Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0621955
Nº Convencional: JTRP00039151
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: MÁ FÉ
SOCIEDADE
Nº do Documento: RP200605090621955
Data do Acordão: 05/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 216 - FLS 52.
Área Temática: .
Sumário: I - Não constitui má fé a improcedência da acção proposta por inexistência de prova de factos alegados. Necessário se torna a prova de outros factos em oposição aos pessoais alegados.
II - Não pode uma sociedade ser condenada como litigante de má fé, mas apenas os seus representantes que, como tal, hajam procedido dessa forma, aos quais será dada possibilidade de exercício de contraditório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

No ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, B………., Lda, com sede em Paredes move acção contra C………., residente em ………., comarca de Braga, pedindo a condenação deste na quantia de €9.817,71 e respectivos juros de mora, relativa a dois fornecimentos de material objecto da sua indústria, devidamente facturado, mas ainda não pago, apesar de vencido.
Contesta o réu, impugnando os fornecimentos em causa, confessando dever à autora a quantia de €504,00.
Responde a autora, mantendo no essencial o já alegado e pedindo a condenação da ré como litigante de má fé.
Elaborado o despacho saneador e a base instrutória, não sofreram qualquer reclamação.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal aplicável, merecendo os quesitos as respostas constantes de fls. 146 dos autos.
Foi então proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido contra si formulado e condenou a autora como litigante de má fé na multa de 6 Ucs.
Inconformada esta apresenta este recurso de apelação e nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1.ª- A falta de prova suficiente, ou melhor, julgada insuficiente, por banda da autora não pode, por si só, justificar a sua condenação como litigante de má fé.
2.ª- Por outro lado, a conduta da autora, praticada fora do processo é irrelevante para efeitos de condenação por litigância de má fé.
3.ª- Verificando-se uma condenação oficiosa, deveria a Mma. Juiz, ao aperceber-se de que a conduta processual das partes podia cair na alçada dos arts. 266.º-A e 456.º do CPC, ouvir as partes, para assegurar o contraditório.
4.ª- Tratando-se de uma pessoa colectiva, em que a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o representante que esteja de má fé na causa, impunha-se ainda a prévia audição dos representantes da autora, pois sem ela não pode impor-se-lhe uma sanção nem decidir-se a causa contra si, sobre pena de ter sido cometida uma irregularidade com influência na decisão da causa.
Indica como violados os arts. 201.º, 456.º e 568.º do CPC.
Pugna pela revogação da condenação da litigância de má fé.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da instância vêm dados como provados os seguintes factos:
1- A fls. 3 e 4 encontram-se juntas duas facturas com os n.ºs 16927 e 16908, datadas de 10/11/2004 e 28/10/2004, referentes ao fornecimento de madeira de castanho, no valor de € 3.663,53 e € 6.435,34, respectivamente, com IVA incluído [al. A) da matéria assente].
2- A fls. 21 foi junta aos autos uma carta registada com aviso de recepção, emitida pelo Réu à Autora e por esta recepcionada em 07/12/2004, na qual o Réu acusa a recepção das facturas referidas em A), acrescentando o seguinte: «Por este meio vimos devolver as facturas, já que as mesmas não representam qualquer fornecimento efectuado por Vs. Exsª ao meu estabelecimento.
Na verdade, nem nas datas constantes das facturas, ou outras, foram efectuadas os fornecimentos constantes das mesmas, pelo que, nada devemos relativamente a esta madeira, que muito bem sabem (...) nunca entregaram nas nossas instalações.» [al. B) da matéria assente].
Cumpre conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC).
Apenas uma questão nos é colocada:
- Condenação oficiosa de litigância de má fé de uma sociedade sem audição prévia desta e dos seus representantes.
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Salvo o devido respeito, pela decisão impugnada, esta não pode manter-se por várias razões.
Na vigência da anterior redacção daquele preceito legal, vinha sendo entendido que só a conduta dolosa, consubstanciada em dolo instrumental ou substancial, podia dar lugar à condenação por má fé (v., entre outros, os Acs. do STJ de 28-10-75, BMJ, 250, p. 156 e de 8-4-97, CJ-STJ, Tomo II, p. 37).
Na nova redacção, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, foi também alargado o âmbito de aplicação do instituto da litigância por má fé, passando a ser punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes.
Assim, nos termos do actual n.º 2, do artigo 456° do C.P.C, litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d)ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Segundo o art.458.º do CPC, sendo a parte uma sociedade, a responsabilidade recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
Assim, não constitui má fé a improcedência da acção por inexistência de prova dos factos alegados. Necessário seria que se provassem outros em oposição aos pessoais alegados.
Em segundo lugar, uma sociedade não pode ser condenada como o foi, antes terá de o ser na pessoa dos seus representantes que concretamente estejam de má fé.
Consta do sumário do Proc 1885/01-2ª Sec. in www.dgsi.pt., Acórdão de 29/01/2002: “Quando for parte na causa uma sociedade, esta pode ser condenada como litigante de má fé, apesar de a responsabilidade pelo pagamento da multa, indemnização e custas caber ao seu representante que estiver no processo. Por isso, e porque a actividade processual que conta é a do representante da sociedade, tal condenação não pode ter lugar sem prévia audição desse representante.”
Consoante o art. 458º citado, quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (ou dos representantes da pessoa colectiva) é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.
Não significa esta norma que a sociedade não possa ser condenada por má fé, pois quem é condenada é a parte (art. 456º, nº 1). Partes são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária [Antunes Varela e outros, Manual de Processo civil, 2ª ed., 107] e, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC, porque quem tem personalidade jurídica (pessoas jurídicas, singulares ou colectivas) tem igualmente personalidade judiciária, forçoso é que as pessoas colectivas, designadamente as sociedades, sejam representadas na lide por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem - art. 21º CPC. Parte na causa não é o representante da pessoa colectiva. «As sociedades, embora agindo necessariamente em juízo por meio dos seus representantes estatutários, são as verdadeiras partes da acção, sempre que esta seja proposta em nome delas ou contra elas» [Ibidem, 110]. As sociedades por quotas, dotadas de personalidade jurídica - art. 5º do CSC - são representadas, nas acções com terceiros [Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 146], pelos gerentes - 252º, nº 1 do mesmo CSC - e é de lei - art. 258º do CC - que o negócio jurídico realizado pelo representante produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado.
Só que a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas - que não pensam, não falam, não agem por si mas apenas através dos seus representantes - levou a lei (art. 458º do CPC) a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização em que a sociedade, parte na causa, tenha sido condenada por via da actuação (maliciosa) do seu representante.
Em terceiro lugar a condenação ex officio de litigância de má fé terá de respeitar o princípio do contraditório.
Por diversas vezes que já o Tribunal Constitucional se tem pronunciado sobre o assunto, mas sempre no mesmo sentido: que a aplicação oficiosa do disposto no art. 456.º n.º 1 e 2 do CPC está condicionada à audição prévia dos interessados, sob pena de violar o princípio do contraditório previsto nos arts. 3.º e 3.ºA do CPC e do acesso ao direito, consagrado no art. 20.ºda Constituição.
Assim decidiram:
- Ac do TC n.º 440/94 in DR, II série de 1 de Setembro de 1994;
- Ac. do TC n.º 357/98 de 16 de Julho de 1998;
- Ac. do TC n.º 289/02 de 13 de Novembro de 2002.
DECISÃO:
Nestes termos se decide pela procedência total da apelação, revogando-se a condenação da autora como litigante de má fé.
Sem custas, por a ré não ter dado causa ao recurso nem contra-alegado, sendo que apenas está em causa a litigância de má fé.
PORTO, 9 de Maio de 2006.
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho