Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0250870
Nº Convencional: JTRP00033713
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA
EXTRAVIO
TRIBUNAL
FOTOCÓPIA
Nº do Documento: RP200209300250870
Data do Acordão: 09/30/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J MAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: CPC95 ART45 C ART152 N3 ART161 N6.
Sumário: Uma execução para pagamento de quantia certa pode prosseguir com base em simples fotocópia de letra de câmbio, como título executivo, se houver indícios de que o original da letra foi apresentado com o requerimento inicial da execução mas veio a desaparecer, no tribunal, por causa não imputável ao exequente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de Execução Para Pagamento de Quantia Certa, que, sob a forma ordinária, a exequente “R......., Ldª” , em 21.11.2000, move a:
António ......... e G........
Pretende a Exequente obter dos Executados a cobrança da quantia de 766.295$00, sendo 763.000$000 de capital, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, alegando a existência de uma dívida dos executados, titulada por uma letra de câmbio, emitida em 25.7.2000, e vencida em 25.9.2000, de que é sacadora (a exequente) e sacados-aceitantes os executados.
A fls. 8 dos autos, surge lavrada cota onde a Secção informa que a petição inicial não se fazia acompanhar do original do documento n°1 – a letra de câmbio – ali invocada, mostrando-se juntas com os duplicados meras fotocópias do mesmo.
Face a tal informação, foi ordenada pelo Tribunal, a notificação da Exequente para juntar aos autos o original da letra de câmbio referida como documento nºl, mencionada no art. 2° do seu requerimento executivo.
Em resposta, alegou a Exequente que o original em causa foi entregue na Secção Central do Tribunal, no momento da apresentação do requerimento executivo, e que tudo foi conferido na Secção Central, nenhuma objecção tendo sido posta à recepção da petição executiva e dos documentos com ela juntos, tanto mais que foi passada guia para pagamento da taxa de justiça.
[Como se vê de fls.7 a guia foi emitida em 23.11.2000 e paga em 4.12.2000].
Mais peticiona que, caso não seja o mesmo encontrado, se proceda à reforma do título.
A Sr.ª. Funcionária da Secção Central, que recebeu o requerimento executivo, prestou informação nos autos (fls. 16), na qual adianta que não há sinal de o original em falta ter sido junto, no momento da apresentação do requerimento executivo nos serviços, aludindo a que nos originais e nas cópias da petição inicial há marca de um outro agrafo diferente do que anexa agora a petição inicial, concluindo, assim, que os documentos foram desagrafados e agrafados novamente.
Nessa informação diz-se: “...Aquando do recebimento dos requerimentos tem-se por norma verificar a junção dos mencionados documentos”.
Ora, se ante tal verificação, se não detectou a falta do original da letra de câmbio, não é ousado supor que ela estava lá.
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O Senhor Juiz proferiu despacho a indeferir liminarmente a petição por falta de título executivo, essencialmente, por entender que não pode valer como tal, mera fotocópia da letra não estando minimamente comprovada nos autos a impossibilidade de junção do original do título e, partindo do princípio de que a letra poderia ser invocada como quirógrafo da obrigação, ela constituiria título executivo, bastando então à exequente juntar “cópia certificada do documento particular” em questão, para que se concluísse possuir “título formalmente válido para a sua pretensão processual”.
Como a cópia certificada não foi junta, mas apenas mera fotocópia, afirmou inexistir título executivo.
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Inconformada recorreu a exequente que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
I. A aqui recorrente deu entrada na Secção Central do Tribunal “a quo” de requerimento executivo contra os aqui recorridos, reclamando o pagamento de uma letra de câmbio;
II - Com o referido requerimento executivo juntou o original da letra de
câmbio em questão e respectivos duplicados legais;
III - Com efeito, a posse da letra é indispensável ao exercício do direito nela mencionado, com vista à efectivação do seu direito cambiário;
IV - Na verdade, um dos caracteres que dominam as obrigações cambiárias e que lhes dão fisionomia própria é a incorporação da obrigação no titulo;
V- A letra é um documento comercial que constitui o próprio fundamento do direito nela mencionado;
VI- Sendo esse princípio geral que decorre do direito cambiário, só o portador do original da letra é que pode obviamente reclamar o pagamento da mesma;
VII- Pelo que, mesmo que se considere a possibilidade de situações excepcionais em que se justifica o uso da cópia autenticada da letra como título executivo, nunca o âmbito dessas situações abarcaria o caso “sub-judice”;
VIII- Com efeito, tais situações excepcionais, de força maior alicerçam-se no facto do exequente não dispor do original por razões que não lhe são imputáveis;
IX- Ora, a Recorrente deu entrada na Secção Central do Tribunal “a quo” de requerimento de execução e respectivos duplicados;
X- Quando da entrega do original e respectivas cópias foi feita a conferência dos documentos juntos, original e duplicados, bem como a análise sumária do requerimento de execução;
XI- Tudo foi recebido sem reparo, ou seja, o original e duplicados;
XII- Mais, foi emitida a respectiva guia para pagamento do preparo respectivo e não foi feita qualquer chamada de atenção pela Secção;
XIII- Entregue o original da letra nas condições acima mencionadas, deverão as autos prosseguir mediante a reforma da letra de câmbio em questão;
XIV- Não existe, “in casu”, fundamento para indeferir liminarmente o requerimento de execução;
XV- Foi, assim, violado o art. 811° do Código de Processo Civil;
XVI- Mais, não pode agora o Tribunal exigir que a aqui Recorrente proceda à junção aos autos da cópia autenticada da referida letra, como se a Recorrente tivesse sido desapossado da letra;
XVII- Aliás, tal solução violaria, “in casu”, o princípio da incorporação - cfr. arts. 39°, 45°, 46° e 50° da LULL;
XVIII- Deve em conformidade, revogar-se a sentença recorrida que indeferiu liminarmente o requerimento executivo nos termos do art. 811°-A- al. a) do Código de Processo Civil por falta de título executivo, prosseguindo os autos para execução mediante a reforma da letra.
Termos em que, no provimento do agravo, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que julgue em conformidade com as conclusões anteriores.
Assim decidindo, far-se-à Justiça.
Não houve contra-alegações.
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O Senhor Juiz sustentou o seu despacho, acrescentando que a “Reforma do Título”, pedida pela exequente, é inviável por lhe caber processo especial – arts. 1069º e segs. do Código de Processo Civil – pelo que não poderia ocorrer no âmbito da execução.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta que a matéria de facto relevante é a que consta do Relatório, acrescendo que, por solicitação deste Tribunal, o Tribunal recorrido enviou fotocópia certificada do duplicado da letra existente em arquivo – art. 152º, nº5, do Código de Processo Civil – e que consta de fls. 51.
De tal documento pode concluir-se que se trata de uma letra de câmbio sacada pela exequente, pelo valor de 763.000$00, em 2000.7.25, com vencimento aprazado para 2000.9.25, sendo sacado o executado, e constando no lugar destinado ao aceite, a assinatura deste e da executada G.........; no verso, consta um carimbo com a menção - “Sem Despesas”- e o carimbo da exequente e assinatura da gerência desta, bem como a expressão –“Efeito entrado em carteira em 2000.08.02, no Banco ......”.
Fundamentação:
A questão objecto do recurso, aferida pelo teor das conclusões do recorrente – que recortam o respectivo âmbito de conhecimento – consiste em saber se, no quadro factual em causa, se impunha o indeferimento liminar por falta de título executivo – e, a assim se não entender, se há lugar à reforma do título.
O melindre da questão começa pelo facto de a exequente afirmar ter entregue no Tribunal recorrido o original da letra junto com a petição inicial, resultando do processo que o documento aí não existe, sendo que as explicações do Tribunal recorrido quase deixam entrever que o extravio do documento ocorreu na instituição.
Decorre do art. 152º, nº3, do Código de Processo Civil que a secretaria do Tribunal onde são recebidas as peças processuais, mormente, no que se refere à admissão da petição inicial, tem o dever de verificar a regularidade dos documentos e duplicados, já que a citação, excepto os casos previstos no art. 234, nº4, do citado diploma, é feita oficiosamente sem precedência de despacho judicial, como sucede no processo executivo –cfr. ainda, nº1 do citado preceito.
Tendo a petição sido apresentada pessoalmente, no Tribunal recorrido, e não tendo sido detectada qualquer falta, tudo leva a crer que o original tivesse sido entregue; tal transparece da informação prestada a fls.16, que nem sequer recusa a possibilidade de tal não ter acontecido, referindo a Senhora Funcionária que prestou a informação, que ela e um outro funcionário “acordaram em fazer buscas exaustivas”.
Notificado o mandatário da exequente para juntar o original da letra, afirmou ele tê-lo feito, aquando da entrega dos documentos na Secção, pelo que não dispunha de tal documento.
O Senhor Juiz, pelas razões antes indicadas, considerou não dispor a exequente de título executivo e indeferiu liminarmente a petição, até pelo facto de a exequente nem sequer ter junto fotocópia certificada da letra.
Esta referência parece ter que ver com a possibilidade de o título poder estar a ser invocado pela exequente como quirógrafo da obrigação, o que lhe conferiria força executiva, desde que o exequente tivesse invocado, na petição executiva, qual o fundamento jurídico que esteve na base da emissão do título.
A execução deu entrada em juízo em 21.11.2000, menos de dois meses após o vencimento do título.
Ora, sendo a execução movida pelo sacador contra o aceitante, o prazo de prescrição, nos termos do art. 70º § 1º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças -LULLL- é de três anos, pelo que, nada alegando a exequente na petição, no sentido que não estava usando o documento como título cambiário, mas como mero documento particular dotado de força executiva - art. 45 c) do Código de Processo Civil na redacção da Reforma de 1995/96, parece, salvo o devido respeito, incorrecto afirmar que o documento poderia ter sido invocado como quirógrafo da obrigação.
Pelos prazos de vencimento do título e do recurso a juízo, a letra estava longe de estar prescrita pelo que, “prima facie”, estaria dotada de força executiva, nos termos da LULL.
É certo que, tratando-se de execução cambiária e atento princípio da incorporação que vigora no regime cambiário, a posse, “in casu”, da letra era condição essencial para o exercício do direito de crédito consubstanciado do documento cartular.
No Acórdão do STJ. de, 10.11.1993, in CJSTJ, III, 127 decidiu-se:
“É princípio geral de direito cambiário o de que a posse da letra é condição indispensável ao exercício do direito nela mencionado, e, por isso, o exequente para efectivar o direito cambiário deve estar na posse da letra, não bastando a sua fotocópia, ainda que certificada pelo notário”.
O Acórdão daquele Alto Tribunal, de 27.9.114, in BMJ-439/605 considerou que:
“...Salvo caso de força maior, não pode ser reconhecida exequibilidade a fotocópias de livranças, ainda que autenticadas”.
No mesmo sentido decidiu o Acórdão desta Relação do Porto, de 15.6.1998, in CJ, 1998, II, 194.
Mais, recentemente, o STJ, em seu Acórdão de 28.2.2001, in CJSTJ, 2001, I, 100, sentenciou:
“I - A posse da letra de câmbio envolve condição necessária para o exercício do direito nela integrada, em conexão com o princípio da incorporação, característico do regime cambiário.
II- Contudo, excepcionalmente, é justificado o uso de cópia autenticada da letra como título executivo, mesmo que a cópia não indique a pessoa em cuja posse se encontre o original, e desde que não haja quebra do princípio da boa-fé e da segurança devida ao devedor, quando se verifique a impossibilidade do exequente dispor do original por razões que lhe não sejam imputáveis”.
O art. 67º da LULL não exclui a possibilidade de o portador de uma letra poder tirar cópias dela, regulando o art. 68º a que requisitos deve obedecer tal procedimento.
Mas tal hipótese, manifestamente, não é a dos autos.
A questão fulcral que o recurso coloca, e que se nos afigura inultrapassável, é a que o original da letra desapareceu, ao que tudo indica no Tribunal recorrido, por causa não imputável à recorrente.
Assim e, desde logo, a exequente está impossibilitada de proceder nos termos sugeridos no despacho – apresentação de fotocópia certificada - porque a certificação pressupõe a exibição, logo a posse, do documento a certificar, o que é impossível.
Nos termos do art. 161º, nº6, do Código de Processo Civil – “Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.
Ora, o extravio no Tribunal do original da letra - que tudo leva a crer foi junta com a petição inicial - não pode prejudicar o direito que a exequente se propunha exercer.
A situação é insuperável porque, inexistindo o original do título, não pode proceder-se à apresentação do documento para certificação notarial.
Daí que, para que a exequente não seja irremediavelmente prejudicada, em termos até de celeridade, só se entrevê uma solução, qual seja a de execução seguir os seus termos com base na fotocópia da letra que foi fornecida pelo Tribunal recorrido – o que de todo não parece prejudicar os executados – que tendo sido citados, para a execução e para o recurso, disporão de cópias de tal documento.
A perda ou extravio pelo Tribunal do documento, que é invocado como título executivo, sem culpa da parte e em circunstâncias que inviabilizam, sequer, a apresentação de cópia certificada do documento, é de equiparar, objectivamente, a caso de força maior.
E, porque não pode a exequente ser prejudicada pelo acto da secretaria, a única via que se abre para a legítima defesa dos seus direitos é admitir a execução com base na fotocópia do documento certificado pelo Tribunal, que é fotocópia do original.
Os executados tendo sido citados para os termos da execução, poderão deduzir a oposição que tiverem por pertinente, sendo certo que, no caso em apreço, tem de se considerar que, por força das circunstâncias, a exequente não está desprovida de título executivo, pelo que, com o devido respeito, se não justifica o indeferimento liminar da petição executiva.
É certo que o art.484º do Código Comercial prevê a reforma de títulos de crédito, tramitando o processo segundo a ritologia prevista no art. 1069º a 1071º do Código de Processo Civil.
Todavia, no quadro circunstancial descrito, “obrigar” a exequente a recorrer, autonomamente, ao moroso processo previsto nos aludidos normativos constitui um prejuízo e, no caso em apreço, a adoptar-se tal solução, ainda aí a parte seria prejudicada, por acto da secretaria judicial.
Não é processualmente viável, nem sequer ao abrigo do princípio da adequação formal – art. 265º-A do Código de Processo Civil, proceder à reforma do documento em falta, nos termos do processo previsto no art. 1069º e segs. do referido diploma – face à flagrante disparidade da ritologia processual entre os dois tipos de processo.
Decisão:
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a tramitação da execução com fundamento excepcional no documento de fls. 51, tendo-se em conta que, nos termos do art. 234-A, nº4, do Código de Processo Civil, os executados devem ser notificados da revogação do despacho de indeferimento liminar “sub-judice”, iniciando-se, desde tal notificação, o prazo de que dispõem para embargar.
Sem custas.
Porto, 30 de Setembro de 2002
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale