Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6271/08.7TBBRG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: EXIBIÇÃO JUDICIAL DOS LIVROS DE ESCRITURAÇÃO
APRESENTAÇÃO DOS LIVROS E DOCUMENTOS
INTERESSE LEGÍTIMO NA REALIZAÇÃO DO EXAME
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201102086271/08.7Tbbrg-A.P1
Data do Acordão: 02/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 42º E 43º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I - A ‘exibição’ a que alude o artigo 42°, consiste no exame completo dos livros do comerciante e tem por fim verificar o estado geral do negócio ou a situação do património comercial, só podendo ter lugar nos casos ali previstos.
II - A ‘apresentação’ de que fala o artigo 43º, consiste num exame mais restrito que recai apenas sobre os lançamentos referentes a um determinado ponto que, por meio dele, se pretenda determinar.
III - A escrituração pode ser examinada tanto a requerimento da parte contrária, como do próprio comerciante a quem pertencem os livros.
IV - O que é decisivo para aquilatar da pertinência do exame é que a parte que o requer tenha interesse legítimo na sua realização, seja para provar factos relacionados com a sua pretensão, seja para se defender de factos alegados pela contraparte, em consonância, aliás, com o disposto no n.° 2 do artigo 577º, do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 6271/08.7Tbbrg-A.P1
Da 4ª Vara Cível, 2ª Secção, do Porto.
REL. N.º 624
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B…, Lda.”, Autora na acção em que é Ré a “C…, S.A.”, no requerimento de prova oportunamente apresentado, requereu exame à escrita da Ré, formulando os respectivos quesitos.

A Ré opôs-se a essa diligência de prova.

O Mmº Juiz, a fls. 157 desses autos, admitiu essa perícia, nos termos dos artigos 43º e 44º do Código Comercial.

A Ré, não se conformou, e interpôs recurso de apelação, que foi admitido a fls. 202, com subida em separado e com efeito suspensivo.

Nas respectivas alegações de recurso, a apelante pede que se revogue o despacho recorrido e que se indeferida a diligência probatória requerida pela apelada.

Conclui as alegações do seguinte modo:
1. A perícia ordenada à contabilidade da Ré viola a lei e os direitos e interesses legítimos da recorrente, sendo, para além do mais, desnecessária à boa decisão da causa.
2. É sabido que o Código Comercial consagra o princípio geral do carácter secreto da escrituração comercial (cfr. arts. 42º e 43º).
3. O exame ordenado à contabilidade da Ré permitiria à recorrida, e mesmo a terceiros (cfr. art. 167º do CPC) conhecer factos sigilosos relacionados com a actividade comercial da recorrente. Designadamente, a identificação dos seus fornecedores, prestadores de serviços, subempreiteiros, respectivos prelos, condições comerciais praticadas, tanto mais que o que vem requerido neste âmbito é o exame a todas as facturas, designação e valor/preço, relativas às obras de carpintaria – o que importa uma devassa que, a acontecer, causaria à recorrente graves prejuízos.
4. Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art. 519º do CPC, as partes estão obrigadas a um dever geral de colaboração com a justiça para a descoberta da verdade, sendo que este dever, como enunciação de um princípio geral que é, está sujeito ao princípio da proporcionalidade.
5. Ora, a perícia à contabilidade, tal como preconizada pela Ré (“quais são as facturas que constam da contabilidade … relativas às obras de carpintaria …”) tem como propósito sindicar a matéria da excepção de compensação e a reconvenção deduzidas pela Ré (cfr. arts. 66º a 69º da contestação, vertidos para os quesitos 24º a 27º da Base Instrutória).
6. Isto para dizer que, assistia à A. a possibilidade de recurso a outros meios de prova, menos gravosos para os direitos, liberdades e garantias da Ré, para atingir o mesmíssimo objectivo, desde logo, requerendo que a Ré procedesse à junção das concretas facturas em que estribou os seus pedidos (das empresas D…, SA, E…, Lda. e F…).
7. Para além disto, atentas as regras da repartição do ónus respectivo, a prova da matéria que se pretende efectuar com o exame pericial, não pertence à A. mas sim à Ré (sendo constitutiva do direito indemnizatório que esta esgrime nos autos).
8. Ou seja, o exame à escrituração mercantil da Ré não é, in casu, indispensável para a descoberta da verdade material, e constitui diligência desproporcionada e excessiva em relação aos fins prosseguidos.
9. Ponderadas as finalidades inerentes ao artigo 519º do CPC, dada a manifesta desproporcionalidade entre o fim visado e o requerido, bem como a existência de outros meios processuais passíveis de conduzirem ao resultado pretendido, com menores custos em termos de afectação do segredo comercial, a perícia requerida pela A. deveria, “data venia”, ter sido indeferida, o que, agora, em revogação da decisão revidenda deverá decidir-se e se requer.
10. Não apresenta relevância para o que se discute nos autos – neles não se cura de saber – que facturas foram, ou não, contabilizadas, nem tal factualidade vem alegada por qualquer das partes, o que, também por aqui, deveria ter determinado o indeferimento da perícia requerida.
11. Mesmo que se entendesse, contra o que supra se consignou (o que se não concede e se alega por mero esforço de raciocínio), a A. podia, e devia, ter concretizado a identificação das concretas facturas que pretende ver analisadas – na terminologia legal do art. 43º, n.º 2, do Cód. Comercial, “que tenham relação com a questão” – desde logo, e como se disse, por recurso às concretas empresas resultantes da alegação da Ré, evitando-se, assim, que a diligência pericial incida “urbi et orbi”.
12. A manter-se a diligência, sempre o objecto respectivo deverá ser expressamente limitado aos concretos prestadores de serviços/subempreiteiros a que se reportam os autos.
13. A questão da arrumação dos livros de escrituração mercantil também constitui facto que, não só não interessa à boa decisão da causa, como se encontra limitada nos termos do art. 41º do Cód. Comercial, pelo que, também não relevam para os autos as questões colocadas pela A. nos quesitos 3º e 4º do objecto proposto, e do que também decorre a improcedência e desadequação da perícia objecto da decisão revidenda.
14. Foi violado o disposto nos arts. 42º e 43º do Cód. Comercial e 519º e 568º e ss. do CPC.

A apelada não contra-alegou.

Deu-se cumprimento ao disposto no art. 707º, n.º 2, do CPC.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do CPC – o que se discute na apelação é saber se deve manter-se o despacho que admitiu o exame à escrita da apelante, requerido pela apelada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que interessam ao recurso são os que se encontram descritos no antecedente relatório.

O DIREITO

O direito à prova, enquanto uma das componentes do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais, implica a possibilidade de as partes utilizarem, em benefício próprio, os meios de prova que escolherem. As partes gozam, pois, de inteira liberdade na escolha dos meios probatórios de que entendam lançar mão para afirmação dos interesses que pretendem tutelar.
Esse poder de iniciativa instrutória, quando regularmente exercitado, só deve ser limitado quando as diligências requeridas sejam inadmissíveis, meramente dilatórias ou manifestamente desnecessárias à obtenção da verdade material.
Considerando a delimitação objectiva do recurso traçada nas conclusões, veremos se a diligência probatória em causa é inadmissível ou desnecessária.

O artigo 41º do Código Comercial estabelece o princípio do segredo da escrituração mercantil ao estatuir que “nenhuma autoridade, juízo ou tribunal pode fazer ou ordenar varejo ou diligência alguma para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil”.
Com este segredo procura-se proteger “a privacidade do comerciante, de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas de negócio”[1].
Tal princípio não é, no entanto, absoluto. Desde logo, os dois artigos seguintes (42º e 43º) constituem desvios àquele princípio, permitindo, o primeiro, a exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial e, o segundo, o exame judicial desses livros.

42º
A exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra.
43º
Fora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
§ único. O exame dos livros e documentos do comerciante, a haver lugar, far-se-á no escritório deste, em sua presença, e limitar-se-á a averiguar e extrair o tocante aos pontos especificados que tenham relação com a questão.

A ‘exibição’ a que alude o artigo 42º, consiste no exame completo dos livros do comerciante e tem por fim verificar o estado geral do negócio ou a situação do património comercial, só podendo ter lugar nos casos ali previstos.
A ‘apresentação’ de que fala o artigo 43º, consiste num exame mais restrito que recai apenas sobre os lançamentos referentes a um determinado ponto que, por meio dele, se pretenda determinar[2]. Podendo ter lugar ‘a instâncias da parte’, não resta a menor dúvida de que a escrituração pode ser examinada tanto a requerimento da parte contrária, como do próprio comerciante a que pertencem os livros.
O Mmº Juiz a quo fundou-se neste artigo 43º para deferir a diligência de prova requerida pela apelada.
E fê-lo, a nosso ver, bem.
De facto, tendo a apelada demandado a apelante para que esta lhe pague o valor de trabalhos de carpintaria executados em duas obras em …, e tendo a apelante impugnado, no seu articulado de contestação/reconvenção, os montantes indicados na petição inicial, o momento do vencimento das facturas emitidas pela apelada e a sujeição dessas mesmas facturas à dedução de 10% para garantia da(s) obra(s), fica claramente justificado o interesse da apelada nessa diligência de prova, tal como se afere dos quesitos a que a perícia colegial terá de pronunciar-se, por referência aos factos controvertidos constantes da base instrutória – cfr. fls. 2 a 8, 62 a 141 e 146 destes autos de recurso.
O exame, tal como resulta do § único do artigo 43º do Código Comercial e do próprio despacho do Mmº Juiz, incidirá apenas sobre os elementos da escrita comercial da apelante que carecem de indagação.
Por outro lado, pouco importa a quem incumbe o ónus da prova desses factos. O que é decisivo para aquilatar da pertinência do exame é que a parte que o requer tenha interesse legítimo na sua realização, seja para provar factos relacionados com a sua pretensão, seja para se defender de factos alegados pela contraparte, em consonância, aliás, com o disposto no n.º 2 do artigo 577º, do CPC.
Acresce que o exame à escrita mercantil pode até incidir sobre a escrituração de pessoa que não seja parte na causa, ao abrigo do disposto no artigo 519º do CPC, desde que a pessoa a quem pertence a escrita e documentos tenha interesse ou responsabilidade na questão[3].
Se é verdade que a escrita dos comerciantes deve ser vigorosamente protegida e poupada à devassa injustificada, não é, no entanto, concebível que essa protecção propicie a ocultação de dados que não interessem somente ao comerciante mas também àqueles que com ele contrataram[4].
No caso concreto, e numa valoração teleológica, o exame à escrita, como meio de prova pericial nos termos do artigo 568º do CPC e 43º do Código Comercial, concilia de forma proporcional o direito ao segredo mercantil e as exigências da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio.
Conclui-se, então, que o exame à escrita da apelante é admissível e não se afigura desnecessário à descoberta da verdade material, até porque o grau de certeza reconhecido à prova pericial é muito maior do que aquele que resulta, por exemplo, da prova testemunhal.
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III. DECISÃO

Face ao exposto, improcede a apelação e confirma-se o despacho recorrido.
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Custas pela apelante.
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PORTO, 8 de Fevereiro de 2011
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
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[1] L. Brito Correia, “Direito Comercial”, I, pág. 309.
[2] Pinto Coelho, “Lições de Direito Comercial”, Vol. 1º, 2ª edição, pág. 544.
[3] Cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/98, de 22.04.1997, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1998, e também no BMJ n.º 466, págs. 86-92.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 16.02.2000, no processo n.º 99S260, em www.dgsi.pt.