Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2460/20.4T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
GERENTE
FACTURAS FALSAS
IVA
IRC
DEDUÇÃO
VALOR TRIBUTÁRIO
VANTAGEM PATRIMONIAL
VANTAGEM DO CRIME
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RP202304192460/20.4T8VFR.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO TOTAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O arguido que, na qualidade de gerente de uma sociedade, emitiu faturas falsas a outra empresa, com a qual estava conluiado, para dedução indevida de IVA por parte desta (empolamento dos custos) e diminuição da sua matéria tributável no IRC, o que implicou uma diminuição de impostos a pagar pela mesma, deve ser condenado a pagar ao Estado o montante da vantagem patrimonial assim obtida para outrem (sociedade beneficiária) - atual art.110º, nº1, al. b), do Código Penal.
II - A declaração de perda do valor das vantagens do crime não depende da demonstração de um efetivo enriquecimento ou obtenção de beneficio pessoal pelo autor do desvio patrimonial, antes e só que da atuação típica ilícita do arguido resultou (nexo causal) uma vantagem patrimonial para si e/ou terceiro.

[Sumário eleborado pelo Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 2460/20.4T8VFR.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 2460/20.4T8VFR do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 3, foi em 11 de novembro de 2022 proferida sentença, e na mesma data depositada, no qual – ao que aqui interessa - se decidiu (transcrição):
- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art.. 103.º n.º 1 e 104.º n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (enquanto emitente), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, subordinada à obrigação de o arguido pagar à Administração tributária, nesse mesmo prazo, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros).
- Absolver o arguido AA do pedido de perda das vantagens do crime, p. e p. pelo art. 111.º n.º2 do C.P., deduzido pelo Ministério Público.
-
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES
I. A perda de vantagens do crime não tem a natureza de uma pena criminal; trata-se de um instituto que constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, com intuitos exclusivamente preventivos e não punitivos;
II. Com a perda de vantagens o que o legislador pretendeu foi consagrar um sistema de reposição da situação que existia antes da prática do crime, impedindo que os seus autores retirem algum proveito disso ou proporcionem benefícios económicos indevidos a terceiros, ainda que essa vantagem reverta diretamente apenas a favor de um dos agentes;
III. No domínio civil, que tem repercussões diretas no foro penal no que toca à convivência processual entre a declaração de perda de vantagens e a dedução de pedidos de indemnização civil pelos ofendidos, na co-autoria material é solidária a responsabilidade de todos os autores pela obrigação de indemnização fundada na prática do respectivo crime, independentemente da diversa intervenção de cada um deles para a produção do resultado, cf. art.ºs 497º, n.º 1 e 483º, n.º 1 do C.C.;
IV. Pela proximidade dos fins que prosseguem, à semelhança do que sucede no instituto da responsabilidade civil extracontratual, também no confisco de vantagens a perda deverá ser decretado solidariamente em relação a todos os agentes do crime, independente da sua maior ou menor intervenção na prática do ilícito ou dos ganhos que concretamente cada um deles teve ou não;
V. A perda de vantagens é um mecanismo civil, enxertado no processo penal que visa a reposição de uma situação patrimonial contrária ao direito;
VI. A perda de vantagens é declarada contra todos os agentes\coarguidos do facto ilícito-típico, independentemente da vantagem patrimonial ilícita ter ingressado apenas na esfera patrimonial de um deles;
VII. Aliás, são vários os Acórdãos dos Tribunais da Relação em que a declaração de perda de vantagens abrangeu os comparticipantes do crime sem que o benefício direto fosse para eles; como também são várias as decisões superiores cuja declaração da perda de vantagens abrangeu o gerente da sociedade arguida “beneficiária” sem que resultasse sequer da matéria de facto provada qualquer beneficio pessoal para esse gerente\coarguido, pessoa singular – ou seja, essas decisões não distinguiram a sociedade arguida do seu gerente (coarguido) pessoa singular para efeitos de declaração solidária de perda de vantagens do crime ao contrário do raciocínio sustentado na decisão recorrida;
VIII. Sendo mensurável o contributo que cada coarguido deu para a criação de uma vantagem económica que resultou da prática do crime, a declaração da perda de vantagens deverá ser proporcional e corresponder à sua concreta atuação, pelo que em relação ao coarguido AA teríamos uma declaração de perda de vantagens do crime pelos seguintes valores: €31.576,67 referente ao IVA das faturas falsas indevidamente deduzido no 3º trimestre de 2014 e 68.243,38€ referente ao não pagamento de IRC de 2014 pela sociedade A..., Lda. por contabilização indevida das faturas falsas como despesas;
IX. A fazer valer a douta posição preconizada na sentença, a mesma representará um novo paradigma na jurisprudência até então sedimentada nesta matéria, deixando de fora do âmbito de aplicação do instituto da perda de vantagens do crime os gerentes das sociedades arguidas (por ex.: em crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal, abuso de confiança à Segurança Social, entre outros) bem como todos os coautores do crime que participaram com as suas condutas para a obtenção da vantagem patrimonial ilícita desde que a mesma seja canalizada por via direta ou indireta apenas para um dos coarguidos ou, no limite e na maior parte das vezes, desde que não se lograsse em julgamento fazer prova em que esfera patrimonial concretamente reverteu essa vantagem patrimonial;
X. E se assim for, não se descortina como, possa tal instituto cumprir as suas finalidades preventivas de dissuasão junto dos agentes do crime e da comunidade em geral (possíveis delinquentes);
XI. Ao não declarar a perda de vantagens do crime em relação ao coarguido AA, o Tribunal “a quo” fez uma incorreta interpretação e aplicação do art.º 111º, n.º 2 do C.P.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser declarada a perda da vantagem patrimonial do crime em relação ao coarguido AA”.
*
O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
--
Regularmente notificado da admissão do recurso, o arguido não respondeu.
--
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando grosso modo os considerandos constantes do recurso do Ministério Público na 1ª instância, pugnou pelo sei total provimento.
--
Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Dito isto,
a questão submetida ao conhecimento deste tribunal é saber:
1ª Da perda de vantagens patrimoniais obtidas a favor de terceiro
--
Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
1.FACTOS PROVADOS
1. A sociedade A..., Lda foi uma sociedade por quotas, pessoa colectiva n.º ..., inicialmente com sede na Rua ..., n.º ..., 2º direito, em Santa Maria da Feira e desde 10 de Novembro de 2014, com sede na Praça ..., loja ..., Edf. ..., ..., em São João da Madeira.
2. Tal sociedade foi constituída a 05 de Fevereiro de 2013, e dedicou-se à actividade de forramento de saltos, cardamento químico e mecânico, tendo estado colectada com a actividade “Fabricação de componentes para calçado”, CAE 15202-R3.
3. Esta sociedade foi declarada insolvente por decisão proferida a 17 de Abril de 2015 e transitada em julgado 12 de Maio de 2015, estando encerrada e com matrícula cancelada desde 15 de Setembro de 2015.
3. Na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais, esta sociedade esteve enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime de tributação de periodicidade trimestral e para efeitos do Imposto sobre Pessoas Colectiva (IRC), no regime de tributação geral e cessou a sua actividade fiscal na data de 31 de Dezembro de 2014.
4. Desde a sua constituição e até 07 de Maio de 2013, data da renúncia, que BB assumiu a qualidade de gerente de direito e de facto desta sociedade, tendo sido, nessa data, nomeado gerente CC, indivíduo que não assumiu qualquer função de facto na sociedade.
5. Não obstante a renúncia à gerência, foi o BB quem se manteve sempre como único representante da sociedade A..., Lda o que se manteve até à sua insolvência, assumindo a representação da sociedade arguida, quer perante os fornecedores, clientes e com a administração fiscal, emitindo e recebendo facturas e recibos, assinando cheques, chamando a si os deveres inerentes ao cumprimento das respectivas obrigações fiscais e tomando todas as decisões relativas ao giro comercial da sociedade arguida.
6. A sociedade B... Unipessoal, Lda, é uma sociedade por quotas, com NIPC ..., constituída a 08 de Maio de 2013, com sede na Rua ..., ..., colectada para o exercício da actividade de “comércio por grosso de máquinas para a indústria, construção e engenharia civil”, com CAE 46630, por actividade principal a manutenção e reparação de veículos automóveis, CAE 45200, por actividade secundária, com início fiscal a 09 de Maio de 2013.
7. Em sede de IVA esta sociedade está enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral e em sede de IRC no regime geral, estando a sua actividade cessada oficiosamente com data reportada ao início da sua actividade.
8. O arguido AA assume a qualidade de gerente, de direito e de facto, da sociedade arguida, sendo este quem a representa e toma as decisões nomeadamente quanto à emissão de facturação da sociedade e perante a autoridade tributária.
10. A sociedade B... Unipessoal, Lda nunca desenvolveu qualquer actividade comercial, não possui ou possuiu quaisquer instalações, não tem ou teve quaisquer viaturas registadas em seu nome, nem o arguido, pelo menos desde o ano de 2010.
11. Em data anterior a 11 de Fevereiro de 2014, o referido BB, em representação da sociedade A..., Lda, decidiu verter na contabilidade desta empresa facturas de aquisição de serviços e de bens que não correspondiam a qualquer transacção real, com o objectivo de, por essa via, deduzir para efeitos de IVA o valor correspondente ao imposto nelas titulado, eximindo-se ao pagamento ao Estado das quantias associadas ao imposto, bem como, dessa forma, incrementar os custos da empresa, deduzindo, a final, o lucro tributável, em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC).
12. Para tanto, abordou o arguido B... a quem deu a conhecer o seu objectivo criminoso, solicitando-lhes a necessária colaboração na emissão de facturas que pretendia inscrever na contabilidade daquela sociedade A..., Lda.
13. Tal arguido, a troco de recompensas pecuniárias correspondentes a uma percentagem sobre o valor de IVA inscrito em cada factura a emitir, ou outras quantias não apuradas, anuiu ao propósito daquele BB, ciente que as facturas que iria emitir não correspondiam a qualquer transacção real e que as mesmas seriam integradas na contabilidade daquela empresa.
14. Assim determinados, o arguido emitiu as facturas abaixo descritas sabendo, ou admitindo como possível, que da sua contabilização poderiam advir vantagens patrimoniais para sociedade A..., Lda de valor superior a €15.000,00 por cada declaração fiscal que aquela apresentasse.
15. O arguido B..., em representação da sociedade B..., Sociedade Unipessoal, Lda, emitiu as seguintes facturas em nome da sociedade arguida A..., Lda que, segundo a descrição nelas contidas, respeitavam a prestação de serviços de calçado e outros, que entregaram a BB:
EMITENTE FACTURA DATA IVA TOTAL DESCRITIVO
B..., Soc. Unp. Lda 2013/37 11/02/2014 €2.119,40 €11.334,19 Fls. 26
B..., Soc. Unp. Lda 2013/35 04/02/2014 €1.617,12 €8.648,06 Fls. 27
B..., Soc. Unp. Lda 2014/13 14/03/2014 €2.791,55 €14.928,75 Fls. 29
B..., Soc. Unp. Lda 3/2013 10/02/2014 €116,82 €624,74 Fls. 30
TOTAL 1º TRIMESTRE €6.644,89 €35.535,74
B..., Soc. Unp. Lda 2014/40 15/05/2014 €2.567,38 €13.729,88 Fls. 31
TOTAL 2º TRIMESTRE €2.567,38 €13.729,88
B..., Soc. Unp. Lda 2014/51 31/07/2014 €6.684,96 €35.750,00 Fls. 33
B..., Soc. Unp. Lda 2014/55 29/08/2014 €15.092,79 €80.713,62 Fls. 34
B..., Soc. Unp. Lda 2014/63 28/09/2014 €9.798,92 €52.402,90 Fls. 35
TOTAL 3º TRIMESTRE €31.576,67 €168.866,52
B..., Soc. Unp. Lda 2014/65 31/10/2014 €20.332,52
(IVA não deduzido na declaração de
IVA apresentada)
€108.734,77 Fls. 38
TOTAL 4º TRIMESTRE €20.332,52 €108.734,77

16. Na posse de tais facturas, BB integrou-as na contabilidade da sociedade A..., Lda, contabilizando-as nos respectivos períodos e apresentando as declarações fiscais de IVA e de IRC com base nas mesmas.
17. Dessa utilização, obteve vantagens patrimoniais ilegítimas de valor superior a €15.000,00 quer em sede de IVA, com a dedução indevida nas respectivas declarações quer em sede de IRC com a contabilização indevida dos custos, nos seguintes valores e períodos:
a. DO IVA: Terceiro trimestre de 2014, no valor total de €31.576,67 (trinta e um mil quinhentos e setenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos)
b. DO IRC: Ano de 2014: 68.243,38€ (sessenta e oito mil duzentos e quarenta e três euros e trinte e oito cêntimos).
18. As referidas facturas não traduzem qualquer operação real porquanto a sociedade B... Sociedade Unipessoal, Lda:
a. desde a sua constituição, que não exerceu qualquer actividade comercial, tratando-se de um não declarante para efeitos de tributação de IRC, tendo apresentado a última declaração de IVA no 2º trimestre de 2013.
b. nunca possuiu quaisquer instalações, sendo a sede da sociedade corresponde à residência da mãe do arguido;
c. nunca deteve quaisquer viaturas registadas em seu nome, nem o arguido, pelo menos desde o ano de 2010.
19. Pelo que, a utilização por parte da sociedade A..., Lda das aludidas facturas, que não correspondem a qualquer transacção real, teve como consequência a dedução indevida de IVA, o empolamento dos custos, e a diminuição da matéria tributável, para efeitos de IRC, que implicaram a obtenção das vantagens patrimoniais supra descritas.
20. Tais vantagens ilícitas obtidas pela sociedade A..., Lda e por BB, seu representante, foram conscientemente, facultadas pelo arguido AA.
21. O arguido B..., por si e em representação da sociedade B... Sociedade Unipessoal, Lda, actuou com a intenção de que a sociedade A..., Lda obtivesse os aludidos benefícios patrimoniais com a utilização das ditas facturas sem correspondência com serviços prestados, o que fez a troco de recompensas pecuniárias.
22. Ao emitir tais facturas, agiu em repartição de tarefas entre si e anuindo ao desígnio criminoso do BB, perfeitamente ciente ou admitindo como possível e com isso se conformando, que as mesmas iriam ser integradas na contabilidade da sociedade A..., Lda e que da sua contabilização adviriam, como adveio, para aquela sociedade vantagens patrimoniais de valor superior a €15.000,00.
23. O arguido AA agiu de forma livre, consciente e deliberada, perfeitamente ciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
24. O arguido é natural de Moçambique, onde viveu com os pais e com os dois irmãos, até aos sete anos de idade, vindo o núcleo familiar a fixar-se em ..., onde decorreu o seu percurso escolar, que terminou com a obtenção do 6º ano de escolaridade.
25. Iniciou a vida profissional como ajudante de motorista, mas envolveu-se no consumo de drogas, registando grande instabilidade.
26. Por volta dos 20 anos de idade emigrou para a Alemanha, tal como os seus irmãos, onde trabalhou inicialmente na construção civil e depois como motorista de pesados.
27. Casou com uma portuguesa, de quem teve uma filha, actualmente com 28 anos de idade.
28. Prosseguiu o envolvimento no consumo de drogas naquele país, esteve internado para tratamento e também esteve preso durante cerca de quatro meses, tendo sido encaminhado para Portugal e impedido de regressar à Alemanha por um período de 10 anos.
29. No regresso a Portugal, já divorciado, trouxe a filha, que passou a ficar ao cuidado da sua mãe/avó paterna.
30. Após o ano de 2009, casou pela segunda vez e divorciou-se; teve uma filha, deste casamento, actualmente com 16 anos de idade e a residir, desde 2011, no Brasil, país de origem da respectiva progenitora.
31. Nesse período, trabalhava como motorista de pesados, transporte de mercadorias, em percursos internacionais, nomeadamente, Suíça e Alemanha.
32. Em 2013, fixou-se novamente na Alemanha, onde continuou a trabalhar como motorista e onde foi detido em Novembro de 2019 e encaminhado para Lisboa, para o estabelecimento prisional junto à Polícia Judiciária, à ordem do processo 232/14.4GCVCT.
33. Foi colocado em liberdade em Abril de 2020, abrangido pela aplicação do perdão concedido em contexto de pandemia.
34. Regressou a ..., para junto de sua mãe, de 75 anos de idade, viúva, reformada, onde vive actualmente; habitam em casa pertencente à família de origem do arguido, situada em meio rural; trata-se de uma moradia com dois pisos independentes, que dispõe de adequadas condições de comodidade; o arguido ocupa o rés-do-chão da casa.
34. Trabalha como motorista de pesados, estando ao serviço da empresa C..., com sede em ..., desde Março do corrente ano; opera habitualmente em Espanha, estando períodos de uma semana naquele país, seguidos de dois dias de folga; aufere um salário de 1.300,00€ líquidos, o qual está a ser sujeito a penhora, no valor correspondente a 1/3 daquele montante.
35. Efectua pagamento uma prestação de 147,00 euros mensais referente a uma multa em que foi condenado, a terminar; contribui ainda com 150 euros mensais para a economia doméstica.
36. Mantém proximidade com os dois irmãos e respectivos núcleos familiares, assim como com a filha mais velha e a neta do arguido.
37. Ultrapassou os seus problemas de consumo de estupefacientes encontra-se afastado dessa problemática, mantendo-se focado na sua vida profissional e estabelecendo as suas relações sociais fora do anterior círculo de relações problemáticas.
38. O arguido sofreu já as seguintes condenações transitadas em julgado:
a. PCS 290/14.1TAVFR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 5/07/2019 pela prática em 13/08/2013 de um crime de burla na pena de 250 dias de multa;
b. PCC 232/14.4GCVCT, foi condenado por acórdão transitado em julgado em 9/05/2019 pela prática em 6/06/2014 de um crime de roubo na pena de 2 anos e 10 meses de prisão efectiva;
c. PCS 228/17.4T8CPV, foi condenado por sentença transitada em julgado em 7/09/2021 pela prática em 2013 de um crime de fraude fiscal qualificada na pena de 2 anos de prisão suspensa por 5 anos, condicionado ao pagamento à administração tributária da quantia de 106.452,60€;
d. PCS 816/13.8GBVFR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 15/11/2021 pela prática em 20/11/2013 de um crime de abuso de confiança agravado na pena de 210 dias de multa.
***
Conhecendo a questão (única) suscitada, cumpre decidir.
1ª Da perda de vantagens patrimoniais obtidas a favor de terceiro
O Ministério Público acusou para julgamento em processo comum com a intervenção do Tribunal Singular, AA, e B..., UNIPESSOAL, LDA., sociedade por quotas, legalmente representada por AA, imputando-lhes a prática, na forma consumada e em co-autoria material com BB (julgado por estes factos no âmbito do processo n.º 950/16.2IDPRT, no qual os presentes autos tiveram origem, na sequência de separação de processos), de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido nos art. 103.º n.º1 e 104.º n.º 1 e 2 e art. 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho).
Por despacho proferido em 27/09/2022, fora julgado extinto o procedimento criminal movido contra a sociedade B...– Sociedade Unipessoal, Lda.
Nos termos do disposto nos art. 111.º n.º2 do C.P., o Ministério Público requereu a condenação do arguido no pagamento ao Estado do valor de 99.820,05€, correspondendo ao valor da vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelo arguido e co-autor do ilícito em causa nos autos.
Realizado o julgamento, o arguido AA foi:
- condenado por sentença de 11/11/22, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art.. 103.º n.º 1 e 104.º n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias (enquanto emitente), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, subordinada à obrigação de o arguido pagar à Administração tributária, nesse mesmo prazo, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros); e
- absolvido do pedido de perda das vantagens do crime, p. e p. pelo art. 111.º n. º2 do C.P., deduzido pelo Ministério Público.
Recorreu o Magistrado do Ministério Publico junto da 1ª instância, relativamente a este segmento decisório que julgou improcedente a declaração de perda a favor do Estado.
Cumpre apreciar.
Nos termos do art. 110.º n.º1 alínea b) do C.P., são declarados perdidos a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Acrescenta o n.º4 que “se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.”
Já o art. 111.º n.º1 e 2 do C.P. preceituam que a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada
Porém, ainda que pertençam a terceiro, é decretada a perda quando:
a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios;
b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.
Importa, pois, apreciar se, no caso dos autos, deve ou não ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelo arguido e em que medida.
Não vem questionado, aliás, é inequívoco, que as vantagens patrimoniais obtidas em sede de IVA mediante indevida utilização de faturas falsas e, consequentemente, em sede de IRC, enquanto incremento de custos e diminuição do lucro tributável, no quadro da comissão de um crime de fraude fiscal, constitui vantagem que pode ser declarada perdida a favor do Estado.
Na verdade, constitui vantagem patrimonial não apenas o incremento do ativo, mas também a diminuição do passivo ou mesmo, como foi o caso, a supressão ou redução de despesas, aqui incluídos os impostos devidos à administração tributária [1].
A este propósito a sentença recorrida refere:
“Aliás, não só pode, como tem que ser declarada perdida a favor do Estado, pois, sendo essa perda ou confisco geral – cfr. João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, nos seus Estudos publicados na Revista Julgar On Line de Janeiro de 2015 e Janeiro de 2017, em anotação a acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães e ao do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2016) imposta pelo art. 110.º n.º 1 alínea b) do C.P.
Isto porque, como bem se sustentou no acórdão da Relação de Guimarães de 19/01/2019, que se segue de perto, “…o legislador português, como (insistimos) resulta claramente do art.º 130º do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do jus imperium estadual…”.
Contudo, acompanhando jurisprudência citada dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto nos processos n.º 235/16.4IDPRT.P1, de 09/10/2019, 286/16.0IDAVR.P1 de 27/01/2021 e 8890/16.9T9PRT.P1, de 22/09/2021, e de 18.03.2023, Processo: 793019.4T9PRT.P1 (todos do mesmo relator WILLIAM THEMUDO GILMAN), de 30-04-2019 (processo 1325/17.1T9PRD.P1 (Élia São Pedro) e 10/11/2021, processo n.º 276/17.4IDPRT.P1 (João Pedro Maldonado), todos in www.dgsi.pt, a sentença perfilhou o entendimento segundo o qual se o agente do crime não tiver obtido para si qualquer benefício, a perda não deve ser decretada contra ele, mas apenas contra quem beneficiou da vantagem.
Quem deve perder a vantagem, afirma-se na sentença visada, é a empresa e não o mero agente do crime que não beneficiou da mesma.
Isto porque, acrescenta-se, parafraseando o citado ac RP 10/11/2021, processo n.º 276/17.4IDPRT.P1, “a declaração de perda de produtos e vantagens em espécie (coisas imóveis, coisas móveis infungíveis ou qualquer produto ou vantagem apreendida - exemplo das quantias pecuniárias) não constitui qualquer decisão condenatória destinada a onerar a esfera patrimonial de um concreto devedor. Traduz, apenas, o confisco puro desses produtos ou vantagens. Já nos casos em que não é possível apropriar o produto ou vantagem em espécie (como no caso concreto, em que ocorreu uma supressão de despesas da sociedade comercial arguida por força da diminuição das receitas tributárias) a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor (cfr. artigo 110º, nº4, do Código Penal) caso em que a perda encerra em si uma condenação dirigida a um concreto devedor no pagamento de quantia certa (perda do sucedâneo em valor). A regra será a condenação do agente do crime. Porém, se o agente actuou em nome ou em benefício de terceiro a perda será decretada em desfavor do terceiro beneficiado (neste sentido M.M.Garcia e J.M.C.Rio, Código Penal comentado, 2º edição, Almedina, pág.468, e P.Pinto Albuquerque, comentário do Código Penal, 3ª edição, UCE, págs.461 e 462). Tal solução mostra-se adequada ao fundamento do instituto em causa: “(…) razões de “prevenção da criminalidade em geral” (…) como de prevenção geral, enquanto fator de confirmação da validade e da vigência da norma jurídica violada. O efeito pedagógico, resultante da anulação direta (…) ou indireta (…) dos proventos do crime é essencial para a prevenção da criminalidade económica. Não está em causa a imposição de um mal, mas a supressão dos benefícios do crime, cuja manutenção na esfera do visado poderia induzi-lo à prática de novos ilícitos e criar na comunidade perniciosas sensações de impunidade (…). O património do condenado deve ser restituído à situação anterior ao seu cometimento, àquilo que ele teria se não o tivesse praticado (…)” – cit. João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, 2012, págs.93 e 94”.
Vejamos, resumidamente, os factos provados:
À data dos factos o arguido, pessoa singular, era gerente da sociedade arguida, B... Unipessoal, Lda, entretanto extinta.
Na referida qualidade, conluiado com o gerente, BB, da sociedade A..., Lda, o arguido AA, em representação da sociedade B..., Sociedade Unipessoal, Lda, durante o ano de 2014 emitiu várias facturas falsas (não traduziam qualquer operação/transação real) em nome da sociedade A..., Lda que, segundo a descrição nelas contidas, respeitavam (falsamente) a prestação de serviços de calçado e outros, que entregaram a BB.
Da contabilização dessas facturas nas declarações fiscais de IVA e de IRC da sociedade A..., Lda, esta sociedade obteve vantagens patrimoniais ilegítimas quer em sede de IVA, com a dedução indevida nas respectivas declarações quer em sede de IRC com a contabilização indevida dos custos, nos seguintes valores e períodos:
DO IVA: Terceiro trimestre de 2014, no valor total de €31.576,67 (trinta e um mil quinhentos e setenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos)
DO IRC: Ano de 2014: 68.243,38€ (sessenta e oito mil duzentos e quarenta e três euros e trinte e oito cêntimos).
Concretamente, a utilização por parte da sociedade A..., Lda das aludidas facturas falsas teve como consequência a dedução indevida de IVA, o empolamento dos custos, e a diminuição da matéria tributável, para efeitos de IRC, que implicaram a obtenção das vantagens patrimoniais supra descritas.
Provado ficou ainda que tais vantagens ilícitas obtidas pela sociedade A..., Lda e por BB, seu representante, foram conscientemente, facultadas pelo arguido AA, o qual, por si e em representação da sociedade B... Sociedade Unipessoal, Lda, actuou com a intenção de que a sociedade A..., Lda obtivesse os aludidos benefícios patrimoniais com a utilização das ditas facturas sem correspondência com serviços prestados, o que fez a troco de recompensas pecuniárias.
Ao emitir tais facturas, agiu em repartição de tarefas entre si e anuindo ao desígnio criminoso do BB, perfeitamente ciente ou admitindo como possível e com isso se conformando, que as mesmas iriam ser integradas na contabilidade da sociedade A..., Lda e que da sua contabilização adviriam, como adveio, para aquela sociedade vantagens patrimoniais de valor superior a €15.000,00.
O arguido AA agiu de forma livre, consciente e deliberada, perfeitamente ciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Face ao exposto, concluiu a sentença recorrida, que o arguido AA incorreu na prática, em co-autoria e na forma consumada, do crime de fraude fiscal qualificado de que vinha acusado.
Ora, estabelecia o art.111º, nº2, do Código Penal, na redação vigente ao tempo dos factos (correspondente ao atual art.110º, nº1, al.b):
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
Em suma, no que ao caso interessa, devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, as vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridas, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
Se as vantagens não puderem ser apropriadas em espécie (o que se verificará, por exemplo, nos benefícios retirados do uso, na poupança de gastos que não se tiveram ou ainda quando o agente escondeu, destruiu ou perdeu a coisa), deve ser ordenada a perda do sucedâneo em valor, ou seja, o confisco é substituído pelo pagamento ao Estado do correspondente valor da vantagem – é o que resulta do disposto no atual n.º 4 do artigo 110.º do Código Penal.
Do exposto resulta que, por força daquele dispositivo legal, correspondente ao atual art.110º, nº1, al.b), não só a sociedade A..., Lda. poderia, por via deste instituto, ser condenada no pagamento ao Estado da quantia de 99.820,05€ (€31.576,67 + €68.243,38), correspondente às vantagens patrimoniais resultantes do facto ilícito típico.
Justamente porque “o instituto da perda de vantagens decorrentes da prática do crime tem finalidades próprias como mecanismo eficaz de dissuasão da criminalidade que visa o lucro (evitando que a prática do crime se traduza nalgum benefício económico)”, como se afirma no citado ac RP 26/01/2022, P.º 2769/16.1T9PRT.P1, in www.dgsi.pt, o legislador quis “anular” a vantagem patrimonial obtida pelo agente do facto ilícito para si ou para outrem.
No caso em apreço, ficou demonstrado que do comportamento típico ilícito do arguido AA resultaram vantagens económicas (diminuição de impostos) para a sociedade A..., Lda no total de 99.820,05€.
Aqui é inócua, aliás, deve mesmo ter-se como não escrita, a referência genérica ou conclusiva às recompensas pecuniárias que, diz-se, o arguido combinou com BB e recebeu a troco da sua atuação ilícita (pontos 13º e 21º dos factos provados) [2].
De resto, estivessem essas recompensas pecuniárias concretizadas e teriam também elas de ser declaradas perdidas a favor do Estado (art.111º, nº1, do Código Penal, na redação vigente ao tempo dos factos), juntamente com as vantagens que o arguido AA proporcionou à A..., Lda
Repare-se que o Ministério Público não pretende ver declarada a perda de vantagem obtida pela sociedade B... Unipessoal, Lda, da qual o arguido AA era gerente, hipótese tratada pelos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto citados pela sentença recorrida.
Trata-se, isso sim, de ver declarada perdida a vantagem (dimuniição de impostos) que o arguido AA proporcionou, agindo em co-autoria, à A..., Lda.
Como refere o recorrente Ministério Público, com a perda de vantagens o que “o legislador pretendeu consagrar um sistema de reposição da situação que existia antes da prática do crime, impedindo que os seus autores retirem algum proveito disso ou proporcionem benefícios económicos indevidos a terceiros, ainda que essa vantagem reverta diretamente apenas a favor de um dos agentes”.
Não se concorda, assim, com a jurisprudência superior citada, segundo a qual “se o agente do crime não tiver obtido para si qualquer benefício a perda não deve ser decretada contra ele mas apenas contra quem beneficiou da vantagem. Quem deve perder a vantagem é a empresa e não o mero agente do crime que não beneficiou da mesma”.
Como bem observa o recorrente Ministério Público, a ser como defendeu a sentença recorrida, o instituto deixaria de fora do seu âmbito de aplicação “os gerentes das sociedades arguidas (por ex.: em crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal, abuso de confiança à Segurança Social, entre outros), bem como todos os coautores do crime que participaram com as suas condutas para a obtenção da vantagem patrimonial ilícita desde que a mesma seja canalizada por via direta ou indireta apenas para um dos coarguidos ou, no limite e na maior parte das vezes, desde que não se lograsse em julgamento fazer prova em que esfera patrimonial concretamente reverteu essa vantagem patrimonial”.
Assim sendo, a perda ocorre aquando da verificação de um facto ilícito típico e do qual resultou a existência de uma vantagem económica para o agente ou outrem. Exige-se apenas um concreto facto ilícito típico e a existência de vantagens com ele obtidas, e do nexo de causalidade entre ambos, independentemente da esfera patrimonial, para a qual resultou a vantagem, pertencer ao arguido ou a um terceiro.
Verificados tais requisitos, “a perda da vantagem (ou o pagamento do valor equivalente) deve ser declarada contra aquele agente que, não obtendo para si a vantagem, possibilita e determina, com a prática do ilícito-típico, a sua obtenção por outrem”, mesmo quando esse terceiro é a sociedade da qual é gerente [3].
Repare-se que no caso esse terceiro diretamente beneficiado não foi sequer a sociedade B... Unipessoal, Lda, da qual o arguido AA era gerente.
Naturalmente que não é aqui convocável o regime do art.110º, nº2, do Código Penal, na redação vigente ao tempo dos factos (atual art.111º, do Código Penal), desde logo porque o arguido AA não é terceiro para esse efeito.
Atendendo à redação do art.111º, nº1, do Código Penal, é terceiro quem não é agente do facto ilícito típico ou seu beneficiário.
Agente do facto típico ilícito, como é o caso do arguido AA, condenado como co-autor do crime de fraude fiscal, é “uma designação genérica que abrange todos aqueles que participam de forma penalmente relevante no seu cometimento, independentemente da modalidade que assume essa participação (autoria, cumplicidade, instigação)” – cfr. J Cura Mariano, in O novo Regime de Recuperação de activos …” INCM 2019, 1ª ed. Coordenação de Maria Raquel D. Ferreira e outros), pg.141.
A decisão de declaração da perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a ordem jurídica patrimonial antes da sua prática, ou seja, de modo a que o seu agente e/ou beneficiário fiquem sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”.
A perda de vantagens, refere Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, pg.140, “tem natureza sancionatória análoga à da medida de segurança pelo que o seu decretamento deve ocorrer sempre que ocorram vantagens com a prática do crime adquiridas pelos seus agentes para si ou para terceiros.
Em suma, na procedência total do recurso, impõe-se a condenação do arguido no pagamento ao Estado do valor de 99.820,05€, correspondendo ao valor da vantagem por si adquirida, como co-autor material do crime de fraude fiscal, a favor de outrem, no caso a A..., Lda (art.111º, nº2, do Código Penal, na redação vigente ao tempo dos factos).
***
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revogando a sentença recorrida no segmento decisório que absolveu o arguido do pedido de perda de vantagens do crime, condená-lo a pagar ao Estado, a esse título, a quantia de 99.820,05€ (noventa e nove mil, oitocentos e vinte euros e cinco cêntimos).
Sem custas.
Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 19.04.2023
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
____________
[1] João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, 2012, pg.80.
[2] As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizam, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente – cfr. RP 24-11-2021 (304/20.6PAVLG.P1, por nós relatado).
A imputação de vantagens pressupõe a concretização nos factos provados do beneficio adquirido total ou parcialmente, não bastando para tanto meras afirmações confusas, genéricas e/ou conclusivas – cfr. RP 18-01-2023 (processo nº793019.4T9PRT.P1, William Themudo Gilman) www.dgsi.pt
[3] Entendimento que vemos defendido no ac RP 29-06-2022 (processo 638/17.7IDPRT.P2, relatora Liliana Páris Dias) www.dgsi.pt, e no estudo publicado pela Relatora in Revista do Ministério Público, 171, pg.193-5, sustentando a desnecessidade de demonstração de um efetivo enriquecimento ou obtenção de beneficio pessoal pelo autor do desvio patrimonial para que a perda de vantagens deva ser declarada. Tal exigência, afirma a Autora, além de não estar legalmente prevista, colide com a natureza e finalidade marcadamente preventivas do instituto, sendo “a única congruente com o regime legalmente previsto para regular as situações em que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a um terceiro. Neste caso, a perda (ou pagamento do valor equivalente à vantagem) pode ser decretada, desde que se verifique qualquer uma das situações contempladas nas diversas alíneas do nº 2 do art.º 111.º do CP. E é manifesto que estas hipóteses não se restringem às situações em que o terceiro retirou benefícios do facto ilícito cometido por outrem” – ob. cit. pg.195.