Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0732891
Nº Convencional: JTRP00040791
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO
DIREITO DE ACESSO A PRÉDIO RÚSTICO
Nº do Documento: RP200711080732891
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 737 - FLS. 11.
Área Temática: .
Sumário: I – A norma do art. 1345º do CC contém uma verdadeira forma de aquisição do direito de propriedade, uma aquisição ope legis do Estado, que se enquadra nos “demais modos previstos na lei” de que fala o art. 1316º do mesmo Cod.
II – O proprietário que seja impedido de ter acesso ao seu prédio tem apenas de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade e o impedimento do acesso.
III – É quem lhe impede o acesso que tem de justificar esse impedimento, designadamente, alegando e provando a existência de um qualquer direito sobre o local de acesso em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…………………… e mulher C…………….. instauraram acção declarativa com forma de processo sumário contra D……………… e mulher E……………..
Pediram que os réus fossem condenados a:
A) Reconhecerem os autores como proprietários do prédio identificado no artº 1º da petição;
B) Reconhecerem que aquele prédio do lado sul confronta em parte com o prédio dos réus e ainda com a rua numa extensão de cerca de 12 metros;
C) Absterem-se da apropriação de qualquer parcela de terreno do lado sul do referido prédio que confronta com a rua, bem como de pôr obstáculos nessa parte da rua confinante com o prédio dos autores de forma a impedir a passagem ou acesso ao seu prédio, pelo lado sul, com as demais consequências legais.
Como fundamento, alegaram factos tendentes a demonstrar que adquiriram por usucapião e compra o prédio que identificam no artº 1º da petição inicial. Que o referido prédio sempre confrontou, do Sul, em parte com um prédio pertencente aos réus, e, na parte restante, com caminho público ou rua. Que os réus ocuparam, com lenha, parte do referido caminho público, impedindo o acesso dos autores ao seu prédio.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelos autores e pedindo a condenação destes como litigantes de má fé, em multa e indemnização.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Reconheceu o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano sito no …….. ou ……….., composto de casa de dois pavimentos e dez divisões, inscrito na matriz sob o artigo 455º da freguesia de Soutelo do Douro e descrito na CRP de S. João da Pesqueira, sob o nº 00566/290792.
B) Reconheceu que o prédio identificado em A) confronta do lado Sul em parte com o prédio dos réus.
C) Absolveu os réus do demais peticionado.

Inconformados, os autores recorreram, formulando as seguintes
Conclusões:
1ª - Os apelantes são proprietários de prédio urbano, sito no …………… ou …………….., inscrito na matriz sob o artigo 455º, da freguesia de Soutelo do Douro, descrito na CRP de S. João da Pesqueira com o nº 00566/290792.
2ª - O prédio dos apelantes do lado sul sempre confrontou em parte com prédio dos apelados e noutra parte com um espaço, em forma de rectângulo que no do lado oposto ao prédio dos apelantes mede 13,5 m de comprimento, e de largura 3,30 m.
3ª - Este espaço está ladeado pelo prédio dos apelantes – no lado norte, dos apelados – no lado nascente e sul, pelo prédio de F……………. – no lado sul e pelo prédio de G…………… – também no lado sul, espaço este que apesar de servir de acesso para o prédio dos apelados e o do F………………., tal espaço não tem qualquer limite ou obstáculo à entrada ou saída do mesmo, isto é na parte confinante com o caminho público – lado poente.
4ª – Os apelantes, os apelados, ou qualquer outro proprietário de prédio confinante com este espaço, não têm título que legitime a posse do mesmo.
5ª – Não se tendo provado que o espaço é privado, o mesmo deverá ser considerado público, porque pertença do Estado.
6ª - As coisas imóveis sem dono presumem-se que pertence ao património do Estado.
7ª - Apesar de ser um espaço pequeno, ele permite a circulação de qualquer pessoa, colocação de materiais, etc., e até as entidades públicas já ali colocaram saneamento e água canalizada, pelo que também se verifica afectação por parte de entidade pública competente.
8ª - Porque este espaço permite o acesso aos proprietários dos prédios confinantes, está servido de canos públicos de esgotos e água canalizada, bem como para aceder àquele local não há qualquer obstáculo, está-se assim numa via pública urbana, porque aberto, está ladeada de casas, prédios, muros, a que habitualmente se chama rua.
9ª - Há cerca de dois anos, os apelantes fizeram obras de ampliação de uma obra existente no seu prédio, pagaram licenças à Câmara Municipal para ocupar a via pública, e naquele espaço descarregaram e colocaram os materiais de construção, mormente areia, cimento, tijolos, verguinha de ferro, que depois passavam para dentro do seu prédio.
10ª - O prédio dos apelantes, pelo lado sul, desde sempre confrontou em parte com o prédio dos apelados e ainda com espaço público, que mede 13,5 m contados desde a porta das traseiras da casa dos apelados, até ao limite do prédio de G………………, e apresenta uma largura de 3,30 m entre o limite sul do prédio dos apelantes e os prédios do G………….., F………………. assinalado no documento de fls. 13.
11ª - A sentença recorrida não teve em consideração os factos documentados e provados, e a presunção resultante da lei quanto a coisas imóveis sem dono, havendo elementos que permitem proferir decisão quanto ao espaço em questão.

Os réus contra-alegaram, pugnando pelo improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos (que não foram impugnados):
Por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de S. João da Pesqueira, em 19.08.74, H……………. e mulher, I……………., J……………… e mulher, L……………., declararam vender a C………………, casada com B………………, um prédio rústico composto de terra de semeadura, no sítio de ………. Ou …………., limite da estrada, freguesia de Soutelo do Douro, a confrontar de nascente com G………………, de Poente e Norte com caminho público e de Sul com D………………., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 172°, com o valor matricial de dois mil e cem escudos, não descrito no Registo Predial.
Encontra-se descrito na CRP de S. João da Pesqueira, sob o nº 00566/290792, a aquisição a favor de B……………, c.c. C………………., de um prédio urbano - ………….ou ………… - casa de 2 pavimentos e 10 divisões, tendo 4 no 1° e 6 no 2°, 92 m2 – Quintal - 110 m2 - Norte, Caminho público; Sul, D …………; Nascente, G…………….; Poente, caminho público, artigo 455, V.P. 55.145$00. (A)
O prédio descrito em B) foi edificado no prédio rústico descrito em A). (acordo das partes em audiência de julgamento)
Os autores, por si e ante-possuidores, ocupam o prédio referido em B) há mais de 40 anos, tendo os autores nele construído a casa de habitação referida em B) e aí fazendo obras de conservação e beneficiação, cultivando, semeando e colhendo os frutos do quintal, pagando taxas de água e electricidade, impostos e contribuições, ocupando, varrendo, limpando, construindo no quintal, executando trabalhos e pagando o seu custo. (acordo das partes em audiência de julgamento)
Os autores vêm actuando do modo acima descrito à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, sem interrupções e na convicção de exercerem direito próprio e não lesarem direitos de outrem. (acordo das partes em audiência de julgamento)
No Serviço de Finanças de S. João da Pesqueira, relativamente ao prédio identificado em B), constam as seguintes confrontações: Norte: terrenos do próprio; Sul: terrenos do próprio; Nascente: terrenos do próprio; Poente: terrenos do próprio. (doc. de fls. 7 e 8)
O prédio descrito em A) e B) confrontou de Nascente com um prédio pertença de G……………, de Poente e Norte com caminho público e de Sul parte da confrontação do prédio sempre foi com o prédio pertença dos réus. (10º)
Quer o prédio identificado em B), pelo lado sul, quer o prédio dos réus, pelo lado poente e norte, sempre confrontaram com o espaço que serve de acesso à entrada, pela traseira, da casa dos réus e à entrada do prédio de F……………... (12º)
No mesmo local e na continuação do prédio dos réus, no sentido Nascente-Poente, confrontam os prédios pertença de F……………. e G…………….. (13º)
No Serviço de Finanças de S. João da Pesqueira consta, sob o artigo matricial nº 303, da freguesia de Soutelo do Douro, concelho de S. João da Pesqueira, que F…………. se encontra inscrito como titular da propriedade plena do prédio sito em…………., lugar de ……………, com as seguintes confrontações: Norte: rua; e Poente: …………. (doc. de tis. 14).
No Serviço de Finanças de S. João da Pesqueira consta, sob o artigo matricial nº 195, da freguesia de Soutelo do Douro, concelho de S. João da Pesqueira, que G…………… se encontra inscrito como titular da propriedade plena do prédio sito em………, lugar de…………., com as seguintes confrontações: Norte: rua; Sul: rua; Nascente: M……………….; e Poente: N……………... (doc. de fls. 15)
Por referência ao documento de fls. 16 (n° 7): a) Os prédios de F………….. e de G………….. são os que se vêem do lado esquerdo (portão de garagem e parede em xisto); b) O prédio identificado em B) é o que se vê do lado direito, delimitado pelo portão branco, pátio e onde se vêem uns tijolos. (14º)
Por referência ao documento de fls. 16 (nº 8): a) Os prédios de F…………… e de G…………… são os que se vêem do lado direito; b) o prédio identificado em B) é do lado esquerdo, incluindo a obra em construção. (15º)
Há cerca de dois anos, os autores fizeram obras de ampliação de uma obra existente no quintal que se vê do lado esquerdo do doc. de fls. 16 (nº 8). (16º)
Os autores efectuaram projecto, pediram licenciamento, pagaram licenças à Câmara para ocupar a via pública. (17º)
Os autores colocaram no espaço referido em 12º os materiais de construção, mormente areia, cimento, tijolos e verguinhas de ferro, que depois passavam para dentro do prédio identificado em B). (18º)
Os réus impediram o acesso dos autores pelo lado sul do prédio, começando por ocupar a rua com lenha, colocando-a junto ao prédio dos autores, dificultando a entrada de materiais de construção no prédio dos autores. (B)
Pela rua que os réus impedem o acesso, passam os canos públicos de esgotos e água canalizada que servem os prédios dos proprietários confinantes com esta parcela de terreno, como o prédio de F……………... (C)
Os réus colocaram lenha no espaço referido em 12º, impedindo o acesso dos autores à obra referida em 15º (al. b). (19º)
Os réus passam pela entrada para sua casa e quintal, pelo portão existente no espaço referido em 12º, juntamente com F………………. (20º)
A partir da via pública, o acesso à casa dos réus, bem como ao prédio de F…………….., é feito pelo espaço referido em 12º, compreendido entre essas casas e a casa identificada em B). (21º)
O espaço referido em 12°, compreendido entre as duas casas e o prédio indicados em 21º, serve apenas para acesso à casa dos réus e ao prédio de F……………, mencionados em 21º. (22º)
O espaço referido em 12º é a derivação à direita, a seguir à saída da rua pública, que apenas serve a casa dos réus e o prédio de F………………. (23º)
O espaço referido em 12º não serve a casa de G…………….., que só tem acesso pelo lado contrário, directamente pela via pública. (24º)
O espaço referido em 12º tem corno limite a entrada para o quintal da casa dos réus, que se faz pelo portão preto que se vê no doc. nº 8, a fls. 16. (25º)
O espaço descrito em 23º a 25º serviu apenas para acesso à casa dos réus e ao prédio indicados em 23º, pelos seus donos e anteriores donos da casa destes. (26º)
Durante muitos anos, os réus mantiveram ali uma estrumeira, ocupando o espaço com mato, e em que faziam despejos domésticos e depositando materiais relacionados com a vida agrícola e doméstica, mormente lenhas. (27º)
Os autores nunca passaram pelo espaço descrito em 23º a 25º para aceder ao prédio identificado em B). (28º)
A passagem pelo espaço identificado em 23º a 25º para aceder ao prédio identificado em B) não era possível, por existir entre o acesso a esse prédio e o espaço em questão um desnível, na parte inicial, que dá acesso à garagem e à porta de entrada principal deste prédio, de 1,05 m, e, na parte final do percurso que dá acesso à mesma garagem, de 2,20 m. (29º)
O acesso referido em 29º esteve vedado, pelo lado da casa identificada em B) e a mando dos autores, com uma rede colocada, amarrada pelo lado exterior do muro de suporte do espaço descrito em 23º a 25º. (30º)
*
III.
É questão a decidir (delimitada pelas conclusões da alegação dos apelantes - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
- Se a factualidade provada determina a procedência da acção.


Os autores alegaram que são proprietários de um prédio que, pelo lado sul, confina, em parte, com um prédio dos réus, e, em parte, numa extensão de cerca de 12 metros, com uma rua ou caminho público.
Alegaram ainda que os réus vêm impedindo o acesso ao prédio dos autores através da referida rua ou caminho público.
Com tais fundamentos, pediram que os réus sejam condenados a reconhecer que o prédio dos autores confina, a sul, em parte com o prédio dos réus e, em parte, numa extensão de cerca de 12 metros, com a rua ou caminho público; e ainda que os réus se abstenham pôr obstáculos no dito caminho, por forma a impedir o acesso dos autores ao seu prédio, pelo lado sul.
Os réus defenderam-se, aceitando o direito de propriedade dos autores sobre o prédio e confessando que impediram o acesso ao mesmo pelo lado sul, através da “rua” ou “caminho” referida pelos autores, mas alegando que aquela “rua” ou “caminho” é um espaço que sempre deu acesso apenas ao seu prédio e a outros dois.
Provou-se que, pelo lado sul, o prédio dos autores confina, em parte, com o prédio dos réus e, em parte, com um espaço compreendido entre o seu prédio, o prédio dos réus e um prédio pertencente a F……………; confinando ainda com o mencionado espaço um outro prédio pertencente a G…………………....
No entanto, também se provou que o espaço em causa foi sempre utilizado tão só para acesso aos prédios do réu e de F…………., já que o prédio de G…………….. tem acesso apenas pelo lado contrário e entre o espaço e o prédio dos autores existia um desnível que não permitia o acesso. Além disso, os réus utilizavam ainda o espaço para depositarem lenhas e outros materiais.
Há cerca de dois anos, os autores efectuaram obras no seu prédio, tendo colocado os materiais respectivos no mencionado espaço e pretendendo por ali aceder ao seu prédio, no que foram impedidos pelos réus, que colocaram lenhas no espaço.
Perante aquela factualidade, a Mª Juíza a quo entendeu que os réus não alegaram nem provaram a dominialidade pública sobre o espaço em causa e, com tal fundamento, julgou a acção improcedente.
Sustentam os autores que existe uma presunção de dominialidade pública, que deriva do disposto no artº 1345º do CC e, portanto, não tendo os réus ilidido tal presunção, deveria a acção ter sido julgada procedente.
Vejamos:

No artº 1316º do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem – indicam-se expressamente os seguintes modos de aquisição do direito de propriedade: contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e acessão.
Aquela enumeração não é exaustiva, como se depreende da própria letra do preceito, quando fala em “outros modos previstos na lei”
Objecto da ocupação, em sentido próprio, só podem ser as coisas móveis que nunca tiveram dono (res nullius) ou foram abandonadas pelos seus proprietários (res derelictae).
As coisas imóveis nunca podem ser ocupadas, porque, como se diz no artº 1345º, as coisas imóveis sem dono conhecido consideram-se do património do Estado.
Como refere Oliveira Ascensão(1), rigorosamente, aquele preceito apresenta-se como uma presunção; e até como presunção ilidível, pois que, se se demonstrar quem é o dono, as pretensões do Estado são afastadas. Por isso, se fala das coisas “sem dono conhecido”.
Aquele autor conclui, no entanto, que, sendo a razão da lei a de evitar a situação de imóveis sem dono e beneficiar o património do Estado, além da presunção, há também uma causa de constituição da propriedade, que é de actuação automática, não sendo necessário nenhum acto de ocupação da parte do Estado, portanto, nenhuma apreensão nem o animus correspondente.
Aquele entendimento é reforçado pelo facto de o artº 1345º ter como fonte imediata o artº 827º do CC italiano e as suas origens remotas nos artºs 539º e 713º do CC francês e os doutrinadores daqueles países concordarem em que o legislador terá visado impossibilitar a qualificação dos imóveis sem dono conhecido como res nullius e, consequentemente, a aplicação do instituto da ocupação(2).
A norma do artº 1345º contém assim uma verdadeira forma de aquisição do direito de propriedade, uma aquisição ope legis do Estado, que se enquadra nos “demais modos previstos na lei” de que fala o artº 1316º.
Dizem Pires de Lima e Antunes Varela(3) que o artº 1345º consagra o princípio tradicional do direito eminente do Estado sobre todo o território, em consequência dos seus poderes de soberania. E que a disposição tem estreitas afinidades substanciais com a regra do direito sucessório que chama o Estado a recolher as heranças vagas 8artºs 2133º, al. e) 2152º e segs.).
Já Menezes Cordeiro(4) entende que não parece possível dar uma ideia técnica precisa do que seja um “domínio eminente” no actual direito das coisas, razão pela qual considera ser mais conveniente considerar que o artº 1345º prevê um forma própria, autónoma, de constituição do direito de propriedade, regida pelo direito privado. Assim, quando essa constituição opere, o imóvel em causa coloca-se no domínio privado do Estado e não no domínio público(5).

No caso dos autos, existe uma parcela de terreno com a qual confinam os prédios dos autores e dos réus e ainda outros dois prédios, não se tendo provado – nem alegado – que algum particular seja titular de qualquer direito, maxime, do direito de propriedade sobre a referida parcela.
Não foi assim ilidida a presunção estabelecida no artº 1345º, pelo que tem de concluir que a parcela em causa foi adquirida pelo Estado, ope legis, revertendo automaticamente para o património privado deste.
Não se tendo provado a dominialidade pública da parcela, quer pelas razões aduzidas na sentença recorrida, quer pelas que acima expusémos, não é possível dar integral procedência ao pedido formulado pelos autores na al. B) do petitório, declarando que o seu prédio confina com a rua. Nada mais se pode declarar do que a confinância do prédio com a referida parcela.

A parcial improcedência do pedido formulado em B) não acarreta, no entanto, a improcedência do pedido formulado em C), ou seja, a condenação dos réus a absterem-se de impedirem os autores de aceder ao seu prédio através da dita parcela de terreno.
Diz o artº 1305º que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, disposição e fruição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
No exercício do seu direito, o proprietário pode aceder ao seu prédio por onde quiser, inclusivamente criando novos acessos, desde que não viole direitos de outrem, nem as disposições legais sobre edificações urbanas.
Assim, o proprietário que seja impedido de ter acesso ao seu prédio tem apenas de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade e o impedimento do acesso.
É quem lhe impede o acesso que tem de justificar esse impedimento, designadamente, alegando e provando a existência de um qualquer direito sobre o local de acesso em causa.
Transpondo o acima exposto para o caso dos autos, os autores nada mais tinham de alegar e provar para além de que são proprietários do prédio aludido em B) e que os réus os impedem de aceder a esse prédio através da parcela de terreno descrita no quesito 12º, ocupando-a com lenhas.
Sobre os réus impendia o ónus de alegar e provar que têm um título legítimo de ocupação da parcela em causa, invocando a titularidade de um direito (de propriedade, de usufruto, de servidão de passagem, etc.) sobre a mesma.
Ora, os réus não questionaram o direito de propriedade dos autores sobre o mencionado prédio, e confessaram que vêm impedindo o acesso dos autores ao prédio, ocupando com lenhas a parcela em questão.
No mais, limitaram-se a alegar que a parcela sempre foi usada apenas como aceso para o seu prédio e para outro, e como depósito de lenhas e outros materiais e ainda que os autores nunca por ela fizeram acesso para o seu prédio.
Tais factos não conduzem à aquisição do direito de propriedade ou de outro direito real sobre a parcela em causa, por nenhum dos modos previstos na lei: como acima dissemos, as coisas imóveis não podem ser adquiridas por ocupação.
Não se demonstrando a existência de um direito dos réus sobre a parcela em causa, não tem estes legitimidade para se opor a que outrem, incluindo os autores, a utilizem também, nomeadamente para acesso a um prédio.
Por isso, é irrelevante a prova da dominialidade pública da parcela, que os autores nem sequer careciam de alegar.
Procedem, assim, em parte, as conclusões dos autores, e, consequentemente, procede o pedido formulado na al. C) do petitório, devendo os réus ser condenados a abster-se de impedir os autores de acederem ao seu prédio através da parcela de terreno descrita no quesito 12º.

De todo o exposto resulta que a os autos continham todos os elementos para que fosse proferida decisão de mérito logo no despacho saneador.

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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se, em parte, a sentença recorrida e, em consequência:
A) Declara-se que os autores são proprietários do prédio urbano sito no …………..ou ………….., composto de casa de dois pavimentos e dez divisões, inscrito na matriz sob o artigo 455º da freguesia de Soutelo do Douro e descrito na CRP de S. João da Pesqueira, sob o nº 00566/290792.
B) Declara-se que o prédio identificado em A) confronta do lado Sul em parte com o prédio dos réus e em parte com a parcela de terreno descrita no quesito 12º.
C) Condenam-se os réus a absterem-se de pôr obstáculos na parte da parcela de terreno referida em B) que confina com o prédio dos autores, por forma a impedir o acesso dos autores ao seu prédio pelo lado Sul.
D) Absolvem-se os réus do demais peticionado.
Custas em ambas as instâncias pelos autores e pelos réus na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente.
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Porto, 08 de Novembro de 2007
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
António Domingos R. Coelho da Rocha
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(1) Direitos Reais, 432 e 433.
(2) Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 339.
(3) CC Anotado, II, 2ª ed., 175.
(4) Direitos Reais, Reprint, 549 e nota 1216.
(5) Este é também o entendimento aflorado no Ac. desta
Relação de 20.06.94, www.dgsi.p