Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
260/16.5IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PERDA DE VAGAGEM
PATRIMÓNIO
Nº do Documento: RP20180918260/16.5IDPRT.P1
Data do Acordão: 09/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º770, FLS.302-305)
Área Temática: .
Sumário: Deve ser declarado perdido a favor do Estado ao abrigo do artº 111º 2 CP o valor da vantagem patrimonial obtido pelo arguido com a prática do crime de abuso de confiança fiscal (artº 105º RGIT) mesmo não tendo o Mº Pº deduzido pedido civil a pedido da Autoridade Tributária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 260/16.5IDPRT.P1
Comarca do Porto Este
Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório.
O Mº Pº veio interpor recurso da parte da sentença proferida no processo comum singular nº 260/16.5IDPRT, do Juízo Local de Paços de Ferreira, que decidiu:
Indeferir o pedido formulado pelo Ministério Público de ser declarado perdido a favor do Estado, o valor da vantagem patrimonial no montante global de 27.914,94€.”
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Para tanto, apresentou motivação de recurso, constante a fls. 274 a 287 dos autos, que rematou com as seguintes conclusões:
1.ª Como se sumaria no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.10.2017, disponível em www.dgsi.pt. "Tenha ou não deduzido pedido civil tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artigo 111º do Codigo Penal, num crime de burla tributária (ou em qualquer outro tipo de crime de natureza fiscal, acrescentamos nós), ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime”
2.ª Ao indeferir, na sentença recorrida, a requerida perda de vantagem patrimonial, a Mma. juiz a quo, violou o disposto no artigo 111. º, n. º 2, do Código Penal, por interpretação de que este artigo no sentido de que a perda da vantagem patrimonial a favor do Estado, apenas existe se a Autoridade Tributária, não dispuser de meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas.
3.ª. Tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que defira a pretensão do Ministério Público da perda de vantagem patrimonial, obtida com a prática do crime em questão, no valor de €13.260,40, [lapso manifesto dado que na motivação reproduz a parte decisória da sentença onde consta, 27.914,94€, nota da relatora] realçando-se, para a devida transparência das consequências jurídicas da decisão a proferir, que o Estado não poderá, em caso algum, obter o duplo pagamento das quantia em causa, devendo, igualmente, ser ressalvado, que o pagamento a ser determinado no âmbito dos presentes autos não prejudicará eventuais créditos financeiros da ofendida Autoridade Tributária que ultrapassem esse valor e, ainda, que deverá ser reduzido o montante de eventuais pagamentos por conta da dívida que os arguidos já tiverem realizado à ofendida.
4.ª Nestes termos e nos mais de direito aplicável, que vossas excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão da Mma. juiz de Direito que indefere o pedido de perda da vantagem patrimonial obtida com a prática do crime em questão, no valor de €13.260,40 [lapso manifesto dado que na motivação reproduz a parte decisória da sentença onde consta, 27.914,94€, nota da relatora] e substituída por outra que defira o requerido pedido, assim se fazendo justiça.
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O recurso foi liminarmente admitido conforme despacho de fls. 696 dos autos.
Não foi oferecida resposta.
Subiram os autos a este Tribunal, tendo o Exmo. PGA emitido Parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumprido o artigo 417º, n.º2, do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir.
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II. Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
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1. Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, é a seguinte a questão a decidir:
- Averiguar da susceptibilidade ou não de declarar a perda de vantagem patrimonial correspondente ao montante de IVA retido pelo arguido e não entregue à Autoridade Tributária (comportamento pelo qual foi condenado), a requerimento do Ministério Público, nos casos em que o mesmo montante não é peticionado em sede de pedido de indemnização civil por vontade daquela Autoridade.
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2. Factualidade.
Decisão recorrida, na parte que releva.
d) O Ministério Público veio requerer a perda da vantagem patrimonial nos termos do artigo 111.°, nºs 2, 3 e 4 do Código Penal, no valor de €27.914,94, quantia que alega ser devida à Administração Tributária e de que esta ficou desapossada pelo crime cometido pelos arguidos de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 6.º e 105.º, nº l, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 111.º, do Código Penal que: "1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico) para eles ou para outrem) é perdida a favor do Estado. 2 - São também perdidos a favor do Estado) sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas) direitos ou vantagens que) através do facto ilícito típico) tiverem sido adquiridos) para si ou para outrem) pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. 3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transação ou troca com as coisas ou direitos diretamente conseguidos por meio do facto ilícito típico. 4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor".
Ora, como é sabido a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque [ln Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao art.111º.], não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, "mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do ofendido".
Contudo, como bem se refere no recente Acórdão da Relação do Porto, de 22.03.20017 - Disponível em www.dgsi.pt. - o qual, pela sua clareza de raciocínio, passaremos a seguir de perto, o que urge saber é se essa perda pode ter lugar a pedido do Ministério Público quando não tenha sido por si deduzido pedido de indemnização civil por vontade da AT.
No caso em apreço, a fls.539, consta a seguinte declaração da AT:
"A posição da AT é a de que não pretende que o Ministério Público deduza pedido de indemnização civil no presente inquérito, por considerar suficientes os meios legalmente previstos no artigo 148.° do CPPT para cobrança coerciva dos impostos em causa."
Este instrumento hierárquico do Ministério Público manda que os seus magistrados e representantes observem o seguinte: "1 - Cabe ao Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira, deduzir pedido de indemnização civil conexo com o processo penal, por crimes de natureza fiscal, sem exceção, e desde que aquela solicite tal intervenção [artigo 1.0, alínea a) do n.º 1 do artigo 3.° e alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto do Ministério Público, artigo 71.° e n.º3 do artigo 76.° do Código de Processo Penal]. 2 - A pretensão dirigida ao Ministério Público para que, em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira, deduza pedido de indemnização civil conexo com o processo penal por crime fiscal, deve ser expressamente formalizada no inquérito pelo dirigente do serviço desconcentrado competente, e, sempre que possível, prévia ou contemporaneamente à remessa ao Ministério Público do parecer a que alude o n.º 3 do artigo 42.° do Regime Geral das Infrações Tributárias .... "
No caso, a AT manifestou a sua opção por usar os seus próprios meios para cobrança coerciva do imposto em causa.
Nos termos definidos na orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, aprovada pelo DL n.º 118/2011, de 15.12, esta entidade é um serviço da administração direta do Estado dotado de autonomia administrativa, (art. 1º, nº 1) e tem a seguinte missão e atribuições, nos termos do art. 2.º: "1 - A AT tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos, ... 2 - A AT prossegue as seguintes atribuições: a) Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento e sobre o consumo, ( ... ) c) Exercer a ação de justiça tributária e assegurar a representação da Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais; ( ... ) e) Promover a correta aplicação da legislação e das decisões administrativas relacionadas com as suas atribuições e propor as medidas de carácter normativo, técnico e organizacional que se revelem adequadas; (…)".
A autonomia de que goza a AT permite-lhe, em caso de incumprimento de obrigações fiscais, instaurar execução fiscal (artigo 148.° do CPPT) ou instaurar inquérito criminal (artigo 35.° do RGIT) onde, se for deduzida acusação, o Ministério Público, em sua representação, deduzirá pedido de indemnização civil, nos termos sobreditos.
Cumpre ter presente que o artigo 111.º, nº 2, do Código Penal estabelece uma condição para a perda de vantagens a favor do Estado que é precisamente a salvaguarda dos direitos do ofendido. No caso, o ofendido é o Estado que, através da AT optou, como é competência sua, pela execução fiscal, arredando o Ministério Público de intervenção na recuperação daquela quantia, por considerar que tem meios suficientes para cobrança coerciva do imposto em causa.
No mesmo sentido do vindo de dizer, veja-se, ainda, Acórdão da Relação do Porto de 23.11.2016.
Face a tudo o exposto e, porque a Autoridade Tributária optou pela execução fiscal, por entender ter meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas, a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público terá que improceder.»
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3. Apreciação do recurso.
Na sentença recorrida foi desatendida a pretensão deduzida pelo Ministério Público, de ver declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida com o crime pelo qual foram condenados os arguidos nos autos, mais precisamente o valor de 27.914,94€ [como consta da acusação a fls. 580 e no dispositivo da sentença].
O Tribunal a quo considerando, não obstante, ser a perda de vantagens exclusivamente determinada por necessidades de prevenção, e referindo tratar-se “de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes”, visando-se com a mesma mostrar “ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objeto", acaba por arrimar tal instituto ao da indemnização cível e pretensão indemnizatória a ele inerente de ressarcimento de perdas e danos emergentes da prática de um crime, instituto que tem regulação própria no direito civil (art.º 129º do CP), e que material e processualmente não se confunde com o instituto da perda de vantagens.
Como se escreve no Ac. deste TRP de 22.03.2017, Rel. Francisco Mota Ribeiro, disponível in www.dgsi.pt., que aqui seguiremos de perto: “a essência do fundamento da autonomia do instituto da perda de vantagens em relação ao da indemnização de perdas e danos emergentes da prática de um crime, é, à partida, e num plano desde logo iminentemente substantivo, o facto de aquele assumir uma natureza sancionatória análoga à da medida de segurança e o outro apenas uma natureza fundamentalmente ressarcitória das perdas e danos sofridos pelo ofendido ou lesado com o comportamento ilícito típico. Diferente natureza que assume uma particular importância na solução do caso-problema dos autos”.
A propósito da natureza jurídica do regime da perda de vantagens, discorre o Professor Figueiredo Dias: trata-se de "uma providência sancionatória análoga à da medida de segurança (...), no sentido de que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso (e sublinharíamos o sempre e em qualquer caso) instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não atuado com culpa".
E refere o mesmo autor que na reflexão que possa haver no tocante à articulação entre a responsabilidade civil (ou fiscal) e perda de vantagens, o instituto da perda de vantagens marca sempre a sua autonomia. Pois, “seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda.” Questiona-se apenas a sua utilidade, mas não já a possibilidade do seu decretamento, nos casos em que tenha sido deduzido pedido cível conexo com o processo penal, pois nestes casos “poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá vir a ser decretada utilmente.” E sendo apenas nestes casos, em função de uma comprovada e concreta inutilidade, que se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entres os dois institutos.
Decretamento de perda de vantagem, portanto [voltando ao caso dos autos - onde não foi deduzido qualquer pedido cível -], a decretar sempre, e sem prejuízo do que a Administração Fiscal possa vir ou não a decidir e a conseguir no âmbito da pretensão assente na respetiva obrigação fiscal.
Com efeito, a questão da determinação da perda de vantagens está conexionada diretamente com o crime praticado, competindo ao Tribunal decidi-la na sentença penal, não podendo ser deixada à sorte (abdicando o Tribunal de tal poder-dever de decisão, omissão que seria sempre irreversível), de uma futura e eventual reclamação dos valores que o Fisco pudesse entender serem devidos e ao sucesso que tal pretensão pudesse ter. Sendo que é na sentença penal e através dela que se poderá cumprir o caráter sancionatório de tal medida.
Neste conspecto, a sentença recorrida abdicou de dar o sinal comunitariamente muito relevante, de que, “sempre e em qualquer caso”, o crime não compensa.
Sendo este, portanto, o sentido e alcance da norma do art.º 111º, nº 2, do CP, ao estabelecer que “são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.”
Com este entendimento redefinimos a nossa posição anterior expressa no Ac. deste TRP de 07 de Dezembro de 2016, Proc. n.º 193/15.2IDPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt, que também já tivemos ensejo de rever em anterior acórdão de 12.07.2017, proc. N.º 149-16.8IDPRT.P1, em que foi 1º subscritor o Sr. Juiz Desembargador Jorge Langweg, disponível in www.dgsi.pt.
Razão por que deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando-se a perda das vantagens patrimoniais obtidas com a prática dos crimes dos autos, nos termos peticionados.
Pelo exposto procede o recurso do MP.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo M.P.
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Sem custas.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
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Porto, 12 de Setembro de 2018.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares