Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
560/09.0TBVFR-E.P1
Nº Convencional: JTRP00043384
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: PODERES
ADMINISTRADOR
INSOLVÊNCIA
JUSTA CAUSA
DESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP20091216560/09.0TBVFR-E.P1
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 341 - FLS 29.
Área Temática: .
Sumário: I - Os poderes do Administrador da Insolvência visam a satisfação de interesses que não são próprios, correspondendo-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
II - Em termos deontológicos, o Administrador da Insolvência deve, nomeadamente, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes.
III - O Administrador da Insolvência pretendeu exercer o seu direito à remuneração, mas o modo como o fez configura um abuso das suas funções, e como tinha o dever funcional de cooperação com o tribunal, é altamente censurável, de molde a comprometer a sua manutenção / no cargo e, por isso, enquadra o conceito de justa causa para a destituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº 560/09.0TBVFR-E.P1- Apelação
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – .º Juízo Cível


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – Relatório

No processo supra identificado – Insolvência de pessoa colectiva - foi proferido o seguinte despacho:

“(…)Tendo em conta o despacho proferido a 19 de Junho de 2009 e a decisão nesta data proferida no processo nº 561/09, a qual damos aqui por reproduzida, decido destituir o Sr. Administrador da Insolvência e, em sua substituição, nomeio a Dr.a B………., com domicílio profissional na Rua ………., …, no Porto, constante da lista oficial, a qual iniciará as suas funções assim que receber a notificação da presente decisão.
Notifique e publicite (art. 572 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Comunique à Comissão prevista no art. 12° do Estatuto do Administrador da Insolvência.”
Notifique o Sr. Administrador da Insolvência agora destituído para, no prazo de 10 dias, apresentar contas do exercício do cargo (art. 62° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
O Sr. Administrador da Insolvência foi nomeado pelo tribunal e não pela assembleia de credores, pelo que a remuneração a que o mesmo tem direito é a prevista na primeira parte do n.° 2 do art. 21° do Estatuto, ou seja, uma remuneração fixa e global.
Assim, nos termos do disposto nos arts. 20°, nº 1, e 21°, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e no art. 1°, nº 2, da Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro, a remuneração devida é de 1.000,00 euros.
Notifique.”

O despacho proferido no processo nº 561/09 é o seguinte:

“(…) Fls. 554, 559 e 580 a 582.
A 9 de Abril de 2009, o Sr. Administrador da Insolvência veio requerer a fixação da remuneração devida pela gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente, em montante não inferior à remuneração mais elevada do mapa de pessoal junto aos autos.
A 16 de Abril de 2009, foi proferido despacho determinando a notificação da devedora e da comissão de credores para se pronunciarem.
A 20 de Maio de 2009, o Sr. Administrador da Insolvência fez juntar a posição assumida por dois membros da comissão de credores, dando concordância ao por si requerido, renovando a fixação da remuneração nos termos já referidos.
A 26 de Maio de 2009, o tribunal proferiu despacho no sentido de, tendo em vista fixar a remuneração em causa, ser o Sr. Administrador da Insolvência notificado para, em 10 dias, esclarecer qual a remuneração auferida pelos gerentes da insolvente.
Na sequência de tal notificação, veio o Sr. Administrador da insolvência apresentar o requerimento junto a fls. 580 a 582, a 4 de Junho de 2009, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais.

Nos termos do disposto no art. 16°, n.° 1, do Estatuto do Administrador da Insolvência, o "administrador da insolvência deve, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes".
Nos termos do disposto no art. 266°-B, º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável in casu por força do art. 17° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade, nenhuma das partes devendo usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra e do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições.
Finalmente, prevê o n.º 1 do art. 56° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que "O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substitui-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa".
Permite-se, pois, a destituição do administrador da insolvência a todo o tempo, por decisão do juiz, precedendo justa causa.
"Cobrem-se todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes a massa, e, segundo o entendimento que temos por melhor, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção das relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções" (cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume 1, pág. 263).
Conforme já referido, na sequência da notificação recebida do tribunal, o Sr. Administrador da Insolvência fez juntar, a 4 de Junho de 2009, o requerimento de fls. 580 a 582.
Em tal requerimento, o Sr. Administrador da Insolvência fez constar, para além do mais, o seguinte:
"1.° - Muito se estranha que, tendo o aqui exponente assumido as suas funções em Fevereiro de 2009 e tendo requerido a fixação da sua remuneração há cerca de dois meses, não tenha ainda sido proferido despacho a fixar essa remuneração, e estranha-se por várias razões, a saber:
a) É do conhecimento do Tribunal a extrema complexidade da actividade em causa, sendo que vêm sendo muitos os esforços desenvolvidos pelo AI (quer em Portugal, quer no estrangeiro) muitas vezes com sacrifício pessoal, profissional e económico, pois diariamente tem de se deslocar à insolvente para solucionar os inúmeros problemas com que aquela empresa se depara todos os dias;
b) É igualmente do conhecimento do Tribunal que, não obstante nos três processos apensos ao presente, a administração tenha sido confiada ao devedor, o aqui exponente é também neles Administrador de Insolvência, o que implica um avolumar quer do trabalho desenvolvido, quer das responsabilidades inerentes ao cargo;
c) Por último, estranha-se ainda mais que o Tribunal tarde tanto em proferir uma decisão que apenas traduzirá a mais elementar justiça - fixação da remuneração ao A.I. - quando ao longo dos presentes autos tem sido tão célere na prolação das decisões sobre questões que se reputam essenciais, mesmo com violação do princípio do contraditório, como aliás teve o aqui exponente oportunidade de o dizer nos autos, nomeadamente aquando do despacho que ordenou a apensação de todos os processos (cujo requerimento de apensação entrou num dia e, em clara violação dos demais elementares princípios orientadores do nosso processo civil, mormente do princípio do contraditório, o Tribunal proferiu despacho no dia seguinte).
(...)
O conteúdo de tal requerimento é sério e grave, não podendo o tribunal ficar a ele indiferente.
Na verdade, a conduta do Sr. Administrador da Insolvência põe em causa a imparcialidade e a isenção do tribunal, põe em causa a confiança do público nessa imparcialidade e nessa isenção, o que constitui, a nosso ver, fundamento de destituição por justa causa.
A conduta do Sr. Administrador da Insolvência é violadora dos deveres acima aludidos, a que o mesmo se encontra sujeito, sendo, por isso, inexigível que o tribunal o mantenha em funções.
Assim, e tendo em conta o disposto no art. 56°, n.° 1, do Código de Processo Civil, notifique a comissão de credores, a devedora e o Sr. Administrador da Insolvência para, em 10 dias, querendo, se pronunciarem (…)”.

O administrador da insolvência apresentou recurso, onde conclui:
1. Na origem da decisão que destituiu o Recorrente das suas funções de Administrador de Insolvência esteve tão só a decisão proferida nos autos que sob o nº …/09 correm termos pelo .º juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira.
2. Nos presentes autos o Recorrente foi nomeado na Assembleia de Credores em substituição do anterior Administrador que havia sido nomeado a pedido da devedora.
3. Tal nomeação é autónoma da nomeação efectuada nos supra identificados autos.
4. Mantendo os presentes autos a sua autonomia e sendo a nomeação de administrados independente, como foi, em cada um dos autos não pode, salvo o devido respeito, qualquer vicissitude ocorrida naqueles autos determinar a destituição do Recorrente nos presentes autos.
5. Com efeito, fundando-se a destituição no teor do requerimento apresentado pelo Recorrente a 4 de Junho de 2009 no processo …/09, não podem tais fundamentos servir para sustentar a destituição do Recorrente nos presentes autos.
6. Sendo certo que a nomeação do Recorrente no âmbito dos diferentes autos não se alicerça em qualquer decisão judicial que considerasse mais conveniente para a marcha processual de todos eles a existência de um único administrador, ou seja, tratou-se pelo contrário de uma nomeação absolutamente independente e autónoma à margem de qualquer ponderação de conveniência ou vantagem espelhada em decisão judicial, não resultando a nomeação do despacho que determinou a apensação dos processos.
7. Carece de qualquer fundamento a destituição do Recorrente nos presentes autos,
8. O Recorrente, que há cerca de cinco meses se encontrava a trabalhar arduamente no estabelecimento da Insolvente com deslocações diárias ao mesmo, onde permanecia pelo menos cinco / seis horas por dia - atenta a complexidade da actividade em causa -, quis tão só alertar o Tribunal para o facto de a não fixação da sua remuneração lhe estar a causar embaraço, também, económico uma vez que não só não estava a ser remunerado pelo seu trabalho como estava, ainda, a ter que pagar para trabalhar!!
9. Teve o Recorrente necessidade de alertar o Tribunal da forma que o fez pelo facto de ter requerido nos autos que fosse fixada a sua remuneração já no início de Abril de 2009, ter renovado tal pedido em 20 de Maio e decorridos praticamente dois meses de o Tribunal vir, ainda, proferir despacho - no entender do Recorrente absolutamente desnecessário, inócuo e dilatório - no sentido de esclarecer a remuneração auferida pelos gerentes da Insolvente, desnecessário e inócuo pelo facto de junto aos autos há muito se encontrar quer a certidão da matrícula da insolvente, quer o seu mapa de pessoal com as respectivas remunerações,
Dilatório pelo facto de o Recorrente se encontrar a trabalhar há mais de cinco meses sem ser remunerado, pelo facto de ter requerido que a remuneração lhe fosse fixada no início de Abril de 2009 e aquele despacho datar de 26 de Maio (cerca de dois meses decorridos) e pelo facto de, a acrescer a isto, se tratar de um processo urgente em que é fixado um prazo de 10 dias para prestação de esclarecimentos acerca de situações já documentadas nos autos.
10. O Recorrente, ao escrever como escreveu, não teve qualquer intenção de ofender, pôr em causa ou desrespeitar o Tribunal como teve já oportunidade de referir no seu requerimento de fls 699 e 700, além de que como diz o ditado "Quem não deve não teme". O Recorrente, ao escrever como escreveu, limitou-se a resumir - no que para a situação relevava - ipsis verbis - aquilo que consta dos autos exemplificando o teor do por si alegado na alínea c) daquele requerimento de 4 de Junho com o despacho que ordenou a apensação de todos os processos - despacho esse que foi proferido sem ouvir quem quer que fosse, no dia imediato à apresentação do requerimento onde era solicitada a apensação e que o Tribunal a quo, mesmo depois de expressa e formalmente requerido pela Massa Insolvente da C………., se recusou a notificar indeferindo o requerido e não tendo qualquer pejo em condenar aquela Requerente em custas do incidente fixando a taxa de justiça em 2 UC's!!
11. Ao escrever "muito se estranha que..." quis tão só dizer que não conseguia compreender tanta demora na fixação da sua remuneração querendo aquela expressão significar "Tanto mais que..", ou seja, o que foi dito é que não se compreendia tanta demora, tanto mais que o Tribunal noutras situações tinha sido tão célere a decidir.
12. O Recorrente oportunamente esclareceu o Tribunal de que não quis nunca ofender, pôr em causa ou desrespeitar a instituição tão pouco a Senhora Juiz a quo, apresentou um pedido de desculpas por ter sido mal interpretado e propôs-se apresentar tal pedido de desculpas, se o Tribunal a que assim o entendesse, publicamente no decorrer das assembleias que viessem a ser designadas para discussão dos planos apresentados pelas devedoras!
13. De forma peremptória a Senhora Juiz a quo rejeitou liminarmente tal pedido de desculpa!
14. O Recorrente não violou qualquer dever que fundamente a sua destituição, sempre ao longo dos autos demonstrou um comportamento revelador de independência e isenção, de defesa da massa e dos credores, sempre comunicou ao Tribunal a quo e Comissão de credores tudo o que reputava de interesse para os objectivos prosseguidos nos processos aliás nem o Tribunal, nem a Comissão de Credores, nem qualquer credor nem a própria devedora podem apontar - como não apontam -o que quer que seja ao desempenho profissional do Recorrente como bem o espelham os autos,
15. Mesmo admitindo que em abstracto o teor do requerimento apresentado pelo recorrente em 4 de Junho era susceptível de levar à interpretação que lhe foi dada pela Senhora Juiz a quo sempre a sanção que a mesma lhe fez corresponder se mostra ostensivamente desproporcional!!
16. A destituição do Administrador ao abrigo do 56°/1 do CIRE só pode ocorrer quando, de forma inequívoca, seja demonstrada a inaptidão ou incompetência para o exercício das funções ou quando de igual forma o Administrador viole culposa e injustificadamente os deveres que legalmente estão impostos, resultando dai relevante prejuízo para a massa insolvente.
17. A Senhora a Juiz a quo quis tão só de forma gratuita humilhar o Recorrente 18. Foi violado o artigo 56º do CIRE
Assim, sendo e por tudo quanto fica exposto revogando V.Exas., Senhores Desembargadores, a decisão de que se, recorre e substituindo-a por decisão que mantenha em junções o Recorrente, farão INTEIRA e SÃ JUSTIÇA!

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 685-A,º nºs 1 e 3, do CPC, na redacção do Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se, no caso, existe justa causa para a destituição do Administrador da Insolvência

II – Fundamentação.
1.Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do descrito supra.

2. Factos versus direito

No capitulo III, sob a epígrafe “órgãos da insolvência,” surge o artº 52º: do CIRE:
1- A nomeação do administrador da insolvência é da competência do juiz.
2 - Aplica-se o disposto no Artigo 32º, n.º 1, devendo o juiz atender igualmente às indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela comissão de credores, se existir, e cabendo a preferência, na primeira designação, ao administrador judicial provisório em exercício à data da sentença de declaração da insolvência.
3 - O processo de recrutamento para as listas oficiais, bem como o estatuto do administrador da insolvência, constam de diploma legal próprio, sem prejuízo do disposto neste Código.
O artº 55º respeita às funções e exercício deste cargo de administrador da insolvência:
1- Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:
a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;
b) Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for ocaso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.
2 - O administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, não podendo substabelecê-las em ninguém, sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário ou de necessidade de prévia concordância da comissão de credores.
3 - O administrador da insolvência, no exercício das respectivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão. (…)”
O artº 56º dispõe sobre a destituição do administrador da insolvência:
1- O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substitui-lo por outro, se ouvida a comissão de credores, quando exista, fundadamente considerar existir justa causa.(…)”
“Os poderes do Administrador têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios: corresponde-lhe, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (cfr. artº 59º, in fine).
Mesmo quando a lei lhe atribui a possibilidade de opção entre várias alternativas, o administrador deve agir de acordo com aquela que, segundo as circunstâncias concretas e ao olhar de um gestor criterioso e ordenado, se evidenciar como a mais favorável e proveitosa para a melhor tutela dos interesse dos credores.
É a esta luz que têm sempre que ser avaliadas as faculdades múltiplas que cabem ao administrador, bem como os deveres que sobre ele impendem. E a essa mesma luz será apreciado o seu procedimento e, correspondentemente, medida a sua responsabilidade.” – Luís A. Carvalho Fernandes, João Labareda, in Código da Insolvência E Da Recuperação de Empresas Anotado, ed. Quid Juris 2008, pag.259.
Como resulta do citado normativo a destituição do administrador da insolvência só pode ter lugar se existir justa causa, revelada nos factos alegados e provados no processo.
A lei não fornece a definição ou um conceito de justa causa nem sequer enumera casuisticamente as situações susceptíveis de constituírem justa causa.
A ideia de justa causa para destituição tem associada a da violação ou de incumprimento de algum dever no exercício das suas funções. A justa causa, quando não resulte de incapacidade do Administrador para o exercício das respectivas funções, pressupõe a violação grave dos deveres no exercício das respectivas funções.
Em qualquer das situações, a justa causa é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções.
A justa causa terá sempre de ser apreciada em concreto, face à factualidade que se provar, tendo em conta os vários aspectos relacionados com a sua gestão.
O artº 16 do Estatuto do Administrador de Insolvência (aprovado pela Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho) elenca os deveres do Administrador da Insolvência:
1- O administrador da insolvência deve, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes.
2 - O administrador da insolvência, no exercício das suas funções, deve manter sempre a maior independência e isenção, não prosseguindo quaisquer objectivos diversos dos inerentes ao exercício da sua actividade.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, os administradores da insolvência inscritos nas listas oficiais devem aceitar as nomeações efectuadas
pelo juiz, devendo este comunicar à comissão a recusa de aceitação de qualquer nomeação.
4 - O administrador da insolvência deve comunicar, no prazo de 15 dias, aos juízes dos processos em que se encontrem a exercer funções e à Direcção Geral da Administração da Justiça, qualquer mudança de domicílio profissional.
5 - Os administradores da insolvência que tenham completado 70 anos de idade devem fazer prova, mediante atestado médico a enviar à comissão, de que possuem aptidão para o exercício das funções.
6 - O atestado a que se refere o número anterior é apresentado de dois em dois anos, durante o mês de Janeiro.

No caso concreto, o AI apresentou um requerimento, requerendo a fixação da remuneração devida pela gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente, o qual contem o seguinte trecho:
“1.° - Muito se estranha que, tendo o aqui exponente assumido as suas funções em Fevereiro de 2009 e tendo requerido a fixação da sua remuneração há cerca de dois meses, não tenha ainda sido proferido despacho a fixar essa remuneração, e estranha-se por várias razões, a saber:
a) É do conhecimento do Tribunal a extrema complexidade da actividade em causa, sendo que vêm sendo muitos os esforços desenvolvidos pelo AI (quer em Portugal, quer no estrangeiro) muitas vezes com sacrifício pessoal, profissional e económico, pois diariamente tem de se deslocar à insolvente para solucionar os inúmeros problemas com que aquela empresa se depara todos os dias;
b) É igualmente do conhecimento do Tribunal que, não obstante nos três processos apensos ao presente, a administração tenha sido confiada ao devedor, o aqui exponente é também neles Administrador de Insolvência, o que implica um avolumar quer do trabalho desenvolvido, quer das responsabilidades inerentes ao cargo;
c) Por último, estranha-se ainda mais que o Tribunal tarde tanto em proferir uma decisão que apenas traduzirá a mais elementar justiça - fixação da remuneração ao A.I. - quando ao longo dos presentes autos tem sido tão célere na prolação das decisões sobre questões que se reputam essenciais, mesmo com violação do princípio do contraditório, como aliás teve o aqui exponente oportunidade de o dizer nos autos, nomeadamente aquando do despacho que ordenou a apensação de todos os processos (cujo requerimento de apensação entrou num dia e, em clara violação dos demais elementares princípios orientadores do nosso processo civil, mormente do princípio do contraditório, o Tribunal proferiu despacho no dia seguinte).”
Entendeu o Sr. Juiz a quo (adiantando-se já que muito bem) que “(…) a conduta do Sr. Administrador da Insolvência põe em causa a imparcialidade e a isenção do tribunal, põe em causa a confiança do público nessa imparcialidade e nessa isenção, o que constitui, a nosso ver, fundamento de destituição por justa causa.(…)”
Dispõe o artigo 26. do Estatuto do Administrador da Insolvência, intitulado pagamento da remuneração do administrador da insolvência, que:
1 - A remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente, salvo o disposto no artigo seguinte.
2 - A remuneração prevista no n.º 1 do artigo 20.º é paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação e a segunda seis meses após tal nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo.
3 - A remuneração prevista nos nºs 2 a 4 do artigo 20.º é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo.
4 - A remuneração pela gestão, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, é suportada pela massa insolvente e, prioritariamente, pelos proventos obtidos com a exploração do estabelecimento.

Como se disse os poderes do AI visam a satisfação de interesses que não são próprios, correspondendo-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
Em termos deontológicos, o AI deve, nomeadamente considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes.
O AI pretendeu exercer o seu direito à remuneração, mas o modo como o fez configura um abuso das suas funções, mais precisamente as criticas que tece à actuação do tribunal, para além de extravasarem o âmbito das suas funções, configuram um desrespeito à instituição – tribunal - órgão de soberania de um Estado de Direito.
O comportamento do AI, que tinha o dever funcional de cooperação com o tribunal, é altamente censurável, de molde a comprometer a sua manutenção no cargo e, por isso, enquadra o conceito de justa causa para a destituição.

Diz o recorrente na origem da decisão que o destituiu das suas funções de Administrador de Insolvência esteve tão só a decisão proferida nos autos que sob o nº …/09 correm termos pelo .º juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira
Nos presentes autos foi nomeado na Assembleia de Credores em substituição do anterior Administrador que havia sido nomeado a pedido da devedora
Tal nomeação é autónoma da nomeação efectuada nos supra identificados autos, mantendo os presentes autos a sua autonomia e sendo a nomeação de administrador independente, como foi, em cada um dos autos não pode, salvo o devido respeito, qualquer vicissitude ocorrida naqueles autos determinar a destituição do Recorrente nos presentes autos.

Resulta dos autos que os processos de insolvência estão apensos, constituindo uma unidade.
A actuação do AI compromete as suas funções em todos os processos e, por isso, foi destituído nos presentes autos por despacho autónomo, não fazendo qualquer sentido esta sua argumentação.

Pelo exposto decide-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.

Conclusões:
I - Os poderes do Administrador da Insolvência visam a satisfação de interesses que não são próprios, correspondendo-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
Em termos deontológicos, o AI deve, nomeadamente, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes.
II - O AI pretendeu exercer o seu direito à remuneração, mas o modo como o fez configura um abuso das suas funções, mais precisamente as criticas que tece à actuação do tribunal, para além de extravasarem o âmbito das suas funções, configuram um desrespeito à instituição – tribunal - órgão de soberania de um Estado de Direito.
O comportamento do AI, que tinha o dever funcional de cooperação com o tribunal, é altamente censurável, de molde a comprometer a sua manutenção no cargo e, por isso, enquadra o conceito de justa causa para a destituição.

PROCESSO Nº 560/09.0TBVFR-E.P1- Apelação
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – .º Juízo Cível

Custas pelo recorrente

Porto, 16 de Dezembro de 2009
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Bernardino de Carvalho