim, ao facto de, atenta o estado de necessidade dos Autores beneficiários da renda paga pela Agravante e do limite da responsabilidade civil transferida para a E……………, caso se venha a demonstrar que o condutor do veículo que ela segura não teve culpa no deflagrar do acidente, designadamente porque tal culpa foi da Autora C…………… e/ou do condutor do SC, não terá ela possibilidade, por falta de património de tais beneficiários, de receber dos mesmos o valor das rendas entretanto pagas e/ou do limite da responsabilidade civil transferida para a E…………….;

10 – Ponderada a concreta situação processual que nestes autos se vive á luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da proibição da indefesa e da proporcionalidade, compaginados com os princípios processuais da imposição da decisão em prazo razoável e da igualdade de armas, todos feitos passar pelo crivo do bom senso, da razoabilidade, do equilíbrio, da equidade e da ponderação, termos que interpretar o disposto no art. 647º/1 do CPC, no sentido de se admitir o recurso à faculdade nele prevista também aos Réus, designadamente quando se verifiquem situações idênticas ás vividas nestes autos. Assim sendo,

11 – O art. 647º/1 do CPC, ao não permitir que o Réu use a faculdade nele prevista de, nas acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil, quando a duração dos exames para determinação dos danos se prolongar por mais de 3 meses, poder requerer ao juiz a realização da audiência, viola o disposto no art. 20º da CRP. Pelo que,

12 – O Tribunal “a quo”, ao decidir a forma que fez, violou o disposto no art. 20º da CRP e os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da proibição da indefesa e da proporcionalidade, compaginados com os princípios processuais da imposição da decisão em prazo razoável e da igualdade de armas, todos feitos passar pelo crivo do bom senso, da razoabilidade, do equilíbrio, da equidade e da ponderação. Logo,

13 – Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, interpretando-se o disposto no art. 647º/1 do CPC de acordo com os princípios constitucionais e processuais civis, no sentido de se admitir que a faculdade nele prevista também pode ser usada pela Agravante,

14 – Revogando-se, desta sorte, o despacho de fls., e proferindo-se acórdão a ordenar que seja de imediato marcada a audiência de discussão e julgamento, sem prejuízo do disposto no art. 661º/2 do CPC

Contra-alegaram os autores pugnando pela manutenção do decidido.

O Sr. Juiz sustentou o despacho.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

É, ou não, a faculdade concedida ao autor pelo artº 647º do CPC de, nas acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil, requerer a realização da audiência de julgamento previamente á realização do exame para determinação dos danos, extensível a outros intervenientes processuais, rectius ao réu.

4.
Os factos a ponderar são os emergentes do relatório supra.

5.
Apreciando.

Estatui o artº 647º do CPC
1. Nas acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil, se a duração do exame para a determinação dos danos se prolongar por mais de três meses, pode o juiz, a requerimento do autor, determinar a realização da audiência, sem prejuízo do disposto no nº2 do artº 661º.
2. A designação da audiência, nos termos do número anterior, não prejudica a realização do exame, a cujo relatório se atende na liquidação.

A aplicação da lei passa e até exige a sua melhor interpretação.
A interpretação tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo.
Certo é que a interpretação não deve cingir-se á letra da lei, devendo atentar-se ainda nos elementos sistemático, histórico, lógico e teleológico da hermenêutica jurídica – artº 9º nº1 do CC.
Porém, o elemento literal constitui o ponto de partida, o fundamento ou suporte basilar e o limite da interpretação, não podendo defender-se um entendimento que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – artº 9º nº2.
Assim à letra da lei cabe, desde logo, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras do texto legal – cfr. Batista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.182.
Devendo considerar-se que o sentido decisivo da lei coincide com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório dos diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, 1º, 4ª ed. p.58 e segs.
Havendo, outrossim que presumir-se, na fixação do sentido e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o pensamento em termos adequados – artº 9º nº3.
Postas estas considerações gerais há que dizer que o nº1 do referido artigo foi introduzido pelo DL 242/85 de 09 de Julho, constituindo inovação e tendo como objectivo evitar os graves inconvenientes decorrentes do protelamento ocasionado pela demora na realização de exames, designadamente de carácter médico em acidentes de viação.
E, bem vistas as coisas, na mente do legislador esteve, essencialmente, o fito de abarcar os casos de acções tendentes à concretização de indemnização cujo fundamento factual tenha na sua génese um acidente de viação.
Ou, pelo menos, em termos práticos e estatísticos, estes são os casos mais frequentes. De que, aliás, a presente acção é paradigma.
Nos quais, por via de regra, os autores são uma pessoa física singular e os réus pessoas colectivas, normalmente seguradoras.
Sendo que, também em princípio e regra geral, existe uma disparidade ou desequilíbrio, em termos económicos e organizacionais, entre tais partes, normalmente em desfavor do autor.
Debilidade esta que pode também reflectir-se na capacidade de impulsionar o processo.
Sendo consabido que a fase da instrução pode ser a mais complexa e morosa, maxime quando são requeridos exames.
Acresce que, outrossim na maioria das vezes, o acidente de viação traduz-se para o autor como um facto infortunístico que o prejudica gravemente na sua capacidade de ganho ou na sua situação económico-financeira, maxime quando acarreta lesão da sua integridade física o que bastas vezes o coloca numa situação de impossibilidade ou de eminente dificuldade de satisfação das suas necessidades básicas e essenciais.
Tudo, obviamente, agravado pela delonga no tramitar - por vezes arrastar – do processo.
Pressupostos ou consequências estas que, normalmente, não se verificam com os réus de tais acções, desde logo porque, por via de regra, são pessoas colectivas ou institutos públicos como sejam Seguradoras, Fundo de Garantia Automóvel etc.
Cônscio desta realidade, o legislador conferiu ao autor a faculdade de requerer a antecipação do julgamento se a efectivação dos exames se arrastar por mais de três meses.
Ora a lei estatui apenas relativamente ao autor. Quando seria muito fácil reportar-se outrossim ao réu ou até a outros intervenientes processuais que em tal demonstrassem interesse.
Resulta, assim, claro, que apenas quis abarcar o demandante.
O que ainda se compreende pois que, em princípio, os exames destinam-se a averiguar factos constitutivos ou atinentes à causa de pedir.
Destarte tal preceito coloca na disponibilidade do autor um direito de opção.
Ou opta por esperar pela realização do exame e apresenta-se em julgamento munido de prova mais consistente e cabal no sentido de convencer sobre o prejuízo sofrido e o seu quantum.
Ou opta por prescindir da obtenção imediata de tal prova e sujeitar-se a não convencer do alegado prejuízo ou, no mínimo, da sua concreta liquidação, a qual, em todo o caso, pode ser remetida para execução de sentença.
Mas este direito de opção foi concedido pelo legislador inequivocamente apenas ao autor.
Daqui emerge, versus o propugnado pela recorrente, que quedo está ao intérprete de tal preceito operar relativamente ao mesmo uma interpretação extensiva, pois que e considerando vg. a occasio legis, isto é as circunstancias em que a lei foi elaborada, bem como o elemento teleológico, ou seja, o fito pelo legislador pretendido – ratio legis - tem de concluir-se que a letra do texto não fica aquém do espírito da lei, ideia traduzida no brocardo de que o legislador: minus dixit quam voluit.
Antes pelo contrário: a letra coincide com a intenção legiferante.
Nesta conformidade há que dizer que, nem o réu nem, em princípio, outro interveniente processual podem impetrar a realização imediata do julgamento em detrimento da realização do exame cuja realização esteja em curso, por apelo e no âmbito deste normativo.
Podê-lo-ão fazer por outras vias designadamente por virtude do chamamento de certos princípios gerais de direito.
Temos em mente os casos em que o réu ou outro interveniente invoque e convença que o protelamento da audiência decorrente - apenas ou concorrentemente, do atraso na realização do exame - lhe possa causar prejuízos de tal modo graves que afectem a sua situação jurídico-patrimonial ou jurídico-pessoal de um modo iníquo e/ou intolerável.
Ou os casos em que se prove que um possível beneficiado por tal delonga – que in casu e em função do alegado pela recorrente serão os autores que já estão a receber uma indemnização provisória – tenha actuado dolosamente no sentido de adiar o mais possível a realização do julgamento, designadamente dificultando a efectivação do exame.
Nenhuma destas situações emerge dos autos, desde logo porque a recorrente nem sequer as invoca.
Nem outras adjacentes ou análogas como as mencionadas pela agravante se vislumbram terem força e relevância bastantes para alicerçarem a sua pretensão.
Na verdade inexiste qualquer violação do princípio de igualdade de armas ou da proibição da indefesa, pois que a “simples” demora da realização do julgamento tal não acarreta, na medida em que traduzindo-se tal indefesa – conforme firmado em jurisprudência do Tribunal Constitucional por ela citada - na privação ou limitação do direito com a adveniência de prejuízos efectivos, tal não se verifica para a agravante.
O que poderá existir é um retardamento de tal defesa. O que é substancialmente diferente.
E quanto à ocorrência de prejuízos efectivos nada está ainda decidido a título definitivo e, muito menos, assente.
Designadamente falecem neste momento quaisquer elementos ou indícios que apontem no sentido de que é certo ou até provável que a recorrente venha a obter ganho de causa e, assim, lhe venha a assistir jus a reaver os valores já pagos aos autores por força do procedimento de arbitramento de reparação provisória.
E mesmo que tal ganho sobrevenha ulteriormente com o consequente dever de restituição das prestações recebidas pelos autores, outrossim nada neste momento indicia que estes não possam cumprir tal dever de restituição, limitando-se a recorrente a aventar tal hipótese sem carrear para o processo elementos factuais substantivos e consistentes nesse sentido.
Quanto ao longo período de tempo em que o processo já tramita, tal, como já se viu, não pode levar ao despoletamento por parte do réu da previsão do artº 647º. Parecendo, inclusive, que tal delonga se deve, em maior grau, a outros factores – p.ex. decorrentes do elevado número de partes: autores e réus - que não tanto devido à demora na realização do exame.
E o mesmo se diga no que tange ao possível – que, em todo o caso ainda se vislumbra longínquo – ultrapassar do limite contratual da sua responsabilidade. O que, aliás, a acontecer apenas afecta os possíveis lesados, pois que, por princípio, a sua responsabilidade se insere somente dentro de tais limites.

6.
Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão.

Custas pela recorrente.

Porto, 2008.03.04
Carlos António Paula Moreira
Maria da Graça pereira Marques Mira
Leonardo Pereira de Queirós