Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
109/19.7TELSB-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
CRIME DE FRAUDE FISCAL
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
APREENSÃO DE BENS
SUSPENSÃO DA ACTIVIDADE
CADUCIDADE DA PROVIDÊNCIA
Nº do Documento: RP20220316109/19.7TELSB-G.P1
Data do Acordão: 03/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de branqueamento de capitais consiste essencialmente na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade vantagens de crimes. Há nesta figura jurídico-penal uma relação umbilical, inextricável, obrigatória, entre a ação de ocultar ou dissimular a origem ou propriedade de determinados bens e a proveniência desses bens, pois devem forçosamente ser produto direto ou indireto de um crime anterior.
II - Pelos dados constantes do processo o crime de branqueamento foi, pelo menos em parte, cometido em território nacional: foi aí que o agente, total ou parcialmente atuou e o resultado típico se verificou (art. 7.° do CP). Para facilitar a dissimulação daqueles proventos económicos e dificultar a sua recuperação, ele utilizou o território português, depositando quantias monetárias substanciais providas, via banco situado na Suíça, de Espanha, pretendendo posteriormente transferi-las para paraísos fiscais e outras entidades bancárias situados noutros países, criando uma barreira protetora entre o local onde praticou o crime inicial (fraude fiscal) e o local onde se encontram os seus produtos (branqueamento).
III- A circunstância do crime precedente ter sido, alegadamente, cometido em Espanha é irrelevante. Nos termos do n.º 4 do come artigo 368.° A, do Código Penal a punição do crime de branqueamento «tem lugar ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional».
IV - A punição deste branqueamento, subsequente ao crime precedente (alegada fraude fiscal praticada no Brasil) em nada conflitua com a proibição constitucional de incorrer em ne bis in idem nacional ou internacional" (art. 29º, n° 5, da CRP). Desde logo, porque os factos são distintos: uma coisa é a fraude fiscal (ou qualquer outro crime precedente); outra coisa, bem diferente, a conversão, a transferência, a dissimulação ou a ocultação posterior dos seus proventos. A prática de factos ilícitos típicos, geradores de vantagens patrimoniais, não se confunde com o seu branqueamento posterior: em princípio, são necessárias outras ações ou omissões para o concretizar. Acresce que os bens jurídicos violados são, igualmente, diferentes. O crime de branqueamento não tutela os mesmos bens jurídicos do crime precedente. Com a sua criminalização protege-se apenas a administração da justiça, designadamente o interesse do aparelho judiciário na recuperação dos proventos do crime.
V - O Estado português mantém competências para a apreensão das vantagens do crime camufladas em Portugal. O crime aqui praticado e o desejável exaurimento das suas consequências penais e patrimoniais é autónomo do crime precedente. Só pressupõe a desmonstração da sua existência prévia, subsistindo mesmo que ele não possa ser punido (art. 368.° A, n.º 5, do CP). A existência de uma investigação em Espanha não significa uma acusação e, muito menos, uma condenação definitiva. Em bom rigor - ainda que houvesse uma qualquer possibilidade abstrata de violação do ne bis in idem sempre faltaria o pressuposto essencial de uma decisão judicial prévia, transitada em julgado. Quando muito poderíamos falar, socorrendo-nos de um conceito processual civil, de litispendência. Os dois processos estão pendentes, nem se percebendo por que motivo deverá ser Portugal a prescindir da sua legítima pretensão punitiva ou a esperar pela decisão que venha a ser tomada.
VI - Uma coisa é a perseguição criminal, outra, bem diferente, a recuperação dos seus ativos. Apenas este aspeto deverá ser considerado na decisão subsequente. Nem a condenação, nem sequer a apreensão dessas vantagens são minimamente afetadas. Ainda que se venha eventualmente a concluir pela “litispendência”, esta nunca acarretará a cessação da apreensão, mas a colocação do produto apreendido com fundamento em branqueamento de capitais à ordem do processo que deva seguir, se não deverem seguir os dois. Inexiste violação do princípio do ne bis in idem tal como foi invocado pela recorrente.
VII - O conceito de fundadas razões do art. 181º do CPP está ligado ao periculum in mora consubstanciado no risco de desaparecimento ou ocultação da coisa que interessa à prova de uma infração penal e na probabilidade de que os objetos efetivamente tenham relação com a investigação de um facto criminoso. Reconhecendo-se como fundada a suspeita do dinheiro em causa ter origem ilícita, é indiscutível a necessidade da medida de apreensão decretada, pois para investigação do crime de branqueamento é essencial evitar o desaparecimento do dinheiro eventualmente produto de ato ilícito, além de que o mesmo poderá servir como meio de prova. Considerando a complexidade do caso, a apreensão além de necessária, apresenta-se como proporcional, pois a restrição que a mesma implica aos direitos do recorrente terá de ser considerada como inferior aos valores que com ela se pretendem assegurar (realização da justiça em relação a criminalidade económico-financeira).
VIII - A alusão à duração da medida de suspensão temporária de operações bancárias, fazendo-a coincidir com a do inquérito, feita no art. 49º nº 2 da mesma Lei, só pode significar que se trata de um prazo máximo de duração cujo decurso opera a extinção da medida, por caducidade, porque essa é a única interpretação compatível com o princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18º nº 2 da CRP, na modalidade de proibição do excesso. Tendo presente a data de início do inquérito, 26.02.19, perfizeram-se os 18 meses em 26.08.20, a que se deve acrescer os períodos correspondentes à suspensão do processo por força da carta rogatória e período pandémico, perfazendo a suspensão o total de 07 meses e 20 dias, pelo que em 17.04.21, mostrava-se esgotado o prazo do inquérito, dias antes de ser proferido o despacho revidendo datado de 29.04.21, pelo que a medida mostra-se caduca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 109/19.7TELSB-G.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 5

Acordam, em conferência, na 6.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Inquérito a correr termos na 1.ª Secção do DIAP do Porto, foi proferida decisão judicial que determinou a apreensão do saldo da conta n º ..... do Banco ... até ao montante de € 2.900.000,00.
Em simultâneo foi ainda decidido manter a medida de suspensão temporária de execução de operações de contas bancárias junto do Banco ... a favor da D..., da S... Limited e de AA ou de qualquer terceiro com conta domiciliada no Banco 1....

Inconsolada, a D..., Limited (D...) apresentou recurso requerendo a final a revogação da decisão recorrida, apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«CONCLUSÕES:
1.O presente recurso tem por objeto (i) a Decisão de apreensão de saldo da conta n.º ..... do Banco ..., até ao montante de 2.900.000,00€ (dois milhões e novecentos mil euros) e (ii) a Decisão que indeferiu o requerimento da D... para revogação da medida de suspensão temporária que lhe foi aplicada nos presentes autos, ambas contidas no Despacho do Tribunal a quo de 29.04.2021, a fls. 2671 e ss. dos autos.
2. Quanto à decisão contida em (i) entende a Recorrente que a mesma deverá ser revogada, quer do ponto de vista formal, porque não reúne os requisitos legais exigíveis para o decretamento da medida de apreensão e porque se encontra, em qualquer caso, consumida pela caução prestada no processo espanhol, quer do ponto de vista substantivo, por se basear em indícios inexistentes, não tendo sido coligidos indícios que permitissem, do ponto de vista material, o decretamento de uma tal medida.
3. Quanto à decisão contida em (ii) entende a Recorrente que a mesma deverá ser revogada uma vez que o Tribunal a quo não interpretou corretamente os elementos que lhe foram remetidos e que instruíam o requerimento que veio a ser por si indeferido.
4. O presente recurso deverá subir imediatamente, nos termos do disposto no artigo 407.º n.º 2 alínea c) do CPP, atenta a natureza híbrida da apreensão, designadamente por ter esta medida uma função de garantia do confisco.
5. Quanto à decisão contida em (i), a mesma carece de sustento em termos formais:
a. O Tribunal a quo não cumpriu a exigência de fundamentação da existência de indícios suficientes da prática de um crime pela Recorrente e da relação do objeto apreendido com a prática daquele crime, não podendo, nesse sentido, e nos termos do disposto nos artigos 178.º n.º 1 e 181.º n.º 1, ambos do CPP, determinar a decisão de apreensão de saldo bancário.
b. O Tribunal Recorrido assentou a sua decisão na circunstância da alegada existência, em Espanha, de indícios suficientes da prática do crime de fraude fiscal (crime precedente) e branqueamento; todavia, o processo espanhol encontra-se ainda em fase de investigação, correndo, portanto, sobre uma suspeita, e não já sobre uma indiciação suficiente, tendo o Tribunal a quo confundido os conceitos de querella com o de acusação, o que não é tecnicamente correto.
c. O Tribunal Recorrido assentou ainda a sua decisão na alegada existência de indícios da prática do crime de branqueamento, em Portugal; contudo, o próprio Tribunal tem defendido, até ao momento, a mera existência de uma suspeita, não tendo havido nenhum elemento adicional que transformasse a mera suspeita numa suficiente indiciação.
d. Em qualquer caso, a decisão em causa viola o princípio do ne bis in idem (contido no artigo 29.º n.º 5 da CRP): o Tribunal Recorrido considera que a quantia objeto da apreensão terá tido a sua proveniência no crime de fraude fiscal em Espanha, tendo depois sido objeto de condutas de branqueamento em Espanha e, mais tarde, em Portugal. Procura depois sustentar a apreensão no branqueamento em Portugal, ficcionando a existência de dois crimes de branqueamento em relação à mesma quantia financeira, ao mesmo fluxo financeiro e à mesma (pretérita) resolução criminosa.
e. Em qualquer caso, a decisão em causa viola o princípio da proporcionalidade (contido no artigo 18.º n.º 2 da CRP): a medida de apreensão em causa tem uma função processual penal conservatória, de garantia do confisco. Atento o seu lastro de danosidade, carece a mesma de ser necessária, adequada e proporcional. Contudo, a circunstância de a quantia que terá sido alegadamente objeto do crime de branqueamento se encontrar já caucionada no processo em Espanha (onde se investiga o crime precedente e o crime de branqueamento) – circunstância que o Tribunal não ignora, por lhe ter sido dado conhecimento formal da mesma –, torna inadequado, desnecessário e desproporcional a apreensão dessa mesma quantia em Portugal, uma vez que a garantia do confisco sempre se encontra acautelada por aquela caução.
f. A decisão contida em (i) deverá ser revogada, por não ter sustento indiciário, por estar assente num pressuposto de violação do princípio do ne bis in idem (contido no artigo 29.º n.º 5 da CRP) e, ainda, por ser desnecessária, desadequada e desproporcional, quer por carecer de utilidade probatória, quer por carecer de legitimidade para garantia da perda, atento o seu esgotamento no âmbito dos autos do processo espanhol, violando, nessa medida, o disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.
6. Quanto à decisão contida em (i), a mesma carece ainda de sustento em termos substantivos, inexistindo indícios que permitissem sustentar a Decisão recorrida:
a. O objeto da apreensão não configura produto, lucro, preço ou recompensa de um pretérito crime, assentando a Decisão em indícios inexistentes.
b. A conta da D... junto do Banco ... – objeto da medida em causa – esteve inactiva entre 30.06.2015 e 15.01.2019, porque nesse momento temporal procurou a D... consolidar todos os seus fundos na conta por si titulada junto do Banco 2..., na Suíça;
c. Em 15.02.2019 a D... viu-se forçada a transferir o montante de € 4.649.964,12 da sua conta do Banco 2... para a conta do Banco ..., uma vez que aquela entidade bancária determinou o encerramento da conta, de forma unilateral.
d. As transferências ordenadas da D... para a S... têm por base a existência de uma efetiva relação material entre ambas – que se encontra documentada e demonstrada nos autos –, prestando a última serviços à primeira, que se prendem com a recuperação dos créditos emergentes dos ... celebrados até 2015, estando acordado, entre ambas, o pagamento de valores mensais e, bem assim, a possibilidade de pagamento de successfees quando existam condições para tal – o que ocorreu em relação às transferências em causa nos autos, e se encontra devidamente demonstrado.
e. A D... não adotou nenhuma conduta para obstar à Ordem de Suspensão, tendo, ao contrário do que refere a decisão recorrida, feito um pedido de informação quanto à possibilidade de transferir fundos para uma conta por si titulada junto do Banco 1..., já após a vigência da Ordem de Suspensão.
f. Nestes termos, a decisão de apreensão do saldo da conta n.º ..... do Banco ..., até ao montante de 2.900.000,00 € (dois milhões e novecentos mil euros) deverá ser revogada, por ausência de fundamento material nos termos do disposto nos artigos 178.º n.º 1 e 181.º n.º 1, ambos do CPP.
7. Quanto à decisão contida em (ii), entende a Recorrente que o Tribunal a quo não interpretou corretamente os elementos que lhe foram remetidos, devendo a decisão ser revogada.
a. A Recorrente juntou aos autos documentos certificados pelo Juzgado Central de Instrucción n.º 5 que comprovam (i) o valor da máxima exposição fiscal e criminal da D... nos autos daquele processo, e (ii) a caução desse mesmo valor, de forma integral, à ordem dos autos.
b. A Ordem de Suspensão, existindo para evitar a dissipação da quantia que seria objeto do crime de branqueamento, torna-se desnecessária a partir do momento em que essa mesma quantia se encontra caucionada à ordem dos autos do processo espanhol.
c. De facto, tendo em conta a própria narrativa do Tribunal a quo de que o valor do alegado crime de branqueamento de capitais seria, a final, o mesmo valor que havia sido pretensamente objeto de idêntico crime em Espanha, e ambos consequência do crime de fraude fiscal em Espanha, mantendo-se num fluxo financeiro unívoco, a circunstância desse valor se encontrar caucionado junto do Tribunal em Espanha, enquanto reconhecido teto máximo da exposição financeira e criminal da D... pelos factos em causa, torna absolutamente desnecessária a vigência da medida de suspensão temporária em Portugal.
d. A medida de suspensão temporária afeta, de forma direta e ilegal, várias vertentes do direito à propriedade privada da D... (artigo 62.º n.º 1 da CRP) e, concretamente, (i) a liberdade de usar e fruir dos bens de que é proprietária, (ii) a liberdade de transmitir os bens de que é proprietária, (iii) o direito de não ser privada dos bens de que é proprietária e, em determinada medida, (iv) o direito de reaver os bens sobre os quais mantém o direito de propriedade.
e. A partir do momento em que existe aquela caução a medida torna-se manifestamente desproporcional, em violação do disposto no artigo 62.º n.º 1 da CRP e do Protocolo n.º 1, porque desvirtua a ótica de justo equilíbrio entre os direitos e interesses em confronto.
f. Nestes termos, repristinando, integralmente, o teor do requerimento apresentado pela D... em 08.04.2021, e, bem assim, os documentos que o instruem, requer-se a V. Exas. se dignem revogar a Decisão recorrida ordenando a sua substituição por outra que decrete a revogação da medida de suspensão temporária de operações bancárias, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exas. se dignem declarar o presente recurso procedente, por provado, e, em consequência, se dignem:
a) ordenar a revogação da decisão de apreensão, com o consequente levantamento da apreensão do saldo bancário existente na conta da D... n.º ..... junto do Banco ... e até ao montante de € 2.900.000,00 (dois milhões e novecentos mil euros), nos termos e com os fundamentos acima melhor descritos;
b) ordenar a revogação da decisão do Tribunal a quo em manter a medida de suspensão temporária de operações bancárias, ordenando, em consequência, a sua substituição por outro Despacho do qual resulte a revogação de uma tal medida, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, contido no artigo 18.º n.º 2 da CRP.»
*
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida.
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde se defende seja declarada invalidade por falta de fundamentação.
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Notificado nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, a recorrente reafirmou o alegado no seu recurso, acrescentando ainda a invocação da caducidade da medida de suspensão temporária.
*
Decisão revidenda.
Promoção de Fls.2600.
Mostram-se nos presentes autos indiciados os factos integrantes da prática do crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A do Código Penal.
Resulta até ao momento, da prova recolhida que:

D... Limited é um fundo de investimento com capital de 100.000.000,00€ constituído em maio de 2011 como uma sociedade privada de responsabilidade limitada, com número de identificação ... e sede na ... ... de Malta (fls. 291-299).
O capital social é de 1.200.000,00€, sendo 80% detido por B... Limited e o remanescente por W...; P... Limited (fls. 296-298 e 2595).
B... Limited tem sede nas Ilhas Virgens Britânicas e o seu único sócio é BB (fls. 2595).
W...; P... Limited tem o mesmo domicílio em Malta da D... Limited e o seu único sócio é CC (fls. 2595).
CC está identificado como administrador da D... Limited em Espanha (fls. 2595).
D... Limited é administrada por DD, residente na ..., e EE, residente em Malta (fls. 296-298 e 28 apenso A).
A actividade da D... Limited consiste no financiamento de clubes de futebol, através da compra e venda de direitos económicos de jogadores de futebol, a troco de uma percentagem dos direitos económicos do jogador adquirido e com cláusulas que obrigam o clube financiado a uma futura venda do jogador quando receba uma proposta de aquisição de valor igual ou superior a um certo montante previamente clausulado.
D... Limited recebia como contraprestação do clube financiado, além do valor financiado para aquisição do jogador, uma percentagem da futura venda do jogador.
Estes contratos, denominados “...” (...) foram proibidos pela FIFA em abril de 2015. A partir de então, a D... Limited passou apenas a gerir os contratos que celebrara até aquela data.
Proveniente da compra de direitos de exploração de jogadores de futebol de clubes espanhóis e de operações de financiamento a clubes espanhóis, D... Limited obteve lucros de 19.042.581,87€ em 2013, 2.181.887,43€ em 2014, 699.322,35€ em 2015 e 217.941,83€ em 2016.
Só sobre os rendimentos obtidos no ano de 2013, D..., Limited teria de pagar ao Fisco Espanhol 4.583.648,77€.
Em particular, mediante contrato celebrado em 31 de maio de 2013 entre D..., Limited e o Y... relativo aos direitos desportivos do jogador FF, D..., Limited auferiu lucros de 9.358.653,00€, nos anos de 2013 e 2014. Mediante contrato celebrado em 2 de abril de 2012 entre D..., Limited e o Y... relativo aos direitos desportivos do jogador GG (conhecido como HH), D..., Limited auferiu lucros de 28.713,48€ no total dos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015.
Para se furtar ao pagamento dos impostos devidos ao Estado Espanhol, criando a aparência de que não tinha qualquer estabelecimento estável ali situado e criando também despesas ficcionadas, D..., Limited, em 25/07/2013, celebrou um contrato de gestão com V... Limited, sediada em Malta, em tudo igual ao celebrado em 23/08/2011 com X... SL, mas esta sediada em Espanha.
D..., Limited operava em Espanha através de II e JJ. Ambos constituíram a sociedade X... SL (juntamente com CC, director da D..., Limited). Por sua vez, CC e II constituíram a sociedade V... Limited.
O grupo D... não apresentou qualquer declaração de rendimentos em Espanha, assim como não o fizeram II e JJ.
Em 04/07/2016, JJ comunicou a alteração do seu domicílio fiscal de Espanha para a Suíça.
Com o fito de se furtar ao pagamento de impostos e de ocultar as vantagens assim obtidas em Espanha, D..., Limited, da conta n.º..... por si titulada no Banco 3... - no dia 23/01/2017, transferiu a quantia de 1.500.000,00€ e de 200.000,00€ para a conta também por si titulada no Banco 2... ... (fls. 2596);
- no dia 14/02/2017, transferiu para a mesma conta a quantia de 1.000.000,00€ (fls. 2596).
Em 20 de junho de 2019, entre outros, pelos factos descritos, a Fiscalia Especial Contra La Corrupción y La Criminalidad Organizada de Espanha, deduziu acusação contra D..., Limited pela prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento.
Em 10 de março de 2020 a acusação foi admitida pelo Juzgado Central de Instruccion n.º 5 de Madrid.
No dia 19/02/2015, D..., Limited abriu a conta n.º ..... no Banco ... (fls. 118-175).
Para preenchimento do formulário de registo de execução do dever de diligência, no Banco ..., D..., Limited, através do seu, à data, director KK, indicou que a finalidade e natureza pretendida da relação de negócio era caucionar um empréstimo ao F..., que o património previsível da conta seria de 3.000.000,00€ e que teria origem em Espanha (fls.160 do apenso A).
A conta n.º ....., titulada pela D..., Limited no Banco ... esteve praticamente inactiva entre 30/06/2015 e 15/01/2019.
No dia 15/02/2019, foi creditada na conta bancária suspensa a quantia de 4.649.964,12€ proveniente da conta sediada na Suíça com o IBAN ... (fls. 666).
Nos dias 25/02/2019 e 03/04/2019 a conta bancária suspensa recebeu duas transferências a crédito, no valor de 100.000,00€ cada uma, no total de 200.000,00€, proveniente de LL, filho de MM que até dezembro de 2013 foi Presidente do Y....
Em fevereiro de 2019, a D..., Limited pretendeu transferir a quantia de £530.000,00 daquela conta para a S... Limited. A justificação apresentada para a solicitada transferência era o pagamento de um prémio de sucesso devido pela D... Limited, previsto em contrato de consultadoria celebrado a 01 de Julho de 2017 (fls. 08 a 17), sem que esse mesmo contrato (e a fatura que titula a obrigação – invoice n.º ...19 – fls. 18) permita alcançar o negócio subjacente ao mesmo.
Sucede que a S... Limited tem como director AA.
AA é também director da K... Limited (com o nome anterior de D... Limited) desde 28/03/2017 (fls. 548). AA foi também indicado pela D... como autorizado a representá-la junto do Banco ... (cfr. fls. 89 do anexo A).
KK foi director da D..., Limited, pelo menos em 2014 e 2015 (cfr. fls. 678-695 e 112 e 165 apenso A) e da K... Lda. (que até 27/03/2018 tinha a designação de D... Limited) entre 26/03/2013 e 14/02/2017 (fls. 548).
NN foi director da D... Limited e, entre 26/06/2018 e 29/04/2019 detinha, directa ou indirectamente, mais de 25% das acções da S... Limited (fls. 540 e 542).
D..., Limited avançou como justificação da tentativa de transferência de £530.000,00 para S... Limited, o pagamento devido a esta a título de taxa de sucesso, pelo serviço prestado pela S... Limited na cobrança dos créditos devidos pelo W... e o F... à D.... Porém, os acordos de reconhecimento de dívida e de pagamento, foram assinados por aqueles clubes e a D..., Limited em 17/12/2018 e 13/12/2018, antes do início da vigência do contrato entre a D..., Limited e a S... Limited.
Os intervenientes dos clubes nunca ouviram falar da S... Limited ou de AA. Realizaram todos os contactos com OO e CC (ainda que este à data dissesse já não estar ligado à D...), que se apresentava como representante da D... e comunicava através de endereço electrónico com o domínio “D...”. Também referiram comunicações com os mails de ... e ....
Não existe nenhuma verdadeira relação negocial entre a D... e a S... Limited e a constituição desta sociedade e a celebração do contrato que denominaram “professional services agreement” (acordo de prestação profissional de serviços) entre ambas não mais visou do que colocar nas mãos de AA dinheiro de origem aparentemente lícita, mas que na verdade tem origem nos rendimentos auferidos pela D..., Limited em Espanha e ali não declarados fiscalmente.
Por despacho proferido a 28/02/2019 pelo J7 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, foi confirmada a suspensão das operações a débito da conta n.º..... titulada pela D..., Limited no Banco ... a favor de S... Limited ou AA (fls. 84).
No dia 10/05/2019 (fls. 639), a D..., Limited indicou ao F... que transferisse a terceira e última tranche do pagamento devido àquela para a conta IBAN ... do Banca 4... no Reino Unido (fls. 637-639).
Porém, no contrato celebrado com o F..., SAD ficou estipulado que os pagamentos seriam feitos por transferência para a conta ... do Banco 2.... Apesar do estipulado, o pagamento da segunda tranche no valor de 2.500.000,00€ foi realizado, no dia 18/01/2019 para a conta do Banco ... e o terceiro para o Banca 4... no Reino Unido.
Dias depois da tentativa de transferência de £530.000,00 para a S... Limited, a D..., Limited tentou tansferir a quantia de 4 milhões de dólares da conta no Banco ... para o Banco 1... de Santa Lúcia.
Santa Lúcia, de acordo com a Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro (com as alterações da Portaria n.º 345-A/2016 de 30 de Dezembro) é uma das regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis, ou seja, é um “paraíso fiscal”.
A motivação apresentada pela D..., Limited junto do Banco ... para a criação da conta bancária em Santa Lúcia e a subsequente transferência de fundos foi a sua pretensão de “facilitar a eficácia das suas transferências bancárias”.
Nessa ocasião, o representante da D..., Limited, PP, solicitou ao funcionário do Banco ... que autorizasse a transferência dos 4 milhões de dólares antes da D..., Limited fazer o pedido formal (cfr. fls. 165-166 dos autos principais e 12 do apenso A).
D..., Limited tentou, da forma descrita, obstar a sujeição da operação aos procedimentos legais de prevenção de branqueamento de capitais, para, desta forma, com elevada probabilidade, conseguir contornar a ordem de suspensão de operações bancárias com destino à S... Limited ou AA e fazer chegar a estes os fundos pretendidos, através da conta titulada pela D..., Limited no Banco 1...
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Desde o início do inquérito que se mantém a suspensão de todas as operações a débito sobre a conta n.º ....., domiciliada no Banco ... e titulada pela D..., Limited, a favor de S... Limited e/ou AA e/ou para o Banco 1... de Santa Lúcia.
Todavia, os elementos probatórios que instruem os autos, com particular incidência para o despacho de acusação deduzido pelas Autoridades Espanholas contra a D... Limited pela prática de um crime de fraude fiscal e a informação agora remetida pela Fiscalía Especial Contra La Corrupción y La Criminalidad Organizada que atesta a transferência da quantia de 2.700.000,00€ de contas tituladas naquele país pela D..., Limited para a conta ... (esta de onde provieram os 4.649.964,12€ creditados na conta do Banco ...), permitem sustentar, não só um juízo de indiciação dos factos supra descritos, mas também sustentar que 2.700.000,00€ dos 4.649.964,12€ creditados no Banco ... provenientes do Banco 2... são vantagem do crime de fraude fiscal praticado em Espanha, assim como têm as mesma origem os 200.000,00€ transferidos por LL.
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Ora a prolação daquela acusação, conjugada com a informação que antecede (fls. 2594-2597) indicia que D..., Limited praticou em Espanha o crime de fraude fiscal e que parte do respectivo produto (2.700.000,00€) foi transferido para a Suíça da conta titulada pela D..., Limited no Banco 3..., para a conta por si titulada no Banco 2....
Nesta conta teve origem a transferência a crédito da quantia de 4.649.964,12€ para a conta objecto da ordem de suspensão no Banco ....
Os elementos probatórios colhidos até ao momento, indiciam também que as duas transferências a crédito recebidas na conta do Banco ..., no valor de 100.000,00€ cada uma, proveniente de LL, constituem também vantagem do crime de fraude fiscal praticado em Espanha.
Os elementos probatórios colhidos até à data fundam o juízo de indiciação de que 2.700.000,00€ dos 4.849.964,12€ creditados na conta bancária titulada pela D..., Limited no Banco ... são provenientes da prática do crime de fraude fiscal praticado em Espanha.
Assim como têm aquela origem os 200.000,00€ transferidos por LL.
Pelo exposto, considerando que a indiciação de que a quantia de 2.900.000,00€ (dois milhões e novecentos mil euros) é vantagem da prática do crime de branqueamento, nos termos das
disposições conjugadas dos artigos 178.º, n.º1 e 181.º, n.º1, ambos do Código de Processo Penal, determino a apreensão do saldo da conta n.º ..... do Banco ..., até ao montante de 2.900.000,00€ (dois milhões e novecentos mil euros).
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A D..., Limited apenas deverá ser notificada do despacho após a execução da apreensão.
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Fls.2609 e s.s. D..., Limited veio requerer a revogação da medida de suspensão temporária que lhe foi aplicada nos presentes autos, com fundamento na circunstância de no processo crime que corre contra si em Espanha pela prática do crime de fraude fiscal, ter já prestado caução quanto à totalidade de imposto ali calculado como se encontrando em falta.
Juntou cópia das decisões judiciais que suportam a sua alegação.
O crime de fraude fiscal investigado em Espanha é o crime precedente relativamente ao crime de branqueamento objeto dos presentes autos, contudo a prestação de caução prestada pela D... Limited no processo 3272/2019 PS do Juzgado Central de Instrucción n.º5 respeita somente ao imposto do ano de 2013 (cfr. fls. 2614 e 2615), e os factos em investigação naquele processo abrangem também o imposto omitido e devido nos anos de 2014, 2015 e 2016.
Sem prejuízo de se reconhecer que os factos ora alegados pela D... Limited justificam a emissão de DEI a Espanha para esclarecer quais os montantes de imposto e as vantagens calculadas como obtidas em razão da fraude e os montantes que se encontram ou não caucionados ou garantidos por qualquer outra forma, sem essa informação não se pode concluir pela desnecessidade da apreensão.
Embora não tenha sido pedido nenhum esclarecimento a esse respeito, a resposta da Fiscalia Especial Contra La Corrupción y La Criminalidad Organizada de Espanha de fls. 2594-2597 é absolutamente omissa quanto à prestação de caução, inferindo- se inclusivamente de fls. 2597 que a investigação continua em curso.
Pelo exposto, indefere-se do requerido pela D....
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Vem uma vez mais a fls. 2651 e s.s. a requerente D... arguir a irregularidade do despacho de fls. 2571 que renovou a manutenção da suspensão temporária por falta de fundamentação.
Já se mostra decidida a mesma questão pelo Tribunal da Relação do Porto na sequência de recurso apresentado pela requerente sobre a mesma matéria sendo “a decisão objeto de recurso o despacho proferido a 24 de Janeiro de 2020 que renovou a suspensão provisória por mais 3 meses, no âmbito da reapreciação dos pressupostos numa decisão de renovação, tal como sucede nas medidas de coação, rege a cláusula “Rebus sic stantibus”, segundo a qual, “enquanto as coisas estão assim”, não pode a medida ser alterada, concretamente, enquanto se mantiverem os seus pressupostos, sem que ocorra qualquer alteração ou novidade no quadro fáctico em apreciação (exceto se o decurso do tempo criar desequilíbrios insustentáveis, perante os princípios da proporcionalidade). Daqui decorre que, somente nos casos em que surja matéria superveniente que seja suscetível de ponderação, pela sua eventual vocação na alteração ou modificação do juízo de indiciação ou dos perigos em análise, é que se imporão acrescidas exigências de fundamentação” - cfr. fls. 460 do apenso G.
Não existindo nos autos nenhuma alteração que impusesse uma reponderação, a fundamentação que sustentou o despacho de manutenção da suspensão de operações bancárias, inexiste qualquer irregularidade que cumpra suprir, mantendo-se aquele despacho nos seus precisos termos.
Pelo exposto, improcede a arguida irregularidade.

Notifique.
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Quanto à falta de notificação da promoção do Ministério Público que antecedeu o despacho de fls. 2651, proceda-se como promovido, dando-se conhecimento à requerente.
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Porto, d.s.

Factos e ocorrências processuais ainda a considerar com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas que antecederam a decisão recorrida (já supra transcrita) e decorrem quer da análise destes autos quer do acompanhamento eletrónico dos autos principais e de alguns dos seus apensos, cujos recursos já transitaram em julgado:
1. Por despacho proferido pelo Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, datado de 28.02.2019 (e posteriormente corrigido, por meio do despacho datado de 28.03.2019), foi confirmada a suspensão provisória decretada pelo Ministério Público (a 26.02.2019), pelo período de três meses, de “quaisquer operações de débito da conta n.º ....., titulada pela D..., Limited no Banco ..., a favor de S... Limited ou de AA, designadamente da de £530.000,00 ordenada por PP (representante da D...) para a conta n.º ..., titulada por S... Limited no Banco 5....”, nos termos previstos nos artigos 49.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 43/2017, de 18 de Agosto e 4.º, n.º 4, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
2. O âmbito desta decisão foi subsequentemente alargado, por decisão judicial datada de 17.05.2019, de forma a abranger qualquer operação proveniente da referida conta ....., titulada pela D... no Banco Carregosa, a favor da mesma D... ou de qualquer terceiro com a conta domiciliada no Banco 1..., de Santa Lúcia.
3. A D... interpôs recurso da decisão que, em 24.01.2020, renovou por mais 3 meses a aludida medida de suspensão temporária, invocando, entre o mais e no que ao caso interessa, a violação dos pressupostos do artigo 49°, da Lei n.º 83/2017, de 18/08 [Lei das Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo, doravante, designada pela sigla LBCFT], por falta de verificação da exigência de indiciação suficiente para a determinação e a manutenção da medida de suspensão, a sua falta de substrato fáctico sendo impossível ter praticado o crime de fraude fiscal em Portugal e a desproporcionalidade da ordem de suspensão, mas viu a sua pretensão totalmente desatendida, por acórdão proferido, a 14 de Julho de 2020, nesta 1ª Secção Criminal, deste Tribunal da Relação do Porto, devidamente transitado em julgado (apenso A).
4. A mesma D..., também interpôs recurso do despacho proferido a 14.04.2020, relativo à renovação pelo período de mais três meses, da mencionada medida de suspensão provisória de operações a débito, nele suscitando várias questões, entre as quais a da caducidade dessa ordem por decurso do prazo de inquérito, ausência de matéria indiciária que permitisse fundar a respetiva manutenção e desproporcionalidade da manutenção com a consequente inconstitucionalidade por violação do direito à propriedade e iniciativa privada, do principio da presunção de inocência e do direito de obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas viu também a sua pretensão totalmente desatendida, por acórdão proferido, a 27 de Janeiro de 2021, na 2ª Secção Criminal, deste Tribunal da Relação do Porto (apenso B).
5. A mesma D..., também interpôs recurso dos despachos proferidos a 10.07.2020 (este relativo à renovação pelo período de mais três meses, da mencionada medida de suspensão provisória de operações a débito, nele suscitando várias questões, entre as quais a da caducidade dessa ordem por decurso do prazo de inquérito, a violação do princípio da desproporcionalidade e duração razoável do processo) e a 26.07.2020 (este relativo ao indeferimento da pretendida nulidade do despacho de fls. 1659 por, na versão do recorrente ter sido excedido o prazo de inquérito), mas, por acórdão proferido, a 10 de Março de 2021, na 2ª Secção Criminal, deste Tribunal da Relação do Porto, viu as suas pretensões desatendidas, com a ressalva de nele ter sido considerado que, ao contrário do que aconteceu com a expedição de uma carta rogatória, a expedição de DEI não constituía causa de suspensão do prazo de inquérito (apenso C).
6. De igual modo, também interpôs recurso dos despachos proferidos a 15.10.2020 (este relativo à renovação pelo período de mais três meses, da mencionada medida de suspensão provisória de operações a débito) e a 04.11.2020 (este relativo à declaração da excecional complexidade do processo), mas viu também as suas pretensões totalmente desatendidas, por acórdão proferido, a 13 de Outubro de 2021, na 2ª Secção Criminal, deste Tribunal da Relação do Porto (apenso D).
7. E ainda de despacho proferido em 29.03.2021 a renovar, por mais três meses, a medida de suspensão provisória de operações a débito, previamente determinada, e que, até então, vinha sendo sucessivamente renovada, vendo a pretensão desatendida quanta à falta de fundamentação, caducidade da ordem de suspensão de operações bancárias por decurso do prazo do inquérito, desproporcionalidade da manutenção da ordem de suspensão e inerente inconstitucionalidade por violação do direito à propriedade e Inconstitucionalidade do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março.

Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que a recorrente suscita são:
a. quanto à decisão que determinou a apreensão:
i. que não estão reunidos indícios bastantes para sustentar o decretamento da apreensão;
ii. violação do princípio do ne bis in idem por dupla punição da conduta de branqueamento em Espanha e em Portugal;
iii. que, de todo o modo, a necessidade da mesma está consumida pela caução que prestou em Espanha;
b. quanto à decisão que indeferiu a revogação da suspensão temporária:
i. que o tribunal ignorou os elementos que tinha à sua disposição nos autos e que conduziam à conclusão pela desnecessidade da medida de suspensão temporária, nomeadamente a prestação de caução em Espanha pelo máximo configurável derivado do crime precedente do branqueamento que está em causa nesta investigação;
ii. que, de todo o modo, uma vez que decretou a apreensão, deveria ter revogado a suspensão temporária.
iii. Caducidade da medida de suspensão provisória.
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Para abordar as questões colocadas, não necessariamente pela ordem de apresentação importa antes de mais tecer alguns apontamentos sobe o tipo de criminalidade em questão, socorrendo-nos da Revista do Ministério Público 143: Julho: Setembro 2015, artigos: Ne bis in idem internacional: anotação ao acórdão do Tribual da Relação de Lisboa de 26 de março de 2015, processo 1147/13.TELSBSB-9 (crime de branqueamento- Competência internacional- Ne bis in idem-Proventos do crime-Confisco, p. 179 e ss e O crime d b ranqueamento de capitais e o crime precedente em Macdau e em Portugal: concurso efetivo? Adequação e exclusão da tipicidade?.

As transações internacionais com interferência de diversas entidades dificultam a sua prevenção, o controlo e a repressão da criminalidade económica. Esta tem cada vez menos um espaço, um território nacional onde se desenvolva e perpetre», em suma, não tem «locus delicti, pelo menos na interpretação clássica que a dogmática nos dá de local dos crimes in José de Faria, O fenómeno da globalização e o direito penal económico- Estudos em Homenagem ao professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora.

A gradual abolição das fronteiras, a crescente globalização económica, a intensificação dos movimentos de pessoas e de capitais permitiram a criação de redes transnacionais «que têm no lucro e na acumulação de poder a sua única regra» e que aproveitam «um vazio de direito público, e especificamente de direito penal internacional», pois «a mundialização das comunicações e da economia, não (foi) acompanhada por uma correspondente mundialização do direito e das suas técnicas de tutela». Apesar de tudo, as barreiras à perseguição criminal continuam ativas. Muitas vezes, as instâncias formais de controlo parecem ser mesmo as únicas entidades com fronteiras físicas (e, até, culturais).

Estas atividades criminosas transnacionais minam as bases da economia legítima, ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos próprios Estados e geram rendimentos e fortunas consideráveis que permitem às organizações criminosas invadir, contaminar e corromper aquelas estruturas, as atividades comerciais e financeiras legítimas e as sociedades a todos os seus níveis". A prazo, se nada for feito, é o nosso modelo de Estado que está em causa.

Conscientes desta nova realidade diversos fóruns internacionais procuram resolver o problema incrementando a cooperação indiciária, sucedendo à total independência dos diversos direitos penais, a interdependência, aproximação legal e reconhecimento mútuo

O crime de branqueamento de capitais consiste essencialmente na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade vantagens de crimes.V. Jorge Godinho, estratégias patrimoniais de combate à criminalidade: o estado atual da Região administrativa Especial de Macau, p-19.

Segundo a doutrina alemã, por branqueamento designam-se «os meios através dos quais se escondem a existência, origem ilegal ou a utilização ilegal de rendimentos, encobrindo esses rendimentos para que pareçam provir de origem licita. Neste preciso sentido, VOLKER KREY/ALFRED DIERLAMM. "Gewinn abschöpfung und Gelwäsche – Kritische Stellungnahme zu den matenell chen Vorschriften des Entwur Gesetzes zur Bekämpfung des Rauschgufthandels und ander cheinungsformem der Organ Kriminalitär (OrgKB). in J Rundschau, (1992). Heft 9. p. 353

O branqueamento de capitais passa por dois momentos nucleares: um primeiro, conhecido por money launder um outro chamado recycling
O money laundering (branqueamento de capitais) constitui o núcleo essencial do branqueamento de capitais. Pretende-se, através de operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais resultantes do facto ilicito-tipico anterior, sejam expeditamente libertadas dos vestígios da referida origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respetivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu dissimular não só a sua origem, como a respetiva identificação.

É, normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro sujo por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam joias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas coletivas.

Já a recycling (transformacão/conversão), quando chega a ter lugar, concretiza-se em operações ou «manipulações» através das quais as vantagens patrimoniais convertem-se para que ganhem aparência de se tratar de objetos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, em regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espetáculos ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras.

Destarte, há nesta figura jurídico-penal uma relação umbilical, inextricável, obrigatória, entre a ação de ocultar ou dissimular a origem ou propriedade de determinados bens e a proveniência desses bens, pois devem forçosamente ser produto direto ou indireto de um crime anterior.

Socorrendo-nos da argumentação constante do artigo denominado Ne bis in idem internacional: anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de março de 2015: João Conde Correia, in Revista do Ministério Público 143. Podemos dizer que o objeto dos autos centra-se na investigação de factos suscetíveis de integrar, em abstrato, para além do mais, a prática do crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368.° A, do CP, precedido da prática de crimes fraude fiscal, por factos ocorridos no reino de Espanha, relativos aos anos de 2013 a 2015.

Pelos dados constantes do processo o referido crime de branqueamento foi, pelo menos em parte, cometido em território nacional: foi aí que o agente, total ou parcialmente atuou e o resultado típico se verificou (art. 7.° do CP). Para facilitar a dissimulação daqueles proventos económicos e dificultar a sua recuperação, ele utilizou o território português, depositando quantias monetárias substanciais providas, via banco situado na Suíça, de Espanha, pretendendo posteriormente transferi-las para paraísos fiscais e outras entidades bancárias situados noutros países, criando uma barreira protetora entre o local onde praticou o crime inicial (fraude fiscal) e o local onde se encontram os seus produtos (branqueamento).
Por força do princípio da territorialidade (art. 4.°, alª a), de CP)), o Estado Português tem a obrigatoriedade (art. 219.°, n° 1, parte final, da CRP) de perseguir criminalmente esses factos, devendo o Ministério Público abrir o competente inquérito (art. 262º, n° 2, do CPP), em ordem a investigar a existência daquele crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas. A violação de bem jurídico tutelado pelo branqueamento e a consequente perturbação da paz, ocorreram também entre nós, devendo aqui ser tomadas as providências necessárias à estabilização contrafáctica da norma jurídica violada.

A circunstância do crime precedente ter sido, alegadamente, cometido em Espanha é irrelevante. Nos termos do n.º 4 do come artigo 368.° A, do Código Penal a punição do crime de branqueamento «tem lugar ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional». O legislador, cumprindo as suas obrigações internacionais, alargou a área de tutela típica, incluindo os casos em que - como terá acontecido aqui - o crime precedente foi praticado no estrangeiro ou em local desconhecido. As razões justificativas da punição do branqueamento são as mesmas, quer aquele crime anterior tenha sido praticado lá fora, quer tenha sido praticado entre nós: numa fórmula de «demonstrar que o crime não compensa». O desvalor da ação é o mesmo em ambos os casos.

O que está em causa é a existência de um facto precedente praticado algures (não interessa onde) e o subsequente branqueamento das suas vantagens em Portugal, a bordo de navios ou aeronaves portuguesas (art. 4°, do CP) ou no estrangeiro, se o agente for nacional (art. 5.°, n.º 1, al. c], do CP) ou se tiver sido pedida a sua extradição e esta não possa ser concedida (art. 5.°, n.º 1, al. e), do CP). Aquele crime inicial só integra o tipo legal enquanto facto gerador de vantagens ilícitas, que não podem ser camufladas em Portugal, sendo irrelevante para efeitos do artigo 4.° do Código Penal.

A este respeito ver Caeiro, Pedro, A decisão-Quadro do Conselho, de 26 de Junho de 2001, e a relação entre a punição do branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa, AA.VV. Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Coimbra Editora (2003), p 1094; GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes. Do Crime de Branqueamentos de capitais. Coimbra, Almedina (2001), p. 18 e SANTIAGO Rodrigo, O branqueamento de capitais e outros produtos do crime.
Em suma, pelo menos uma parcela importante do branqueamento poderá ter ocorrido em Portugal e carece de uma resposta enérgica da ordem jurídica nacional, capaz de repor a confiança na validade e na vigência da norma jurídicas violadas e de cumprir as obrigações internacionais do Estado português.

Chegados aqui, releva dizer que a punição deste branqueamento, subsequente ao crime precedente (alegada fraude fiscal praticada no Brasil) em nada conflitua com a proibição constitucional de incorrer em ne bis in idem nacional ou internacional" (art. 29º, n° 5, da CRP).

Desde logo, porque os factos são distintos: uma coisa é a fraude fiscal (ou qualquer outro crime precedente); outra coisa, bem diferente, a conversão, a transferência, a dissimulação ou a ocultação posterior dos seus proventos. A prática de factos ilícitos típicos, geradores de vantagens patrimoniais, não se confunde com o seu branqueamento posterior: em princípio, são necessárias outras ações ou omissões para o concretizar.

Depois, porque os bens jurídicos violados são, igualmente, diferentes. O crime de branqueamento não tutela os mesmos bens jurídicos do crime precedente. Com a sua criminalização protege-se apenas a administração da justiça, designadamente o interesse do aparelho judiciário na recuperação dos proventos do crime. «O bem jurídico que se tutela é a ideia de que o crime não deve compensar" ou, mais concretamente, os crimes geradores de lucros, não devem compensar - e, para tal, é ilícita a dissimulação dos respetivos proventos». No fundo, é uma nova forma substantiva (baseada na ilicitude material) de lograr o confisco dos produtos do crime. Não admira, por isso, que segundo o Supremo Tribunal de Justiça - «na vigência do artigo 23.º do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de janeiro, o agente do crime previsto e punido pelo artigo 21º, n 1. do mesmo diploma, cuja conduta posterior preenchesse o tipo de ilícito da alínea a) do seu n.º 1 (conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos), cometeria os dois crimes, em concurso real Ac. Uniformizador de jurisprudência n º 13/2007 de 22 de março.

Esta jurisprudência, apesar da alteração normativa do crime de branqueamento (como já referimos passou, entretanto, para o Código Penal) contínua válida. Se o caso tivesse contornos exclusivamente nacionais, a punição do concurso não violaria, portanto, o ne bis in idem. Os bens jurídicos tutelados são diferentes.

O mesmo acontece nas situações (cada vez mais frequentes) em que o caso tem contornos internacionais: o ne bis in idem não pode ter aqui um efeito preclusivo mais intenso do que aquele que ele tem na ordem jurídica interna. O seu valor será (quando muito) o mesmo, quer os crimes que se pretende punir duplamente tenham sido praticados num determinado território nacional, quer tenham sido praticados em mais do que um território nacional.

Com efeito, não podemos esquecer que - embora tenha subjacente um princípio de humanidade e de recusa de punições desnecessárias - o ne bis in idem continua a ser muitas vezes limitado às decisões internas.

A generalidade dos Estados basta-se, ainda hoje, com o reconhecimento e a consideração da pena inicial na decisão subsequente. A própria a Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detenção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo apenas prevê que a cooperação internacional seja recusada nos casos em que «a Parte requerida considere que a aceitação da medida solicitada iria contra o princípio ne bis in idem», pressupondo, portanto, que o visado já foi ou irá ser punido pelos factos praticados internamente. Nesta matéria, a defesa dos interesses nacionais continua a ser fundamental.

A maximização do ne bis in idem internacional, sem quaisquer limites, poderia fragilizar o ius puniendi estadual). O restabelecimento da paz jurídica violada pela prática do crime (de que o Estado é o responsável máximo) seria prejudicado se ele tivesse que prescindir, cegamente, da punição dos factos praticados no seu território sem a garantia prévia da sua inclusão e consideração noutro forum penal. As condutas poderiam ficar impunes, coartando irremediavelmente aquele desiderato nacional da punição do crime. Só quando aquele interesse estiver minimente acautelado, se poderá, portanto, pensar em eventuais cedências. Também aqui é necessário operar a concordância prática entre estes dois princípios conflituantes.

Compreende-se, por isso, que a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tenha lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da sua prática ou se houver subtraído, total ou parcialmente da condenação (art. 6.° do CP) ou que, quando o procedimento for delegado numa autoridade judiciária estrangeira, não possa instaurar-se ou continuar em Portugal procedimento pelo mesmo facto (art. 19.º da Lei n.° 144/99, de 3 de agosto). No primeiro caso, o agente já foi punido, sendo a repetição desnecessária, e no segundo irá ser submetido a um processe substitutivo do processo nacional (ar. 89.° da Lei n.° 144/99, de 31 de agosto), de forma que estão criadas condições processuais mínimas para o restabelecimento da paz jurídica interna.

O mesmo poderá acontecer (agora por via interpretativa) nos casos inversos em que os factos, praticados em território nacional já foram apreciados por um tribunal estrangeiro. Efetuar um segundo julgamento (se o primeiro não tiver sido uma mera farsa judiciária) poderá ser aqui desnecessário. O interesse punitivo estadual já estará aqui, em princípio satisfeito. De todo o modo, ademais de ser mais académica do que real esta situação deverá estar cabalmente demonstrada, não se bastando com uma mera alegação ou suspeita. Será necessário, pelo menos, juntar cópia daquele veredictum estrangeiro.

Poderia argumentar-se que o que está em causa é, apenas, a duplicação dos procedimentos relativos à proibição do branqueamento, suscetível de desencadear um irremediável ne bis in idem. No fundo é isto que a recorrente alega ao socorrer-se da caução prestada em Espanha. Esta abrangeria o ilícito investigado em Portugal. O Estado espanhol já se teria precavido assegurando as eventuais vantagens obtidas pela recorrente.
Contudo tal não é evidente. O que se sabe é que ali se investiga fraude fiscal e que esta poderá, ainda não se comprovou, abranger vários anos. Se for assim aquela caução visará assegurar vantagens obtidas nesses anos todos. Em Portugal estão em causa supostamente vantagens correspondentes ao ano de 2013. Por outro lado não se sabe qual vai ser o desfecho em Espanha. Poderá eventualmente terminar sem julgamento, desde que pagas as quantias consideradas em dívida.
Partindo até do pressuposto que tanto Portugal como em Espanha, como poderá sugerir a caução ali prestada da ordem dos 6 milhões, estariam a investigar o mesmo branqueamento não podemos esquecer que estão em causa factos cometidos em Portugal e que Portugal tem obrigatoriamente, que perseguir (art. 219º, n.º 1, da CRP e art. 262.º, n. 2, do CPP). Se não o fizer (sem uma qualquer razão justificativa válida) estará a prejudicar o ius puniendi estadual e logo, formalmente, a denegar justiça (art. 369º do CP). Mesmo que, afinal, houvesse sobreposição de objetos, justificativa de uma eventual junção preventiva dos processos (através da sua delegação noutro Estado, nos termos dos artigos 89.º e ss. da Lei n.° 144/99, de 31 e agosto) não podiam as autoridades judiciais nacionais, prescindir, in limine, da pretensão punitiva soberana do Estado Português.

Sendo o branqueamento uma forma substantiva de lograr o confisco, a apreensão tanto pode ser legitimada pela sua prática, como- reunidos os pressupostos legais previstos no artigo 178.° do Código de Processo Penal - pela prática do crime precedente. Caso em que a apreensão teria que ser pedida pelas autoridades espanholas, mas não afastaria as competências próprias das instâncias formais de controlo nacionais.

Garantir a efetividade do confisco é uma preocupação fundamental de qualquer sistema que pretenda ser eficiente. Se não forem tomadas cautelas prévias, quando chegar o momento decisivo de executar a decisão final, já não haverá nada a fazer. A sentença arrisca -se a ser inexequível.
No branqueamento, dada a atual volatilidade do património, o legislador foi particularmente generoso. Para além de um mecanismo impar de congelamento preventivo das operações (art. 17.° da Lei n.º 25/2008, de 5 de junho art. 4.°, n° 4, da Lei n. 5/2002, de 11 de janeiro), permite a apreensão daquelas vantagens (na definição dos artigos 368.° A, n.° 1e 111.°, n.ºs 1e 2, do CP) ou o arresto de bens suficientes para garantir o seu confisco (arts. 178.° e 228.º do CPP e, eventualmente, art. 10º, da Lei nº. 5/2002, de 11 de janeiro).
Tudo isto, mais uma vez, em consonância com os instrumentos internacionais que Portugal se comprometeu a observar.
O Estado português mantém competências para a apreensão das vantagens do crime camufladas em Portugal. O crime aqui praticado e o desejável exaurimento das suas consequências penais e patrimoniais é autónomo do crime precedente. Só pressupõe a desmonstração da sua existência prévia, subsistindo mesmo que ele não possa ser punido (art. 368.° A, n.º 5, do CP). Ver a propósito Germano Marques da Silva in Notas sobre o branqueamento de capitais. M especial das vantagens provenientes da fraude fiscal in Doutor Inocêncio Galvão Telles, 90 anos, Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, Coimbra, António Menezes Cordeiro et alii(org), 2007, pp. 451-457, Ac Trb. Cost. N º 566/04, Ac STJ Uni Jurisp. N º 13/07.

Não atuar poderá significar que, já não haverá nada para congelar, apreender, arrestar e confiscar.

A existência de uma investigação em Espanha não significa uma acusação e, muito menos, uma condenação definitiva. Em bom rigor - ainda que houvesse uma qualquer possibilidade abstrata de violação do ne bis in idem sempre faltaria o pressuposto essencial de uma decisão judicial prévia, transitada em julgado. Quando muito poderíamos falar, socorrendo-nos de um conceito processual civil, de litispendência. Os dois processos estão pendentes, nem se percebendo por que motivo deverá ser Portugal a prescindir da sua legítima pretensão punitiva ou a esperar pela decisão que venha a ser tomada.

No direito penal europeu como resulta do caso Filomeno Mário Miraglia, de 10 de março de 2016 (C-446/03) a abertura de um processo semelhante noutro Estado-Membro não é suficiente para desenvolver o efeito preclusivo do ne bis in idem. Chamando, igualmente, à colação Vânia Costa Ramos (Ne bis in idem..., p 257/8) meras investigações destinadas á efetivação do juízo de prognose sobe o sucesso da ação penal não seriam suficientes.

A articulação entre o ne bis in idem e o crime de branqueamento coloca ainda duas questões suplementares. A primeira consiste em saber se a punição do autor do facto ilícito típico precedente gerador da vantagem consome a sua punição pelo posterior branqueamento; a segunda, mais complexa, consiste em saber se o confisco do produto inicial impede o confisco do montante depois branqueado.

O bem jurídico tutelado pelo crime de branqueamento é, como já dissemos, em princípio, diferente dos bens jurídicos tutelados pelos crimes precedentes. A punição de ambos os ilícitos não constitui, portanto, nenhum bis in idem substancial (art. 30º, n.° 1, do CP). A mesma conduta não é punida duas vezes. O branqueamento representa um plus para além do mero aproveitamento das vantagens decorrentes da prática do crime. Depois da violação daquele bem jurídico inicial, o visado ainda atenta contra a administração da justiça, no intuito de evitar a perda das vantagens patrimoniais ilícitas que logrou obter. Por isso mesmo, ele poderá ser punido, em concurso efetivo, pela prática dos dois crimes.

É certo que o confisco dos produtos decorrentes da prática do crime precedente - havendo coincidência entre ambos - deverá precludir o confisco das vantagens resultantes do posterior crime de branqueamento.
O Estado não pode confiscar duas vezes o mesmo montante. Se o fizer, em vez de reduzir o condenado ao status patrimonial anterior à prática do crime, assim demonstrando que ele não compensa, estará a puni-lo duplamente e a alterar a natureza dogmática do próprio confisco. Em lugar de ser um mero mecanismo de ablação das vantagens decorrentes da prática do crime, passará a ter natureza sancionatória. No fundo é isto que a recorrente quer ver reconhecido por esta instância.

Todavia, esta circunstância não significa, contudo, reconhecer aqui a existência de um efeito negativo, impeditivo da investigação (maxime da apreensão) e do julgamento do crime de branqueamento em Portugal. Uma coisa é a perseguição criminal, outra, bem diferente, a recuperação dos seus ativos. Apenas este aspeto deverá ser considerado na decisão subsequente. Nem a condenação, nem sequer a apreensão dessas vantagens são minimamente afetadas.
De todo o modo, sempre se diga que ainda que se venha eventualmente a concluir pela “litispendência”, esta nunca acarretará a cessação da apreensão, mas a colocação do produto apreendido com fundamento em branqueamento de capitais à ordem do processo que deva seguir, se não deverem seguir os dois.
Donde se pode concluir inexistir violação do princípio do ne bis in idem tal como foi invocado pela recorrente.

Outra questão colocada pretende-se com a questão dos indícios da prática do crime em causa.
Socorre-se a recorrente do procedimento processual espanhol para concluir que ainda se está quando muito na fase da suspeita, inexistindo indícios que justifiquem a apreensão da quantia monetária de dois milhões e novecentos mil euros.
Como sabemos o procedimento criminal espanhol é distinto do nosso, apresentando três fases distintas: A fase inicial, com a instrução do processo (investigação); a preparação do juízo oral ou fase intermédia (abertura do juízo oral) e o juízo oral.
Dentro fase de investigação existe uma prévia, levada a acabo pelo M.P., destinada em face da denúncia a esclarecer factos, identificar os supostos autores e processá-los, dotando um conjunto de ações destinadas a especificar a acusação e direcioná-la para determinada pessoa. Se não existirem elementos bastantes para prosseguir, arquiva-se. Se entender que existem elementos bastantes para se concluir pela provável prática de crime apresenta a “Querella”.
Segundo nos pudemos aperceber a fase já em curso no processo instaurado contra a recorrente é a de querela o que significa que a “Fiscalia” entendeu haver substrato bastante para sujeitar o processo ao juiz de instrução, o qual prossegue com a investigação.
Nesta fase presidida sempre por um juiz procede-se a vário procedimentos de investigação, tais como reconhecimentos, buscas, declarações ao arguido e testemunhas, confrontações, provas periciais, recolhas de impressões, escutas, apreensões, etc.
Se após a investigação não for possível identificar os autores do crime ou não for possível determinar se os factos constituem crime, o processo será arquivado definita ou provisoriamente. Noutro caso segue para a fase intermédia que é a decidir se é possível iniciar o julgamento oral. Nesta fase decide-se se se devem realizar novos procedimentos investigatórios, se é adequado transformar o procedimento noutro mais adequado ao assunto ou gravidade da pena, decidir se se arquiva ou se prossegue para abertura do julgamento oral ou decidir se existe algum impedimento processual que impeça a acusação, para se proceder à correção ou arquivar o processo.
Ora, do ponto de vista da investigação que corre termos em Espanha, estando já na fase da querella, não temos dúvidas que, mantendo-se o processo em investigação sob os auspícios de um juiz de instrução, tendo inclusive já sido prestada uma caução da ordem dos seis milhões de euros, por factos que têm na sua base a não entrega de declarações de rendimento com saída de capitais para o estrangeiro, estando a arguida devidamente identificada naqueles autos, existem indícios mais do que suficientes e não meras suposições da prática dos crimes mencionados.
Não é unívoco o conceito de indício.
O Professor Germano Marques da Silva fala em “indícios de prova” (Sobre a Liberdade no Processo Penal ou do Culto da Liberdade”, da obra “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, 1365 e segs.) e em “factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema de prova”, usando-se também para “designar não só o facto indiciante, mas também o facto indiciado” (Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1993, p.82).
Para Jorge Noronha e Silveira (“O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Pena Português”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 160), o termo indícios refere-se ao “conjunto das provas já recolhidas no processo”.
Objeta Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da prova”, Jornadas citadas, 221 e segs.) que prova em sentido próprio apenas se pode considerar existir após a sujeição da mesma ao contraditório pleno, só possível na audiência. Antes disso, os elementos de prova têm, apenas, um valor indiciário, indiciam os facta probanda.
Por isso considera que indício é um facto que, “embora não demonstrando a existência histórica do factum probandum, demonstra outros factos, os quais, de acordo com as regras da lógica e da experiência, permitem tirar determinadas ilações quanto ao facto que se visa demonstrar” (Loc. Cit., 227).
Já para Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição atualizada, UCE, 332) “indício”, (“suspeita”, “receio”) “são razões que sustentam e revelam uma convicção sobre a probabilidade, mesmo mínima, de verificação de um facto”, razões essas que, ligando a circunstância indiciadora e o facto a provar, são constituídas “por uma inferência lógica baseada numa máxima de experiência ou numa lei científica”.
Indício é, seguramente, “uma circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova”, mas é, também, tudo aquilo que, sem fornecer uma prova imediata, torna possível chegar ao facto cuja existência se indaga, ao facto que é objeto de prova. É precisamente essa possibilidade que, por indução ou inferência, permite concluir positivamente quanto à questão de saber se o facto existe.
Indícios são, pois, sinais, vestígios, suspeitas, indicações e presunções, bastantes e suficientemente relevantes, de modo a convencerem que existe crime e que determinada pessoa foi o seu agente.
No caso dos autos como já tivemos ocasião de referir, investiga-se um crime também ele supostamente praticado em Portugal no exercício de um ius puniendi próprio e do qual se não abdica, pelo menos nesta fase, pelo que sem prejuízo do que se disse a propósito do que se passará em Espanha, em Portugal terão sido praticados factos indiciadores do crime de branqueamento de capitais que podem justificar por si só recurso a meios de obtenção de prova e meios de prova.
De todo o modo, como bem refere o Sr. Procurador da República, o artigo 181.º n.º1 do Código de Processo Penal, não fala na exigência de indícios suficientes para a apreensão.
A interpretação das normas deve partir do seu texto, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento de modo adequado –artigo 9.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Ora, o legislador usou na letra do artigo 181.º n.º1 do Código de Processo Penal a expressão “fundadas razões” quando poderia ter usado a de “indícios suficientes”, como fez noutros preceitos.
Tal não sucedeu por acaso, uma vez que as duas expressões correspondem a diversos níveis de convicção, estando as “fundadas razões” no patamar menos exigente deste escalonamento, não encerrando o mesmo grau de exigência dos “indícios suficientes”, até pela fase em que o processo se encontra.
Para os diversos níveis de convicção correspondentes à força dos indícios, cfr. Patrícia Silva Pereira, Prova indiciária no âmbito do Processo Penal, Almedina, 2016, págs. 117 e segs., apud Santos Cabral, Branqueamento de Capitais e Prova Indiciária, Julgar on-line, Março de 2020, “podemos reconduzir as várias referências a quatro diferentes níveis de convicção: indícios para além da presunção de inocência, correspondente ao crivo do direito internacional criminal guilt beyond reasonable doubt; indícios fortes ou sinais claros correspondente ao crivo do clear evidence ou dringend tatverdacht; indícios suficientes ou prova bastante correspondente ao crivo da reasonable suspicion ou probable cause ou hinreichende tatverdacht; e, por fim, indícios fundados em suspeitas fundadas, fundado receio, e imputação do crime correspondente ao crivo boa fide suspicion ou anfangsverdacht” –salientado nosso.
A base indiciária necessária para a apreensão não tem, por conseguinte, o grau de exigência que a recorrente defende.
Pelo que, e é a segunda razão, todo o esforço argumentativo que a recorrente desenvolve no sentido de pretender demonstrar que a “querella” não é uma acusação, cai pela base, por absolutamente inútil, uma vez que lei não exige de modo nenhum que o crivo indiciário para determinar a apreensão seja o mesmo que aquele para deduzir acusação.
De todo o modo, a apreciação indiciária não se reconduz a uma apreciação formal de etiquetas, como desse raciocínio da recorrente poderia supor-se; aliás, o caminho é exactamente o oposto, com mais premência na criminalidade económico-financeira, não havendo que sujeitar a apreciação indiciária a “critérios de exigência inultrapassáveis”, por tal poder “conduzir a uma justiça formal, sem correspondência com a realidade”.
Ora, no caso, além dos elementos materialmente objetivos decorrentes da investigação que corre em Espanha -que levaram o Ministério Fiscal a querelar, como salienta a magistrada do Ministério Público na sua resposta–, de onde decorre a imputação do crime precedente de fraude fiscal, a transferência de €2 700 00 para a conta Suíça e até a fixação judicial de caução pela vantagem relativa ao ano de 2013 –que a recorrente pagou-, a decisão recorrida sustenta-se num acervo de outros elementos pelos quais a alegação da recorrente passa como se não existissem:
- a detenção de 20% do capital da recorrente por W... Limited, com o mesmo domicílio em Malta da recorrente e único sócio CC –factos que não resultam do requerimento de fls. 3 a 11 deste apenso;
- a qualidade de administrador do CC da D... em Espanha;
- a ligação do CC à X... SL e à V... Limited;
- a actuação do CC na abertura da conta no Banco ..., a justificação dada para a sua abertura e o histórico de movimentações desta conta;
- A transferência da quantia de €4 649 964,12 da conta Suíça para esta conta do Banco ...;
- O intento de transferir £530 000 para a S... Limited, cujo director está autorizado a representar a recorrente junto do Banco ... e que é também diretor de uma sociedade que foi de 2013 a 2017 dirigida por KK;
- A justificação apresentada para a transferência dos €530 000 que esbarra nos depoimentos dos intervenientes negociais, que a contradizem, e na desconformidade da sucessão temporal dos factos;
- A tentativa de transferir a quantia de 4 000 000 de dólares da conta do Banco ... para o Banco 1..., de Santa Lúcia, um “paraíso fiscal”.
- A motivação apresentada;
- O pedido ao banco para que a transferência fosse autorizada antes do pedido formal.

Ora, todos estes elementos não podem deixar de justificar a apreensão, constituindo razões mais que fundadas para a mesma e independentemente da caução prestada em Espanha pelas razões já supra-aduzidas. Parafraseando a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Espanha de 15.04.1998, em argumentação que parece tirada para o caso em apreço, “constituem indícios para apontar o crime de branqueamento o aumento incomum do património líquido ou operações monetárias manifestamente anómalas; a ausência de atividades comerciais legais que justifiquem aumentos incomuns no património; operações em bancos estrangeiros alheios às práticas comerciais comuns; a posse de quantias incomuns de dinheiro em transferências monetárias ou anómalas de capital e, a descoberta da relação com as pessoas envolvidas em atividades ilícitas”.
Estando em causa um instrumento de recolha de prova, não faria sentido que fosse legalmente exigida a existência dessa forte indiciação, sob pena de se inverter a lógica do instrumento em causa, pois o que com ele se visa é exatamente a recolha de prova.
Como se exige em relação a outros meios de obtenção de prova (por exemplo interceções telefónicas), basta que haja suspeitas da prática do crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes.
Enquanto os meios de prova, como a prova testemunhal, a pericial, a documental, o reconhecimento, dentre outros, têm por finalidade a demonstração do facto, os meios de obtenção de prova, como por exemplo a busca, a apreensão e a intercetação telefónica, têm por finalidade a investigação e recolha dos meios de prova. Os meios de obtenção da prova são, portanto, relacionados com os modos da investigação, com o meio pelo qual a autoridade estatal fará a recolha das provas que entenderá úteis para a elucidação do facto.
O conceito de fundadas razões do art. 181º do CPP está ligado ao periculum in mora consubstanciado no risco de desaparecimento ou ocultação da coisa que interessa à prova de uma infração penal e na probabilidade de que os objetos efetivamente tenham relação com a investigação de um facto criminoso.
Estando em causa a investigação, entre outros, de um crime de branqueamento de capitais, tem aplicação o disposto na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado relativo a esse tipo de ilícitos (artigo 1.º). Tem especial relevo, a presunção — estabelecida no artigo 7.º —, de que constitui vantagem criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, para efeito de perda de bens a favor do Estado, em caso de condenação pela prática de qualquer dos crimes mencionados no artigo 1.º. Definindo o artigo 12.º os termos em que se processa, na sentença condenatória, a declaração de perda de valores a favor do Estado e o seu montante. Paralelamente, o artigo 10.º da mesma lei prevê o arresto dos bens do arguido para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, sendo declarados perdidos a favor do Estado os bens arrestados quando não tenha sido prestada caução económica ou não tenha sido efetuado o pagamento voluntário pelo arguido do valor que se considere corresponder à vantagem patrimonial decorrente da atividade ilícita. Para além disso, também o Código Penal prevê a perda a favor do Estado de instrumentos ou de produtos do crime, ainda que se trate de objetos pertencentes a terceiros (quando estes tenham concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou tiverem retirado vantagem do facto ilícito), bem como de direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido diretamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes do crime ou representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (artigos 109.º, 110.º e 111.º).
A apreensão de saldos bancários em aplicação do disposto no artigo 181.º do CPP, como logo de depreende da inserção sistemática dessa disposição na Título III do Livro III desse diploma, é um meio de obtenção prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado (GERMANO MARQUES DA SILVA, curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 1999, pág. 197). No sentido da sua caracterização como meio de prova aponta o facto de o artigo 181.º, n.º 1, permitir a apreensão de valores depositados em estabelecimentos bancários, não apenas quando se encontrem relacionados com o crime, mas também cumulativamente quando se revelem de «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», o que faz supor que as quantias apreendidas podem apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na fase de julgamento. Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final. Assim se compreende que o artigo 186.º, ao referir-se aos termos em que se processa a restituição dos bens apreendidos, admita que essa restituição apenas venha a ter lugar após o trânsito em julgado da sentença, mediante a entrega ao seu legítimo proprietário ou a declaração de perda a favor do Estado, o que pressupõe que, nessa circunstância, os bens ou valores apreendidos devam ter o destino que for fixado na própria decisão final do processo (n.º s 2 e 3). A que acresce, no que especificamente se refere à investigação dos crimes de catálogo mencionados no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, que os bens do arguido, incluindo os valores depositados em instituições bancárias, podem ser arrestados, não com a finalidade de garantia patrimonial do pagamento de pena pecuniária, de custas do processo ou de qualquer outra dívida relacionada com o crime (como prevê o artigo 228.º do CPP), mas como garantia do pagamento do valor que se presuma constituir uma vantagem da atividade criminosa (cf. artigo 10º desse diploma).
Podendo manter-se o seu interesse quer para efeitos probatórios quer para garantia do cumprimento de certas consequências jurídicas da prática do crime, a manutenção da apreensão de bens ou valores não está, por isso, necessariamente dependente da observância dos prazos de duração do inquérito, aparecendo antes interligada com as finalidades do processo penal (referindo-se à natureza híbrida da perda do produto do crime, que poderá revestir um carácter quase penal ou a feição de uma medida de segurança, SIMAS SANTOS/LEAL-HENRIQUES, Noções Elementares de Direito Penal, Vislis Editores, 1999, pág. 239).
Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição revista, Coimbra, pág. 801; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628). Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178.º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redação originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com a garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, 2.ª série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108.º do Código Penal de 1982 (também na sua redação originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objetos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático.
No caso, essas razões existem e são fundadas, além dos montantes envolvidos não podem deixar de ser ponderados os elementos acima referidos, suficientes para formar um juízo de suspeita suficientemente fundado para justificar restrição dos direitos do visado através desta medida de obtenção de prova.
Reconhecendo-se como fundada a suspeita do dinheiro em causa ter origem ilícita, é indiscutível a necessidade da medida decretada, pois para investigação do crime de branqueamento é essencial evitar o desaparecimento do dinheiro eventualmente produto de ato ilícito, além de que o mesmo poderá servir como meio de prova.
Considerando a complexidade do caso, a apreensão além de necessária, apresenta-se como proporcional, pois a restrição que a mesma implica aos direitos do recorrente terá de ser considerada como inferior aos valores que com ela se pretendem assegurar (realização da justiça em relação a criminalidade económico-financeira).
Tendo os movimentos financeiros ocorrido em Portugal, não há dúvida sobre a justificação da intervenção do nosso direito penal, através da punição do branqueamento, pois com essa punição visa-se proteger a sociedade, o Estado e as suas instituições contra o uso das fortunas ilicitamente acumuladas, que podem corromper e contaminar as próprias estruturas do Estado e as atividades comerciais e financeiras legítimas. Vide Ac. RL de 7 de Maio de 2019.

Diz a recorrente que está totalmente garantida, por caução que prestou nos autos que correm perante as autoridades espanholas, a alegada contingência fiscal apurada no quadro do referido processo (cfr. ponto 107. do recurso), pelo que, conclui, não há necessidade de manter a apreensão.
Se assim fosse, e nada mais houvesse que relevar, tinha razão, a recorrente.
Como assinala João conde Correia, no artigo já assinalado, “o confisco dos produtos decorrentes da prática do crime precedente –havendo coincidência entre ambos- deverá precludir o confisco das resultantes do posterior crime de branqueamento. O Estado não pode confiscar duas vezes o mesmo montante. Se o fizer, em vez de reduzir o condenado ao status patrimonial anterior à prática do crime, assim demonstrando que ele não compensa, estará a puni-lo, duplamente e a alterar a natureza dogmática do próprio confisco”.
Por conseguinte, se indiciado estivesse que o valor caucionado correspondia ao valor total de vantagem obtido com o crime precedente, e que fora este o valor branqueado, não haveria motivo para manter a apreensão, uma vez que o confisco não poderia ultrapassar o valor caucionado.
Contudo, em primeiro lugar, importa confirmar os termos em que a caução foi prestada, como salienta o Ministério Público na primeira instância, mediante os necessários mecanismos de cooperação judiciária internacional, já expedidos, valendo aqui as considerações tidas acima a propósito da invocação do ne bis in idem pela recorrente.
Em segundo lugar, como se assinala na decisão recorrida (fls. 195 v.º) e o Ministério Público assinala também na sua resposta, o que se assume como indiciariamente seguro para fundar a apreensão é que €2.900.000 dos €4.849.964,12 foram provenientes de fraude fiscal em Espanha; e ainda que o valor da vantagem da fraude fiscal indiciariamente apurada e caucionada corresponde apenas ao ano de 2013, que correm investigações relativamente aos anos de 2014, 2015 e 2016 e que é fundadamente de esperar que suscitem novas vantagens ilícitas, uma vez que está já apurado o valor dos lucros e a inexistência de qualquer pagamento sobre os mesmos.
A 07/04/2021, D..., Limited juntou requerimento alegando que prestou caução no processo Abreviado 3272/2019 no montante de 6.111.531,69€, composta por 3.800.000,00€ entregues pelo clube de futebol G..., 1.696.531,69€ transferidos da conta do Banco ... e 615.000,00€ por outros depósitos.
Juntou ao requerimento cópia do auto de 29/01/2020, extraída daquele processo, onde consta ter sido decidido pelo Juez del Juzgado Central de Instrucción fixar em 6.111.531,69€ a caução. Naquela decisão lê-se também que já estava à ordem daqueles autos a quantia de 3.800.000,00€. Com o mesmo requerimento, D..., Limited juntou também outra peça daquele processo de onde se infere apenas faltar a quantia de 1.696.531,69€ para completar a caução fixada.
Quantia que veio a ser transferida pela D..., Limited.
Sucede que os factos ali investigação abrangem imposto dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, estando apenas indiciariamente calculado o imposto defraudado quanto ao ano de 2013 (no montante de 4.583.648,77€). Não é ainda conhecido, sequer indiciariamente, o montante relativo aos restantes anos, apenas que D..., Limited auferiu lucros no montante de 2.181.887,43€ em 2014, 699.322,35€ em 2015 e 217.941,83€ em 2016 e não pagou qualquer imposto sobre os mesmos.

Estes aspetos factuais, que não estão ainda indiciariamente claros, impedem que possa estabelecer-se, pelo menos por ora, a correspondência direta entre o valor que a recorrente alega ter caucionado e o valor que se imputa ter sido branqueado através da conta alvo de apreensão.
Estas razões fundamentam também a manutenção da apreensão realizada.

2 ª questão.
Quanto à decisão que indeferiu a revogação da suspensão temporária.
Alega-se:
i. que o tribunal ignorou os elementos que tinha à sua disposição nos autos e que conduziam à conclusão pela desnecessidade da medida de suspensão temporária, nomeadamente a prestação de caução em Espanha pelo máximo configurável derivado do crime precedente do branqueamento que está em causa nesta investigação;
ii. que, de todo o modo, uma vez que decretou a apreensão, deveria ter revogado a suspensão temporária.

Antes de se analisar os pontos e eventualmente com prejuízo para os mesmos impõe-se verificar se a medida caducou. A caducidade da mesma foi lembrada em sede de resposta ao parecer, mas mesmo que não o fosse, por se tratar de uma exceção perentória é de conhecimento oficioso, ex vi art. 4º do CPP.

Em recente acórdão datado de 02.03.22 proferido nesta Relação a propósito de outro recurso interposto pela ora recorrente foi decidido (parte da transcrição):
2ª Questão: - Caducidade da ordem de suspensão de operações bancárias por decurso do prazo do inquérito.
Alegando que apenas as cartas rogatórias, e não as DEI, são aptas a suspender o decurso do prazo do inquérito e que a suspensão de prazos prevista na Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, não se aplica aos prazos do inquérito, defende a recorrente que, à data do despacho recorrido, já havia terminado o prazo de inquérito.
Vejamos.
Para além de nele já ter sido decidido, dando razão à aqui recorrente, que as DEI não são aptas a suspender o decurso do prazo de inquérito, também a questão aplicação da suspensão dos prazos do inquérito operada pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março (na altura com as alterações nela introduzidas pelas Leis nºs 4-A/2020 e 16/2020) já foi alvo de apreciação e decisão neste processo (concretamente no Acórdão desta Relação de 10.03.2021, proferido no Apenso C, que incidira sobre os despachos proferidos em 10.07.2020 e 26.07.2020), sendo que, a este propósito, a dado passo, nele tinha sido dito:
“3.1.3 Já anteriormente se estabeleceu que o inquérito corre termos, relativamente a pessoa determinada, desde 26 de Fevereiro de 2019, sendo de 14 meses o seu prazo de duração máxima, pelo que, em regra, o termo seria atingido a 26 de Abril de 2020.
No entanto, importa ponderar que, por força do estado pandémico resultante da doença COVID 19 ocorreu a suspensão dos prazos processuais.
Com efeito, a Lei n.º 1-A/2020, publicada no 3º suplemento do DR, 1ª Série, de 19 de Março, dispôs no seu art. 7º, n.º 1, que «Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
E, estabeleceu no seu n.º 3 que “A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”, acrescentando no n.º 4 seguinte que tal disposição prevalecia “sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional”.
A previsão do art. 7º, n.º 1, veio a ser alterada pelo art. 2º, da subsequente Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, aí se exarando agora que: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte”.
Neste conspecto, é por demais evidente que o citado diploma legal não só densificou um conceito alargado de “acto processual”, de molde a abranger os actos praticados dentro e fora do processo, como contemplou mesmo prazos substantivos, no sentido de alcançar com a sua previsão todas as situações possíveis.
Por seu turno, sendo expressa a declaração de excepcionalidade de tal lei transitória e prevalência sobre outros regimes estabelecidos a propósito de prazos de caducidade, como é o caso do n.º 2, do art. 49º, da LBCFT, não se vislumbra, nem a recorrente o explicita, por que razão não havia de ser aplicável à hipótese dos autos.
De harmonia com a previsão do art. 10º, da Lei n.º 1-A/2020, as respectivas disposições produzem efeitos «à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março», ou seja a 9 de Março de 2020, de harmonia com a norma interpretativa introduzida no art. 5º e previsão do n.º 2, do art. 6º, da Lei n.º 4-A/2020, cujo teor é o seguinte:
Art. 5º
Norma interpretativa
O artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de Março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
Art. 6º
Produção de efeitos
1 - (…).
2 - O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela presente lei, produz os seus efeitos a 9 de Março de 2020, com excepção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produzem efeitos na data da entrada em vigor da presente lei.
Consequentemente, a 9 de Março de 2020 suspendeu-se o prazo de 14 meses relativo à duração máxima do inquérito e atinente prazo de caducidade da medida de suspensão de execução de operações de débito confirmada e renovada nos autos.
Tal suspensão veio a terminar no 5º dia seguinte ao da publicação da Lei n.º 16/2020, de 29/05, ou seja a 3 de Junho de 2020 (data da entrada em vigor de harmonia com a previsão do seu art. 10º), por virtude da revogação do aludido art. 7º, da Lei n.º 1-A/2020, na redacção actual, decorrente do art. 8º, e da estatuição da cessação da suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, constante do art. 6º, aqui se acrescentando que: “os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão”.
Quer isto dizer que ao prazo de 14 meses anteriormente estabelecido como sendo o de duração máxima da manutenção da controvertida medida de suspensão temporária de execução de operações de débito, por ser o equivalente ao do inquérito, tem que adicionar-se o período de 2 meses e 25 dias correspondente à suspensão do prazo que operou entre 9 de Março e 3 de Junho de 2020, com o resultado de 16 meses e 25 dias.
No entanto, a tal causa de suspensão somou-se uma outra, nos termos do art. 276º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal, decorrente da emissão de carta rogatória à Justiça da Suíça, a 29 de Junho de 2020, cujo termo se desconhece mas que se mantinha à data em que foi proferido o 2º despacho recorrido (26 de Julho)4, impondo-se a conclusão que, não tinha decorrido integralmente e, por consequência, não estava esgotado o prazo de inquérito5, tendo que soçobrar a pretensão da recorrente no tocante à caducidade da medida decretada nos autos.”
Esta decisão transitou em julgado, fazendo, por isso, caso julgado formal nos autos.
Nessa decorrência, importa apenas proceder ao cálculo do prazo do inquérito em função das suspensões operadas pela expedição da Carta Rogatória para a Suíça e pelo art. 6º-B, da Lei nº 1­A/2020, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro.
Ora, os presentes autos tiveram início em 26.02.2019.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 276º nº 3 al. a) e 215º nº 2 al. a), ambos do CPP, o prazo deste inquérito era de 14 meses, porquanto se investiga a prática de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368-A do Código Penal.
Todavia, tal prazo, em conformidade com o estabelecido no artigo 276º nº3 al. c) do CPP, passou a ser de 18 meses, por força do despacho proferido, em 04.11.2020, que declarou a especial complexidade do processo, sendo que essa declaração veio a ser confirmada pelo acórdão desta Relação proferido em 13.10.2021 (cfr. Apenso D).
A carta rogatória que havia sido expedida para a Suíça no dia 29.06.2020 veio a ser devolvida em 10.09.2020.
Como considerado no já citado acórdão desta Relação de 10.03.2021 (proferido no Apenso C) a primeira suspensão operada pela Lei 1-A/2020, foi de 2 meses e 25 dias, correspondente à suspensão do prazo que mediou entre 9 de Março e 3 de Junho de 2020 (artigo 6.º, n.º2, da Lei nº 4-A/2020 e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio).
A segunda suspensão operada pela Lei nº 1-A/2020, foi de 2 meses e 14 dias, correspondente à suspensão dos prazos que mediou entre 22 de Janeiro e 6 de Abril de 2021 (cfr. artigos 2º e 4º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro[2], e artigos 6.° e 7º da Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril[3]).
Ou seja, considerando que o prazo de duração do inquérito é de 18 meses, ao qual acresceram:
- 2 meses e 11 dias do tempo de suspensão provocado pela carta rogatória expedida para Suíça;
- 2 meses e 25 dias e 2 meses e 14 dias, correspondente às duas suspensões operadas pela Lei nº 1-A/2020;
resulta evidente que à data da prolação do despacho recorrido - 29.03.2021 – ainda não havia expirado o prazo de inquérito.
Improcede, assim, o recurso também quanto a este aspeto.

A medida de suspensão temporária de operações bancárias terá de ser apta para alcançar o fim visado (critério da idoneidade), tem de ser necessária, ou seja, as finalidades por ela visadas, não fora a sua aplicação, ou não seriam alcançadas ou só muito dificilmente o seriam, o que envolve um juízo de ponderação acerca da capacidade lesiva da medida (critério da razoabilidade) e tem de ser materialmente adequada à sua finalidade em face dos danos que produz (critério de proporcionalidade estrita).
Para assegurar o equilíbrio entre estes dois valores essenciais é que em atenção à gravidade dos crimes e à eficácia da prevenção, combate e repressão do branqueamento de capitais, a Lei 83/2017 admite a intervenção precoce antes da notícia do crime e baseada em meras suspeitas, dando grande amplitude de poderes/deveres às autoridades administrativas, bancárias, financeiras, judiciárias envolvidas na recolha, transmissão e troca de informações relevantes, as quais, noutras circunstâncias e referidas a outro tipo de crimes, até estariam sob segredo profissional e enfatiza a cooperação interinstitucional e internacional, assim como o aproveitamento dessas informações como meios de prova potencialmente utilizáveis em qualquer processo.
Mas, em contrapartida, estes poderes são temperados pelas exigências de que o bloqueio de contas bancárias e/ou outras operações financeiras seja sujeito a um apertado controlo jurisdicional, quer na sua aplicação, quer na sua prorrogação e tenha uma duração limitada, quer pelo decurso do prazo máximo da sua duração, quer com fundamento na alteração das circunstâncias de facto que motivaram a sua aplicação e/ou a sua manutenção.
A alusão à duração desta medida, fazendo-a coincidir com a do inquérito, feita no art. 49º nº 2 da mesma Lei, só pode significar que se trata de um prazo máximo de duração cujo decurso opera a extinção da medida, por caducidade, porque essa é a única interpretação compatível com o princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18º nº 2 da CRP, na modalidade de proibição do excesso, já que não é aceitável que uma medida deste teor se eternize, mas já será razoável que a mesma coincida com os prazos legais de duração do inquérito, pois se se destina a obter informação útil e relevante acerca dos factos integradores do crime de branqueamento, é durante essa fase e não para além dela que deve vigorar.
Refira-se que o art. 49º, na disposição legal contida no seu nº 1, faz menção expressa à caducidade, como consequência do decurso do prazo ali previsto para a validação judicial da decisão de determinar a aplicação da medida de suspensão temporária de operações bancárias, pelo que, por maioria e identidade de razão, como de caducidade deverá também ser qualificado o prazo previsto no nº 2.

De resto, a sua própria designação acentua a intenção do legislador de conferir a esta medida carácter temporário, sendo certo que a inclusão da expressão «bem como a duração da medida, que não deve ser superior a três meses, podendo ser renovada sucessivamente por novos períodos, dentro do prazo do inquérito», no nº 2, aponta claramente no mesmo sentido, pois dela resulta que o período regra de duração desta medida são três meses e, especialmente, serão admitidas prorrogações, mas nunca para além do prazo que estiver legalmente previsto para a duração do inquérito.
E de duas uma: se da aplicação da suspensão não resultar qualquer das finalidades a que se destina – paralisação imediata dos efeitos de uma possível consumação e obtenção de meios de prova do crime de branqueamento – a mesma não poderá manter-se, porque, pese embora não seja uma medida de coação nem de garantia patrimonial, a sua manutenção está sujeita ao princípio rebus sic standibus, do que resulta que a medida só pode ser mantida e prorrogada, enquanto persistirem os fundamentos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação – o risco de branqueamento e a aptidão para fornecer meios de prova da prática dos factos integradores desse crime.
Se da sua aplicação resultarem meios de prova relevantes para descoberta da verdade, poderá ter lugar o congelamento dos bens e valores objeto das operações financeiras suspensas, caso se verifiquem os pressupostos enunciados no nº 6 do art. 49º - a existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e a verificação do perigo de serem dispersos na economia legítima, o que, de resto, está de acordo com os princípios gerais do direito penal e processual penal, em matéria de confisco, apreensão e perda a favor do Estado dos instrumentos e dos produtos do crime (arts. 109º a 111º do CP, 178º a 186º, 227º e 228º do CPP, além do regime jurídico da perda ampliada).
A referência ao prazo de duração do inquérito não é meramente ordenadora.
A preclusão associada ao decurso de um prazo processual é factor importante de segurança jurídica e de tutela da confiança entre os sujeitos processuais e essencial à celeridade processual, à disciplina dos atos a praticar e, em última instância, à definição dos direitos, liberdades e garantias a cuja prossecução tais atos se destinam, sendo, de resto, uma das manifestações de um processo justo e equitativo, que é igualmente um direito constitucional previsto no art. 20º nºs 4 e 5 da CRP, vide (Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 1993, pp. 36 e 37).
Tratando-se, como se trata, de um prazo de duração máxima de uma medida preventiva de obtenção de provas, não resta, pois, qualquer dúvida que o decurso do prazo total da sua duração tem de ser o legalmente previsto para a duração do inquérito, mal se compreendendo que a sua duração variasse em função da maior ou menor duração dos inquéritos para além do seu prazo legal de duração, criando por essa via, situações de incerteza jurídica, assim como eventuais violações do princípio constitucional da igualdade e, garantidamente, do princípio constitucional da proporcionalidade, eternizando sem termo certo, de forma totalmente arbitrária, excessiva e anárquica, as restrições ao direito de propriedade privada e de livre iniciativa privada que esta medida de suspensão de operações financeiras coloca em crise, convertendo uma medida temporária, numa espécie de arresto preventivo, sem prévia indagação dos seus pressupostos previstos no art. 228º do CPP, portanto, em clamorosa fraude à lei. A propósito ver Ac RL de 23.09.20, in wwwdgsi.pt
Definidos os termos em que a expressão «dentro do prazo do inquérito» usada no art. 49º nº 2 da Lei 83/2017 de 23 de Agosto deve ser interpretada, cumpre assinalar que, sendo o prazo previsto no art. 276º nº 3 al. c) do CPP, de dezoito meses mostra-se já decorrido.
Tendo presente o decidido no acórdão supratranscrito, no que de relevante interessa aos presentes autos e que faz caso julgado, pode agora constatar-se que à data do despacho questionado neste recurso, mostra-se ultrapassado o prazo de inquérito em que podia ser possível manter-se a medida provisória de suspensão de operações bancárias.
De facto, tendo presente a data de início do inquérito, 26.02.19, perfizeram-se os 18 meses em 26.08.20, a que se deve acrescer os períodos correspondentes à suspensão do processo por força da carta rogatória e período pandémico, perfazendo a suspensão o total de 07 meses e 20 dias, pelo que em 17.04.21, mostrava-se esgotado o prazo do inquérito, dias antes de ser proferido o despacho revidendo datado de 29.04.21.

Por isso, o despacho recorrido, nesta parte é ilegal por violação do direito constitucional à propriedade privada e à livre iniciativa privada e do princípio constitucional da proporcionalidade, constantes, respetivamente, dos artigos 62º nº1, 61º nº1 e 18º nºs 2 e 3, ambos da CRP, devendo o mesmo ser revogado, ordenando-se o levantamento da medida de suspensão, sob pena de violação do disposto nos artigos 49º nº 2 da Lei 83/2017 de 23 de Agosto.
Demais questões a propósito ficam prejudicadas na sua análise.

DECISÃO.

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em :

Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência determina-se a revogação de parte da decisão recorrida, declarando extinta por caducidade, a medida de suspensão temporária de operações financeiras.

No mais e quanto à apreensão do valor monetário até ao montante de €2.9000.000 do saldo da conta n º ....., manter a mesma, confirmando-se a decisão recorrida.

Não são devidas Custas.
*
Notifique e comunique à 1.ª Instância.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 16 de Março de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] O artigo 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, além do mais, aditou à Lei nº 1-A/2020 o artigo 6º -B, cujo nº1 do estabelecia o seguinte:
Artigo 6.º-B
Prazos e diligências
1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal (…)”
Por sua vez o artigo 4º da Lei nº 4-B/2021 estabeleceu que essa suspensão produzia efeitos a 22 de janeiro de 2021.
[3] O artigo 6º desta Lei nº 13-B/2021 procedeu à revogação do artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, sendo que o artigo 5º da Lei 13-B/2021, que tem por epígrafe “Prazos de prescrição e caducidade” deixou consignado: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.” Ademais, esta Lei nº 13-B/2021, entrou em vigor no dia 06.04.2021 (cfr. seu artigo 7º).