Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2125/19.0T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
REMESSA PARA O TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Nº do Documento: RP202009082125/19.0T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Declarada a incompetência absoluta do tribunal (cível), em razão da matéria (administrativa), depois de findos os articulados, e requerida pelo A., nos termos do art. 99.º, n.º2, CPC, o aproveitamento daqueles e a sua remessa para o tribunal materialmente competente, perante a oposição justificada do R., não pode o tribunal deferir tal remessa.
II – É justificada a oposição do R. quando alega não ter apresentado no quadro da ação instaurada no tribunal cível defesa por exceção dilatória (ilegitimidade passiva) a qual apenas se justifica quando a causa de pedir deflua de responsabilidade civil extra-contratual por actos da administração pública o que não sucede naquele enquadramento cível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2125/19.0T8AVR-A.P1

Sumário do acórdão elaborado pela relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
Relatório
No Juízo Central Cível de Aveiro, B… demandou o médico do Centro Hospitalar C…, D…, e ainda este Centro Hospitalar C… (EPE), em ação de indemnização emergente de factos praticados pelo 1.º R., na qualidade de funcionário do 2.º R.
O R. contestou considerando o tribunal comum materialmente incompetente, sendo competente o Tribunal Administrativo.
Por decisão de 26.11.2019, o Tribunal Cível de Aveiro julgou materialmente competente o Tribunal Administrativo, julgando procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta e absolvendo os réus da instância, nos termos dos artigos 96º,al. a); 97º, n.º 1; 99º, n.º 1, 100º, 576º, n.º 2, 577º, al. a); 578º, 595º, n.º 1, al. a), todos do C.P.C.
Por requerimento de 11.12.2019 e nos termos do art. 99.º, n.º2, CPC, o A. requereu o aproveitamento dos articulados e a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.
O R. D… opôs-se ao aproveitamento dos articulados e sua remessa ao Tribunal Administrativo porque a sua defesa aqui apresentada foi deduzida com base na responsabilidade contratual, uma vez que a acção havia sido intentada no Tribunal Civil, pelo que a acção foi contestada com base na responsabilidade contratual e não na responsabilidade extra-contratual. Acrescentou que o Réu poderia ter excecionado a sua ilegitimidade passiva, o que não fez, de acordo com a Lei 67/2007, de 31 de Dezembro a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa.
O A. ainda respondeu a esta oposição, dizendo ser a exceção em causa de conhecimento oficioso e, por isso, injustificada a oposição.
Datado de 10.2.2020, foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor:
No que concerne à remessa dos presentes autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, defere-se o requerido, na medida em que se verificam os pressupostos previstos pelo artigo 99º do CPC, na medida em que foi requerido pelo autor e a oposição apresentada pelo réu, salvo melhor entendimento, não se justifica, aderindo-se aos fundamentos invocados pelo autor no requerimento com a referência 9713445.
Em face do exposto, remetam-se os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

Deste despacho recorre o primeiro R., visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim sintetiza:
1ª – O despacho recorrido referência Citius 110436428 padece de nulidade nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi do n.º 3 do artigo 613.º do mesmo, artigos 607º n.º3 e 4, 615º n.º1, alínea b) e 154º n.º2, todos do C.P.C
2ª – A nulidade do despacho decorre da total omissão quer quanto à indicação das normas jurídicas correspondentes e que justificam a decisão, quer quanto à sua interpretação e aplicação.
3ª – A falta de fundamentação do despacho recorrido acarreta, a nulidade do mesmo, já que não fundamenta, nem se percebe minimamente que caminho percorreu para chegar à decisão proferida.
4ª – Com efeito, o despacho em crise limita-se a decidir aderindo aos factos, sem sequer os enunciar, invocados por uma das partes, em requerimento (ref. Citius 9713445) cuja admissão nem deveria ter sido permitida pelo Tribunal a quo, pois o Autor não tinha legalmente o direito de apresentar qualquer resposta, já que tal requerimento foi apresentado depois de o Réu ter exercido o direito de contraditório relativamente ao pedido do Autor, este sem fundamentação plasmada.
5ª – Não existe no despacho recorrido qualquer fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos, que ainda que coincidente com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma, o que caso sub judice, não aconteceu, tendo assim violado os artigos 615.º n.º1 do CPC, aplicável ex vi do n.º 3 do artigo 613.º do mesmo, artigos 607º n.º3 e 4, 615º n.º1, alínea b) e 154º n.º2, todos do C.P.C.
6ª – O despacho em crise é ainda manifestamente ilegal por violação do artigo 99º n.º2 do C.P.C.
7ª – Ao deferir a remessa dos autos para o Tribunal competente (Tribunal Administrativo), com oposição justificada do Réu, o despacho em crise violou o artigo 99º n.º2 do C.P.C, situação que também se verifica pelo facto de, nos autos, a 1ª instância ter considerado que a oposição do Réu, nem sequer era justificada.
8ª – O Réu opôs-se justificadamente ao pedido formulado pelo Autor (remessa dos autos para o Tribunal competente) alegando para tal, que pelo facto de a ação ter sido instaurada em Tribunal Judicial, o qual foi declarado materialmente incompetente, deixou de deduzir meios de defesa sustentados em normas de direito público ou do processo administrativo que sempre suscitaria se acaso a ação tivesse sido instaurada em Tribunal Administrativo.
9ª – O Réu, no seu requerimento de oposição, demonstrou à saciedade, entre outros argumentos, que, no caso de a acção ter dado entrada no tribunal competente, sempre excepcionaria a questão da ilegitimidade passiva e teria alegado e suscitado outras questões que apenas assumem importância no foro administrativo, porquanto no âmbito da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
10ª – Excepção essa que só no foro administrativo é que poderia ter sido alegada e assumir a respectiva pertinência, pelo que é por demais evidente que o douto despacho ao ter decidido como decidiu, cerceou de forma grave os direitos de defesa do Réu, e violou o disposto no artigo 99º n.º2 do C.P.C, antes devendo ter indeferido aquele pedido formulado pelo Autor.

Não foram produzidas contra-alegações.
Os autos correram vistos legais.

Objeto do recurso:
Saber se, à luz do disposto no art. 99.º, n.º2, CPC, justifica-se a remessa dos autos para o tribunal materialmente competente quando o R. se opõe alegando não ter esgrimido no tribunal incompetente toda a defesa que apenas lhe era possível perante o tribunal competente.

Fundamentação de facto:
Os factos que interessam à decisão são os relativos ao iter processual que acima ficaram descritos.

Fundamentação de direito
Porque suscitada, há que apreciar a regularidade do despacho que, em primeira instância, deferiu o pedido de remessa dos autos para a jurisdição administrativa.
E, a este respeito, não pode deixar de se reconhecer razão ao recorrente.
O art. 615.º, n.º1 b) CPC considera nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Esta norma é aplicável aos despachos (por força do disposto no n.º 3 do art. 613.º CPC).
Por sua vez o art. 154.º CPC impõe o dever de fundamentar todas as decisões que incidem sobre pedido controvertido ou dúvida, não podendo tal fundamentação ocorrer por mera remissão para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
Na situação que nos ocupa, o despacho sob sindicância defere a remessa do processo para o tribunal administrativo e fá-lo afirmando, quando à oposição do R., aderir aos fundamentos indicados pelo autor.
Ora, como se assinala no recurso, nem este requerimento do autor é admissível por se tratar de um requerimento estranho ao andamento dos autos e que não deveria ter sido admitido, mas mandado desentranhar (o autor já havia apresentado requerimento no sentido de aproveitamento dos articulados e o R. opusera-se-lhe, não cabendo novo requerimento do autor sobre tal oposição), nem é suficiente para se considerar fundamentado a simples adesão aos fundamentos (e quais?) invocados pelo A.
Então, o despacho em causa é nulo.
Ainda assim, não se concorda com tal decisão final, ainda que não fundamentada, afigurando-se-nos ser justificada a oposição sustentada pelo R.
Dispõe o art. 99.º, n.º2, CPC, que Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.
Trata-se de averiguar o que deve entender-se por oposição justificada.
O preceito em análise encerra em si um conflito entre o princípio da economia processual, que postula o aproveitamento dos articulados já produzidos, e a garantia do direito de defesa, alcançando-se uma solução de compromisso mediante a verificação casuística dos interesses dos demandados.
A este respeito escrevem J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 3.º Ed., p. 204): “Essa oposição tem de ser justificada, o que se harmoniza com o direito de defesa e o princípio da economia processual: será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a ação tivesse sido proposta no tribunal competente.”
No ac. do STJ, de 15.1.2019 (Proc.1021/16.7T8GRD-A.C1.S1), indica-se o que é a tendência da jurisprudência recente a este respeito: Na jurisprudência das Relações considera-se que ocorre fundamento bastante para recusar a remessa quando esta determine uma restrição nas garantias do réu, designadamente pelo facto de não poder deduzir pedido reconvencional (RG 23-11-17, 2089/16). Noutro caso, o deferimento da remessa ficou dependente da apreciação global da defesa que foi ou poderia ter sido apresentada (RP 11-10-17, 1974/16 e CJ, t. IV, p. 176; cf., no entanto, as dúvidas suscitadas por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol. I, 3ª ed., p. 204, quando se trate de defesa que não foi mas poderia ter sido apresentada). Já no Ac. da Rel. de Coimbra de 1-6-15, 1327/11, que serviu de fundamento à admissão do presente recurso de revista, considerou-se justificada a oposição quando “o réu invocar alguma razão plausível para se opor à remessa, sem carecer de a especificar, em pormenor, desde que mostre não se tratar de uma oposição arbitrária”.
Na situação que nos ocupa trata-se de um caso de responsabilidade civil por prática médica exercida no âmbito de uma instituição de saúde pública.
Tendo a ação sido configurada como se a relação médico-paciente defluísse do domínio das relações jurídico-privadas é evidente não ter sido convocado o regime que decorre da Lei 67/07, de 31.17, relativa à responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.
Sendo um R. funcionário administrativo, considera-se justificada a sua oposição ao aproveitamento dos articulados posto que a defesa a exercer no âmbito de uma administrativa poderá muito bem ser distinta da apresentada no âmbito de uma ação jurídico-privada. Desde logo, como alega, um dos meios de defesa a aí opor é o que resulta da circunstância de, em primeira linha e perante o pretenso ofendido, responder a pessoa coletiva de direito público e não o agente ou funcionário executante. Esta exceção de ilegitimidade do mesmo – ainda que possa ser conhecida oficiosamente – constitui um meio de defesa que ainda não foi oposto pelo R., que tem direito a fazê-lo, e não o foi por causa da natureza da ação cível que foi intentada perante tribunal incompetente em razão da matéria.
Assim, considera-se justificada a oposição, não sendo de se aproveitarem os articulados para efeitos de remessa do processo para a jurisdição administrativa.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e revogar a decisão recorrida que é substituída por outra que indefere a pretensão do A. de aproveitamento dos articulados e remessa do processo para o tribunal administrativo.
Custas pelo recorrido.

Porto, 8.9.2020
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões