Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3696/09.4T2OVR.C1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
CASO JULGADO
DIREITO POTESTATIVO
SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
ENCRAVE RELATIVO
REQUISITOS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201207033696/09.4T2OVR.C1.P1
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em decorrência do princípio da substanciação vigente na nossa ordem processual, um dos efeitos do caso julgado é o de que se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir e até os que ele poderia ter deduzido, com base num direito seu.
II - Assim, se em anterior sentença judicial transitada, foi julgado procedente um pedido de reivindicação de propriedade, não podem os RR., após, intentar uma acção de reivindicação de servidão, relativa ao prédio em causa na primeira acção, invocando a constituição voluntária por usucapião.
III - Continuam, porém, a poder invocar, em acção independente, a possibilidade de constituição de servidão legal sobre o prédio antes reivindicado.
IV - Existe uma situação de encrave relativo, contemplada pelo disposto no art° 1550 n°l CCiv, quando os AA. se encontram factualmente impedidos de passar com carro, do seu prédio, onde o carro deve ser guardado, para a via pública (comunicação insuficiente para as necessidades normais) e, embora tal passagem de carro para a via pública seja concebível, a partir do prédio dos AA., só o seria, em geral, com excessivo incómodo e dispêndio.
V - O facto de terem sido os AA. a provocar o encrave relativo, não exclui a constituição da servidão, apenas agrava potencialmente a indemnização devida ao proprietário do prédio serviente - art° 1552° CCiv.
VI - Esta indemnização não constitui um requisito legal do reconhecimento da constituição da servidão legal de passagem, antes constituindo um efeito da decisão judicial de constituição de tal servidão, a considerar oportunamente, designadamente na fase de execução da decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.3696/09.4T2OVR.C1.P1. Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª Instância de 4/01/2012. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº3696/09.4T2OVR, do Juízo de Média e Pequena Instância Cível da comarca do Baixo Vouga.
Autores – B… e mulher C….
Réus – D… e mulher E….

Pedido:
Que os RR. sejam condenados a:
a) Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua …, com o nº …, na freguesia de …, concelho de Ovar, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artº 2190º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, a favor dos AA., sob o nº 1918/20090615.
b) Reconhecerem que a favor do prédio dos AA., identificado nos artºs nºs 1 e 2 da P.I., existe uma servidão de passagem a pé e com carrinho de mão, pela faixa de terreno existente entre o prédio dos AA. e o prédio dos RR., identificado no artº 13º da P.I., com a largura de 1,5 m. e a extensão de 9,5 m. de faixa de terreno que, iniciando-se junto à porta existente no muro que, pelo lado Norte, existe no prédio dos AA., e que desemboca directamente na Rua ….
c) Reconhecerem os AA. como legítimos titulares desse direito de servidão de passagem e a conformarem-se com o livre e normal exercício desse direito dos AA., designadamente abstendo-se da prática de quaisquer actos que impeçam, estorvem ou lesem o normal e cómodo exercício do direito dos AA.
Que se declare constituída a favor do seu identificado prédio uma servidão de passagem a pé e com viatura automóvel pela também identificada leira de terreno que faz parte do prédio dos RR., também identificado, pelo seu lado Nascente, com a largura de 50 cm e a extensão de 9,5 m, com início na porta existente no muro que, pelo lado Norte delimita o prédio dos AA. e desemboca directamente a Norte na Rua …, devendo os RR., em conformidade:
d) Reconhecerem que, sobre o seu identificado prédio existe, a favor do identificado prédio dos AA., uma servidão de passagem a pé e com viatura automóvel, através de uma faixa de terreno do prédio dos RR., situada a Nascente do prédio dos RR., entre o prédio destes e o prédio dos AA., com a largura de 80 cm e a extensão de 9,5 m, com início junto à porta que, pelo lado Norte do prédio dos AA., se acha aberta no muro que por esse lado delimita tal prédio e que se estende em extensão até à Rua …, onde desemboca directamente.
e) Que os RR. sejam condenados a remover o murete que delimita a “leira” de terreno de que são donos e que, com a largura de 1,5 m e a extensão de 9,5 m, se situa entre o prédio dos AA. e o prédio dos RR., já identificados, de modo a fazer recuar tal murete 80 cm para Poente e em toda sua extensão, por forma a permitir o normal uso da servidão legal em causa.

Tese dos Autores
São donos de um prédio urbano sito na freguesia de …, do concelho de Ovar.
Os RR. são donos e possuidores de outro prédio urbano, no mesmo local, e entre os prédios referidos existe uma faixa de terreno, com 3 m de largura e 9,5 m de profundidade.
A faixa de terreno, integrante do prédio dos RR., é limitada por um muro em pedra, no topo Sul, propriedade dos AA. e é utilizada pelos AA. e seus antecessores para acesso ao respectivo prédio, o que sempre foi revelado por sinais visíveis e permanentes.
Para além da passagem referida, uma outra existe para o prédio dos AA., de pé e carro.
Os AA. invocam a aquisição dos direitos invocados pela usucapião.
Para além do mais, o prédio dos AA. acha-se parcialmente encravado e com insuficiente acesso à via pública.

Tese dos Réus
Impugnam motivadamente a tese dos Autores.

Sentença
Na sentença proferida pelo Mmª Juiz “a quo”, decidiu-se julgar a presente acção procedente, por provada, e em consequência:
A) Declarou-se constituída a favor do prédio dos Autores B… e C…, identificados em 1.º dos Factos Provados, uma servidão de passagem a pé, com carrinho de mão e veículo automóvel, pela faixa de terreno do prédio dos Réus, identificada em 11.º dos Factos Provados, com a largura de 1,5 metros e a extensão de 9,5 metros de faixa de terreno, que iniciando-se junto à porta existente no muro que pelo lado norte existe no prédio dos Autores, e que desemboca diretamente na Rua ….
B) Condenaram-se os Réus D… e E… a reconhecerem os Autores como legítimos titulares do direito de passagem referido em A), designadamente abstendo-se da prática de quaisquer atos que estorvem ou lesem o normal e cómodo exercício do direito dos Autores.
C) Condenar os Réus D… e E… a, no prazo de trinta dias, procederem à remoção do murete que delimita a leira de terreno, de que são donos e que, com a largura de 1,5 m2 e a extensão de 9,5 metros, se situa entre o prédio dos Autores e o prédio dos Réus, de modo a fazer recuar tal murete 80 cm para poente e em toda a sua extensão.

Conclusões do Recurso de Apelação dos Réus (resenha):
1 – A divergência dos RR. relativamente à matéria de facto fixada em 1ª instância diz respeito à que foi vertida nos qq. 1º, 2º, 3º, 8º, 17º, 18º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º da Base Instrutória, dados como “provados”, que deveriam ter sido considerados “não provados”; os qq. 20º (não provado) e 21º (provado restritamente) devem ser dados como “provados”.
2 – Também com base na prova testemunhal produzida, não poderiam ter sido dados como “não provados” (ao menos em parte) os qq. 12º (provado restritamente), 13º, 16º e 19º - tais quesitos antes deviam ter sido considerados “provados”; para além do mais, a “não prova” contradiz a prova dos qq. 17º e 18º.
3 – Ao dar como “provados” os qq. 1º, 2º, 3º, 12º (restritamente) e 20º, o Tribunal “a quo” violou o caso julgado formado pela sentença transitada proferida pelo 1º Juízo da comarca de Ovar, em 15/7/06, no pº 209/05.0TBOVR (al. L) dos Factos Assentes).
4 – O prédio dos AA. não é encravado, nem sequer parcialmente. Da prova produzida, outra coisa não se pode concluir que não seja que a garagem foi construída pelos AA. no quintal do prédio referido em A); que esse prédio tem serventia directa para a Rua …, que é a rua principal, através de um portão com mais de 3 m de largura, de acesso à cavalariça do quintal; que, para aceder com viaturas basta que os AA. alarguem essa porta de acesso pedonal o suficiente para a sua passagem, sem necessidade de onerar outros prédios de terceiros. Ora, não sendo o prédio encravado, porque tem acesso directo para a via pública, não tem que ser constituída qualquer servidão. Também não se pode dizer que os AA. tenham comunicação insuficiente com a via pública. A sua constituição viola o disposto no artº 1550º CCiv. Além disso, “a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados” – artº 1553º, o que não foi respeitado pela decisão em recurso.
5 – O prédio dos RR. não tem natureza rústica, sendo um prédio urbano, razão por que a sentença recorrida viola o disposto no nº1 do artº 1550º CC, porque resulta dos autos, bem como do caso julgado, que a faixa de terreno dos RR. é um pequeno logradouro de sua casa, vedado com muro e portão e cimentado.
6 – Não se provou que, no prédio dos RR., existissem quaisquer sinais visíveis e permanentes da passagem dos AA.
7 – Mesmo que houvesse encrave, para o caso de se entender que a porta pedonal de acesso da cavalariça ao quintal, onde está construída a garagem e vice-versa, não é um acesso viável, ele é voluntário porque a garagem foi construída sabendo os AA. que dela não tinham acesso directo á via pública e porque fecharam a abertura do portão da garagem existente no rés-do-chão do seu prédio (prédio A) dos Factos Assentes), ou seja, eliminaram a garagem que ficava no rés-do-chão do prédio para a construírem no seu quintal, sem que tivesse sido provada essa necessidade.
8 – Sendo o encrave voluntário, cumpria ter aplicado o disposto no artº 1552º nº1 CC, o que não está em causa na acção.

Por contra-alegações, os apelados sustentam a confirmação do decidido.

Factos Apurados
1.º - Encontra-se descrito sob o n.º 1918/20090615 na Conservatória do Registo Predial de Ovar, a favor da Autora mulher, casada com B… (ap. 2981 de 2009/06/15), o prédio urbano, sito na Rua …, n.º …, na freguesia de …, concelho de Ovar, composto de casa de rés-do-chão e 1.º andar, com dependência e logradouro, destinado a habitação, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 2190.º (A).
2.º - Por escritura pública, F… declarou doar à Autora C…, casada no regime de comunhão de adquiridos com B…, o prédio descrito em 1.º (B).
3.º - Os Autores, por si e ante possuidores, há mais de, 1, 5, 10, 20, 30 e 50 anos, usufruem do prédio referido em 1.º e nele têm levado a cabo melhoramentos e benfeitorias, pagando as respetivas contribuições e impostos, fazendo-o à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem sobre o mesmo um verdadeiro direito de propriedade (C).
4.º - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, sob o n.º 00663/110894, a favor dos Réus, o prédio urbano sito na Rua …, n.º …, na freguesia de …, concelho de Ovar, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 561.º (D).
5.º - Encontra-se inscrito na matriz predial, a favor dos Autores, sob o artigo 1625.º, um prédio rústico (E).
6.º - Encontra-se inscrito na matriz predial, a favor dos Autores, sob o artigo 310.º, um prédio urbano (F).
7.º - O prédio referido em 5.º confronta a Nascente com o prédio referido em 6.º e a Poente com caminho que dá acesso à Rua … e a norte confronta em parte com o prédio dos Réus, referido em 4.º (G).
8.º - Os caminhos referidos em 7.º nascem ambos a Norte da Rua …, ficando a Nascente dos prédios referidos em 5.º e 6.º, sendo o limite destes a Nascente e outro limita a Poente e a Sul os prédios referidos em 3.º e 4.º (H).
9.º - Os Autores registaram, em 15 de Junho de 2009, em seu nome, na Conservatória do Registo Predial de Ovar, os três prédios referidos em 1.º, 5.º e 6.º, tendo unido num único prédio as matrizes urbanas referidas em 5.º e 6.º, conforme consta da inscrição com o n.º 1919/20090615 (I).
10.º - Entre o prédio referido em 1.º e o prédio referido em 4.º existem duas faixas de terreno, cada uma com 1,5 m de largura e 9,50 m de comprimento, fazendo parte integrante do prédio referido em 1.º a faixa a nascente e fazendo parte integrante do prédio referido em 4.º a faixa a poente, confrontando as duas faixas, a norte, com a Rua … (J).
11.º - Por sentença proferida na Ação Sumária n.º 209/05.0TBOVR, que correu termos pelo extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, em 15 de Julho de 2006, transitada em julgado, ficou provado e declarado que os réus são proprietários da faixa de terreno, correspondente a uma leira de 1,5 metros de largura, por 9,5 metros de profundidade e que os Autores se teriam de abster de quaisquer atos turbadores do seu exercício, incluindo não calcarem ou passarem a pé ou com qualquer viatura na faixa de terreno e a destruírem o piso em cimento que aí construíram, repondo o terreno na situação que anteriormente se encontrava (L).
12.º - Os Réus demarcaram e separaram a “leira” referida em 11.º, por meio de um muro com cerca de 80 cm de altura com gradeamento metálico na parte superior e com um portão pedonal que dista para a Rua …, após trânsito em julgado da decisão (M).
13.º - No topo sul da faixa de terreno referida em 11.º existiu um muro em pedra com cerca de 2,10 metros de altura e 3 metros de comprimento (N).
14.º e 16.º - No muro referido em 13.º existia uma porta com cerca de 80 cm de largura, que dava diretamente para o prédio referido em 1.º (O e Q).
15.º - Os Autores, para entrar e sair do prédio referido em 1.º, também usavam uma outra porta existente no seu prédio, que pelo lado norte dá acesso à Rua … (P).
17.º - A faixa de terreno referida em 11.º, que faz parte integrante do prédio referido em 4.º, depois da construção, aí, pelos Réus, de um muro, não permite a entrada e saída de viatura automóvel no prédio referido em 1.º, sendo para isso necessário ocupar 50 cm dessa faixa de terreno dos Réus (R).
21.º - Os Autores construíram uma garagem, para veículo automóvel (S).
22.º - Os Autores e seus ante possuidores, há mais de sessenta anos, usavam a porta referida em 16.º para saírem e entrarem do prédio referido em 1.º, fazendo-o através da faixa de terreno, referida em 11.º, em toda a sua largura e extensão, a pé e com carrinho e posteriormente de veículo automóvel (1º e 2º).
23.º - No local de passagem, a vegetação não cresce e existe um trilho em terra dura (3º).
24.º - A passagem pela porta referida em 16.º foi sempre foi feita publicamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e no convencimento que a ninguém prejudicavam (4º e 5º).
25.º - Na convicção que exerciam, quer os Autores, quer os seus ante possuidores, um verdadeiro direito de passagem para entrarem e saírem do prédio referido em 1.º (6º).
26.º - O que fizeram durante mais de vinte anos consecutivos (7º).
27.º - A garagem referida em 21.º foi construída no prédio aludido em 1.º (8º).
28.º - O prédio referido em 6.º tem um portão com mais de dois metros de largura, que dá diretamente para a Rua …, por onde entram e saem viaturas automóveis, há mais de cinquenta anos (9º a 11º).
29.º - Na fachada do prédio referido em 1.º existiu, até há cerca de cinco anos, uma entrada/portão com mais de dois metros de largura (12º).
30.º - O portão referido em 28.º foi, em 2003, fechado pelos Autores, que ali construíram uma parede de granito e betão (17º e 18º - consoante resposta infra adoptada nesta instância).
30º-A - A construção a que alude a resposta ao q. 18º obstruiu o acesso à garagem que existia no rés-do-chão do prédio dos AA., anterior às obras efectuadas nesse prédio e à garagem referida em S) – (19º - consoante resposta infra adoptada nesta instância).
31.º - Com os RR. residem crianças e outras crianças são visitas da sua casa, entrando e saindo várias vezes ao dia pela porta que dá para a leira referida em J), onde têm o hábito de brincar (21º - consoante resposta infra adoptada nesta instância).
32.º - Os AA. não têm qualquer outra saída ou entrada para viatura automóvel na referida garagem sem ser através da referida faixa de terreno, não o podendo fazer, com a configuração actual dos seus prédios, por outra parte desses prédios, por não ser possível circular pelo interior do seu prédio urbano com a viatura automóvel, ficando por isso impedidos de aceder à via pública pela entrada existente a norte, pelo menos com a viatura automóvel, por não terem acesso a tal porta pelo interior do seu prédio, com a viatura automóvel (26º e 27º).
33.º - Não é possível, sem destruição da sua estrutura e divisões interiores, ao nível do R/C do mesmo, conduzir a sua viatura automóvel da garagem para a dita porta existente a Norte (28º).
34.º - Não podendo, por isso, os Autores aceder à garagem com a viatura automóvel através do seu prédio urbano, a não ser pelo portão existente no mesmo e que dá diretamente acesso à faixa de terreno existente entre o seu prédio e o dos Réus, faixa esta que dá acesso direto à via pública, a Rua … (29º).
35.º - O solo do prédio referido em 5.º é mole e fresco (30º).
36.º - Para passar, com o veículo automóvel, para o prédio referido em 5.º é necessário proceder à pavimentação de tal área em cerca de trezentos metros (31º).
37.º - Quesito 32º - Não provado nesta instância, consoante fundamentação infra.

Fundamentos
As questões colocadas pelo presente recurso são as seguintes:
- Devem ser julgados “não provados” os factos descritos sob os nºs 1º, 2º, 3º, 8º, 17º, 18º e 26º a 32º, da Base Instrutória; deveriam ter sido considerados integralmente “provados” os qq. 12º (provado restritamente), 13º, 16º, 19º (para além do mais contradizem a prova dos qq. 17º e 18º), 20º e 21º (este provado restritamente).
- A prova dos qq. 1º, 2º, 3º, 12º (restritamente) e 20º viola o caso julgado? De resto, não deve considerar-se provada a existência de sinais visíveis e permanentes na passagem?
- O prédio dos AA. não é encravado, nem sequer parcialmente, pelo que o reconhecimento da passagem viola o disposto no artº 1550º nº1 CCiv?
- A considerar-se o encrave, ele é voluntário?
Apreciemo-las seguidamente, ponto por ponto.
I
Vejamos em primeiro lugar a questão do caso julgado.
Os aqui RR. propuseram, no ano de 2005, na comarca de Ovar, uma acção judicial contra os aqui AA., na qual alegaram que, entre os prédios dos aqui RR. e AA., na confrontação Nascente/Poente das duas edificações ali existentes, e que pertencem uma delas aos aqui RR., a outra aos aqui AA., existe uma faixa de terreno de 3 metros de largura por 9,5 metros de profundidade, da qual metade (1,5 metros de largura por 9,5 metros de profundidade) pertence ao prédio dos ora RR.
Invocaram a aquisição originária e derivada sobre o referido prédio, em benefício deles ora RR., incluindo sobre a faixa de terreno que invocaram integrar o respectivo prédio, mais invocando os actos turbativos do direito ou de detenção dos ora AA. sobre a referida faixa de terreno, nomeadamente cimentando-a e passando a utilizá-la para passagem de veículos automóveis para o prédio deles, ora AA., que se situa a Sul da referida faixa de terreno e, em geral, a Sul de todo o prédio dos ora RR.
Por decisão judicial já transitada em julgado, os ora RR. foram declarados únicos proprietários dessa faixa de terreno de 1,5 metros por 9 metros, na medida em que integra o prédio deles, ora RR.
Os ora AA. foram condenados a não pisarem, passarem a pé ou com qualquer viatura pela referida faixa de terreno.
Tratou-se de uma típica acção de reivindicação de propriedade, por aplicação da norma do artº 1311º nº1 C.Civ., incumbindo demonstrar aos ali AA. e aqui RR., como requisitos para a procedência da acção, que:
- era proprietária do tracto de terreno reivindicado;
- tal tracto de terreno vinha sendo detido pelos Réus (englobando a identidade da coisa reclamada com a coisa detida); já a prova da legitimidade da detenção (provada esta) incumbiria aos Réus.
Tal vem sendo abundantemente salientado pela jurisprudência, em exegese do normativo, conjugado com o disposto no artº 342º nº1 C.Civ. (ut S.T.J. 7/2/95 Col.I/67, S.T.J. 22/2/90 Bol.394/481, Ac.R.C. 9/12/87 Bol.372/476, Ac.R.E. 18/2/88 Bol.374/555, Ac.R.E. 26/1/89 Bol.383/632, Ac.R.E. 19/3/92 Bol.415/741, Ac.R.C. 4/5/93 Bol.427/592, Ac.R.P. 22/1/94 Col.I/216, Ac.R.P. 25/5/95 Col.III/223).
Outra matéria que a larga maioria da doutrina portuguesa acentua é a dos efeitos do julgado; um dos referidos efeitos, nas palavras do Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, pg. 324, é o de que “se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir e até os que ele poderia ter deduzido, com base num direito seu (p.e., ser ele réu o proprietário do prédio reivindicado)”. Na mesma linha de orientação, em decorrência directa do princípio da substanciação vigente na nossa ordem processual, cf. Prof. M. Teixeira de Sousa, Estudos, pg. 579 ou Prof. Antunes Varela, Dr. José Miguel Bezerra e Dr. Sampaio e Nora, Manual, 1ª ed., § 233-II.
Vale a máxima segundo a qual o caso julgado “cobre o deduzido e o dedutível” ou “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat”.
Ou seja, e volvendo para o caso dos autos, cumpria aos aqui AA. ter invocado a legitimidade da respectiva detenção, através de uma servidão de passagem, de que invocam a aquisição originária nos presentes autos, no processo em que os ora RR. invocaram a respectiva propriedade, deles ora RR.
Não o tendo feito, naturalmente que o pedido relativo à reivindicação de servidão, constituída por usucapião, que logrou vencimento na douta sentença recorrida, se encontrava abrangido pelo caso julgado anterior e não poderia ter logrado procedência nos autos.
O caso julgado, como excepção dilatória que é, constitui-se como de conhecimento oficioso, designadamente nesta instância de recurso, não dependente sequer de alegação das partes – artºs 494º al.i) e 495º CPCiv.
Diferente, porém, é a alegação de encrave do prédio dos aqui AA., permitindo exigir a constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio dos aqui RR.
Trata-se de uma faculdade, nos próprios termos da lei (artº 1550º nº1 CCiv), de um direito potestativo (cf. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, III - 2ª ed., pg. 636), cuja constituição dependente da livre vontade do respectivo titular (Profª Ana Prata, Dicionário, 3ª ed., pg. 371).
Dependendo dessa “livre vontade”, não estavam os aqui AA. vinculados a invocar o direito decorrente da servidão legal, na anterior acção em que os aqui RR. lograram vencimento.
Por força da aludida excepção, de conhecimento oficioso, encontra-se prejudicado o conhecimento da matéria da resposta impugnada aos qq. 1º, 2º, 3º, 12º e 20º, resposta essa que, assim, nos dispensamos de sindicar.
Desta forma, cumpre-nos apreciar o fundamento da constituição de servidão legal de passagem, por força do invocado encrave, total ou relativo (por comunicação insuficiente), do prédio dos AA.
II
E assim, vejamos se devem ser julgados “não provados” os factos descritos sob os nºs 8º, 17º, 18º e 26º a 32º, da Base Instrutória, ou se deveriam ter sido considerados integralmente “provados” os qq. 13º, 16º, 19º (para além do mais contradizem a prova dos qq. 17º e 18º) e 21º (este provado restritamente).
Para o efeito, foram ouvidos na íntegra os suportes áudio relativos ao julgamento efectuado, sem prejuízo do respectivo confronto com outros meios probatórios, designadamente documentais, constantes do processo.
Começando assim a sindicância da matéria de facto, no quesito 8º perguntava-se se “a garagem referida em S) dos Factos Assentes foi construída no prédio aludido em A)”, tendo sido respondido “provado”.
Se considerarmos, porém, que o prédio aludido em A) é o que equivale à apresentação nº 1918, no Registo Predial de Ovar, a qual apresenta como área descoberta cerca de 729,48 m2 (contra uma área de construção de 127,2 m2), se mais considerarmos os depoimentos das testemunhas G… e H… (não contraditadas), no sentido de que a garagem foi construída dentro dos limites do quintal do actual prédio onde os AA. residem (actual jardim), não temos dúvidas em considerar como bem fundada a resposta ao aludido quesito, que, como tal, confirmamos.
No quesito 13º perguntava-se se “os acessos referidos em 9) e 12) têm mais de 3 metros de largura”; foi respondido “não provado”.
A resposta é bem fundada – quanto ao portão referido em 12), a testemunha G… referiu “2 metros”, a testemunha I… referiu “2 metros e tal” (referências existiram de outras testemunhas a um outro portão, para o Nascente da casa dos Autores, onde mora hoje seu filho, mas com uma largura manifestamente mais pequena, “1 metro, 1 metro e tal”). Quanto ao portão referido em 9), integrando a J…, várias testemunhas o referenciaram, mas, para além de não conferir acesso ao prédio dos AA., a respectiva largura foi referenciada por K…, como sendo apenas de 2 metros. Como assim, nada mais nos resta senão confirmar a resposta adoptada.
No quesito 16º perguntava-se se “o portão referido em 12) era o acesso à garagem referida em S)”. Não parece que assim fosse – existia uma garagem no prédio referido em 12) – testemunhas I… ou L… – mas nenhuma delas referenciou o acesso à garagem nova.
Confirma-se a resposta adoptada.
Nos quesitos 17º e 18º perguntava-se se (17º) “o portão referido em 12) e uma porta de acesso pedonal que se encontrava ao seu lado foram, em 2003, fechadas pelos AA.”, (18º) “que ali construíram uma parede de granito e betão”. Respondeu-se provado”, pretendendo-se agora a resposta “não provado”.
Entendemos que a resposta adoptada é sensivelmente conforme à prova produzida. A existência da porta pedonal referida, que, na economia do quesito, se encontrava na fachada do prédio dos AA., não resultou completamente esclarecida, ao menos do depoimento das testemunhas I… e L… (que viveram no prédio contíguo aos RR.) – por isso a julgamos não provada. Também o ano das obras na referida casa dos AA. não foi muito claramente esclarecida pelas testemunhas, embora K…, pai do Autor marido, tenha referenciado uma data anterior à construção da garagem (cerca de dois anos antes), razão pela qual aceitamos a prova quanto ao ano de 2003. A parede referida está à vista de todos, não sendo conforme à configuração anterior e à existência de portão de garagem.
Assim, a resposta que adoptamos nesta instância, a esta matéria, é, quanto ao quesito 17º: “provado apenas que o portão referido em 12º foi, em 2003, fechado pelos AA.”; confirmamos a resposta “provado” ao q. 18º. Procedemos já à anotação supra, no elenco dos “factos provados”.
No quesito 19º perguntava-se se (a construção a que alude o q. 18º) obstruiu o acesso à garagem. Respondeu-se “não provado”.
Vejamos: se se entende por garagem a “garagem referida em S)”, naturalmente que a resposta é lógica, já que uma tal garagem, construída de novo, não podia ter acesso por um prédio que, na altura da construção da garagem, já não tinha o mencionado acesso.
Mas se se entender por garagem a “garagem que existia no rés-do-chão do prédio dos AA., anterior às obras efectuadas nesse prédio e à garagem referida em S)”, a explicação (que obviamente não sai do âmbito do quesito, posto que o mesmo não esclarece a que garagem se refere) é mais conforma à verdade material, como sublinhámos.
Assim, decidimos nesta instância responder ao q. 19º da seguinte forma: “provado que (a construção a que alude o q. 18º) obstruiu o acesso à garagem que existia no rés-do-chão do prédio dos AA., anterior às obras efectuadas nesse prédio e à garagem referida em S)”.
Procedemos já à anotação supra.
Cremos assim ter esclarecido porque entendemos compatível (não contraditória) a resposta que nesta instância se adoptou à matéria dos qq. 13º, 16º, 17º, 18º e 19º.
No quesito 21º perguntava-se se “com os RR. residem crianças e outras crianças são visitas da sua casa, entrando e saindo várias vezes ao dia pela porta que dá para a leira referida em J), onde têm o hábito de brincar”; foi respondido, restritivamente, “com os Réus reside uma criança e outras são visita da casa”, pretendendo-se agora uma resposta integralmente positiva.
Nada vemos que impeça a resposta positiva – quanto ao teor dessa resposta pronunciaram-se as testemunhas G…, H… e K…, tendo este aludido, na verdade, à simultaneidade da passagem de viaturas com o seu neto a brincar no local. Adoptamos uma tal resposta positiva, conforme modificação nos “factos provados” supra.
No quesito 26º perguntava-se se “os Autores fizeram o referido em 1º a 7º pois não tinham qualquer outra hipótese de saírem ou entrarem com a sua viatura automóvel na referida garagem sem ser através da referida faixa de terreno, não o podendo fazer entrar e sair pela outra parte do seu prédio urbano”. Pede-se resposta negativa.
A matéria, reportada ao pedido de constituição de servidão legal, arrisca-se, de facto, à conclusividade. No entanto, assumimo-la no sentido vulgar e até material – de facto, não existe outra entrada para a garagem referida em S) que não seja através do tracto de terreno por onde se pede se constitua a servidão legal (cf. os depoimentos das testemunhas dos AA. já indicadas).
Agora, por outro lado, não nos parece que exista qualquer causalidade entre comportamentos de passagem na dita faixa de terreno e a existência da garagem, posto que esta foi construída já na primeira década deste século, e até posteriormente à remodelação da casa, a qual, precisamente, eliminou a garagem que o prédio possuía no rés-do-chão.
Assim, entendemos que a resposta deve ser restritiva, nestes termos: “os AA. não têm qualquer outra saída ou entrada para viatura automóvel na referida garagem sem ser através da referida faixa de terreno, não o podendo fazer, com a configuração actual dos seus prédios, por outra parte desses prédios”. Assim o decidimos, conforme modificação supra.
No quesito 27º perguntava-se se “(os AA. não podem aceder à sua garagem com viatura automóvel) por não ser possível circular pelo interior do seu prédio urbano com a viatura automóvel, ficando por isso impedidos de aceder à via pública pela entrada existente a Norte, pelo menos com a viatura automóvel, por não terem acesso a tal porta pelo interior do seu prédio, com a viatura automóvel”. Foi respondido “provado”.
No sentido vulgar ou material do perguntado, que assumimos, de facto não é possível circular com automóvel pelo restante do prédio (vd. depoimentos citados), sobretudo por uma outra entrada existente a Norte. De facto, nada existe que alterar na resposta positiva, que confirmamos.
No quesito 28º perguntava-se se “não é possível, sem destruição da sua estrutura e divisões interiores, ao nível do R/C do mesmo, conduzir a sua viatura automóvel da garagem para a dita porta existente a Norte”. Pela mesma ordem de razões do anterior quesito, a resposta vai confirmada.
Na sequência, no q. 29º perguntava-se se “não podem, por isso, os Autores aceder à garagem com a viatura automóvel através do seu prédio urbano, a não ser pelo portão existente no mesmo e que dá directamente acesso à faixa de terreno existente entre o seu prédio e o dos Réus, faixa esta que dá acesso directo à via pública, a Rua …”. Pela mesma ordem de razões do quesito 27º citado, a resposta vai confirmada.
No quesito 30º perguntava-se se “o solo do prédio referido em E) é mole e fresco”. Respondeu-se “provado”. Trata-se do prédio rústico ou da parte rústica do prédio dos AA. A resposta positiva foi referenciada pelas testemunhas dos AA., por forma credível, de resto não contraditada por qualquer outro depoimento. Vai assim confirmada nesta instância.
No quesito 31º perguntava-se se “para passar, com o veículo automóvel, para o prédio referido em E) é necessário proceder à pavimentação de tal área em cerca de trezentos metros”. Respondeu-se “provado”. Pelas razões já aduzidas na resposta ao q. 30º, embora a resposta das testemunhas aludidas tenha sido algo dubitativa em matéria de distância, mas por forma suficiente a que o intérprete se apercebesse de que se trata de uma grande distância, na casa dos 300 metros ou das centenas de metros, confirmamos a resposta adoptada.
Finalmente, no quesito 32º perguntava-se se “a porta referida em O) dava directamente para o prédio aludido em E)”. Foi respondido “provado”. A resposta, porém, é contraditória com o acordo das partes reflectido na Matéria de Facto Assente – als. O) e Q) – que sugerem que a porta dava para o actual prédio urbano dos AA. (ou parte urbana do prédio, nos termos da descrição predial), o que é contraditório com responder-se agora que a porta dava para a parte rústica do prédio. Por tal ordem de razões, nesta parte, julgamos nesta instância “não provada” a matéria do quesito, consoante anotámos supra.
III
A questão final colocada é a seguinte: o prédio dos AA. não é encravado, nem sequer parcialmente, pelo que o reconhecimento da passagem viola o disposto no artº 1550º nº1 CCiv? A considerar-se o encrave, ele é voluntário? Vejamos.
No pedido principal de constituição de uma servidão voluntária, sobre o tracto de terreno dos RR., que acede ao prédio dos AA. onde existe uma garagem interior, estava em causa a vontade das partes, mais concretamente o que se pudesse ter retirado da posse pública e pacífica, para um estrito efeito de passagem de pé e carro, por um determinado período de tempo, conducente à aquisição originária da propriedade, a conhecida usucapião.
Afastado o pedido principal, segue-se a apreciação da eventual procedência do pedido subsidiário.
Neste pedido, encontra-se em causa a constituição de uma servidão legal – artºs 1550ºss. CCiv (deixamos de lado, por já ultrapassada, a consideração relativa ao pedido principal poder constituir também uma servidão legal, na medida em que a servidão voluntária não afastasse a possibilidade de imposição de uma servidão, nos termos da lei – assim, Ac.S.T.J. 28/10/99, in www.dgsi.pt, pº 99B830, relatado pelo Consº Sousa Inês).
Ora, encontra-se em causa, como bem localizam as doutas alegações de recurso, o disposto no citado artº 1550º, que, no seu nº1, estabelece que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos” (note-se que a jurisprudência abrange, neste conceito de prédios rústicos do normativo, também os quintais ou zonas adjacentes de prédios urbanos, não já as edificações aí existentes, em consonância com a norma do artº 1551º nº1 – cf. Ac.R.P. 8/10/92 Col.IV/252 e 253).
No respectivo nº2, prevê-se que “de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”.
A doutrina pôde assim construir os conceitos de encrave absoluto e encrave relativo, nestes termos: “Pode dizer-se que a lei considera encravado (para o efeito de lhe conceder a servidão legal de passagem) não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo)” - assim, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, III (2ª ed.), pg. 637.
Ora, dos factos provados pode extrair-se que o prédio dos AA. tem comunicação com a via pública (desde logo, uma frente para a Rua …), pelo que inexiste uma situação de encrave absoluto.
Todavia, já o encrave relativo se verifica – por um lado, atendendo à construção da garagem no logradouro, quintal ou jardim, atrás da casa de habitação dos AA., estes mesmos AA. encontram-se factualmente impedidos de passar com carro, do seu prédio, onde o carro deve ser guardado, para a via pública (comunicação insuficiente para as necessidades normais); mas embora tal passagem de carro para a via pública seja concebível, a partir do prédio dos AA., só o seria, em geral, com excessivo incómodo e até dispêndio (uma longa pavimentação, através de terreno de cultivo, mole, não preparado, ou então uma remodelação completa, com destruição de todo o edificado pelo menos na parte das traseiras da habitação dos AA.).
Encontram-se assim reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a constituição de uma servidão legal sobre a faixa de terreno dos AA., aludida no douto petitório.
O concreto lugar de exercício da servidão que causa menor prejuízo e, quanto ao prédio onerado, menores inconvenientes (artº 1553º CCiv) é a igualmente a passagem referida através da faixa anexa à habitação dos RR.
Todavia, pela constituição de servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido – artº 1554º CCiv.
Igualmente com aplicação ao caso dos autos, “o proprietário que, sem justo motivo, provocar o encrave absoluto ou relativo do prédio só pode constituir a servidão mediante o pagamento de indemnização agravada” – artº 1552º nº1 CCiv. (fixada até ao dobro da que seria devida, de acordo com um critério de culpa – artº 1552º nº2 CCiv).
Que reflexo têm os citados normativos na hipótese dos autos?
IV
Não há dúvida que os AA. vão constituir-se na obrigação de indemnizar os RR. pelo prejuízo ocorrido no prédio destes. Tal indemnização deverá ser fixada tendo em conta as regras gerais relativas à obrigação de indemnizar, dos artºs 562ºss. CCiv – ut Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pg. 643.
Na verdade, como parece apodíctico, na generalidade dos casos, e no caso vertente até, a constituição de uma servidão determina uma desvalorização do prédio serviente – cf. Ac.R.P. 29/3/07 Col.I/173, relatado pelo Consº Gonçalo Silvano, e demais doutrina aí citada.
Mais nos socorrendo da fundamentação do douto aresto desta Relação, que cita ainda o Ac.R.P. 5/12/05, in www.dgsi.pt. pº 0554535, relatado pelo Consº Cunha Barbosa, “tal indemnização não constitui um requisito legal directo com vista ao reconhecimento do direito de constituir servidão legal de passagem sobre prédio rústico vizinho (…), antes constituindo um efeito da decisão judicial de constituição de tal servidão, a considerar oportunamente, designadamente na fase de execução dessa decisão”.
Para lá dos requisitos do disposto no artº 1550º nºs 1 e 2 CCiv, que se mostram preenchidos no caso dos autos, como vimos, “a indemnização devida pela constituição de tal servidão, prevista no artº 1554º CCiv, apenas poderá ser equacionada quando se mostre decidido em definitivo o direito de a constituir, mais propriamente numa fase de natureza executiva de tal decisão”.
Antes de tal momento, “correria o risco óbvio de ser considerada desnecessária e inútil, perante uma decisão de não reconhecimento do direito de constituição de servidão legal de passagem que se pretendia ver constituído.
Caso as partes não atinjam um desejável acordo na matéria, permita-se-nos a observação, sempre com o devido e merecido respeito por todos os intervenientes processuais, restará recorrer, para fixação da referida indemnização, ao incidente de liquidação, após o trânsito em julgado da decisão.
Desta forma, em resumo, cabe julgar procedente o pedido subsidiário deduzido, em sede de constituição de servidão legal.

Resumindo a fundamentação:
I – Em decorrência do princípio da substanciação vigente na nossa ordem processual, um dos efeitos do caso julgado é o de que se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir e até os que ele poderia ter deduzido, com base num direito seu.
II – Assim, se em anterior sentença judicial transitada, foi julgado procedente um pedido de reivindicação de propriedade, não podem os RR., após, intentar uma acção de reivindicação de servidão, relativa ao prédio em causa na primeira acção, invocando a constituição voluntária por usucapião.
III – Continuam, porém, a poder invocar, em acção independente, a possibilidade de constituição de servidão legal sobre o prédio antes reivindicado.
IV – Existe uma situação de encrave relativo, contemplada pelo disposto no artº 1550 nº1 CCiv, quando os AA. se encontram factualmente impedidos de passar com carro, do seu prédio, onde o carro deve ser guardado, para a via pública (comunicação insuficiente para as necessidades normais) e, embora tal passagem de carro para a via pública seja concebível, a partir do prédio dos AA., só o seria, em geral, com excessivo incómodo e dispêndio.
V – O facto de terem sido os AA. a provocar o encrave relativo, não exclui a constituição da servidão, apenas agrava potencialmente a indemnização devida ao proprietário do prédio serviente – artº 1552º CCiv.
VI – Esta indemnização não constitui um requisito legal do reconhecimento da constituição da servidão legal de passagem, antes constituindo um efeito da decisão judicial de constituição de tal servidão, a considerar oportunamente, designadamente na fase de execução da decisão.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar parcialmente procedente, por provado, o interposto recurso de apelação e, consequentemente, revogar em parte a douta sentença recorrida, absolvendo os RR. do pedido principal relativo à constituição de uma servidão voluntária, mas julgando procedente o pedido relativo à constituição de servidão legal e, em consequência:
Declarar constituída a favor do identificado prédio dos Autores uma servidão legal de passagem a pé e com viatura automóvel pela leira de terreno que faz parte do prédio dos RR., pelo seu lado Nascente, com a largura de 80 cm e a extensão de 9,5 m, com início na porta existente no muro que, pelo lado Norte delimita o prédio dos AA. e desemboca directamente a Norte na Rua …, devendo os RR., em conformidade, reconhecer tal direito.
Condenar os RR. a remover o murete que delimita a leira de terreno de que são donos e que, com a largura de 1,5 m e a extensão de 9,5 m, se situa entre o prédio dos AA. e o prédio dos RR., já identificados, de modo a fazer recuar tal murete 80 cm para Poente e em toda sua extensão, por forma a permitir o normal uso da servidão legal em causa.
Custas na proporção de metade por AA. e RR..

Porto, 03/VII/2012
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa