Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA DA LUZ SEABRA | ||
Descritores: | PROCESSO DE INSOLVÊNCIA NOVO PROCESSO PELO MESMO DEVEDOR CASO JULGADO | ||
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Nº do Documento: | RP202507103638/24.7T8STS.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Não existe impedimento legal na instauração de novo processo de insolvência pelo mesmo devedor, desde que as circunstâncias factuais subjacentes à causa de pedir invocadas no segundo processo não sejam coincidentes com as já apreciadas no primeiro processo de insolvência, sob pena de verificação da excepção do caso julgado. II - Considera-se que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas alegada como causa de pedir do novo pedido de insolvência é a mesma que já se verificava no anterior processo, quando o passivo invocado para fundamentar o novo pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e apenas se prolongou no tempo, e quando o activo não sofreu qualquer incremento. III - Verificada a identidade de sujeito, pedido e causa de pedir no segundo processo de insolvência, impõe-se a procedência da excepção do caso julgado, a qual determina decisão de indeferimento liminar do novo pedido de insolvência nos termos do art. 27º nº 1 al. a) do CIRE. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3638/24.7T8STS.P1 Juízo de Comércio de Santo Tirso- Juiz 4 * Sumário (elaborado pela Relatora):……………………………… ……………………………… ……………………………… * I. RELATÓRIO 1. AA veio requerer em 16.12.2024 a sua declaração de Insolvência. Para o efeito alegou em síntese que trabalha como angariador imobiliário em regime de prestação de serviços, auferindo salário variável, tendo requerido processo de Insolvência no ano de 2010 no âmbito do qual não lhe foi concedido a exoneração do passivo restante, tendo conseguido liquidar a quase totalidade das suas dívidas perante os credores, porém, não obstante as constantes e sucessivas penhoras de vencimento, encontra-se ainda por liquidar quantia aproximadamente de € 20.000,00, aos credores BB e esposa CC, agora seus únicos credores, estando pendente execução para cobrança desse valor, e não obstante querer cumprir certo é que fruto do seu estado de saúde débil, tendo em conta ataque cardíaco que padeceu, apesar dos constantes esforços em aumentar os seus rendimentos para fazer face ao pagamento da dívida total daqueles credores não tem qualquer outro meio de obtenção de rendimentos suficiente para conseguir fazer face às responsabilidades por si assumidas perante aqueles únicos credores. Concluiu que, aquela falta de cumprimento face ao seu significativo montante revela a impossibilidade de cumprir as suas obrigações, que é fator-índice da situação de insolvência, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 3º do CIRE, por falta de património e rendimento suficiente que garanta o pagamento do seu passivo. 2. Foi proferido despacho liminar em 18.12.2024, com o seguinte teor: “Do teor do assento de nascimento do requerente - e o próprio refere-se a tal processo -, consta averbada a existência de insolvência anteriormente declarada do mesmo, embora com referência a não ter transitado em julgado. Pelo que, averigue acerca do juízo e número do processo da referida insolvência anterior. Após, solicite a tal processo o envio de cópia certificada da sentença que terá declarado a insolvência do aqui requerente, e informação sobre se a mesma transitou, ou não, em julgado, bem como se ali foi apreciado pedido de exoneração do passivo restante e, nesse caso, remeter cópias certificadas de tais decisões, assim como o envio de cópia da relação de créditos ali reconhecidos. Solicite urgência na resposta.” 3. Junta certidão do anterior processo de insolvência do aqui Requerente, foi proferido o seguinte despacho em 8.01.2025: “Conforme já anteriormente aludido, e resulta dos elementos juntos aos autos, quer inicialmente, quer da certidão que antecede, o aqui requerente foi já declarado insolvente. Em tal processo anterior de insolvência, formulou pedido de exoneração do passivo restante, que foi apreciado mas indeferido pelos fundamentos que constam da decisão cuja cópia foi junta, bem como resulta que os credores do requerente, os que se mantêm, BB e CC, eram também já credores no anterior processo de insolvência, sendo que o requerente não adquiriu, entretanto, outro ativo que pudesse ser aqui liquidado. Pelo que, colocando-se aqui a questão de existência de caso julgado, notifique o requerente para que, em 5 dias, se possa pronunciar sobre tal.” 4. O Requerente pronunciou-se, pugnando pela inexistência de caso julgado impeditiva do prosseguimento destes autos. 5. Foi proferida sentença em 21.01.2025, Ref. Citius 467834523, com o seguinte teor: “Face a tudo o exposto, a sentença que declarou já a insolvência do aqui requerente fez caso julgado, pelo que, e ao abrigo do disposto no artigo 27.º, n.º 1, al. a), do CIRE, indefiro liminarmente a petição inicial Custas pelo requerente. Notifique.” 6. Inconformado com a referida sentença, o Requerente interpôs o presente recurso de apelação, no qual formulou as seguintes CONCLUSÕES A decisão ora em crise teve por base uma errada interpretação do direito e da lei, pelo que tem que se discordar da sentença proferida naqueles termos. A sentença proferida pelo tribunal a quo apresenta-se como contraditória, inexplicável e injusta bem como contrária à lei. O tribunal a quo “tábua rasa” da aplicação normativa relativamente ao CIRE, nomeadamente não subsume o indeferimento liminar no artigo 238ºdo CIRE, apenas fazendo referência ao artigo 27º,nº 1, a) do CIRE, o que mal se alcança. Não cumpriu o tribunal a quo o prazo estabelecido no artigo 27º do CIRE a que faz referência o tribunal a quo na sua sentença, porquanto a petição inicial deu entrada no dia 16/12/2024 e o indeferimento liminar (sentença) apenas foi proferido a 21/01/2025. Claramente a lei dá a hipótese a quem já tenha sido declarado insolvente anteriormente a requerer novamente a sua insolvência, desde que não consubstancie a mesma um agravar/protelamento da situação anterior, o que claramente não acontece in casu e ao qual o tribunal a quo não atendeu. Efetuou ora o requerente novo pedido de insolvência, tendo em conta facto novo que se traduziu no facto de ter sofrido problema de saúde, AVC, que não lhe permite auferir rendimentos suficientes para fazer face aos pagamentos aos seus credores. Afigura-se claramente como incongruente a alegação do caso julgado, face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Não pode o ora recorrente ser prejudicado pelo facto de nunca lhe ter sido concedida a exoneração do passivo restante, em detrimento de qualquer outro a quem já tenha sido concedida tal exoneração. Não se verifica a exceção de caso julgado, desde logo por a sentença de insolvência prolatada há mais de dez anos não fazer qualquer caso julgado material ou formal nos presentes autos, nem consubstancia qualquer facto essencial, ou mesmo instrumental, para a decisão do pleito. Nos termos do disposto nos artigos 580º e 581 º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE, constitui exceção de caso julgado a repetição de uma causa, visando evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. Se a lei permite que quem tenha sido declarada insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também a insolvente, que assim, voltou a ser declarada há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação. Embora não diga diretamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”. No processo atual a conduta do insolvente tem que ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objeto do processo é diferente (cfr. neste sentido Ac. da Rel. de Évora de 6 de abril de 2017, proc.º n.º 5416/16.8T8STB-B.E1, relatado por Francisco Xavier). A sentença em crise viola claramente a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nomeadamente, no que diz respeito ao seu artigo 6º no que diz respeito ao direito a um processo equitativo a que o Estado Português se encontra vinculado, tendo em conta o tratamento desigual entre cidadãos e que pela aplicação da lei faz depender um segundo pedido de insolvência e exoneração do passivo restante de um pedido de exoneração do passivo restante anteriormente concedido. Encontra-se, segundo a sentença proferida pelo tribunal a quo o ora recorrente impedido de requerer novamente a sua insolvência e exoneração do passivo restante, ao contrário da verdadeira ratio da insolvência de pessoas singulares consubstanciada no CIRE, Não ocorre a invocada exceção do caso julgado, pelo que, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida, declarando-se a insolvência do requerente e determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Concluiu, pedindo que o presente recurso seja julgado procedente por provado e, em consequência, seja a sentença recorrida revogada, alterando-se a mesma no sentido que ora se pugna, tal como se contempla nas conclusões aduzidas. 4. Foram observados os vistos legais. * II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts 635º, nº 3 e 4, 639º, n.ºs 1 e 2 e 608º nº 2 do CPC- devendo o tribunal resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não estando obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, nem estando sujeito às alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito- cfr. art. 5º nº 3 do CPC). * A questão a decidir, em função das conclusões de recurso, é a seguinte:- se inexiste caso julgado que impeça nova declaração de insolvência do Requerente. * III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. O Tribunal recorrido elencou os factos a que atendeu na decisão, que são os seguintes: a) O requerente dos presentes autos, AA, apresentou-se anteriormente à insolvência, mediante processo que correu termos na extinta instância local cível, secção cível, juiz 9, do Porto, sob o n.º 1358/10.9TJPRT, arquivado desde 09-10-2024, no qual requereu a declaração da sua insolvência e formulou pedido de exoneração do passivo restante. b) No processo aludido em a), foi proferida sentença a declarar a insolvência do requerente, que transitou em julgado em 06-10-2010. c) Nesse processo foram reconhecidos os créditos, que foram verificados e graduados, que constam da relação cuja cópia foi remetida a estes autos a 07-01-2025, e que aqui se dão por reproduzidos, designadamente a “Banco 1..., S.A.” foi reconhecido um crédito de € 1.300,00; à “Autoridade Tributária” um crédito de € 2.200,00, por coimas; a BB e CC, um crédito de € 47.491,33; e a DD um crédito de € 10.000,00. d) No mesmo processo, o aqui requerente formulou pedido de exoneração do passivo restante, que foi indeferido, por todos os fundamentos que constam da decisão cuja cópia foi remetida e junta a 07-01-2025, e que aqui se dão por reproduzidos (da qual resulta, nomeadamente, que a admissão da exoneração do passivo restante teve oposição dos referidos credores BB e CC, e na decisão de indeferimento são referidas, além do mais, doação de um imóvel pelo ali insolvente a uma tia e o repúdio de uma herança aberta por óbito do pai e as dívidas e execuções pendentes). e) Depois da sua anterior declaração de insolvência, o aqui requerente não adquiriu outros ativos com valor económico para serem liquidados em insolvência. f) Nestes autos de insolvência, o mesmo requerente indica como credores os referidos BB e CC, referindo que mantêm um crédito de cerca de € 20.000,00, e alegando que procedeu ao pagamento dos restantes créditos. *** O Apelante veio apresentar-se à insolvência em Dezembro de 2024, quando já havia sido declarado insolvente por sentença transitada em julgado em Outubro de 2010. Não resulta da lei impedimento na instauração de novo processo de insolvência pelo mesmo devedor, desde que as circunstâncias factuais subjacentes à causa de pedir invocadas no segundo processo não sejam coincidentes com as já apreciadas no primeiro processo de insolvência, pois a acontecer acarretarão a excepção do caso julgado. Como resulta, ao que se crê de forma consolidada na jurisprudência dos Tribunais superiores, de que é exemplo o recente Acórdão desta Relação do Porto de 27.05.2025 “o trânsito em julgado da decisão que conheceu do pedido de declaração de insolvência não é, por si só, impeditivo de um novo pedido de declaração de insolvência da mesma pessoa. Mas sê-lo-á se à identidade de sujeitos e de pedidos acrescer a identidade de causas de pedir.(…) a jurisprudência tem entendido que existe identidade de causas de pedir se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data e que foi apreciado o anterior pedido de declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Nestes casos, não restam dúvidas de que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas alegada para justificar o novo pedido é a mesma que já se verificava no anterior processo. Por conseguinte, não estando em causa a situação prevista no artigo 39.º, n.º 7, al. d), do CITR, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial da acção intentada depois do trânsito em julgado da sentença que apreciou o anterior pedido de declaração de insolvência. Neste sentido vide os acórdãos do TRC, de 03.12.2019 (proc. n.º 562/19.9T8FND.C1) e de 05.04.2022 (proc. n.º 354/22.8T8CBR.C1), o ac. do TRL, de 11.04.2023 (proc. n.º 3916/22.0T8VFX.L1-1), e o ac. do TRP, de 05.03.2024 (proc. n.º 1385/23.6T8STS-C.P1).”[1] Foi precisamente convocando o caso julgado material que o Tribunal a quo indeferiu liminarmente a pretensão do aqui Apelante, tendo sido vertida na sentença recorrida a seguinte argumentação: “Da própria alegação ora feita pelo requerente, já anteriormente declarado insolvente, resulta a mesma situação de insolvência que, também já anteriormente, invocou e foi constatada. Com efeito, no essencial, de diferente, o novamente requerente reduziu o seu passivo, segundo alega, pagando aos credores que no processo anterior tinham créditos reconhecidos de montante menos elevado (como resulta dos valores que constam da relação de créditos reconhecidos no anterior processo), e manteve parte do crédito reconhecido a BB e CC (no último requerimento que juntou aos autos o requerente refere que só será credor o referido BB (embora no requerimento inicial tenha sempre indicado este e CC, o que para o caso é irrelevante). Ou seja, os credores ou credor que ora indica já era credor, e com parte do mesmo crédito já anteriormente reconhecido. Acresce que, nesta altura, e como assumido pelo próprio requerente, não há ativo a liquidar, concluindo que se encontra na situação de insolvência, já declarada anteriormente, e que até terá piorado a sua condição financeira por motivos de saúde (alega que se encontra empregado, dedicando-se à atividade de angariador imobiliário, a título de prestador de serviços). (…) Ou seja, nestes autos, o requerente invoca uma dívida que já existia aquando da declaração da sua situação de insolvência, bem como o facto de se encontrar em situação de insolvência ainda agora, o que já anteriormente sucedia e foi declarado, assim como continua a não ter bens nem rendimentos suficientes para fazer face a tal dívida, nem para proceder à repartição pelos seus credores do produto que se pudesse obter com tal liquidação de bens. (…)No nosso caso em apreço, o passivo indicado já existia aquando da apresentação à insolvência anterior pelo requerente, que não mais deixou de estar insolvente. O que este agora refere quanto à sua situação de saúde só veio agravar a situação de insolvência. Assim, e não obstante a resposta do requerente, a situação enquadra-se na de caso julgado, pois as partes são as mesmas, o credor (quer seja um quer seja o casal), já era credor no anterior processo de insolvência e o requerente, mesmo atendendo apenas à sua própria alegação, nunca deixou de estar na situação de insolvência já anteriormente declarada. Aliás, o referido credor, que com a recusa da exoneração do passivo restante no anterior processo, como ali defendeu, ficou com a expectativa de poder receber voluntário e/ou coercivamente o seu crédito integralmente (a situação estabilizou-se nesses termos), veria a situação alterada sem qualquer fundamento para o efeito. Não se verifica aqui uma nova situação de insolvência, pois como refere o requerente, após o indeferimento da exoneração do passivo restante, terá conseguido pagar a parte dos credores reconhecidos no anterior processo (os que tinham créditos de valor mais reduzido), mas não a todos, pois nunca reuniu condições para tal, e com o agravar da sua situação de saúde, não vislumbra vir a alterar tal quadro de insolvência. (…) Ora, de novo descendo ao caso em apreço, conclui-se que existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a presente ação e a que correu termos em momento anterior. Na verdade, o requerente já declarado insolvente no processo anterior de insolvência, e no qual até já requereu pedido de exoneração do passivo restante, que não lhe foi concedida, por causas a si imputáveis, assim como os credores ou credor que ora indica já existiam aquando da anterior declaração de insolvência. As partes são, pois, as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (conforme aludido no acórdão supra citado, “se a fase inicial culminar com uma sentença de declaração de insolvência, o processo passará a assumir diversos contornos, assumindo-se, a partir daí como um processo de execução universal … que, além de abranger todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que venham a ser adquiridos na pendência do processo - património que passa a integrar a massa insolvente - cfr. artigos 46.º, n.º1, e 149.º, n.º 1 -, é dirigido a todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração ou tenham sido adquiridos no decorrer do processo – cfr. artigos 47.º, n.º 1 e n.º 3. Todos esses credores são legalmente considerados como credores da insolvência … que, nessa qualidade, estão habilitados a intervir nos autos, exercendo os seus direitos e reclamando os seus créditos no processo…parece dever concluir-se que todos esses credores são considerados, pelo menos em abstracto, como sujeitos processuais, independentemente de terem efectiva intervenção no processo e independentemente de terem reclamado e obtido reconhecimento do seu crédito…”). Também a identidade de pedido e causa de pedir se verificam. O efeito jurídico que se pretende obter nesta ação é formalmente idêntico àquele que foi efetivamente obtido na anterior ação: a declaração de insolvência. E, se é certo que a identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente e ocorrida em qualquer outro período temporal, no caso em apreço constata-se que a realidade do insolvente é atualmente idêntica à que existia anteriormente, aquando da sua já declarada situação de insolvência, e à impossibilidade de o ativo lhe permitir cumprir o passivo vencido já aquando da primeira insolvência. Acresce que da própria alegação do requerente resulta que não há ativo a acrescer ao que existia anteriormente e que o mesmo se mantém a exercer as mesmas funções há anos. Conclui-se, pois, que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos é idêntica à pretensão já obtida na ação anterior, a situação de insolvência ora invocada é a mesma que já se configurava no primeiro processo, sem que tivesse ocorrido qualquer outro facto relevante, que pudesse conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência (no mesmo sentido de existência de caso julgado, em situação semelhante à dos autos, concluiu o Tribunal da Relação do Porto, por douto acórdão proferido no âmbito do processo de insolvência que correu também termos neste Juízo Central de Comércio, J4, sob o n.º 1079/15.6T8STS, bem como, o mesmo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo 908/22.2T8STS, também deste Juízo, sendo que neste último foi decidido que “no âmbito de um processo de insolvência, declarada a insolvência do devedor e recusada a exoneração do seu passivo restante, não pode o mesmo devedor, após trânsito em julgado de tais decisões, ser, de novo, declarado insolvente com base nos mesmos pressupostos de facto - designadamente, ativo e passivo - e, se o for, deve, ainda assim, a referida exoneração ser indeferida). Neste caso, como se disse, o que verdadeiramente está em causa não é o interesse do requerente em ver novamente declarada a sua insolvência, mas antes formular novo pedido de exoneração do passivo restante, pelos motivos supra aludidos e que o próprio invocou. Porém, como já aludido, e como resulta do disposto nos artigos 235.º e segs. do CIRE, a exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência, não correspondendo, pois, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor, situação que aqui não se verifica, para além de ter sido já anteriormente apreciado o pedido de exoneração do passivo restante. Face a tudo o exposto, a sentença que declarou já a insolvência do aqui requerente fez caso julgado, pelo que, e ao abrigo do disposto no artigo 27.º, n.º 1, al. a), do CIRE, indefiro liminarmente a petição inicial.” Perante a factualidade considerada assente na sentença recorrida, que não foi impugnada em sede do presente recurso, secundamos o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, porquanto dela resultam verificados os pressupostos do caso julgado impeditivos da apreciação deste novo pedido de declaração de insolvência do aqui Apelante. O devedor é o mesmo, assim como o credor titular do único crédito como tal reconhecido na petição inicial dos presentes autos é o mesmo do já reclamado e reconhecido no processo de insolvência anterior do aqui Apelante, embora agora diminuído, reiterando o devedor a alegação de que se mantém a situação de impossibilidade de pagamento do valor residual do referido crédito- cerca de €20.000,00- admitindo não ter adquirido qualquer activo com valor económico para ser liquidado nesta nova insolvência. Podemos também nós afirmar, na senda do AC RC de 3.12.2019 que, “(…) se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença, uma vez que a concreta situação de insolvência – traduzida pela impossibilidade de o activo assegurar a satisfação do passivo vencido – é exactamente a mesma.”[2] Apesar de haver já decorrido mais de 10 anos entre o primeiro processo de insolvência no qual foi declarada a insolvência do aqui Apelante e este outro, esse hiato temporal é totalmente irrelevante para a questão do caso julgado, pois que o caso julgado coloca-se primacialmente em relação ao pedido da declaração de insolvência, uma vez que o que ficou decidido na sentença recorrida, que constitui o objecto deste recurso, não foi a rejeição liminar do pedido de exoneração do passivo restante (embora nela tenham sido feitas alusões ao mesmo) mas o indeferimento liminar da petição de declaração de insolvência. Daí que não tivesse o Tribunal a quo de subsumir o indeferimento liminar ao art. 238º do CIRE, como defende o Apelante, pois que tal preceito legal refere-se apenas e só ao indeferimento liminar do pedido de exoneração, estando o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência previsto no art. 27º nº 1 al. a) do CIRE, preceito do qual o Tribunal a quo lançou mão de forma correcta. Os pedidos de declaração de insolvência e de exoneração do passivo são distintos, dependentes da apreciação de diferentes pressupostos, que não se confundem e podem ser deduzidos de forma autónoma, apesar da interligação que entre eles existe, tendo-se apenas como certo que indeferido o pedido de declaração de insolvência é inegável a não apreciação do pedido de exoneração do passivo que dele estritamente depende, uma vez que do indeferimento do pedido de insolvência resulta o não prosseguimento do processo de insolvência. Não obstante, do art. 238º nº 1 al. c) do CIRE não resulta que seja sempre admissível novo processo de insolvência desde que decorrido o prazo de 10 anos desde o primeiro, como parece sugerir o Apelante, o que dele resulta é que não pode o mesmo devedor beneficiar de duas exonerações do passivo restante no prazo de 10 anos, mas para que esse cenário seja equacionável necessário será primeiramente que surjam circunstâncias factuais distintas que consubstanciem distinta causa de pedir de novo pedido de insolvência, não havendo qualquer incongruência entre tal preceito legal e a invocação do caso julgado perante um novo pedido de declaração de insolvência. Como o próprio Apelante refere “a lei dá a hipótese a quem já tenha sido declarado insolvente anteriormente a requerer novamente a sua insolvência, desde que não consubstancie a mesma um agravar/protelamento da situação anterior”, porém, afigura-se-nos que é precisamente essa situação que acontece no caso sob apreciação. Senão vejamos. O devedor confessa que a situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas já se verificava anteriormente à sua declaração de insolvência em 2010 e mantém-se a mesma (inclusivamente ter-se-á agravado com alguns problemas de saúde), que se vem prolongando no tempo parte do passivo já anteriormente considerado, protelando-se as diligências de penhora no seu vencimento que ainda não foram suficientes para liquidar integralmente o seu agora único credor, mantendo-se essa dívida precisamente a mesma, apenas quantitativamente menor por força dos descontos no seu vencimento entretanto efectuados, não tendo entretanto adquirido qualquer activo de relevo para efeitos de liquidação em insolvência (alínea e) dos factos assentes, que não foi impugnado). Perante aquele circunstancialismo fáctico, não temos dúvidas que estamos perante um prolongamento no tempo da situação de insolvência do aqui Apelante já declarada em 2010 e não perante uma nova situação de insolvência, não havendo alteração relevante nem ao nível do seu passivo (permanecendo parte do passivo anterior por liquidar) nem ao nível do activo a considerar, não tendo sido referenciado qualquer incremento significativo, o que nos leva a afirmar que existe identidade de causa de pedir entre este processo de insolvência e o anterior no decurso do qual a insolvência do aqui Apelado foi reconhecida e declarada por sentença transitada em julgado. Como se dá nota no Ac RE de 25.10.2024, “Verificar-se-á uma situação de identidade de causas de pedir se, em processos de insolvência distintos, a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e a composição do passivo e do activo (quando haja) apresente alguma diferença. Estaremos perante causas de pedir distintas se a situação de impossibilidade de o devedor cumprir, em determinado momento, as suas obrigações vencidas, se configure como distinta de uma situação de impossibilidade de cumprimento anterior e não como um mero prolongamento desta.”[3] Ou como se decidiu no Ac RP de 27.05.2025, já acima citado, “Para que se possa concluir pela existência de uma nova e diferente situação de insolvência e, por conseguinte, de uma distinta causa de pedir, é necessário que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que fundamenta no novo pedido configure uma realidade diferente da que fundamentou o pedido anterior, por se reportar a um passivo e a um activo que, embora possam ser parcialmente coincidentes, apresentam alterações com relevância suficiente para concluir que não estamos perante um mero prolongamento ou agravamento da situação de insolvência anteriormente apreciada.”[4] Ora, tal como decidido, entre outros, no Ac RC de 18.06.2024, “Correspondendo o “estado atual” dos requerentes, ao passivo não satisfeito no âmbito do anterior processo de insolvência (no qual viram ser recusada a concessão do benefício da exoneração do passivo restante aí por si formulado), sem que aleguem a aquisição de qualquer ativo, tal estado encontra-se abrangido pela declaração de insolvência então decretada.”[5] ** DECISÃO:Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a presente apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas do presente recurso a cargo do Apelante, que no mesmo ficou vencido (art. 527º nº 1 do CPC). Notifique. |