Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0121185
Nº Convencional: JTRP00031754
Relator: LUÍS ANTAS DE BARROS
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO
CASO DE FORÇA MAIOR
FALÊNCIA
Nº do Documento: RP200112040121185
Data do Acordão: 12/04/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 6/00-2S
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: RAU90 ART64 N1 H.
Sumário: I - O caso de força maior, previsto na alínea h) do artigo 64 n.1 do Regime do Arrendamento Urbano como circunstância impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em encerramento de estabelecimento comercial, é todo o acontecimento que pode ser previsto mas não evitado, pelo menos dentro das forças normais do arrendatário.
II - Integra esse caso de força maior a declaração de falência do arrendatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto

Maria....., residente na Rua....., no....., instaurou contra a Massa Falida de «S....., S.A. e C....., L.ª, com sede na Rua....., em....., na comarca de......, acção de processo comum, na forma sumária, pedindo que se decrete a resolução do contrato de arrendamento respeitante ao rés-do-chão de um seu prédio urbano sito na Rua....., no....., que há cerca de dez anos celebrou com S....., S.A., para aí exercer o comércio de mercearia, entregando-o à autora livre de pessoas e coisas.
Alega, em resumo, que a arrendatária foi declarada falida em 1995, estando o estabelecimento comercial instalado no arrendado encerrado desde o início de 1996 até meados de Dezembro de 1999.
Que, para além disso, o local estava vazio de mercadoria mas, não obstante, foi celebrada escritura pública de trespasse à 2ª ré, sem que o transmitente ou a transmissária o tenham comunicado à autora, o que constitui fundamento de despejo, nos termos dos arts. 64º nº 1, h) e f) e 115º nº 1 do RAU..
As demandadas contestaram, a C....., L.ª, arguindo a sua ilegitimidade, por na tese da autora ser ineficaz a transmissão do arrendamento em seu favor e, em qualquer caso, contrariando a matéria da petição bem como pedindo, em reconvenção, que a autora lhe pague 2.231.190$00 pelas benfeitorias que efectuou no local, com juros de mora desde a restituição até pagamento.
Por seu lado, a Massa Falida de S....., S.A., defende que o referido estabelecimento comercial foi encerrado só em Junho de 1998, mas que sempre o teria sido por força de impedimento advindo da declaração de falência, sendo que o trespasse foi comunicado à senhoria logo no dia 10 de Maio de 1999.
Na resposta a autora contraria a matéria da excepção bem como da reconvenção, concluindo como na petição inicial.
No saneador, em que se teve a ré C....., L.ª como parte ilegítima, com consequente absolvição da instância, o Sr. Juiz conheceu do fundo da acção, absolvendo a ré Massa Falida do pedido por falta de demonstração de qualquer um dos fundamentos de resolução do arrendamento que foram invocados. Foi dessa decisão que a autora recorreu.
Nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1 . O despacho recorrido, além de julgar parte ilegítima a 2ª ré, decisão com que a autora se conforma, julgou improcedente a presente acção de despejo, em síntese, pelas seguintes razões:
O encerramento do estabelecimento ficou a dever-se não a acto voluntário da arrendatária, mas a decisão do liquidatário da respectiva massa falida e, além disso, tal encerramento por mais de um ano, mas por menos de dois, ficou a dever-se a caso de força maior, qual seja, a falência da arrendatária, pelo que ocorre a situação prevista na alínea a) do nº 1 do artº 64º do RAU.
Embora o estabelecimento estivesse encerrado e vazio à data do trespasse, o certo é que estava em condições de nele ser exercida a actividade comercial a que se destinava, e que foi retomada em 16 de Dezembro de 1999, depois de obras a que a trespassária procedeu no locado, pelo que houve realmente um trespasse, nos termos do artº 115 do RAU.
É irrelevante a forma por que se faz a comunicação referida na alínea g) do artº 1038º do C. Civil, pelo que, tendo sido feita atempadamente tal comunicação pelo SNL como coadjuvante do liquidatário judicial, foi bem feita, além de que a trespassária, dentro do prazo previsto naquele normativo, procedeu ao pagamento de uma renda.
2 . Mas a falência só poderia ser causa excluente do fundamento de despejo prevista na al. h) do nº 1 do artº 64º do RAU, se pudesse ser considerada caso de força maior, ou seja, não imputável a culpa da arrendatária e, a tal respeito, nada é alegado, sequer.
3 . Por outro lado, a declaração da falência de uma sociedade acarreta a sua incapacidade de exercício de direitos, passando a ser administrada por um liquidatário judicial que a responsabiliza, como responsabilizam os gerentes e administradores de uma sociedade com capacidade de exercício de direitos, e da mesma forma que o representante de um menor ou incapaz responsabiliza o representado, seja qual for o contrato em que intervenha, não havendo motivo para excluir de tal regra os contratos de arrendamento e respectivas infracções contratuais.
4 . Acresce que a declaração de falência deixou, só por si, de poder constituir obstáculo à continuação da actividade do falido, obviamente sob a administração do liquidatário judicial, o qual, pelo contrário, tem o dever de continuar tal actividade, para impedir o despejo do local em que é exercida, se for arrendado, e poder salvaguardar o valor do trespasse, nos termos dos arts. 141º, 143º e 145º nº 1, a), b) e c) do CPREF.
5 . Por outro lado, se há divergências quanto ao facto de ser indispensável para o trespasse a existência de um estabelecimento em funcionamento, é pacífico o entendimento de que perante o disposto na alínea a) do nº 2 do artº 115º do RAU, para que exista trespasse é necessário que exista ao menos, um local provido do mínimo de elementos corpóreos e incorpóreos que permitam o seu imediato funcionamento como estabelecimento pois, doutra forma, haveria uma cedência do uso e fruição do local arrendado.
6 . Da conjugação do disposto nos arts. 1038º g) e 1049º do C. Civil conclui-se que quem tem legitimidade para proceder validamente à comunicação do trespasse no prazo citado no primeiro preceito, são, unicamente em alternativa, o trespassante ou o trespassário, não valendo como tal o pagamento de uma renda, dentro desse prazo, pelo trespassário, até porque esse cumprimento pode ser efectuado por terceiro, interessado ou não na prestação, nos termos do artº 767º nº 1 do C. Civil.
7 . Perfilhando entendimento diferente, que levou a excluir relevo legal aos factos alegados pela autora como fundamento de despejo - o encerramento do estabelecimento por mais de um ano, estar o estabelecimento encerrado e vazio à data do contrato denominado de trespasse e não ter sido esse contrato comunicado à autora no prazo de 15 dias, nem pela arrendatária nem pela adquirente do local, e, consequentemente, julgando a acção improcedente, o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 64º nº 1, b) e h) e 115º nº 2, a)do RAU, 9º nº 3, 1038º g), 1049º e 767º nº 1 do C. Civil e 141º, 143º, 145º nº 1, a), b) e d) e 147º ns. 1 e 2 do CPEREF, pelo que deve ser revogado e, assim, decretado o despejo, ou ordenado o prosseguimento dos autos.
Contra-alegaram, a ré C....., L.ª, esta sem relevo dado ter transitado em julgado a decisão que a absolveu da instância, e a Massa Falida de S....., S.A., que defende a manutenção do julgado.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos, há que conhecer do recurso.
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Vêm considerados assentes os seguintes factos:
Há mais de 10 anos, por contrato verbal, S....., S.A. tomou de arrendamento para o exercício do comércio de mercearia, o rés do chão do prédio sito na Rua....., nesta cidade, inscrito na matriz urbana de..... sob o artº .... e descrito no Registo Predial sob o nº ....., a fls. ...vº do L.º..-...
O referido contrato tem sido renovado até ao presente, sendo a renda, mercê de sucessivas actualizações, de 38.840$00 mensais.
O referido prédio encontra-se registado em nome da autora.
Em 26 de Outubro de 1998 a autora foi notificada para preferir na venda do direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento sito à Rua....., nº .., da cidade do......
Em 4 de Maio de 1999, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de....., foi celebrado o contrato de trespasse fotocopiado de fls. 17 a 20 destes autos.
Em 11 de Maio de 1999 a 2ª ré, que passou a ocupar o arrendado a partir da celebração da escritura, enviou à autora um cheque da importância da renda líquida, que a autora devolveu.
No dia 10 de Maio de 1999 a Sociedade....., L.ª comunicou o trespasse à autora, conforme o documento de fls. 44.
No dia 20 de Maio de 1999 a 2ª ré enviou à autora uma cópia da escritura de trespasse.
A falência da 1ª ré foi decretada em 17 de Outubro de 1997.
O estabelecimento encerrou, pelo menos, em Junho de 1998, mas sempre depois de ter sido decretada a falência.
Logo após o trespasse, a 2ª ré iniciou obras no arrendado e abriu-o ao público no dia 6 de Dezembro de 1999.
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Resulta das conclusões da alegação da recorrente que as questões a apreciar neste recurso se centram no alegado encerramento do estabelecimento comercial instalado no arrendado durante mais de um ano, em não haver estabelecimento que pudesse ser trespassado por inexistir um mínimo de elementos integrantes daquele e na suficiência das comunicações feitas à autora sobre a efectivação do invocado trespasse.
Quanto à primeira, estabelece o artº 64º nº 1, h) do RAU, que o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos.
Passando além da questão de facto relativa ao tempo durante o qual esteve encerrado, há que ponderar se, como se entendeu na sentença recorrida, o encerramento de um estabelecimento comercial relacionado com a falência do comerciante, constitui caso de força maior para o efeito referido no mencionado artº 64º nº 1, h) do RAU.
Nesse âmbito, caso de força maior justificativo do encerramento do estabelecimento durante mais de um ano é todo o acontecimento que pode ser previsto mas não evitado, pelo menos dentro das forças normais do arrendatário, como escreve Isidro Matos, Arrendamento e Aluguer, 114.
A declaração de falência, que acarreta a inibição do falido para o exercício do comércio, nos termos do artº 148º nº 1 do CPEREF, não pode deixar de ser considerada como abrangida pela referida previsão legal, por em si poder acarretar o encerramento do estabelecimento comercial do falido, até o liquidatário prover à conservação do direito correspondente, ou tomar outra medida tida por conveniente, nos termos dos arts. 143º e ss. do CPEREF, apenas com sujeição ao limite de tempo que se teve como razoável, estabelecido no artº 64º nº 1, h) do RAU.
Que não é imputável à arrendatária essa situação, foi alegado na contestação da massa falida, integrando a excepção invocada, nomeadamente nos ns. 4 e ss., sem impugnação da autora.
No que concerne à segunda questão, a da inexistência de trespasse por inexistência de elementos mínimos para caracterizarem o estabelecimento comercial, a autora alegou, para além do encerramento do estabelecimento em questão, que o mesmo estava vazio de mercadorias.
Esta alegação foi entendida como insuficiente para integração de um quadro de impossibilidade de trespasse por inexistência de estabelecimento na decisão recorrida, e bem.
Com efeito, o que se exige no artº 15º ns.1 e 2, b) do RAU, é que se transmita o que integre, no caso, o estabelecimento, não tendo a alusão a mercadorias o significado de ser imprescindível a transmissão desse elemento se, na circunstância, não existir.
Relevante, sim, é que o conjunto que se transmita, seja adequado a funcionar como determinado estabelecimento comercial, nomeadamente tendo em conta o ramo, como resulta do disposto no artº 115º nº 2, b) do RAU.
A essa luz é acertado o entendimento expresso na sentença recorrida, no sentido de que saber-se que realizadas obras pela 2ª ré, concretamente reparação de canalizações, substituição de vidros, substituição do pavimento e pintura das paredes, o conjunto transmitido pôde reiniciar o seu giro. É que não se tratando sequer de obras que revelem reestruturação do local, nem implicando reequipamento ou semelhante, há que se concluir que o conjunto que se vem referindo se manteve adequado a prosseguir os fins próprios do estabelecimento comercial primitivamente ali instalado.
Improcedem, assim, as correspondentes conclusões da apelante.
Finalmente, há que apreciar a questão do preenchimento do estabelecido nos arts. 1038º g) e 1049º do C. Civil, quer dizer, da eficácia da comunicação do trespasse à senhoria.
Quer numa quer noutra das disposições legais referidas não se faz qualquer alusão ao modo de efectuar essa comunicação.
Assim, como se entendeu no ac. da Rel. de Évora citado nas contra-alegações da apelada, pode mesmo usar-se a forma verbal.
Por outro lado, a comunicação tanto pode ser feita pelo trespassante como pelo trespassário.
Isto, nos termos gerais, não significa que tenham de ser os próprios, pessoalmente, a fazê-lo.
Com efeito, pode sê-lo por representante, nos termos aplicáveis dos arts. 262º e ss. do C. Civil.
Assim, a comunicação invocada na contestação da Massa Falida de S....., S.A., constante de fls. 44, não impugnada, feita alegadamente em representação desta, como se vê do nº 15 desse articulado, é eficaz porquanto tão pouco vem alegado pela senhoria que exigiu prova dos poderes do representante.
Deste modo, também neste âmbito não se mostram bem fundadas as conclusões da recorrente.
Consequentemente, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 4 de Dezembro de 2001
António Luís Caldas Antas de Barros
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Armindo Costa