Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
539/11.2PBMTS-AB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
PERDA ALARGADA DE BENS
Nº do Documento: RP20150415539/11.2PBMTS-AB.P1
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - São pressupostos do decretamento do arresto para garantia da perda alargada de bens a favor do Estado, a existência de fortes indícios:
- da prática de um dos crimes do artº 1º da Lei 5/2002 de 11/1; e
- da desconformidade do património do arguido com o rendimento licito (incongruência).
II – O arresto mantem-se até que seja proferida decisão final absolutória (artº 11º3 da Lei 5/2002), ou até que seja proferida decisão de perda e o arguido pague voluntariamente o valor da incongruência, podendo manter-se para além da decisão final condenatória (artº 12º4 da Lei 5/2002), não sendo afectado por outra vicissitude processual que não aquelas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 539/11.2PBMTS-AB.P1
2ª Secção (J3) da Instância Central Criminal de Matosinhos da Comarca do Porto

Acordam, em Conferência, as Juízas desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Na 2ª Secção da Instância Central Criminal de Matosinhos da Comarca do Porto, no processo nº 539/11.2PBMTS-Z, em 14.11.2014, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (certificado a fls. 54 a 56):
“(…)
Fls. 1511: Veio B… requerer a suspensão do presente arresto até à partilha, nos termos do art.740° nº 2 do C.P.C., juntando, para o efeito certidão da instauração de processo de inventário para separação de bens, sendo requerido o aqui arguido C….
Cumpre decidir.
Conforme resulta do disposto no art.227° nº 1 do C.P.P., "A requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil".
No entanto, pese embora tal remissão, nunca se poderá esquecer que estamos perante uma figura inquestionavelmente da jurisdição criminal e não da jurisdição cível, tal como o é o pedido cível enxertado no processo crime, ao abrigo dos arts. 71.° e segs., do CPP.
Não é pelo facto de o art. 228.°, n.º 1, deste Código, dizer que o arresto pode ser decretado "nos termos da lei do processo civil" que todas as normas da lei processual civil se apliquem sem mais ao presente incidente.
Estamos uma providência enxertada no processo penal que, como tal, tem de obedecer em primeira mão ao espírito que preside ao mesmo.
Aliás, sempre se dirá que a figura que a requerente agora pretende seja aplicada, resulta ela própria da remissão que o disposto do antigo 391° nº 2 do C.P.C. (aqui aplicável) fazia para o regime executivo, mas atente-se, ele próprio ressalvando "em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção".
Muito mais, no caso de estarmos perante jurisdições diversas e com objectivos radicalmente diferentes.
Ora, estando nós no capítulo das medidas de coacção e medidas de garantia patrimonial, cujos recursos de decisões que as apliquem nunca têm efeito suspensivo, mal se entenderia que a simples interposição de um inventário para separação de meações pudesse ter tal efeito.
Face ao exposto, por inadmissibilidade legal, indefere-se o requerido.
Sem custas do incidente, atenta a sua simplicidade.
Notifique.”
***
Inconformada, B… interpôs recurso deste despacho, terminando a sua motivação com as conclusões seguintes (transcrição):
I
Vai o presente recurso do douto despacho proferido em 14/11/2014 que, entre o demais, decidiu sobre o requerimento da mesma, de suspensão dos autos de arresto até á partilha, face á instauração de processo de inventário para separação de meações, nos termos do disposto no are. 740°, n°. 2 do C.P.C, indeferindo o requerido por inadmissibilidade legal do requerido.
II
Conforme resulta dos autos, por douta decisão judicial de fls. e, foi decretado o arresto preventivo de bens pertencentes ao património comum do casal, constituído pelo arguido, C… e mulher, B…, aqui Recorrente, casados no regime supletivo de comunhão de adquiridos desde 1999, conforme certidão que se encontra já nos presentes autos.
III
Atendendo a que, o crédito que venha a ser reconhecido ao requerente do arresto (in casu, em caso de condenação criminal, que não se aceita e apenas se aceita por mera hipótese de raciocínio) é da exclusiva responsabilidade do arguido, e por isso, são os bens próprios e a sua meação nos bens comuns, a responder por esta dívida, artº1692° al. b) e art° 1696° nº1, do Cód. Civil, a Recorrente, por oficio datado de 22/09/2014 foi citada nos seguintes termos:
"Fica Vª. Exa. citada, na qualidade de cônjuge do executado C…, nos termos previstos no art.° 740°, n°. 1 do CPC, aplicável por força do disposto no art.º n.° 391°, n°. 2 do mesmo diploma para, no prazo de 20 dias, a contar da assinatura do AR, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns", o sublinhado não é nosso.
IV
Ou seja, perante tal citação se a Recorrente não requeresse a separação de bens, ou juntasse a certidão comprovativa de o ter feito em acção própria, a execução prosseguiria sobre os bens comuns; se fizesse uma coisa ou outra, a execução não prosseguiria sobre os bens comuns, ou seja, seria suspensa!
V
Seguindo a primeira hipótese, a Recorrente, por requerimento de 08/10/2014, requereu por apenso a estes autos de arresto, a separação judicial de bens, nos termos do disposto no artº. 740° do CPC, conforme resulta de fls., e esse douto Tribunal entendeu não ser esse o tribunal competente, mas sim o Cartório Notarial sediado no município do lugar da casa de morada de família.
Pese embora a Recorrente não concordasse, salvo modesto entendimento, com tal posição, por uma questão de economia processual, apresentou pedido de separação judicial de bens no cartório Notarial de Fafe, conforme também resulta dos autos e, tal como havia sido citada e de harmonia com o disposto no are. 740°, nº. 2 do C.P.C. e, para que, como refere a citação que recebeu, a execução (in casu o arresto) não prossiga sobre os bens comuns do casal, juntou aos presentes autos a certidão comprovativa da pendência da separação judicial de bens no referido Cartório Notarial.
VII
Foi a Recorrente surpreendida com a decisão sub judice, com a qual não se conforma, na medida em que, em síntese e salvo o devido respeito, que é muito, faz uma errada aplicação do direito, ao não determinar a suspensão do arresto preventivo nos termos do n.º 2 do art.º 740° do Código de Processo Civil, uma vez que, se encontra já decorrer a separação de bens em processo de inventário.
VIII
O arresto preventivo foi decretado nos termos da lei do processo civil, nos termos e para os efeitos do art.° 228° n.° 1 do Código de Processo Penal, seguindo como tal, a jurisdição cível, aliás, no âmbito da qual, viria a Recorrente a ser citada para requerer a separação de bens, sendo certo que, após a penhora dos bens do casal na execução, movida contra um dos cônjuges, tem lugar a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens ou mostrar que ela já está requerida, de acordo com o art.º 740 n° 1 do Código de Processo Civil.
IX
O cônjuge do executado, é citado no momento e com as garantias a que se refere o 786° e 787° do Código de Processo Civil para requerer a separação de bens, em processo de inventário, ou, juntar aos autos certidão comprovativa da pendência de processo de separação de bens já instaurada, art.° 741° n.° 5 do Código de Processo Civil, o que aconteceu nos presentes autos.
X
Ou seja, a Recorrente cumpriu o que se lhe impunha - intentou a separação judicial de bens em sede de processo especial de inventário, (instituído pela Lei n° 23/2013 de 5 de Março, aplicável ao caso dos autos), para obter a separação das meações e, tendo junto a respectiva certidão ao presente processo, no estrito cumprimento do estatuído no nº. 2 do citado artº. 740°, deveria o despacho de que se recorre, ter declarado suspensa a instância do arresto no que concerne aos bens comuns do casal composto pela aqui Recorrente e pelo arguido C…, até á partilha. E, reitere-se "suspender" que significa, salvo o devido respeito, sustar o arresto e não ordenar o seu levantamento.
XI
Ademais, a decisão em apreço, está em manifesta contradição com a decisão que foi proferida já no âmbito do presente apenso, em 25/07/2014, fls. 1373 e segs. o qual refere expressamente a fls. 1383 que "De acordo com o disposto no artº. 10°, n°. 2 da lei nº, 5/2002 de 11/01, é possível ainda ao Mº. Pº. requerer à cautela ainda na pendência da providência cautelar ... por forma a ser arrestada a meação do arguido nos bens comuns..
XII
E, a fls. 1384 que "Esta norma (do artº. 740º do C.P.C.) aplica-se ao arresto (que mais não é do que uma pré-penhora pro força do disposto no artº. 391°, n°. 2 do C.P.C.", continuando tal decisão a referir "tendo sido arrestados bens comuns (...) o cônjuge do arguido deverá ser citado no âmbito da presente providência cautelar para os efeitos do citado artº. 740° n°. 1 do C.P.C.".
XIII
Acrescenta ainda tal decisão alguma jurisprudência sobre tal questão, terminado por decidir que "Aplicando esta jurisprudência ao caso vertido, e tendo em conta que o disposto no art.° 10°, n°. 2 da lei 5/2002, o Mº. Pº., pode ainda vir, e á cautela no decurso da presente providência cautelar (ou posteriormente) requerer a citação do cônjuge do arguido C… para os fins previstos no n°. 1 do art. ° 740° do Código de Processo Civil" e termina pela aplicabilidade aos presentes autos do art.º 740° do Código de Processo Civil.
XIV
Aliás, a utilização do procedimento previsto no processo de inventário, permite à aqui Recorrente o direito a escolher as verbas/bens que devem compor a sua meação, sendo que os credores e/ou reclamantes, apenas podem reclamar quanto ao valor atribuído aos mesmos, assegurando-se contudo, a intervenção do exequente ou requerente do arresto (Ministério Público) ao longo de todo o processo de partilhas, com o exercício das faculdades que legalmente lhe assistem com vista à defesa do seu direito de crédito.
XV
Daí que, a suspensão do arresto até à partilha, seja uma consequência automática, em função do início do processo de separação judicial de bens em sede de processo especial de inventário, quando hajam sido penhorados bens comuns do casal e o cônjuge (que não figura como executado e que não haja aceite a comunicabilidade da dívida), requerer a separação da meação, unicamente prosseguindo a execução quanto aos bens próprios que se encontrem penhorados, in casu, arrestados, e só em relação a estes.
XVI
Deste modo, ao decidir como decidiu, violou o Meritíssimo Tribunal" a quo" o disposto nos arts. 740° n.º 2 do Código de Processo Civil, 8° n.º 3 e 9° do Cód. Civil e n.º 2 do art.º 13° da C.R.P.
Nestes termos e nos melhores Direito, que V.ªs Ex.ªs muito doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, designadamente que suspenda o arresto decretado ao bens do casal composto pelo arguido C… e a aqui Recorrente, até à partilha, em virtude do processo de separação judicial de bens que corre termos pelo Cartório Notarial de Fafe e cuja certidão se encontra junta ao presente processo, tudo com as legais consequências.
Decidindo deste modo farão V. as Ex. as, aliás como sempre, um acto de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.
***
O recurso foi admitido para subir imediatamente, em separado, e com efeito meramente devolutivo (despacho certificado a fls. 82).
***
Em resposta ao recurso, o Ministério Público pugnou que lhe seja negado provimento e confirmado o despacho recorrido.
***
Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “deverá ser julgado improcedente o recurso e mantido inalterado o despacho impugnado”.
***
Foi cumprido do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo sido apresentada resposta pela recorrente que, dando como integralmente reproduzido o teor das suas alegações e conclusões de recurso, pugnou pela revogação da decisão recorrida.
***
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pela recorrente, a partir da respectiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Assim, face às conclusões apresentadas pela recorrente, a questão que importa decidir radica em saber se deveria ter sido ordenada a suspensão do arresto preventivo dos bens do arguido C…, decretado nos autos, por ter sido apresentada, pelo seu cônjuge, B…, ora recorrente, certidão da pendência do processo de inventário para separação de bens.
***
Com interesse para a decisão consideram-se assentes os seguintes factos e ocorrências processuais:
a) No âmbito do inquérito n° 539/11.2PMTS-Z, dos Serviços do Ministério Público de Matosinhos, por requerimento de 10 de Fevereiro de 2014, o Ministério Público requereu o arresto dos bens do arguido C…, designadamente os ali descritos, “nos termos das normas constantes do artigo 10°, da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, por referência ao artigo 7° e 1°, als. f) e h), da mesma Lei, observando o disposto no artigo 228°, do Código de Processo Penal, na parte em que não contrariar o disposto na Lei nº 5/2002” (cfr. fls. 16 ­- penúltimo parágrafo);
b) Nesse requerimento, o Ministério Público considerou haver fortes indícios da prática pelos arguidos dos “crimes de associação criminosa (artigo 299° do Código Penal), de burla qualificada (artigos 217°, n° 1, e 218°, n° 2, al. a) do Código Penal), de fraude fiscal (artigos 103° e 104°, nº, als. e) e d) do RGIT), de falsificação de notação técnica (artigo 258°, nº 1, als. b) e c) do Código Penal) e de falsificação de documento, (artigo 256°, nº 1, al. a) do Código Penal)” (cfr. fls. 3, primeiro parágrafo).
c) E, quanto à congruência entre o património e os rendimentos lícitos (rendimentos declarados ao fisco) do arguido C…, relativamente aos anos de 2008 a 2013, o Ministério Público calculou em €448.014,65 o montante das vantagens patrimoniais por aquele obtidas (diferença entre o valor do património do arguido e tudo o que foi declarado em termos fiscais) (cfr. fls. 13);
d) Por despacho de 14 de Fevereiro de 2014, a Mma Juíza de Instrução deferiu integralmente o requerido pelo Ministério Público, ordenando o arresto de todos os bens por ele identificados (cfr. fls. 21/23);
e) Em 19 de Setembro de 2014, sob promoção do Ministério Público, o Mmo Juiz ordenou a citação da ora recorrente, B…, na qualidade de cônjuge "do executado C…, nos termos do previsto no art° 740, nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art° 391, n° 2 do mesmo diploma, tendo a mesmo sido citada para, “no prazo de 20 dias, a contar da assinatura do AR, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns." (cfr. fls. 24, 25 e 26);
f) Em 4 de Novembro de 2014, a ora recorrente, B…, fez juntar aos autos certidão emitida pelo Cartório Notarial de Fafe, comprovativa da providência de acção de separação judicial de bens e requereu a suspensão do arresto até à partilha, invocando o disposto no artigo 740°, nº 2, do C. P. Civil;
g) Em 14 de Novembro de 2014, foi proferido o despacho, ora impugnado, que indeferiu a requerida suspensão do arresto.
***
Considerando os factos e ocorrências processuais supra elencados, importa decidir a questão supra elencada.
Comecemos por dizer que o arresto em causa foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10°, da Lei nº 5/2001, de 11 de Janeiro, por referência ao artigo 7° e 1°, als. f) e h), da mesma Lei.
O legislador português, ao lado da perda dos instrumentos e produtos do crime (art. 109.º do Código Penal) e da perda das suas vantagens (art. 111.º do mesmo diploma legal), criou um forte regime de perda ampliada ou alargada (arts. 7.º e seguintes da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro), que abrange bens que o Ministério Público não consegue relacionar com um qualquer crime concreto.
Com efeito, no âmbito do combate à criminalidade organizada e económico-financeira, esta Lei estabeleceu regimes especiais em matérias como a recolha de prova, a quebra do sigilo fiscal e bancário e a perda de bens a favor do Estado.
E como se refere no Acórdão desta Relação, de 11 de Junho de 2014, proferido no processo 1653/12.2JAPRT-A.Pl, relatado pelo Exmo Desembargador, Dr. Neto de Moura, disponível em www.dgsi.pt, “Em bom rigor, não se trata de uma perda de bens como a prevista no Código Penal (artigos 109.º a 112.º). Apesar de ser essa a denominação utilizada na Lei n.º 5/2002, do que se trata é da perda de um valor: o valor correspondente à diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. É esse valor do património incongruente que se presume constituir vantagem de actividade criminosa e que, em caso de condenação pela prática de algum ou alguns dos crimes catalogados no artigo 1.º daquele diploma legal, será declarado perdido a favor do Estado”.
Nos argumentos do próprio legislador: «pode acontecer … que tratando-se de uma actividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os factos criminosos e a totalidade dos respectivos proventos», justificando-se a aplicação de um regime probatório menos exigente, construído com base na presunção da ilicitude do património desconforme. O que está em causa já não são apenas as vantagens directamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos e que o arguido não consegue, de qualquer forma lícita, justificar.
A diferença entre a perda clássica e a perda alargada manifesta-se ainda ao nível das garantias processuais. Na verdade, as garantias processuais penais da perda clássica consistem na apreensão (arts. 178.º e ss. do Código de Processo Penal), na caução económica (art. 227.º do CPP) e no arresto preventivo (art. 228.º do mesmo diploma legal); enquanto que as garantias da perda alargada consistem no arresto (art. 10.º da Lei n.º 5/2002), que cessa se for prestada caução económica (art. 11.º da referida lei) [Sobre todas estas garantias, cfr. CORREIA, João Conde, Da proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, p. 151 e ss].
Com efeito, na referida Lei nº 5/2002, o legislador assumiu a preocupação de garantir a efectividade das decisões de perda, e nesse sentido, introduziu um regime especial de arresto. Cumpre ainda ter presente a possibilidade de, no âmbito do regime prescrito nessa mesma Lei, se aplicar a medida cautelar prevista no artigo 10º, com a única e exclusiva finalidade de garantir a futura decisão de perda, independentemente de os bens arrestados possuírem algum relevo probatório.
Importa referir que a aplicação da perda alargada de bens, conforme vem configurada na Lei referida existe na dependência da condenação do arguido. Não se vislumbrando a probabilidade de ocorrer essa condenação, não se deverá, consequentemente, diligenciar pela aplicação de qualquer medida cautelar tendente a assegurar uma futura decisão de perda alargada (cfr. Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, pg. 96).
O artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 estabelece um “catálogo” de crimes que se caracterizam, não só pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados, mas também, e sobretudo, pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes. Daí a instituição de mecanismos especiais que visam facilitar a investigação e a recolha de prova e de um mecanismo sancionatório, repressivo que garanta a perda das vantagens obtidas com a actividade criminosa, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através dessa actividade.
Refere o artigo 10º da citada Lei que:
“1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.”
Do que resulta que e, acompanhando João Conde Correia, in Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, pgs. 186 e segs. (bem como o douto parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto), o arresto para efeitos de perda alargada se constitui como uma garantia processual cautelar da efectivação do confisco, que é decretada pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227°, do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1 ° da Lei nº 5/2002 (artigo 10°, nº 2, da Lei).
Quer dizer, ou se verificam os requisitos do artigo 227º, nº 1 do Código de Processo Penal, caso em que o arresto pode ser decretado independentemente de existirem ou não fortes indícios da prática do crime, ou verificando-se estes, o arresto poderá ser decretado independentemente da verificação dos requisitos do artigo 227º, nº 1 do Código de Processo Penal.
De exigir será, também, a existência de fortes indícios da desconformidade entre o património apurado do arguido e o seu rendimento lícito.
Em conclusão podemos, pois, dizer que são pressupostos do decretamento do arresto para garantia da perda alargada de bens a favor do Estado:
- a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1° da Lei n° 5/2002, de 11 de Janeiro;
- fortes indícios da desconformidade do património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito.
O arresto para garantia da perda alargada pode ter lugar a todo o tempo, podendo ser reduzido ou ampliado posteriormente, e mantém-se até que seja proferida decisão final absolutória (artigos 10°, nº 2, e 11°, nºs 2 e 3, da Lei).
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade. O único requisito que o Ministério Público está dispensado de demonstrar é um periculum in mora substancial- artigo 10°, n.ºs 3 e 4 da Lei n° 5/2002, de 11 de janeiro (cfr. sobre toda esta matéria, João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pág.186 e segs.).
É-lhe aplicável, supletivamente, o regime geral das medidas de garantia patrimonial, por via da remissão para o regime arresto preventivo (artigo 228°, do Código de Processo Penal) prevista no nº 4 do artigo 10° da Lei.
Mais concretamente, como direito subsidiário, temos as normas dos artigos 109.º a 112.º do Código Penal, os artigos 227.º e 228.º do Código de Processo Penal e, ainda, as normas que regulam o arresto em processo civil.
Por sua vez, refere o artigo 7º da mesma Lei:
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por património do arguido o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.
E, perante tal disposição, comungamos o entendimento expendido por Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, pg. 93, quando referem que “entendemos que o arresto não irá incidir, neste domínio, sobre os bens que integram o tradicional direito de propriedade, mas sim sobre os bens que compõe o património do arguido tal como definido no artigo 7º, nº 2 da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro”.
A expressão “titular” é idónea a compreender não apenas o direito de propriedade mas também outras formas jurídicas.
Efectivamente todos os bens de que o arguido tenha o domínio e o benefício, ou tenham sido por este transferidos para terceiro a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória nos cinco anos anteriores à sua constituição continuam, quer para efeitos de perda quer para efeitos de arresto, a ser “bens do arguido”.
Como diz João Conde Correia, ob. cit. pg. 106: "Com esta formulação ampla, escolhida no intuito de alargar o conceito de património confiscável e de evitar obstáculos jurídicos à sua perda alargada, o legislador português consagrou uma noção meramente económica. Para este efeito, o património não é constituído apenas pelo conjunto dos direitos e obrigações civis com caráter pecuniário de um determinado sujeito, abrangendo todas as posições ou situações economicamente valiosas tituladas pelo condenado, mesmo que desprotegidas, não tuteladas ou até contrárias ao direito civil: inclui tudo aquilo que materialmente ainda possa ser imputado ao condenado, mesmo que, do ponto de vista formal, não lhe pertença.".
Nesta mesma linha de entendimento, Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, ob. e loc. cit. observam que , .... a remissão estabelecida pelo n° 4 do artigo 10° da mencionada lei para o regime do arresto preventivo estabelecido no Código de Processo Penal não abarca o disposto no n° 4 do artigo 228º (que refere que, em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado) uma vez que para efeitos de aplicação desta lei nunca poderá existir controvérsia acerca da propriedade dos bens arrestados. Tal conclusão resulta da circunstância de este conceito de «propriedade» eminentemente civilístico adoptado pelo Código Civil não encontrar qualquer reflexo na noção de património fixada como critério do regime de perda. Assim, qualquer controvérsia sobre o facto de determinado bem pertencer ou não ao património do arguido deverá ser decidida no tribunal penal, à luz dos critérios definidos na lei (...)".
Sendo certo que, dizem os mesmos autores - ob. cit., nota 111 - não basta ao terceiro afectado pela medida reclamar a titularidade dos bens arrestados, "ele terá que invocar e provar a sua boa fé, uma vez que, para efeitos de perda de bens em poder de terceiros apenas esta releva. ".
E como se refere no já citado Acórdão desta Relação, de 11 de Junho de 2014 “A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no artigo 7.º numa perspectiva omnicompreensiva [Cfr. Hélio R. Rodrigues, “Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes”, in Revista do Ministério Público, 134.º, Abril/Junho de 2013, p. 233], de forma a abranger, não só os bens de que ele seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.
Esta amplitude com que a lei define o património do arguido para este efeito tem um fito: o de minimizar a possibilidade de ocorrência de fraude, de ocultação do seu verdadeiro titular. Por isso, como assinala Jorge Godinho [“Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, p. 1345], “visam-se aqui os bens detidos formalmente por outra pessoa, singular ou colectiva, tratando-se de provar que em todo o caso os bens pertencem à esfera jurídica do arguido”, cabendo ao Ministério Público a prova de que “apesar de a titularidade pertencer a outrem, o respectivo domínio e benefício – conceitos claramente usados em sentido económico-factual, com vista a expandir o âmbito de aplicação do confisco e a evitar o que seriam fáceis fugas ao mesmo – pertencem ao arguido”.
Para este efeito, incluem-se, ainda, no património do arguido os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.
Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita auferidos pelo arguido naquele período.
Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado, uma vez que, condenado o arguido, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime do catálogo, opera a presunção (juris tantum) de origem ilícita desse valor.
Para garantir a efectiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido (sem que caiba qualquer discussão sobre a sua origem lícita ou ilícita), podendo o arresto ser decretado “independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal” (n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002), o que é dizer que o decretamento do arresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente (assim, Jorge Godinho, loc. cit., 1346 e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 627).”
E extraindo-se do respectivo sumário que: "(…) A perda de bens determinada pelo art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento licito.
(…) O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.
(…) O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade licita."
Aqui chegados e atentas as considerações que antecedem, revertendo para o caso sub judice, não restam dúvidas de que se lhe aplica, em primeira linha, o regime da perda alargada de bens previsto nos artigos 7.º a 12.º daquele diploma legal.
Ora, conforme já dissemos o arresto mantém-se até que seja proferida decisão final absolutória, nos termos do artigo 11º, nº 3 da referida Lei nº 5/2002, o que significa que não é afectado por qualquer vicissitude processual que não a sentença ou acórdão absolutório ou a decisão de não pronúncia. E manter-se-á, não existindo decisão absolutória, até que seja proferida declaração de perda, e que, consequentemente, o arguido pague voluntariamente o valor da incongruência que deve ser declarado perdido. O arresto pode, inclusivamente, manter-se para além da decisão final condenatória (cfr. artigo 12º, nº 4 da referida Lei).
Em conformidade, parece-nos, pois, que a mera instauração de processo com vista à separação de bens do casal não contende, minimamente, com os pressupostos, de facto e de direito, que presidiram ao arresto para efeitos de perda alargada dos bens encontrados na disponibilidade do arguido C…, identificados no despacho que aplicou a medida.
Acresce que, conforme se defende no douto parecer, o invocado artigo 740°, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe "Penhora de bens comuns em execução movida contra um dos cônjuges", previne a suspensão da execução até à partilha, em caso de penhora de bens comuns do casal.
A citação prevista em tal preceito é, pois, privativa do processo executivo (neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Julho de 2000, relatado pelo Conselheiro Aragão Seia, in CJ, Acórdãos do STJ, Ano 2000, Tomo II, pg. 141 e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/05/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, manifestamente, não é essa a situação em apreço: não estamos no âmbito de um processo executivo nem perante uma penhora, não obstante a citação da ora recorrente para “no prazo de 20 dias, a contar da assinatura do AR, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns".
Diga-se, ainda, que nem a oposição ao despacho que tiver decretado o arresto possui efeito suspensivo (cfr. artigo 228º, nº 3 do Código de Processo Penal).
Pelo que, bem andou o tribunal a quo ao indeferir a pretensão da recorrente.
Improcede, pois, o recurso.
***
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente B…, mantendo integralmente o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Dê conhecimento de imediato à primeira instância.
***
Porto, 15 de Abril de 2015
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva