Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00038917 | ||
| Relator: | FONSECA RAMOS | ||
| Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO RECONSTITUIÇÃO NATURAL | ||
| Nº do Documento: | RP200603060650879 | ||
| Data do Acordão: | 03/06/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
| Decisão: | REVOGADA EM PARTE. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A indemnização em dinheiro apenas é consentida, sendo impossível a reconstituição natural, porque, v.g. o objecto a reparar ficou totalmente destruído ou é infungível, ou nos casos em que os danos não sejam totalmente reparados pela reconstituição natural, e ainda, quando a “reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor”. II - No juízo a fazer acerca da excessiva onerosidade, para afastar a reconstituição natural, peticionada a uma seguradora em caso de acidente de viação, que danificou gravemente o veículo do Autor, importa não perder de vista que está em causa o património do lesado, que não pode ser prejudicado duplamente, ou seja, num primeiro momento pelo facto de ter sido atingido directamente pelo evento danoso, em si mesmo considerado; depois, pela não aplicação da regra da restauração natural “obrigando-o” a, no caso, a adquirir uma nova viatura, caso não seja reparada a que foi danificada. III - A reconstituição natural só deve ser afastada em caso de manifesta desproporção para o lesante, que seja lesiva das regras da boa-fé e do fim económico e social visados pela regras da obrigação de indemnizar, de modo a que não avantaje o património do lesado, à custa do lesante, mas, também, que o património deste não saia beneficiado pelo facto de indemnizar pecuniariamente, ao invés de restaurar a situação patrimonial anterior ao acidente. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto B.........., intentou em 19.5.2003, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Amarante – .º Juízo – acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra: Companhia de Seguros X.........., S.A., Pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 15.476,17 e respectivos juros de mora. Fundamentou tal pretensão no facto de ter sofrido diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial, em consequência de um acidente de viação ocorrido, no dia 22 de Julho de 2002, pelas 9.30 horas, no IP 4, ao km 70, .........., Amarante, de que, alegadamente, foi único responsável o condutor do veículo automóvel de matrícula PD-..-.., segurado na Ré. Citada, a Ré apresentou contestação, na qual assume a responsabilidade do acidente, mas impugna os danos alegados pelo Autor. O Autor replicou, mantendo a posição assumida na petição inicial. *** Proferido o despacho saneador e ultrapassada a fase da instrução do processo, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais. O Tribunal respondeu à Base Instrutória, respostas que não mereceram reclamação. *** A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e, consequentemente, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 6.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. *** Inconformados recorreram o Autor e, subordinadamente, a Ré. *** Nas alegações o Autor formulou as seguintes conclusões: 1. A reparação do veículo do Autor é possível, reconstituindo-o exactamente à situação que teria se não se tivesse verificado o acidente. 2 – Não se provando que o Autor poderia adquirir no mercado um veículo em tudo idêntico ao sinistrado por preço igual ao valor comercial, deve a Ré, que não o mandou reparar, pagar àquele a quantia necessária a essa reparação, ainda que o respectivo montante seja superior ao do referido valor comercial. 3 – A reparação não é excessivamente onerosa para a Réu, pois que esta não pode resultar da circunstância de a reparação ser superior ao valor do veículo, devendo também ser aferida em função da capacidade económica do devedor. Ora, afigura-se evidente que não há nenhuma companhia de seguros que não possa suportar o custo da reparação. 4 - Sem prescindir, e ao não entender-se conforme o supra exposto, a indemnização por equivalente terá de ter como medida o valor que o Autor despendeu na compra da viatura dias antes do acidente, pois que tal constituiu a sua perda e dano real. 5 – São indemnizáveis como danos não patrimoniais, os simples incómodos que resultam da privação dum veículo para o seu proprietário enquanto se aguarda a sua reparação, pois que configuram uma restrição ao direito de propriedade. 6 – Em consequência, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Réu a pagar ao Autor o custo da reparação do veículo no montante de € 9.061,45, ou, caso assim não se entenda, a indemnizá-lo por equivalente no montante de € 8.000,00, assim como a pagar-lhe a indemnização peticionada de € 1.000,00 por danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros de mora. Assim se fará Justiça. *** No recurso subordinado, a Ré formulou as seguintes conclusões: 1. A autora/recorrente carece de razão nas conclusões da sua alegação, 2. Pelo que deve negar-se provimento ao seu recurso. 3. Situando-se o valor do veículo do autor entre o mínimo de € 3.500,00 e o máximo de € 6.499,99 manda a equidade se atribua ao Autor o valor intermédio de € 5.000,00 (nº1 do art.566°do Código Civil); 4. A que haverá que deduzir o valor dos salvados, no montante de € 650,00 (nº1 do art. 566° do Código Civil). Termos em que deve negar-se provimento ao recurso do Autor/recorrente e dar-se provimento ao recurso da Ré/recorrente, em conformidade com as conclusões que antecedem como é de Justiça. Não houve contra-alegações. *** Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que na instância recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1) - No dia 22 de Julho de 2002, cerca das 9.30 horas, no IP4, ao km 70, .........., Amarante, ocorreu um embate, em que foram intervenientes os seguintes veículos: - ligeiro de mercadorias, marca Toyota .........., matrícula OQ-..-.., conduzido por C..........; - ligeiro de passageiros de matrícula PD-..-.., conduzido por D.......... . - pesado de mercadorias, de matrícula ..-..-DP, conduzido por E..........; - ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-OX, conduzido por F........... 2) - O condutor do veículo PD-..-.. circulava no IP4, no sentido Vila Real-Amarante. 3) - Ao descrever a curva para a direita, o mesmo condutor perdeu o controlo do veículo, entrou em despiste e foi embater com a frente do lado esquerdo na parte da frente do mesmo lado no veículo de matrícula OQ-..-.. . 4) - O condutor do veículo de matrícula OQ-..-.. circulava no sentido Amarante-Vila Real, seguindo pela faixa da esquerda por estar a efectuar uma manobra de ultrapassagem ao veículo ..-..-DP. 5) - O veículo de matrícula ..-..-DP embateu com a frente do lado esquerdo na parte de trás do lado direito (carroçaria) do veículo de matrícula OQ-..-.. . 6) - Após tal embate, o condutor do veículo ..-..-OX, que circulava no sentido Vila Real-Amarante, foi embater na parte de trás, do lado esquerdo, do veículo de matrícula PD-..-.. . 7) - Na data do acidente o dia apresentava-se chuvoso. 8) - Por acordo titulado pela apólice nº 031/......., o proprietário do veículo de matrícula PD-..-.. declarou transferir e a Ré Companhia de Seguros X.........., S.A., declarou aceitar a responsabilidade civil emergente da circulação do dito veículo. 9) - O perito da Ré emitiu parecer no sentido de ser inviável a reparação do veículo de matrícula OQ-..-.. . 10) - No dia 27 de Dezembro de 2002, conforme resulta do documento nº3, junto a fls. 13 a 14, a Ré colocou à disposição de C.......... a quantia de €2300, para indemnização pelos danos sofridos em virtude do embate ocorrido. 11) - O veículo de matrícula OQ-..-.. encontra-se registado a favor de B.......... desde o dia 26 de Junho de 2003. 12) - Por carta datada de 14 de Abril de 2003, que em parte se encontra junta por fotocópia a fls. 25, o Autor respondeu à carta referida como documento nº3 em 10). 13) - A participação do acidente de viação da Brigada de Trânsito, junta a fls. 8 a 10, identifica o proprietário do veículo de matrícula OQ-..-.. como sendo C.......... . 14) - O Autor adquiriu o veículo de matrícula OQ-..-.., dias antes do embate, ao stand “G.........., Ldª”, pelo preço de € 8.000,00. 15) - Para pagamento do dito preço, o Autor entregou quatro cheques pré-datados no valor de € 2.000,00 cada um, a vencerem-se nos dias 20 de Agosto de 2002, 20 de Setembro de 2002, 20 de Outubro de 2002 e 20 de Novembro de 2002. 16) - Em virtude do embate ocorrido o veículo de matrícula OQ-..-.. sofreu danos cuja reparação ascende a uma quantia de cerca de € 9.061,45, já com IVA incluído. 17) - Após o embate o veículo de matrícula OQ-..-.. permaneceu recolhido na oficina. 18) - À data do embate o veículo de matrícula OQ-..-.. encontrava-se em bom estado de conservação. 19) - O OQ tinha um valor comercial inferior a € 6.500,00. 20) - Valendo os respectivos salvados a quantia de €650,00. Fundamentação: Sendo pelas conclusões das alegações do recurso da recorrente que, em regra, se delimita do objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa, quanto ao recurso principal (do Autor), saber: - se a Ré deve ser condenada a reparar o veículo do Autor, o que passa pela questão de saber se tal reparação é, para si, excessivamente onerosa: - se, no caso, há lugar ao pagamento de compensação, por danos não patrimoniais, pelo facto do Autor ter estado privado do uso da sua viatura Quanto ao recurso subordinado (o da Ré seguradora) – cujo objecto está relacionado com a 1ª questão colocada pelo recurso do Autor – importa decidir se este, com base na equidade, deve ser indemnizado pelo valor de € 5.000,00 a que deverá ser abatido o dos salvados – € 650,00. Na sentença recorrida – fls. 127 a 141 – considerou-se que, por a prestação a cargo da seguradora, ser excessivamente onerosa, não estava ela obrigada a custear o valor da reparação dos danos causados ao veículo do demandante, mas antes a indemnizá-lo com fundamento na equidade, pelo valor de € 6.500,00 [Da sentença a fls. 139 – “[…] Por conseguinte, no caso dos autos, sendo inviável a reparação, por o seu custo poder corresponder quase ao triplo do valor comercial da viatura, o valor da indemnização a fixar deverá ser medido por este valor venal, entendido como o valor de substituição do veículo, ou seja, por outras palavras, pelo preço que no mercado de usados o lesado teria que desembolsar para obter um veículo com as mesmas características do sinistrado (marca, modelo, ano de fabrico, estado de conservação, etc.). No entanto, não podemos deixar de ter presente que a realidade das coisas coloca-nos perante um outro obstáculo, qual seja, a dificuldade em encontrar no mercado de ocasião um outro veículo semelhante ou idêntico nas mesmas (ou em semelhantes) condições, sem vícios e defeitos que viessem a revelar-se posteriormente e em condições de segurança. E por isso é necessário contemplar a previsível diversidade de preços de viaturas no mercado de ocasião – do que nos dá exemplo este processo, já que resulta da matéria de facto usado que um veículo idêntico ao sinistrado tem um valor venal que oscilará entre os 3.500 e os 6.500 euros […]”], ficando a Ré com os salvados. Aceitando a Ré seguradora que o seu segurado foi o exclusivo causador do acidente que provocou danos na viatura do Autor, por ter executado com culpa uma manobra estradal, sem dúvida que, “in casu”, se verificam os pressupostos do dever de indemnizar no contexto da responsabilidade civil extracontratual, pressupostos que, aliás, são comuns à responsabilidade civil contratual, a saber; facto voluntário, ilicitude, culpa, dano, e nexo de causalidade entre facto e dano. “(...) Constituem pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e 487º, nº2, do Código Civil, a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação do acto ao agente em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um “bom pai de família”. (...)” – Ac. do STJ, de 10.3.1998, in BMJ 475-635. A obrigação de indemnizar, a cargo do causador do dano, deve reconstituir a situação que existiria “se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” – art. 562º do Código Civil. “Dano é a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar” – Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág.591, 7ª edição. Na definição do citado civilista, “o dano patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado”. Este dano abrange não só o dano emergente ou perda patrimonial, como o lucro cessante ou lucro frustrado. “O lucro cessante abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que ainda não tinha direito à data da lesão” - (ibidem, pág. 593). O art. 566º do citado Código, consagra o princípio da reconstituição natural do dano, mandando o art. 562º reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse o facto gerador da responsabilidade. Não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – n º1 do art. 566º do Código Civil. Antunes Varela, in “Das obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 904, abordando a problemática da reconstituição natural, depois de afirmar que esta nem sempre “permite resolver satisfatoriamente a questão da reparação do dano”, afirma: – “Há casos em que a reconstituição natural não é sequer possível, a par de outros em que ela não é meio bastante para alcançar o fim da reparação ou não é o meio idóneo para tal”, depois de versar casos em que, manifestamente, a reconstituição natural é impossível (caso de morte) ou insuficiente (“quando não cobre todos os danos”). Pode ler-se em nota de rodapé: “Pode mesmo suceder que a reparação do veículo não sirva de modo nenhum o interesse do lesado…”. O Código Civil consagra, como critério primeiro de reparação dos danos a cargo do lesante, a reconstituição natural – art. 566º, nº1, do Código Civil. Como refere aquele Ilustre Civilista – “O fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens, ou dos direitos sobres estes” – pág. 903. “A indemnização pecuniária deve manifestamente medir-se por uma diferença (id. quod interest como diziam os glosadores) – pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido” – A. Varela, obra citada, pág. 906. A lei consagra, assim, a teoria da diferença, tomando como referencial “a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que nessa data teria se não existissem danos” – art. 566º, nº2, do Código Civil. Uma coisa é a indemnização, mediante a reconstituição natural, outra é a feita através do pagamento de dinheiro, sendo a esta que se aplica a teoria da diferença. No caso dos autos importa reter: I) - O Autor havia adquirido, poucos dias antes do acidente, ocorrido em 22.7.2002, o ligeiro de mercadorias Toyota .........., matrícula OQ-..-.. pelo preço de €. 8.000,00 (cerca de 1.600 contos na velha moeda); II) – Em consequência do acidente o veículo sofreu danos cuja reparação ascende a € 9.061,45 incluindo IVA (cerca de 1.816 contos); III) – À data do acidente o veículo estava em bom estado de conservação; IV) – Tinha o valor comercial inferior a € 6.500,00 (cerca de 1.300 contos) V) - Os salvados valem € 650,00 (cerca de 130 contos). Com base nestes factos nodais, que são a pedra angular da decisão, em sede de recurso, será de considerar excessivamente onerosa a prestação a cargo da Ré devedora, ao ponto de dever ser exonerada de pagar o valor real dos danos – restauração natural – que, como vimos, a lei erige como regime-regra no domínio da responsabilidade indemnizatória por factos ilícitos, no contexto da responsabilidade extracontratual, que é a que ao caso cabe? No Acórdão desta Relação de 16.6.1994, in BMJ 438-556, pode ler-se: “O nosso sistema legal impõe, no domínio da responsabilidade civil, o princípio da restauração natural, incumbindo ao lesante a obrigação de reparação do veículo sinistrado ou a aquisição de outro da mesma marca e modelo, com igual uso e em igual estado de conservação, caso o custo deste não seja superior ao daquela… A excessiva onerosidade da restauração natural não é um puro e simples dado aritmético, devendo atender-se ao valor real ou corrente da coisa danificada, mas também ao valor que subjectivamente tem para a pessoa prejudicada, só sendo meio indemnizatório impróprio ou inadequado quando houver flagrante desproporção entre o custo da reparação e o interesse do lesado que importa recompor”. No douto Acórdão do STJ, de 10.2.2004, número convencional JSTJ000, acessível in www.dgsi.pt (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça), de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Ponce de Leão, sentenciou-se: “I – A trave mestra da reparação do dano ao nível do direito civil rege-se pelo princípio da reposição ou reconstituição natural (artigo 562° do Código Civil), o qual se traduz na obrigação de reconstituir a situação anterior à lesão, ou seja, o dever de repor as coisas na situação em que estariam caso o evento lesivo se não tivesse produzido. II – Para se apreciar se a reposição natural manifestada na reparação integral da viatura sinistrada é excessivamente onerosa para o devedor (artigo 566°, nº1, do Código Civil) não é bastante tomar meramente em consideração o valor comercial do veículo versus sua reparação integral, sendo também absolutamente imprescindível tomar em conta o uso que o seu proprietário lhe dá, assim como a possibilidade de que ele dispõe de adquirir um outro igual pelo mesmo valor. III – A excessiva onerosidade não pode resultar apenas da circunstância de a reparação custar mais que o valor comercial, antes devendo ser também aferida em função da situação económica do devedor, sendo evidente que não há nenhuma Companhia de seguros que não possa suportar o custo da reparação integral do veículo, desde que o seu proprietário assim o deseje”. Da conjugação dos arts. 562º do Código Civil – “quem estiver obrigado a reparar um dano é obrigado a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” e 566º, nº1, “a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente o valor dos danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” resulta que a indemnização em dinheiro é preterida pela reconstituição in natura. Assim, como regra principal, o lesante deve reparar o bem danificado seja em função da sua conduta culposa – seja nos casos de responsabilidade objectiva, quando ela é fonte do dever de indemnizar. Como ensina o Professor Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, “vol. I, 3ª edição, pág.402 – a lei adopta “uma concepção real do dano”. A indemnização em dinheiro apenas é consentida, sendo impossível a reconstituição natural, porque, v.g. o objecto a reparar ficou totalmente destruído ou é infungível; nos casos em que os danos não sejam totalmente reparados pela reconstituição natural, e ainda, quando a “reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor”. Acerca desta terceira hipótese aquele civilista, na obra e local citados, ensina: “Esta previsão deve ser interpretada restritivamente sob pena de se pôr em causa o direito do lesado a dispor do seu próprio património. Apenas quando a reconstituição natural se apresente como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa-fé a sua exigência ao lesado, é que fará sentido excluir o seu direito à reconstituição natural”. Na nota de rodapé 821, afirma, exemplarmente: “Imaginemos, por exemplo, que alguém danifica um automóvel usado de reduzido valor comercial, mas que o lesado quer continuar a utilizar para as suas deslocações. Não faria sentido autorizar-se o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro”. No juízo a fazer acerca da manifesta desproporção importa não perder de vista que está em causa o património do lesado, que não pode ser prejudicado duplamente, ou seja, num primeiro momento pelo facto de ter sido atingido directamente pelo evento danoso, em si mesmo considerado; depois, pela não aplicação da regra da restauração natural “obrigando-o” a, no caso, a adquirir uma nova viatura, caso não seja reparada a que foi danificada. A desproporção tem de ser manifesta, chocante, lesiva das regras da boa-fé e do fim económico e social visados pela regras da obrigação de indemnizar, de modo a que não avantaje o património do lesado, à custa do devedor, mas também que o património deste não saia beneficiado pelo facto de indemnizar pecuniariamente, ao invés de restaurar a situação patrimonial anterior ao acidente. Aquela situação aconteceria, por exemplo, se a Ré tivesse alegado e provado que, em consequência da reparação, o valor da viatura do Autor seria, então, superior ao seu valor venal antes do acidente. Por outro lado, pese embora o veículo do Autor ser usado e o modelo ter vários anos – facto este que dificulta a sua substituição – e não podendo o lesado ser “compelido” a, no mercado de ocasião adquirir outro de outra marca, com o valor pago pela Ré, que pode até não bastar para adquirir um da mesma igualha, já que esse pode não corresponder às suas necessidades, o certo é que, mesmo sem grande valor comercial, [a matrícula é do ano de 1991], provia às necessidades do seu dono, que pode não dispor das condições económicas para, de imediato, comprar um outro veículo, sobretudo quando, como no caso dos autos, se provou que o Autor tinha adquirido o Toyota poucos dias antes do acidente, por cerca de 1.600 contos, e o valor arbitrado na sentença nem sequer é igual a esse, por se ter dado como provado que, à data do acidente, valia menos que 1.200 contos… sendo de concluir que, em poucos dias, sofreu uma acentuada desvalorização, quiçá por entorses do mercado automóvel de usados, onde, quantas vezes, as regras de formação de preços não primam pela objectividade. Assim, não sendo o critério para aferição da excessiva onerosidade um critério frio, meramente aritmético, que desconsidere a especificidade da situação pessoal e patrimonial do lesado, e não havendo no caso, a nosso ver, uma tão chocante desproporção, como a apelada sustenta, entre o custo da reparação e o interesse do lesado, sobretudo, considerando que, poucos dias antes tinha adquirido a viatura acidentada e, agora, seria chamado a novo esforço económico, quiçá penalizador da sua situação, as regras da boa-fé impõem que a indemnização contemple o valor da reparação – € 9.061,45 com IVA incluído – a restauração natural e não por equivalente pecuniário. Sobre este valor acrescem juros de mora nos termos sentenciados. Não há lugar ao recurso à equidade – nº3 do art. 566º do Código Civil – porquanto foi possível averiguar o valor dos danos, no que concerne à reparação da viatura, que é igual ao custo da reparação. Finalmente, o apelante sustenta que deve ser compensado por danos não patrimoniais pelo não uso e fruição do veículo já que se provou – facto 18) que após o embate o veículo do Autor “permaneceu recolhido na oficina”. Havia peticionado, a esse título, a quantia de € 1.000,00, tendo alegado, além da “restrição do direito de propriedade”, configurando-a como dano não patrimonial pela impossibilidade de usar a viatura, e vários factos que lhe teriam causado incómodos e transtornos, como sejam: o atraso nas obras que tinha em curso, o deixar de poder recrutar trabalhadores, o ter sido abordado por clientes que lhe pediam indemnizações por atraso na entrega das obras, matéria que foi inserta nos quesitos 9º a 12º que mereceram a comum resposta de não provado. Na sentença recorrida negou-se tal compensação, escrevendo-se: “É que, diferentemente do que por ele fora alegado, não logrou provar que tenha sofrido incómodos e transtornos com a privação do uso e fruição do veículo”. Pese embora, não se terem provado factos vários relacionados com a directa ligação da actividade profissional do Autor (na petição inicial identificou-se como empresário da construção civil e obras públicas) à privação do veículo, o certo é que se provou que, após o acidente ocorrido em 22.7.2002, o veículo permaneceu recolhido na oficina, o que consente a ilação de que o Autor, desde aí tem estado privado do uso e fruição dele, ou seja dos poderes inerentes à sua condição de dono. Será que deve ser considerado, em si mesmo, como dano não patrimonial a privação do uso em consequência de facto ilícito de outrem? A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais foi especificamente regulada no art. 496º do Código Civil. O princípio geral é o de que na fixação da indemnização, mais correctamente, da compensação “deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Para que a privação do uso do veículo pelo Autor revista a natureza de dano não patrimonial e, como tal seja indemnizável, seria necessário que se tivesse provado algo mais que o facto do Autor estar privado de usar a viatura. Seria indispensável provar que, como consequência desse facto, tivesse visto directamente afectados interesses seus morais e, até materiais causadores de perturbação na sua vida pessoal e profissional. Ora nada a este propósito se tendo provado, fenece o requisito basilar da existência de “gravidade” merecedora da tutela do direito. Por exemplo, no caso, se o Autor tivesse possibilidade de dispor de outra viatura, provavelmente, nem sequer seria grande o incómodo ou desconforto provocados pela privação do uso da que foi acidentada. Mas, a propósito, nada foi alegado pelo que não merece censura a sentença ao não conceder a impetrada condenação. Recurso da Ré. Pelo quanto dissemos, sobre o recurso principal, improcedem as conclusões das alegações do recurso subordinado, remetendo-se para os fundamentos daquele recurso por aí constarem as razões que conduzem à improcedência deste, esclarecendo-se que o valor dos salvados não é abatido ao montante indemnizatório a pagar pela Ré, aqui em sentido consonante com o decidido na sentença recorrida. Decisão: Nestes termos, acorda-se, na parcial procedência do recurso do Autor, em revogar a sentença recorrida, na parte em que considerou não haver lugar à restauração natural dos danos sofridos, decidindo-se, em sentido diverso, condenando-se a Ré a pagar-lhe a quantia de € 9.061,45, com IVA incluído, acrescida de juros de mora nos termos sentenciados. As custas do recurso do Autor serão suportadas por si e pela Ré, na proporção do decaimento. As custas do recurso da Ré são da sua exclusiva responsabilidade. As custas da acção serão suportadas, pelos pleiteantes, na proporção do decaimento. Porto, 06 de Março de 2006 António José Pinto da Fonseca Ramos José da Cunha Barbosa José Augusto Fernandes do Vale |