Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
150/11.8JAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME
HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO SIMPLES
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
QUADRO DEPRESSIVO GRAVE
Nº do Documento: RP20180110150/11.8JAAVR.P1
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 2/2018, FLS 52-94)
Área Temática: .
Sumário: I - A dúvida fundada sobre o facto de a conduta da arguida, ao provocar a morte do filho após o parto, ter sido influenciada por um quadro depressivo grave deve ser, ao abrigo do princípio in dubio pro reo valorada em favor dela.
II- Esse facto poderá afastar a qualificação do crime de homicídio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr150/11.8JAAVR.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B... veio interpor recurso do douto acórdão do Juízo Central Criminal de Aveiro (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que a condenou, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal, na pena de treze anos de prisão; pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, a), do mesmo Código, na pena de um ano de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de treze anos e seis meses de prisão.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«i- Com o presente recurso pretende a Recorrente defender-se do que considera ser uma condenação injusta, particularmente no que toca ao ter sido condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos da alínea j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, inexistindo na instrução do processo prova que sustente tal qualificação jurídica.
ii. Recurso que versa sobre dois distintos segmentos.
a) Por um lado coloca-se em crise o facto de o Tribunal a quo ter autolimitado os seus poderes de cognição, ficando aquém do que foi determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, violando dessa forma o disposto no nº 1 do artigo 4ª da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto). Da mesma forma que, autolimitando o âmbito dos seus poderes de cognição, e, por essa via, dando como assente matéria de facto que se mostra em contradição com o que veio a apurar-se na repetição do julgamento, o Tribunal a quo violou o disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
b) Por outro lado considera igualmente a Recorrente que foram erradamente julgadas as questões de facto que foram dadas como provadas, havendo igualmente erro na apreciação da prova ao não se ter dado como provado “A motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime [de homicídio]”
iii. No que respeita à autolimitação dos seus poderes de cognição, o Tribunal deveria ter interpretado o disposto no nº 1 do artigo 4ª da Lei de Organização do Sistema Judiciário, não no sentido de lhe não ser permitido alterar matéria de facto – que considerou definitivamente assente – podendo apenas aditar matéria de facto que se viesse a apurar, mas antes considerando que não poderiam ser dados como assentes todos os factos que viessem a mostrar-se em contradição com o que viesse a ser apurado.
iv. Também a interpretação que o Tribunal a quo fez do disposto no nº 1 do artigo 4ª da Lei de Organização do Sistema Judiciário, atribuindo ao instituto do caso julgado um valor absoluto, viola o no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, prejudicando intoleravelmente o direito de defesa da Arguida, nos termos que supra ficaram alegados.
v. O facto dado como não provado, sob a alínea c) “Que a arguida matou o filho em resultado das dores e perturbação ou da influência do parto, nem por o mesmo ter ocorrido naquelas circunstâncias; deve transitar para os factos provados.
vi. Deve ser eliminado o facto dado como não provado sob a alínea i), na sequência do reenvio do processo, por determinação do STJ, e da realização da (nova) audiência: “A motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime [de homicídio].
vii. Isto porque da prova produzida em audiência de julgamento, resultou suficientemente provado que a Arguida apresenta patologia psiquiátrica, da qual padecia já à data dos factos.
viii. Na sequência da eliminação daquele facto do elenco dos factos não provados, devem ser acrescentados aos factos provados os seguintes:
i) A Arguida sofre de patologia psiquiátrica, apresentando uma sintomatologia depressiva grave, com anestesia afectiva, astenia e com sintomatologia psicótica, nomeadamente, deslizamento cognitivo.
ii) Tal sintomatologia depressiva é uma sintomatologia endógena e não contextual, não sendo possível indicar-se uma causa específica para o sintoma, antes vai evoluindo ao longo da vida, e pode ser potenciado em determinados momentos de maior ansiedade.
ix. Porque incompatíveis com os factos apurados na sequência do reenvio do processo, por determinação do STJ, e da realização da (nova) audiência, resultando assim não se verificarem afinal os indícios, dos quais se inferiram aqueles factos, deve ser dado como não provado o facto provado, sob o número 34 “A arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito de causar a morte do seu filho e de o manter oculto para depois o fazer desaparecer, bem sabendo que o mesmo nascera com vida e que, ao fechá-lo dentro dos sacos de plástico, iria impedi-lo de respirar, asfixiando-o, e que, dessa forma, lhe produziria a morte, resultado este que a arguida previu e quis, mesmo sabendo que poderia ser descoberta pelas demais pessoas presentes no local, estando igualmente ciente de que não podia ocultar o cadáver naquelas condições e que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei”.
x. Deve ser retirado dos factos dados como provados o facto descrito em 22), “Chegada ao hospital, quando foi assistida, a arguida apresentava-se tranquila, normal e respondia às perguntas sem mostrar pânico nem parecer ansiosa.”
xi. Deve igualmente ser dado como não provado o facto descrito sob o número 20). “Antes de sair da escola, enquanto esperava pela ambulância que a transportaria ao hospital, a arguida pediu a uma colega que lhe levasse o veículo para casa, sita na Rua ..., n.º .., ..., Oliveira do Bairro, o que esta fez ainda nesse mesmo dia.”
xii. Não se pondo em crise o facto dado como provado sob o número 5 - A arguida tinha consulta marcada na C... para o dia 02-05-2011, mas não compareceu e nada disse, acabando por ser marcada outra consulta para 16-05- 2011. – facto que efectivamente resulta provado da instrução, tem o mesmo que ser contextualizado, ponderando a decisão recorrida que, nesse mesmo dia a Arguida não podia comparecer na consulta (que foi agendada na sequência de uma primeira consulta voluntariamente marcada pela Arguida), por se encontrar a acompanhar os seus alunos numa visita de estudo.
xiii. Deve igualmente ser dado como não provado o facto descrito sob o número 29: “Desde data não concretamente apurada, mas seguramente situada em dia da primeira semana de Maio de 2011, a arguida já tinha formulado o propósito de matar aquele seu filho.”, porquanto o mesmo, e como vimos, não resulta da factualidade apurada, inexistindo nos autos prova segura que demonstre ter a Arguida persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
xiv. Não se vindo a dar como provado que a patologia psiquiátrica - sintomatologia depressiva grave, com anestesia afectiva, astenia e com sintomatologia psicótica, nomeadamente, deslizamento cognitivo – remontava já à data dos factos (dúvida que eventualmente poderá resultar de o diagnóstico médico ser posterior aos factos em crise), então tal dúvida deve ser resolvida a favor da Arguida em obediência ao princípio in dubio pro reo.
xv. A conduta da Arguida não pode ser subsumida à previsão do artigo 131º do Código Penal, por não se mostrarem preenchidos os requisitos necessários ao tipo subjectivo de ilícito de homicídio. Na verdade da prova produzida em sede de repetição do julgamento não resulta que a Arguida tenha agido de forma livre, voluntária e consciente, ao colocar o seu filho dentro de sacos plásticos provocando-lhe a morte por asfixia.
xvi. A Arguida actuou sob a influência perturbadora de um parto ocorrido em circunstâncias dramáticas, que despoletou na mesma um estado dissociativo com perda crítica da realidade, em consequência da patologia psiquiátrica que sempre acompanhou a Arguida, antes, durante e depois da gravidez.
xvii. Deste modo e vindo V. Exas. a acolher o que se alegou, condenando a Arguida pela prática de um crime de Infanticídio, em concurso real com o crime de profanação de cadáver, atenta a moldura penal daqueles crimes, sempre deverão V. Exas. suspender a execução da pena única que vierem a determinar, nos termos do artigo 50º do Código Penal.
xviii. Suspensão que se justifica, atenta a inexistência de necessidade de razões de prevenção especial, como resulta do relatório subscrito pelo perito incumbido da realização da perícia ordenada pelo Tribunal a quo, Dr. D..., na parte que se transcreve das conclusões a que chegou o relatório. “Não existe perigosidade social para o acto, na medida em que não é provável que o mesmo acto se volte a repetir
xix. Suspensão que se justifica também atenta o facto de a Arguida se encontrar socialmente inserida, beneficiar do apoio da família e ser por todos considerada uma boa mãe, como resulta do relatório social junto aos autos e dos factos dados como provados no acórdão recorrido (factos provados 40º a 45-D)
xx. Vindo a confirmar-se a condenação da Arguida no crime de homicídio, o que apenas se concede por dever de ofício e cautela de patrocínio, então nunca tal conduta poderá ser qualificada nos termos do disposto no artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal, por não ser a conduta da Arguida subsumível à previsão daquela norma, nos termos que ficaram já alegados.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o Tribunal a quo, ao autolimitar os seus poderes de cognição, violou o disposto no artigo 4,º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) e o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição;
-saber se a prova produzida impõe que se considere provado o facto descrito na alínea c) do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido: «Que a arguida matou o filho em resultado das dores e perturbação ou da influência do parto, nem por o mesmo ter ocorrido naquelas circunstâncias;
- saber se a prova produzida impõe que se considere provado o facto descrito na alínea i) do elenco dos factos não provados constante do acórdão recorrido: A motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime (de homicídio);
- saber se a dúvida a esse respeito deverá ser valorada a favor da arguida, ao abrigo do princípio in dubio pro reo;
- saber se a prova produzida impõe que se considerem não provados os factos descritos sob os números 34 (A arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito de causar a morte do seu filho e de o manter oculto para depois o fazer desaparecer, bem sabendo que o mesmo nascera com vida e que, ao fechá-lo dentro dos sacos de plástico, iria impedi-lo de respirar, asfixiando-o, e que, dessa forma, lhe produziria a morte, resultado este que a arguida previu e quis, mesmo sabendo que poderia ser descoberta pelas demais pessoas presentes no local, estando igualmente ciente de que não podia ocultar o cadáver naquelas condições e que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei), 20 (Antes de sair da escola, enquanto esperava pela ambulância que a transportaria ao hospital, a arguida pediu a uma colega que lhe levasse o veículo para casa, sita na Rua ..., n.º .., ..., Oliveira do Bairro, o que esta fez ainda nesse mesmo dia), 22 (Chegada ao hospital, quando foi assistida, a arguida apresentava-se tranquila, normal e respondia às perguntas sem mostrar pânico nem parecer ansiosa) e 29 (“Desde data não concretamente apurada, mas seguramente situada em dia da primeira semana de Maio de 2011, a arguida já tinha formulado o propósito de matar aquele seu filho.”,) do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido;
- saber se, em consequência, a arguida não poderá ser condenada pela prática do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, por não ter agido com dolo;
- saber se, em consequência, a arguida deverá ser condenada pela prática de um crime de infanticídio, p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal, devendo a pena de prisão em que seja condenada ser suspensa na sua execução;
- saber se, em consequência, a arguida não poderá ser condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, devendo ser reduzida a pena de prisão em que foi condenada.

III – É o seguinte o teor da fundamentação do douto acórdão recorrido:

«(…)

Impõe-se, no entanto, fazer uma prévia clarificação do âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal Colectivo neste caso (na sequência do determinado pelo STJ):
Como é sabido, embora os juízes não estejam sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, sobre eles recai o “dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores” (art. 4.º, n.º 1, da LOSJ).[1]
Tal significa que, tendo sido proferida uma decisão por Tribunal Superior em dado processo, o(s) juiz(es) está(ão) obrigado(s) a observar integralmente o que nela tenha sido determinado, não podendo contrariá-la, seja por defeito, seja por excesso. O mesmo é dizer que a decisão proferida pelo Tribunal Superior em sede de recurso tem de ser cumprida na sua plenitude e não se poderá ir além do que foi determinado.
No caso presente, houve um primeiro recurso da arguida B... para o Tribunal da Relação, o qual, apreciando a matéria de facto e de direito, em conformidade com o que foi alegado, apenas procedeu à alteração da redacção de dois dos factos provados (pontos 14) e 15)), tendo, no mais, confirmado o acórdão recorrido, com a consequente improcedência do recurso (fls. 612 a 659).
O Tribunal da Relação é, por natureza, o tribunal de reapreciação da matéria de facto, pois que “conhece de facto e de direito” (art. 428.º do CPP).
Já o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º (art. 434.º do mesmo Código).
Ou seja, a possibilidade de alteração da matéria de facto por parte do STJ é limitada às situações enunciadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, sendo que, no caso, o mesmo fez uso do disposto na alínea a) do n.º 2 desse artigo 410.º (“a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”).
Na verdade, apesar de a arguida B... ter recorrido para o STJ também de facto, pois que impugnou boa parte da factualidade fixada, invocando erro de julgamento da mesma, tal como havia feito no recurso para a Relação, aquele Alto Tribunal não atendeu a sua pretensão, pois que nada alterou na matéria de facto dada como provada (e não provada) pelas Instância (1.ª e 2.ª), tendo, inclusive, rejeitado o recurso no que concerne a todas as questões relativas ao crime de ocultação de cadáver, quer de facto, quer de direito, por considerar o Acórdão da Relação irrecorrível nessa parte. (fls. 867 a 932).
Assim, perante a posição do STJ, que não atendeu nenhum dos argumentos / vícios invocados pela recorrente B..., a matéria de facto fixada pelas Instâncias tem de considerar-se definitivamente assente, podendo, quando muito, a mesma ser aditada, atenta a questão que foi mandada apurar. Efectivamente, o STJ considerou que a matéria de facto enfermará de insuficiência para a decisão de direito, ressalvando, no entanto o acerto da que foi fixada, afirmando-se em tal Acórdão que “no aspecto fulcral de a recorrente, dolosamente, ter causado a morte do filho, recém-nascido, por asfixia, nenhuma reserva nos suscita a matéria de facto fixada pelas instâncias”, colocando apenas objecções “quando à falta de averiguação do estado emocional e psíquico da recorrente durante a gravidez e, mesmo, no momento da prática do crime, com repercussão, como decorrência dessa falha, no próprio plano da qualificação do homicídio” (fls. 924). Mais adiante acrescenta persistir a interrogação sobre os “motivos da acção dela de matar, nas circunstâncias em que o fez, o filho recém-nascido” (fls. 925), pelo que, em seu entender, interessa obter “um juízo informado sobre o grau de culpa da recorrente pelo crime”, apurando-se tais circunstâncias, sem que tal implique “qualquer suposição de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída da recorrente ou ter ela agido sob a influência perturbadora do parto, para efeitos do artigo 136.º do CP” (fls. 928).
E foi com esse fundamento da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” (e só com esse) que o STJ determinou o reenvio do processo com vista ao esclarecimento “da motivação da recorrente, do estado emocional e psíquico da recorrente ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e da existência de factores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime [de homicídio]” - (fls. 929/930).
Foi este o âmbito da discussão na audiência agora realizada, em obediência ao determinado pelo STJ, pelo que não pode haver qualquer interferência deste Tribunal Colectivo nos factos antes fixados, estando, por isso, os seus poderes de cognição absolutamente limitados àquela questão.
II
Assim, tendo presente o que foi fixado em primeira Instância (fls. 446 a 492), com a alteração introduzida pelo Tribunal da Relação (fls. 612 a 659), que o manteve quanto ao mais (sem alteração do STJ - fls. 867 a 932), estão assentes os factos seguintes (que se transcrevem):
1) A arguida B... teve conhecimento de que se encontrava grávida em Janeiro de 2011.
2) Em consulta médica realizada em 28-03-2011, na C..., a arguida referiu que tinha tido conhecimento desta gravidez aos cinco meses e que soubera, por uma ecografia, que o parto estava previsto para 13-06-2011. Partindo dessa referência, a médica calculou, então, a idade de gestação em 29 semanas.
3) Nesta consulta, a arguida não exibiu a referida ecografia nem as análises que disse ter feito, apresentou-se calma e sem mostrar qualquer relutância em relação à gravidez, embora dissesse que tinha um tempo de gestação inferior ao que resultava da data calculada a partir da invocada ecografia. Também não referiu qualquer problema com alguma gravidez anterior.
4) A arguida fez uma ecografia obstétrica em 19-04-2011, em que foi calculada a idade gestacional média de cerca de 36 semanas.
5) A arguida tinha consulta marcada na C... para o dia 02-05-2011, mas não compareceu e nada disse, acabando por ser marcada outra consulta para 16-05-2011.
6) A arguida manteve reserva da sua gravidez em relação às pessoas com quem trabalhava na escola, as quais só tiveram conhecimento daquele seu estado em princípios de Maio de 2011.
7) No dia 11-05-2011, a arguida B... encontrava-se grávida de um feto de idade gestacional superior a 37 (trinta e sete) semanas e sem quaisquer malformações orgânicas ou disfunções, encontrando-se no termo de tal gestação e sendo a mesma plenamente viável.
8) Nesse dia, no período da manhã, a arguida encontrava-se na Escola ..., de ..., em Vagos, onde era professora do 1.º ciclo do ensino básico, em vigilância a provas de aferição de matemática.
9) Cerca das 12:00 horas, depois de terminarem os exames, a arguida dirigiu-se para as instalações sanitárias daquele estabelecimento de ensino.
10) Não obstante perceber que entrara em trabalho de parto, a arguida não revelou a nenhuma das demais professoras, nem à assistente operacional que consigo estavam de serviço, o estado em que se encontrava. Antes cuidou de não fazer qualquer barulho, por forma a não ser percetível no exterior da casa de banho a sua situação, ninguém lhe tendo ouvido sequer qualquer gemido ou queixume.
11) Quando as suas colegas e a referida assistente operacional foram indagar da sua demora na casa de banho, a arguida limitou-se a dizer-lhes que apenas estava com cólicas e que já saía.
12) Naquele local, a arguida acabou por parir o filho, tratando-se de uma criança do sexo masculino, medindo 53 centímetros de comprimento e pesando 3.550,00 gramas, que nasceu com vida, respirando.
13) A arguida cortou o cordão umbilical que a unia ao recém-nascido com uma tesoura metálica que trouxera consigo da sala onde esteve a fazer vigilância de exames.
14) De seguida, a arguida pegou num saco de plástico transparente, que encontrou na casa de banho, dentro do qual colocou o seu filho acabado de nascer juntamente com aquela tesoura, um invólucro de plástico de penso diário e vários papéis ensanguentados.
15) De imediato, colocou tudo dentro de outro saco de plástico branco, de alças, com os dizeres “E...” em redor do nome “F...” em letras azuis, que fechou com um nó, após o que o meteu dentro de uma carteira de senhora que, entretanto, pedira à assistente operacional para lhe trazer às instalações sanitárias. [2]
16) Ao sair da casa de banho, a arguida, que tinha sofrido dores fortes, apresentava-se pálida, ensanguentada e aflita.
17) Entretanto, as suas colegas professoras e a referida assistente operacional haviam chamado os bombeiros porque se aperceberam que a arguida não se encontrava bem, por terem visto uma poça de sangue no chão, as paredes ensanguentadas e as calças da arguida também com sangue e esta lhes ter dito que tinha tido uma hemorragia muito forte, sem no entanto lhes ter revelado o nascimento da criança.
18) De imediato, a própria arguida foi colocar aquela carteira, contendo os sacos de plástico com o corpo do seu filho recém-nascido, na bagageira do seu veículo automóvel, de marca Audi, modelo .., de matrícula ..-..-UF, que se encontrava no parque de estacionamento da escola, não revelando a ninguém o sucedido, nomeadamente o nascimento da criança e que ocultara o corpo nos termos descritos.
19) Do veículo, a arguida trouxe uma outra carteira, no interior da qual se encontravam os seus documentos pessoais e o seu telemóvel.
20) Antes de sair da escola, enquanto esperava pela ambulância que a transportaria ao hospital, a arguida pediu a uma colega que lhe levasse o veículo para casa, sita na Rua ..., n.º .., ..., Oliveira do Bairro, o que esta fez ainda nesse mesmo dia.
21) A arguida, apresentando hemorragia vaginal abundante, disse aos bombeiros que a socorreram, durante o transporte para o hospital, que estava grávida de mais ou menos 15 semanas sem referir a ocorrência do parto.
22) Chegada ao hospital, quando foi assistida, a arguida apresentava-se tranquila, normal e respondia às perguntas sem mostrar pânico nem parecer ansiosa.
23) A arguida limitou-se a dizer ao pessoal médico que a assistiu que estava grávida de 15 semanas, que tinha perdido o bebé e que tinha tido uma hemorragia muito forte.
24) Quando foi observada, a arguida apresentava perda hemática abundante, sangue vivo, com coágulos e laceração perineal (com cerca de 4 cms de extensão e 2 cms de profundidade) e vaginal (com cerca de 4 cms de extensão). Fez ecografia que revelou útero muito volumoso, amolecido, contendo no interior uma imagem sugestiva de coágulo ou restos ovulares. Foi submetida a curetagem uterina, dando saída apenas de coágulos escuros, e suturação de laceração perineal.
25) A arguida continuou a negar o efetivo período de gestação mesmo quando a médica ginecologista-obstetra a confrontou com o quadro clínico que apresentava por não ser compatível com a sua afirmação de aborto de um feto de 15/16 semanas, mas sim com um parto recente de bebé de termo.
26) A médica ginecologista-obstetra perguntou-lhe várias vezes pelo bebé, mas a arguida nunca respondeu nem o localizou.
27) De igual modo, a arguida não revelou tal nascimento nem o local onde escondera o corpo do bebé ao seu marido quando a visitou no hospital, nem a outros familiares ou a qualquer outra pessoa.
28) O bebé morreu, por asfixia, em consequência de a arguida o ter colocado dentro dos sacos de plástico que fechou.
29) Desde data não concretamente apurada, mas seguramente situada em dia da primeira semana de Maio de 2011, a arguida já tinha formulado o propósito de matar aquele seu filho.
30) A arguida ao colocar o corpo do filho na bagageira do carro pretendia, depois, fazê-lo desaparecer por forma a não mais ser encontrado.
31) No dia 13-05-2011, quando a arguida ainda estava hospitalizada, G..., namorada do irmão daquela, deslocou-se à garagem da habitação da mesma para ir buscar, ao referido Audi, as cadeiras de transporte de criança para os filhos da arguida.
32) Então, apercebendo-se de um cheiro estranho, G..., procurando a origem do mesmo, acabou por encontrar o cadáver da criança, já em estado de decomposição, dentro dos referidos sacos de plástico e carteira ainda no interior da bagageira do aludido veículo automóvel, tal como a arguida os havia deixado.
33) A arguida sabia que mantinha oculto, nas circunstâncias referidas, o cadáver daquela criança sem conhecimento nem consentimento das autoridades competentes para a verificação da morte, a certificação do óbito e realização de autópsia.
34) A arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito de causar a morte do seu filho e de o manter oculto para depois o fazer desaparecer, bem sabendo que o mesmo nascera com vida e que, ao fechá-lo dentro dos sacos de plástico, iria impedi-lo de respirar, asfixiando-o, e que, dessa forma, lhe produziria a morte, resultado este que a arguida previu e quis, mesmo sabendo que poderia ser descoberta pelas demais pessoas presentes no local, estando igualmente ciente de que não podia ocultar o cadáver naquelas condições e que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
35) A arguida teve um pós-operatório sem complicações e obteve alta médica no dia 13-05-2011 apresentando-se clinicamente bem.
36) B... foi constituída arguida e interrogada como tal pela Polícia Judiciária por volta das 19.55 horas do dia 13-05-2011.
37) No dia 23-05-2011, a arguida foi assistida na “C1...”, onde lhe foi prescrita medicação para depressão nervosa e bem assim declarado que a mesma não tinha ainda capacidade para exercer a sua atividade profissional.
38) No dia 24-05-2011, a arguida esteve numa consulta de psiquiatria apresentando-se abatida, ansiosa, deprimida, desmotivada e com dores de cabeça, declarando que havia perdido o filho por aborto de uma gravidez de 35-36 semanas.
39) A arguida é considerada pelas pessoas do seu meio como uma boa mãe.
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Resultou ainda provado, quanto à situação pessoal (na altura e no presente):
40) A arguida B..., licenciada em Formação de Professores, reside com o marido, empresário, de 42 anos,[3] e os dois filhos, em habitação própria - vivenda com boas condições e área envolvente de jardim - construída pelo casal.
41) A arguida era, à data dos factos, professora do 1.º ciclo do ensino básico e integrava o quadro de professores do Agrupamento de Escolas ..., lecionando aulas de apoio educativo a alunos com necessidades educativas especiais, auferindo um vencimento de cerca de 1.200,00€ mensais (agora aposentada). O marido era/é sócio-gerente de uma empresa familiar e, simultaneamente, gere uma empresa em nome individual, auferindo na altura um rendimento médio de 1.500,00€ mensais e presentemente de cerca de 2.500,00€ mensais, que permite ao agregado familiar beneficiar de uma situação económica estável.
42) Os filhos do casal, agora com 15 e 10 anos de idade (nascidos em 01-12-2001 e 23-05-2006, respetivamente), são estudantes, sendo a gestão dos horários escolares e períodos de almoço e termo das aulas efetuada pela arguida (e pela avó materna no que respeita ao filho mais novo).
43) A arguida B... privilegia o convívio e as atividades de lazer com a família, dedicando os tempos livres à família. Constata-se um relacionamento de grande proximidade afetiva entre os elementos do agregado e entre estes e os familiares próximos, existindo uma consistente rede de apoio e suporte recíproco.
44) A arguida B... vem sendo seguida em consultas regulares de psiquiatria, estando medicada com psicofármacos.
45) Depois de ter sido constituída arguida nos presentes autos, a arguida ficou de atestado médico (no período entre maio de 2011 e março de 2012), tendo sido sujeita a diversas juntas médicas da Direção Regional de Educação do Centro, situação que se prolongou cerca de um ano, altura em que foi colocada na I..., onde lecionou entre março de 2012 e novembro de 2013, ficando nesta data novamente de atestado médico.
45-A) A arguida pediu, entretanto, a rescisão de contrato em funções públicas, obtendo deferimento deste pedido em março / abril de 2014. Desde então vem-se dedicando à prestação de cuidados aos filhos menores e às tarefas domésticas.
45-B) Foi sujeita a avaliações clínicas (psiquiátrica e psicológica) e vem sendo seguida em consultas regulares de Psiquiatria, em consultório particular, estando medicada com psicofármacos (ansiolíticos, antidepressivo e antipsicótico), cumprindo as prescrições terapêuticas.
45-C) A arguida é descrita pelos familiares como uma boa pessoa e uma excelente mãe, apresentando-se muito reservada e introspetiva e revelando dificuldade / incapacidade para verbalizar e partilhar as suas preocupações com os outros.
45-D) Continua a ser apoiada pelos familiares.
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Mais resultou provado (no anterior acórdão) que:
46) A arguida não regista antecedentes criminais.
47) A arguida não manifesta arrependimento pela prática dos factos em apreço neste julgamento.
48) Em 23-09-2008, a arguida recorreu ao serviço de Urgência de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital ... por metrorragias. Referiu início de hemorragia nesse dia, tendo expulso um coágulo grande e tido relações sexuais há dois dias. Apresentava útero aumentado com cerca de 15 centímetros, saída de sangue abundante e coágulos pelo colo e laceração perineal de 1.º e 2.º grau. A ecografia revelou útero com imagem sugestiva de coágulo na cavidade. Foi submetida a curetagem uterina, com saída apenas de pequenos coágulos e sutura da laceração do períneo.
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Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não ficou demonstrado (factos do anterior acórdão, com a alteração da Relação):
a) Que a arguida já tinha entrado em trabalho de parto antes de se dirigir para a casa de banho;
b) Que o bebé nasceu morto;
c) Que a arguida matou o filho em resultado das dores e perturbação ou da influência do parto, nem por o mesmo ter ocorrido naquelas circunstâncias;
d) Que a arguida sentiu amargura ou sofrimento em resultado da morte do filho;
e) Que a roupa que arguida vestia acima da cintura apresentava sinais de sangue;
f) Qual o modo como a arguida projetou livrar-se do filho nem porque formulou tal propósito;
g) Que o carro da arguida ficou ao sol até ao fim da tarde do dia 11-05-2011.
h) Que «De seguida [ao descrito em 13)], a arguida pegou em dois sacos de plástico transparente, que encontrou na casa de banho, dentro dos quais colocou o seu filho acabado de nascer juntamente com aquela tesoura, um invólucro de plástico de penso diário e vários papéis ensanguentados fechando-os com um nó [4]
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Também não se provou na sequência do reenvio do processo, por determinação do STJ, e da realização da (nova) audiência:
i) “A motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime [de homicídio].”
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“As demais afirmações constantes da acusação não foram consideradas por não consubstanciarem factos, mas apenas juízos de valor, expressões conclusivas ou asserções jurídico-valorativas.”
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Quanto à motivação de facto, este Tribunal Coletivo, naturalmente que tem de reproduzir a que consta do anterior acórdão, que procedeu a julgamento, a qual sustentou os factos que foram mantidos pelos Tribunais Superiores (apresentando depois a motivação específica quanto às matérias / questões que foram submetidas à sua apreciação). Assim (transcrevendo-se a mesma integralmente):
A decisão do tribunal, tomada em consciência e após livre apreciação crítica das provas produzidas em audiência, fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas a seguir indicadas e documentos referidos.
A arguida começa por afirmar que o que está na acusação não foi o que aconteceu e que se quisesse fazer mal algum teria optado por sair dali; foi algo que aconteceu espontaneamente; foi à casa de banho por se sentir indisposta e com mal-estar geral; só na casa de banho se apercebeu que ia ter o filho; passado algum tempo de estar na casa de banho notou que o corpo estava a expulsar o filho; o bebé nasceu por si; apercebeu-se que o corpo “estava a expulsar algo”; estava com as calças caídas aos pés; cortou o cordão umbilical com a tesoura que usara para abrir os envelopes dos exames; perdeu forças, ficou prostrada no chão e quando recuperou viu que o bebé não se mexia, não respirava e não reagia a estímulos, estava quieto; ficou muito baralhada, entrou em pânico, não sabia o que fazer, ficou assustada; teve o bebé ao colo, a blusa ficou com sangue e marcas de ter o bebé ao colo; entretanto, passou algum tempo e uma das senhoras foi bater à porta a perguntar se precisava de ajuda, não conseguiu pedir ajuda nem disse o que tinha acontecido, sentia-se frustrada e embaraçada com a situação, estava com o bebé ao colo e com hemorragia, entretanto as senhoras insistiram tanto para que saísse que tentou limpar-se como podia, pediu à assistente para ir buscar a carteira porque precisava de lenços; a senhora trouxe-lhe a carteira; quando lhe deram a carteira tinha o bebé pousado no lavatório, colocou-o por cima de uns plásticos de umas embalagens; insistiram tanto que saísse e foi aí que decidiu que iria colocar o bebé na carteira para o poder levar para casa, para estar mais tempo com ele; o bebé estava morto quando o meteu na carteira; os sacos de plástico onde colocou o bebé estavam na casa de banho, estavam com papel higiénico; não desabafou, não disse nada porque queria ter a possibilidade de estar com o bebé; a seguir insistiram para que saísse, saiu e repararam que estava com hemorragia e disseram que iam chamar o INEM; quando saiu da casa de banho estava com o bebé na mala; disse apenas que tinha tido hemorragia, tinha o sentimento de que se dissesse algo lhe iam tirar o filho naquele momento; foi buscar a outra mala com os documentos que tinha no carro, quando deixou a mala com o bebé no carro já tinha a percepção de que o INEM vinha a caminho; no INEM disse o mesmo que tinha dito às colegas, não conseguiu falar no nascimento, não disse a idade real da gestação (terá dito 15 ou 16 semanas) porque sabia que se a dissesse, lhe iam perguntar pelo bebé e tirá-lo e ficavam separados; não se recorda o que disse no hospital ...; foi observada e tratada pelo parto, teve que ser suturada; no hospital não disse o que tinha acontecido nem onde estava o bebé; tinha o sentimento de posse do filho de que não se queria separar; ficou dois dias no hospital, no primeiro dia recebeu a visita do marido, este perguntou-lhe pelo bebé e a arguida começou a chorar e ele disse que depois falavam; mas não disse ao marido o que tinha acontecido; quando o marido a visitou o Audi já estava em casa, foi levado por uma das colegas, quando lhe deu a chave pensou que ia ficar menos tempo no hospital; depois a cunhada foi buscar as cadeiras para os filhos e encontrou o bebé na mala; o marido soube e foi ter com a arguida ao hospital, confrontou-a mas já não se recorda o que lhe disse; esta gravidez não foi planeada; diz que durante a gravidez andou ansiosa e preocupada porque já tinha perdido dois bebés: um com mal formação às 13 semanas (mais ou menos em 2004) e outro em 2008 com aborto espontâneo numa altura em que não sabia que estava grávida.
Teve conhecimento da gravidez em Janeiro quando tinha 20 ou vinte e tal semanas de gestação, faltou a uma consulta durante a gravidez, tinha acompanhamento na C..., ainda não tinha pensado onde seria o parto; foram poucas as consultas; as colegas não sabiam o estádio da gravidez.
A arguida apresentou um depoimento frio, seco e sem transparecer qualquer sentimento ou emoção, desviando o olhar ou fixando-o no chão quando negava ter morto o filho ou quando se fechava sem explicar por que motivo escondeu o efectivo período de gestação do bebé ou quando procurou justificar não ter pedido ajuda nem ter dito nada além das cólicas, o silêncio quanto ao ocorrido ou à localização do feto e bem assim quando tentou justificar porque o meteu nos sacos de plásticos e foi colocar na bagageira sem ter dito sequer ao marido ou até como pretendia ter o bebé consigo.
Nesses aspectos, a arguida, para além dessa fuga em termos de linguagem não verbal e dos silêncios secos, foi incoerente e inconsistente na formulação das suas afirmações e justificações, como mais adiante se explicitará.
A arguida quis prestar declarações de novo, após a comunicação a que alude o artigo 358.º do Código de Processo Penal: diz que somente tomou conhecimento da gravidez em finais de Janeiro / princípios de Fevereiro, procurando afastar o “pelo menos” que constava do primeiro facto comunicado; relativamente à consulta de 02 de Maio diz que nesse dia não pôde comparecer mas remarcou para o dia 16, telefonou no dia seguinte ou passados dois dias; reafirma que colocou o “cadáver” do filho no saco de plástico porque não mexia nem respirava; se já tivesse intenção de matar o filho (desde 02.05) não teria ido para o trabalho, nem lhe passou pela cabeça, nem lhe fez mal, não tinha qualquer plano, relativamente à primeira consulta com o médico psiquiatra diz que referiu que tinha 35-36 semanas de gravidez e reafirma que quando disse no INEM que tinha 15-16 semanas foi porque não sabia o que fazer e se dissesse a verdade iam perguntar pelo filho e queria ficar com ele; acerca da “calma no hospital” diz que não o estava interiormente embora aparentasse; não sabe explicar porque não disse às pessoas na escola, não se sentia à vontade para enfrentar as pessoas; não lhe passou pela cabeça ocultar o filho, sabia que tinha que fazer o funeral, enquanto esteve no hospital a sua preocupação era voltar para casa e estar com o bebé, pensava que voltava para casa no mesmo dia, a ideia era sair da escola directamente para casa para o bebé e depois os acontecimentos foram-se sobrepondo e perdeu o controlo da situação; continua a tomar antidepressivos que a tornam mais parada, diz que “os sentimentos estão cá dentro mas parece que há qualquer coisa que não os deixa sair cá para fora”; a consulta de 23.05 foi na C1... em ..., antes dessa data nunca tinha tomado antidepressivos; acerca da situação na casa de banho diz que sentiu dores e angústia mas não consegue explicar porque não disse nada nem porque nunca conseguiu dizer ao marido que o bebé estava no carro, quando ele perguntava começava a chorar e ele não insistia com perguntas; também não explica porque colocou “tudo” (corpo, tesoura, e papéis) no mesmo saco; reafirma que “perdi completamente a situação” pois quando colocou na carteira a ideia era levar para casa; não consegue explicar como iria dizer às colegas (a quem escondeu o tempo de gravidez) se a gravidez tivesse corrido normalmente.
A arguida manteve a mesma atitude verbal e não verbal já anteriormente assumida, acabando por se fechar nas questões essenciais, fugindo ao contacto visual e “enrolando” a postura corporal desde as mãos até ao manifesto desconforto físico muitas vezes engolindo em seco.
- G..., enfermeira, cunhada, desde o início do ano que sabia que a arguida estava grávida, desconhecia para quando estava previsto o nascimento, quando contou que estava grávida não disse de quanto tempo; não sabia o que se tinha passado na escola, apenas sabia que estava no hospital, sabia que tinha ido para o hospital, que tinha passado mal mas não disseram porquê; o marido da arguida disse-lhe que estava no hospital e que podia ir buscar a cadeira; na garagem apercebeu-se de cheiro estranho, foi à procura e encontrou um saco plástico e apercebeu-se que era um bebé, ligou ao marido da arguida e este disse que ia falar com a polícia; foi no dia 13 da parte da manhã; quando a arguida veio do hospital a depoente perguntou-lhe porquê e ela disse que queria ficar com a criança, começou a chorar e abraçou-se à cunhada; a arguida já tinha tido duas gravidezes mal sucedidas: uma devido a mal formação do feto e na segunda só souberam no hospital; é uma mãe normal, presente e preocupada; a arguida mostrava-se receosa com medo que acontecesse algo de novo, estava contente e queria o filho.
Apresentou um depoimento sereno, embora algo emocionado, especialmente pelo impacto que sofreu ao encontrar o bebé na bagageira do carro.
- J..., inspector da PJ de Aveiro, recebeu a informação do hospital a dar conta de entrada de senhora com sinais de parto recente e que afirmava ter sido aborto espontâneo; depois de contacto do marido, foram à garagem da casa da arguida onde encontraram o cadáver do bebé nos sacos, numa mala de senhora dentro da bagageira do carro; o bebé já apresentava alguma putrefacção e levaram-no para o gabinete médico-legal, tiraram as fotografias que constam dos autos. Depoimento isento, sereno, simples e coerente.
- K..., médica ginecologista-obstetra, estava de serviço na urgência do bloco de partos do hospital ..., quando a arguida chegou dizendo que tinha perdido o bebé e estava a sangrar e trazia laceração; o exame que fez não era compatível com a informação que estava a ser dada, o tempo de gestação que foi transmitido não correspondia ao estado que apresentava; pareceu uma pessoa tranquila, normal, respondia às perguntas, não estava em pânico, não pareceu ansiosa; estranhou e chamou-lhe à atenção não indicar o bebé, perguntou-lhe várias vezes e ela nunca respondeu nem localizou; a arguida sempre negou o período de gestação (pois a laceração e o volume do útero indicava mais tempo); a arguida afirmava quinze semanas de gestação; confirma o teor de fls. 131; diz que a arguida foi suturada, fizeram a curetagem e ficou internada; acerca da asfixia após parto diz que pode ser muito rápida.
- L..., médica ginecologista da C1..., recorda-se de ter atendido a arguida na sua consulta, dando origem ao registo cuja cópia consta a fls. 94, transcrito para o relatório médico por si subscrito e junto a fls. 251; a arguida dizia que tinha um tempo de gestação diferente daquele que se apurava a partir da ecografia; a arguida apresentou-se muito calma, não se apercebeu de qualquer relutância em relação à gravidez nem lhe notou alterações do foro psiquiátrico ou emocional, pois certamente o teria anotado nos registos; se a arguida tivesse falado de situações anteriores teria anotado; comunicou à arguida a data da gravidez e a diferença e pediu exames pormenorizados; como a barriga lhe pareceu mais volumosa do que o tempo de gravidez pela mesma referido, requisitou nova ecografia para datar melhor a gestação ou verificar se havia algum crescimento anormal do feto; tal ecografia terá sido realizada, atento o respetivo relatório a fls. 248, mas a arguida já não lha veio mostrar. Quando foi inquirida segunda vez, L... esclareceu que viu a arguida uma única vez em C... e depois como faltou à segunda consulta mandou a empregada telefonar para ela e remarcar outra data; não sabe quem telefonou primeiro se a colaboradora se a arguida.
- M..., professora, amiga de infância e colega, souberam da gravidez uns 8 a 15 dias antes do que aconteceu, mas a arguida tinha negado a gravidez antes da Páscoa; a arguida estava sempre de bata; naquele dia também estava na escola como vigilante dos exames de aferição; foi a depoente quem abriu os envelopes, no intervalo dos exames estiveram a beber café / chá e a arguida foi à casa de banho; no fim da prova a arguida saiu, foi à casa de banho e não disse nada a ninguém; depois de recolher as provas, estranhando a demora da arguida, a depoente foi à casa de banho perguntar se estava a sentir-se bem e ela disse que estava com cólicas, a depoente voltou de novo para a sala e entretanto a auxiliar veio buscar a carteira que ela tinha pedido para tirar um penso; mal a auxiliar chegou junto da casa de banho gritou para irem ajudar a B..., depois viu-a com as mãos nas calças verdes, uma poça de sangue no chão, as paredes ensanguentadas e foi chamar o 112; as calças tinham sangue, não se lembra se tinha sangue na parte de cima da roupa; ela estava de pé na casa de banho e não viu onde estava o saco; dos serviços de emergência perguntaram qual era o tempo de gestação e a depoente foi com o telefone à casa de banho e as colegas disseram que ela tinha ido, sozinha, ao carro; foi a correr com o telemóvel para lhe perguntar e ela disse 42 anos e 15-16 semanas; viu ela pôr um casaco na bagageira e trouxe o saco para se ir embora; a depoente falou com o marido da arguida e disse-lhe o que se estava a passar; recorda que no dia 02.05.2011 (segunda-feira) tinham ido a uma visita de estudo e os alunos disseram que ela estava a chorar e depois na quarta-feira outra colega deu a notícia; quando estavam à espera da ambulância a arguida pediu-lhe para levar o carro para casa e por volta das 20 horas foi deixá-lo a casa dos pais do marido da arguida, a quem entregou a chave; a casa de banho da escola era utilizada apenas pelas professoras (a arguida e as testemunhas M... e N...) e as auxiliares na limpeza; tinha sanita, lavatório e poliban; os sacos de plásticos estavam na caixa dos papéis.
- N..., colega de trabalho, também estava na escola nesse dia, soube da gravidez no princípio de Maio, quando foram a uma visita de estudo; viu-a cansada e perguntou-lhe e ela disse que estava grávida, mas não disse de quanto tempo; por alturas da Páscoa o assunto tinha sido comentado na escola e a arguida negara estar grávida; soube que ela tinha tido problemas e por isso não quis falar muito; naquele dia estava na escola, noutra sala, e sabia que ela estava na casa de banho; perguntou-lhe e ela disse que estava tudo bem; ouviu barulho de sacos de plástico, quando a arguida abriu a porta viu sangue no chão e nas calças; saiu com o casaco no braço e a carteira e foi ao carro onde trocou de carteira.
- O..., assistente operacional na escola, tempos antes tinha perguntado à arguida se ela estava grávida e ela tinha dito que não, que andava doente; naquele dia a depoente andava por lá enquanto os professores estavam nas provas; apercebeu-se que a arguida foi à casa de banho; ouviu uns ruídos de mexer em coisas, em plásticos, o que lhe chamou à atenção; perguntou-lhe uma vez se estava bem e ela disse que eram cólicas; entretanto, os meninos saíram e ela ainda lá continuou, algum tempo; a certa altura a arguida abriu a porta e pediu-lhe para ir buscar a mala que estava na sala dos exames de aferição; depois abriu a porta um bocadinho e deu logo para ver que ela não estava bem, entregou-lhe a mala e foi chamar as outras professoras; viu que ela estava pálida, não viu sangue porque só olhou para ela, não olhou para o chão; quando ela estendeu a mão reparou que estava ensanguentada, quando as colegas chegaram ela abriu a porta; só se apercebeu de sangue nas calças, estava pálida, espantada e aflita quando a viu no momento em que lhe entregou a mala; no poliban a depoente tinha os sacos do rolo do papel higiénico e o saco do lixo, usava sacos de asas de supermercado, confirma a fotografia de fls. 83 (“sacos campo largo isso é do mercado ao lado”); estes sacos deviam estar no caixote do lixo, no outro dia apercebeu-se que faltava lá o saco do balde do lixo; quando fez a limpeza viu sangue.
Os depoimentos destas testemunhas mostraram-se sérios, serenos, coerentes e consistentes pelo que mereceram credibilidade no âmbito do conhecimento decorrente do respectivo contacto com a situação em apreço.
- P..., psiquiatra, conheceu a arguida quando esta foi à consulta em 24.05.2011, pareceu-lhe abatida, ansiosa, deprimida, desmotivada e queixando-se de dores de cabeça; disse que já tinha ido a um médico e não tinha conseguido nada; definiu a situação como perda de criança por aborto de 35-36 semanas; não apresentava sintomatologia psiquiátrica; a arguida disse-lhe que tinha dito que estava de 15 semanas para se livrar das pessoas; diz que queria ter a criança mais algum tempo perto de si; a partir daí foi acompanhando a arguida em diversas consultas, actualmente anda sob medicação.
Esta testemunha apresentou um depoimento algo preocupado e dirigido no sentido de procurar justificar a actuação da arguida e explicar como terá morrido o bebé, embora sem ter conhecimento do relatório da autópsia; sem nexo a explicação acerca da ligação entre os formatos de sanitas e o possível impacto do bebé ao nascer se cair sobre a mesma, sendo certo que, como resulta do relatório de autópsia, nada aponta no sentido de qualquer queda ou embate na sanita.
Reinquirido, no âmbito da defesa apresentada após a comunicação a que alude o artigo 358.º do Código de Processo Penal, o senhor Dr. P... esclareceu que a arguida lhe dissera que tinha tido um aborto de 35-36 semanas e que a referência às 15-16 semanas respeitava ao que dissera no hospital onde falou nas 15-16 semanas para evitar que lhe fizessem perguntas; nessa consulta de 24.05 medicou-a e ajustou a medicação do antidepressivo e substituiu o ansiolítico por outro medicamento; os medicamentos que actualmente toma (antidepressivos e outros para evitar cefaleias e para combater a perda de memória) têm como efeito algum afastamento da realidade “como se fosse para casa de outra pessoa”; procura explicar a lógica de a arguida ao pretender levar o bebé para casa dizendo que ela não contava ter o filho na escola e ficou absolutamente embaraçada com o sucedido.
Manteve a mesma linha de postura anteriormente assumida.
- O..., tem uma filha casada com um irmão da arguida, diz que há poucas pessoas como ela, é terna meiga e carinhosa, é impossível que ela tenha praticado isto, sabia da gravidez desde o início do ano, já tinha tido um feto com má formação, ela tinha medo desta gravidez não correr bem, ela veio para casa da depoente quando saiu do hospital nem sequer ousou falar nisso, acha que a arguida é pessoa que não consegue mentir.
Depoimento quente e marcado pela emoção da proximidade que tem com a arguida, com sentido manifestamente de “fé”, especialmente no que respeita àquilo em que acredita (no “impossível que ela tenha praticado isto”) ou à firmeza com que assenta que “a B... é uma pessoa que não conseguia mentir” (como naufragou quando confrontada pelo Senhor Procurador da República quanto ao número de semanas de gravidez ou ao negar às colega que estava grávida).
- Q..., bancária reformada, conhece a arguida, há 10-11 anos, através do marido devido a actividade de aeromodelismo, encontram-se com frequência semanal há cerca de 6 anos; soube, através do marido da arguida, que ela esteve grávida mas não sabe precisar quando foi; é uma mãe muito ligada aos filhos, muito preocupada com as necessidades da família; falou com ela sobre a gravidez: mostrou preocupação, muita afectividade, muito ligada ao bebé nunca manifestou rejeição.
Depoimento sereno, calmo, mas manifestando algum afastamento do conhecimento que pretende insinuar relativamente à arguida; repare-se, desde logo, que se existisse maior proximidade não teria tido conhecimento da gravidez pelo marido; além disso nem o consegue localizar temporalmente.
- S..., assistente operacional no T..., conhece a arguida há 14 anos, os filhos da arguida estiveram com ela, “lidava com ela diariamente”, estava sempre presente quando era preciso e quando era solicitada, sabia que estava grávida por conversa com ela “umas semanas antes do sucedido”; “foi uma conversa curta quando foi levar o menino” dizendo que qualquer dia ia ter outro para aturar; tem um trato com os filhos muito exemplar, sempre presente, foi durante algum tempo representante dos pais.
Depoimento igualmente marcado por algum afastamento, já que não deixa entender a que gravidez respeita tendo em conta a idade do filho; parece mais tratar-se de anterior situação de gravidez tendo em conta que se trata de jardim-de-infância e que o filho da arguida em 2011 já não se encontraria nessa fase escolar.
Foram analisados, considerados e conjugados os seguintes documentos:
As informações de serviço de fls. 38 a 40 (em 11.05.2011, conhecimento que a PJ teve de um “nado morto” ocorrido no Hospital ..., onde é noticiada a entrada da arguida naqueles serviços dizendo que estava grávida de 16 semanas), 42 a 45 (aparecimento de cadáver de recém-nascido: em 13.05.2011, o marido da arguida comunica à PJ o aparecimento de um cadáver de recém-nascido) e 56 a 57 (outra informação da PJ acerca do aparecimento de cadáver de recém-nascido).
O relatório de Inspeção Judiciária de fls. 69 a 84: foto 1 - casa onde morava a arguida e em cuja garagem foi encontrado o automóvel Audi .. com o cadáver do recém-nascido na bagageira; foto 2 - outra perspectiva da entrada; fotos 3 e 4 - vistas da residência com sinalização da garagem onde foi encontrado o Audi ..; foto 4 - portão da garagem com descrição de como foi encontrada, dentro da bagageira do .., a carteira de senhora fechada e em cujo interior estava o cadáver do recém-nascido; fotos 5 e 6 - exterior e interior da garagem com sinalização do ..; foto 7 - interior da bagageira assinalando o local onde se encontrava a carteira; foto 8 - vista da carteira dentro da bagageira; fotos 9 e 10 - pormenores do saco plástico de cor branca em cujo interior foi encontrado um outro saco plástico; foto 11 - vista do saco plástico transparente em cujo interior e encontrava o feto; foto 12 - pormenor do feto.
O exame directo e fotografia de fls. 91/92, em 18.05.2011: a mala que a arguida levou consigo quando foi transportada para o hospital; em 30.05.2011 foi entregue à arguida como consta do auto de entrega de fls. 126.
O relato de diligência externa de fls. 112 a 115, em 20.05.2011: foto 1 - perspectiva do corredor da escola com indicação da sala de aulas e da zona da casa de banho; foto 2 - corredor com indicação da casa de banho dos professores; fotos 3 e 4 - porta de acesso à casa de banho dos professores; foto 5 - pormenor da parede que separa as casas de banho verificando-se que a parede não segue até ao teto; foto 6 - pormenor dos rolos de papel higiénico e detergentes ali armazenados.
O relatório de patologia forense do Gabinete médico-legal de Aveiro do INML, de fls. 8 e 9, de 16.05.2011 (exame de hábito externo: descrição do saco onde se encontrava o feto e características deste, nomeadamente peso, comprimento e demais características físicas; onde se conclui que “os parâmetros biométricos e características morfológicas atrás descritas são as próprias de um recém-nascido de termo”).
O relatório da perícia de natureza sexual efectuada à arguida em 18.05.2011 Gabinete médico-legal de Aveiro do INML, de fls. 151 a 157 (onde são indicados diversos dados documentais relativos ao histórico da arguida).
O relatório de autópsia médico-legal, de fls. 231 a 237, efectuado pelo serviço de patologia forense do gabinete médico-legal de Aveiro do INML onde conclui que “os exames macroscópico e complementares (radiográfico e histopatológico) realizados demonstram que o feto respirou após o parto” não sendo possível pronunciar sobre a causa determinante da morte, nem excluir a eventual intervenção de terceiros; e respetivo esclarecimento de fls. 263 (exame de autópsia médico-legal): Prestação de esclarecimentos: perante a ecografia obstétrica realizada na C1... no dia 19.04.2011 e subscrito pela Dr.ª U... do mesmo constam os vários elementos biométricos (diâmetro biparietal, perímetro cefálico, comprimento femoral e perímetro abdominal) àquela data compatíveis com uma idade gestacional média de 36 semanas de gestação; não são descritas quaisquer alterações morfológicas ou patológicas ao nível do feto, cordão umbilical, líquido amniótico ou placenta; fls. 259 (esclarecimentos complementares de 18.04.2013 das senhoras peritas que perante novos elementos clínicos (ecografia obstétrica realizada a 19.04.2011 e relatório da consulta realizada no dia 28.03.2011) “não alteram as conclusões enunciadas no relatório da autópsia médico-legal realizada ao feto”).
A seguinte documentação clínica de:
- fls. 93 a 94 (cópia do processo clínico respeitante a uma consulta de ginecologia realizada a 28.03.2011 na C1... - de difícil legibilidade mas que se encontra transcrito a fls. 250/251);
- fls. 250 a 251 (relatório médico da consulta da C1... elaborado pela médica Sr.ª Dr.ª L... que a observou em 28.03.2011: “nessa consulta referiu tratar-se da 4.ª gravidez, tendo tido conhecimento da actual gravidez aos 5 meses e que tinha conhecimento pela eco que o parto estava previsto para 13.06.2011; não trouxe as análises e a eco que dizia ter feito. Segundo a data prevista do parto referida pela utente a 28.03 estaria com 29 semanas de gestação. A obs: revelou TA normal, peso 64 kg, altura uterina superior à esperada. Auscultação fetal normal, colo uterino formado e fechado. Solicitei nova ecografia obstétrica para confirmar se havia macrossomia, avaliação da idade gestacional ou alterações do feto. Houve duas consultas marcadas a 02.05.2011 e 16.05.2011 às quais não compareceu. Não voltei a ter conhecimento do que aconteceu a esta grávida”);
- fls. 130 a 132 (relatórios de obstetrícia referentes à arguida: o de fls. 131 respeita ao episódio de urgência do dia 11.03.2011 do qual consta, entre o mais, que a arguida referiu estar grávida de 15 semanas, a perda hemática abundante, sangue vivo com coágulos e laceração perineal de 2.º grau, fez ecografia que revelou útero muito volumoso, amolecido, contendo no interior uma imagem sugestiva de coágulo ou restos ovulares; foi submetida a curetagem uterina, dando saída apenas de coágulos escuros, e suturação de laceração perineal, teve pós operatório sem complicações teve alta a 13 de maio de 2011 clinicamente bem”);
- fls. 132 (relatório referente ao episódio de urgência do serviço de Ginecologia/obstetrícia do hospital ... por metrorragias; referiu início de hemorragia nesse dia, tendo expulso um coágulo grande e relações sexuais há dois dias; referia data da última menstruação a 22.08.2008, fazer contracepção hormonal e teste de gravidez negativo, apresentava útero aumentado com cerca de 15 cm, saída de sangue abundante e coágulos pelo colo e laceração perineal de 1.º e 2.º grau; a ecografia revelou útero com imagem sugestiva de coágulo na cavidade; foi submetida a curetagem uterina, com saída apenas de pequenos coágulos e sutura da laceração do períneo; alta clinicamente bem a 24.09.2008)];
- fls. 247 a 248 (C1..., relatório de ecografia obstétrica realizada a 19.04.2011 do seguinte teor: gravidez de feto único, em apresentação cefálica, com dorso anterior. Sinais de vitalidade. Registamos frequência cardíaca rítmica de 145 batimentos por minuto. Biometria: diâmetro bi-parietal 8.6 cm, perímetro cefálico 32 cm, comprimento femoral 7.4 cm, comprimento abdominal 34.1 cm, idade gestacional média de 36 semanas (+- i semana). Idade gestacional avançada limita de modo acentuado a avaliação morfológica fetal. A correlacionar com exames prévios que não nos foram presentes. Não há dilatações dos sistemas excretores renais. Estômago distendido, com conteúdo não completamente transónico. Líquido amniótico com volume fisiológico, com múltiplos ecos em suspensão. Cordão umbilical completo. A placenta tem implantação anterior não oclusiva, normal espessura, grau I/II de maturação).
Os relatórios periciais gozam do valor probatório que lhes é reconhecido pelo artigo 163.º do Código de Processo Penal, presumindo-se subtraídos à livre apreciação do julgador (n.º 1), pelo que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer deve ser fundamentada a divergência (n.º 2).
Os referidos documentos, pela respectiva origem, não colocam qualquer reserva quanto à sua veracidade, sendo o seu teor em vários casos confirmado por quem interveio nos actos em causa (como sejam as senhoras médicas que foram ouvidas como testemunhas ou o senhor agente da PJ).
Como ensina o Senhor Desembargador Paulo Guerra, acerca do exame crítico das provas, “no que se refere a documentos ou prova pericial reveste-se o seu teor de um carácter objectivo e certo que na maioria dos casos dispensa considerações sobre o seu conteúdo, porque este se impõe sem que existam questões delicadas de credibilidade ou razão de ciência a equacionar” (ac. TRC, de 27.06.2012, **proc. 339/09.0JACBR.C1: www.dgsi.pt).
Apresentado o resumo geral dos diversos depoimentos e o essencial dos diversos documentos e perícias, impõe-se discutir e explicar o caminho seguido pelo Tribunal na formação da sua convicção, a fim de demonstrar em que afirmações a arguida mente e porque se chegou a percepção diferente do sustentado pela mesma, nomeadamente quanto aos seguintes factos: qual a causa da morte do bebé; o bebé morreu por asfixia e esta foi provocada pela mãe; como a arguida matou o bebé e como se apura que teve intenção de o fazer.
Antes, porém, é preferível explicitar, desde já, o suporte da convicção do Tribunal quanto ao conjunto dos factos seguindo a ordem lógica dos mesmos.
O conhecimento de que se encontrava grávida em Janeiro de 2011 (facto 1) resulta das declarações da própria arguida e dos depoimentos de G... e O....
O que respeita à consulta médica de 28.03.2011 (factos 2, 3 e 5), na C..., resulta do depoimento da médica L... e do teor de fls. 251 confirmado pela mesma.
O cálculo da idade gestacional em 19.04.2011 resulta do teor de fls. 248 (facto 4), tal como a consulta na C... a que faltou no dia 02.05.2011, e depoimento da médica Sr.ª Dr.ª L... (facto 5).
A reserva da gravidez em relação às pessoas com quem trabalhava na escola e o conhecimento daquele seu estado em princípios de Maio de 2011 decorre dos depoimentos das testemunhas M..., N... e O....
A idade do feto na data do nascimento, a ausência de malformações e o termo de gestação está assente no relatório pericial (facto 7).
Os factos 8 a 11 resultam das declarações da arguida e dos depoimentos das suas colegas professoras e da assistente operacional que se encontravam na escola e relataram o que lá faziam, como a arguida se dirigiu para a casa de banho, como se preocuparam e as respostas que esta deu sempre se comportando sem fazer barulho nem queixumes.
O nascimento do filho no local e o corte do cordão umbilical com a tesoura que trouxe da sala é admitido pela arguida (primeira parte do facto 12 e facto 13) sendo que o sexo, o peso e medidas resultam do apurado no exame de autópsia.
O nascimento do bebé com vida e respirando também é atestado pelo relatório de autópsia.
A colocação do bebé dentro dos sacos foi descrita pela arguida e o que aí foi colocado (tesoura, um invólucro de plástico de penso diário e vários papéis ensanguentados) bem como as características dos sacos consta do relatório de autópsia a fls. 207 verso (factos 14 e 15).
O estado em que a arguida se apresentava quando saiu da casa de banho foi testemunhado pelas colegas e pela assistente operacional e as dores resultam, segundo as regras normais de experiência, das lacerações e hemorragias que sofreu (facto 16).
O chamamento dos bombeiros, o sangue, a hemorragia, a colocação da carteira na bagageira do carro e a troca de carteira bem como o pedido para lhe levarem o carro (factos 17 a 20) resultam das declarações da arguida e dos depoimentos das colegas e assistente operacional.
O estado em que se encontrava a arguida durante o transporte pelos bombeiros e o período de gravidez de 15 semanas que declarou (facto 21) está plasmado no documento de fls. 111, elaborado pelos serviços que efectuaram o transporte; este documento é absolutamente credível e o facto é admitido pela própria arguida.
O estado em que arguida se encontrava quando chegou ao hospital, o que disse, como se apresentava, a afirmação das 15 semanas de gravidez, a negação do período efectivo de gestação, o confronto com o quadro clínico e a continuação da negação desse período efetivo, bem como o nada dizer acerca da localização do bebé (factos 22 a 26) foram testemunhados pela médica que estava no serviço de urgência, Sr.ª Dr.ª K..., sendo que o tratamento e o demais diagnosticado está documentado a fls. 131 e 163 verso.
A própria arguida admitiu que não revelou a ninguém, nem ao seu marido, o nascimento, nem onde escondera o corpo do bebé (facto 27).
A testemunha G... descreveu como encontrou o corpo do bebé dentro da bagageira do carro (factos 31 e 32).
O facto 33 também resulta directamente das declarações da arguida, uma vez que colocou o corpo do filho na bagageira do carro sem dizer a ninguém; entre o mais, ficaram as autoridades competentes para a verificação da morte (“a verificação da morte é da competência dos médicos” – art. 3.º da Lei n.º 141/99, de 28.08), a certificação do óbito e realização de autópsia sem possibilidades de actuar no exercício das suas competências; ora uma pessoa com as habilitações da arguida, com os seus conhecimentos e experiências de situações anteriores sabia o que era preciso fazer naquelas circunstâncias e para tal efeito.
O facto 35 respeitante ao pós-operatório e à alta médica resulta do relatório médico de fls. 131.
A constituição como arguida e interrogatório (facto 36) constam de fls. 14 a 16.
A assistência na C1... em 23.05.2011 (facto 37) consta do documento de fls. 128.
O estado em que a arguida se encontrava no dia 24.05.2011 e o que disse quando esteve na consulta de psiquiatria, bem como o facto de continuar a ser seguida (factos 38 e 44), foi descrito pela testemunha P..., o médico que a conheceu nessa data.
A factualidade alinhada de 39 a 45 respeitante à situação pessoal, profissional e familiar da arguida foi apurada a partir do relatório dos serviços de reinserção social (fls. 365 a 367) e de depoimentos das testemunhas que conhecem a sua vida.[5]
A ausência de antecedentes criminais é atestada pelo CRC.
O facto 48 respeitante à presença da arguida no serviço de urgência do hospital em 23.09.2008 está documentado no relatório médico de fls. 132.
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Quanto à factualidade relativa à situação da arguida, em termos pessoais e familiares, descritas nos pontos 40 a 45-D, a mesma foi actualizada com base no teor do relatório social agora elaborado e junto aos autos (fls. 1052 a 1054 / 1061 e 1062), no que o mesmo tem de descritivo e objetivo a tal respeito, sustentado nas fontes aí indicadas, o qual foi examinado em audiência e aí confirmado pela arguida B....
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Transcreve-se, ainda, o percurso seguido pelo anterior Tribunal Coletivo, na formação da convicção, para concluir pela prova dos factos integradores dos ilícitos, que foi o seguinte:
O percurso seguido pelo tribunal na formação da sua convicção quanto à demais factualidade provada requer uma explicação mais desenvolvida.
No facto 28 consta que a criança morreu, por asfixia, em consequência de a arguida a ter colocado dentro dos sacos de plástico que fechou.
A arguida admite que colocou o bebé dentro dos sacos de plástico, mas nega ter morto o filho, sustentando que o mesmo nasceu morto.
O relatório da autópsia atesta que o bebé nasceu com vida, respirou e morreu por asfixia.
Desde logo a questão que se coloca é a de saber qual a causa da asfixia.
O próprio relatório histopatológico, auxiliar do relatório de autópsia, refere a fls. 213 as escamas de queratina e a possibilidade de estas favorecerem a morte, quer antes quer depois do parto.
Uma vez que, em termos periciais, não é possível definir a causa concreta da asfixia do bebé, como é que o tribunal chegou à convicção de que foi a arguida que causou a tal asfixia?
Inexistindo prova direta dessa atuação, esse percurso sedimentou-se em prova indirecta.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores mostra-se firme relativamente à admissibilidade da prova indirecta e aponta o percurso que deve seguir o tribunal no caminho da busca da verdade através da análise de diversos indícios à luz das regras de experiência da vida (acerca das regras de experiência, encontramos desenvolvimento do Senhor Conselheiro Pires da Graça, no acórdão do STJ, de 22.01.2013, proc. 420/06.7GAPVZ.P1.S2).
O Senhor Conselheiro Armindo Monteiro, cujos ensinamentos seguiremos (nomeadamente a partir dos acórdãos do STJ de 26.09.2012, proc. 101/11.0PAVNO.S1 e de 22.01.2013, proc. 184/11.2GCMTJ.L1.S1), começa por salientar que a prova indiciária não está incluída nos métodos proibidos de prova, segundo o art. 126.º do Código de Processo Penal, tanto bastando, desde logo, para ser admitida, porque não proibida, não se referindo, no entanto, a ela o Código de Processo Penal, ao contrário do que sucede noutras legislações, devendo reputar-se uma prova inominada, avaliada de acordo com o princípio da livre convicção probatória, sem dispensar fundamentação motivada, objectiva e racional.
A prova indiciária é largamente usada actualmente, face ao valor dos indícios se revestidos de valor que os credibilizem, corroborando outras provas, à desconfiança que certos meios de prova suscitam, particularmente a prova testemunhal (Cfr. Marta Morais Pinto, Ver. M. Público, ano 128, Outubro Dezembro 2011) e à extrema dificuldade em conseguir-se prova directa em certo tipo de infracções.
O indício apresenta-se de grande importância no processo penal porque nem sempre se tem ao alcance a prova directa que autorize a perseguir a conduta, sendo necessário, pelo recurso ao esforço lógico-jurídico, intelectual, para a partir de factos certos deduzir, inferir outros, antes que se gere a impunidade, até porque quem comete um crime busca intencionalmente o sigilo da sua actuação.
Já Mittermayer dava nota do valor do raciocínio, apoiado nas regras da experiência e nos procedimentos que se adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham no crime, ou seja, aos indícios, devendo rodear-se de certas cautelas.
Os antigos classificavam-nos, consoante o momento temporal da verificação, em “antecedentia”, “conjunctia” e “subsequentia”.
Tradicionalmente, exige-se que sejam veementes, no sentido de que dada a sua natureza permitam razoavelmente afastar as hipóteses favoráveis ao acusado, bastando uma sucessão de pequenos indícios, coerentes e concatenados para assentar a condenação - cfr. Camargo Aranha, Da Prova em Processo Penal, ed. 2004, 213 - concordantes, convergentes, no sentido de aqueles que procedendo ou não da mesma fonte, se constituem de circunstâncias coerentes que se orientam no sentido do facto que se investiga, graves, resultantes de uma intima conexão entre o facto conhecido e o desconhecido, levando dedutivamente ao conhecimento deste ou seja à conclusão daquilo que se investiga, resistindo a contraindícios geradores de uma desarmonia que leva à perda de clareza e ao poder da prova indiciária - cfr. Acs. do STJ, de 9.2.2012, proc. n.º 233/08.5PBGDM.P3.S1, e de 26.1.2011, proc. n.º 417/09.5YRPTR.S2 e estudo subordinado ao tema “Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade”, Macau Novembro de 2011, da autoria do Exm.º Cons.º Santos Cabral (acessível in www.stj.pt).
Em Espanha tem-se feito largo uso da prova indiciária, como elucida Euclides Simões, no seu estudo publicado na Ver. Julgar, Ano 2007, n.º 2, decidindo o seu Tribunal Supremo que para que o juízo de inferência resulte em verdade convincente é imperioso que os indícios devam ser plurais, embora excepcionalmente um se admita se determinante, que mantenham a credibilidade em confronto com contraindícios e que a argumentação sobre que assenta a conclusão probatória resulte inteiramente razoável, face a critérios lógicos de discernimento humano.
Noutra decisão, mais concretamente na sua sentença de 01.03.2006, no proc. n.º 190/2006, distinguiu-se entre indícios de carácter formal, nestes devendo a sentença expressar os factos base ou indiciários, plenamente comprovados e que vão servir de base à dedução ou inferência; que nela se mencione de forma sucinta ou não o raciocínio através do qual, a partir dos indícios, se chegou à verificação do facto punível e da participação do acusado no mesmo, para se permitir, em recurso, a possibilidade de controlo da racionalidade da inferência; nos de carácter material incluiu-se a plena comprovação através de prova directa, sejam plurais, mas interrelacionados, ou únicos, mas com especial força probatória, contemporânea do facto a comprovar.
Os indícios distinguem-se das presunções porque aqueles são elementos sensíveis, reais, indicando um objecto, ao passo que as presunções são conjecturas ou juízos formados sobre a existência do facto probando, conjecturas pressupostas na lei como verdades absolutas (presunções legais) ou induzidas pelo juiz a partir da ordem natural das coisas (presunções hominis).
Igualmente o Tribunal da Relação de Coimbra segue este entendimento (cfr. acórdão de 02.10.2013, proc. 132/10.7GBVNO.C2, relatado pela Sr.ª Desembargadora Isabel Valongo) quando define que “certo é também que para além da prova directa o tribunal também pode e deve socorrer-se da prova indiciária”.
A este propósito cita o acórdão da Relação de Coimbra de 06-02-2013 - Relator Des. Jorge Dias:
“São bastantes os indícios quando se trata de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados; por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.”
Na verdade, conforme refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, pág. 82) é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária.
Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
Assim, se o facto probatório (meio da prova) se refere imediatamente ao facto probando fala-se de prova directa, se o mesmo se refere a outro do qual se infere o facto probando fala-se em prova indirecta ou indiciária.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
A associação que a prova indiciara proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho (Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal).
De acordo com André Marieta (La Prueba em Processo Penal, pág. 59) são dois os elementos da prova indiciária:
a. - Em primeiro lugar, o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. Na definição de Delaplane será o vestígio, circunstância e em geral todo o facto conhecido ou melhor devidamente comprovado, susceptível de levar, por via da inferência ao conhecimento de outro facto desconhecido.
O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa (v.g. prova no sentido de que o arguido detinha em seu poder objecto furtado ou no sentido de que no local foi deixado um rasto de travagem de dezenas de metros).
O que não se pode admitir é que a demonstração do facto indício que é a base da inferência seja também ele feito através de prova indiciária atenta a insegurança que tal provocaria.
b. - Em segundo lugar é necessária a existência da presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência; na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício-premissa menor - permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.
A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade.
A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
A lógica tratará de explicar o correto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova a capacidade de convicção.
A nossa lei processual penal não faz qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, cujos funcionamento e creditação estão dependentes da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Segundo Marques da Silva o juízo sobre a valoração da prova processa-se em vários níveis.
Na base trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, depende substancialmente da imediação e intervêm elementos não racionais explicáveis.
Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
Porém o facto de também relativamente à prova indirecta funcionar a regra da livre convicção não quer dizer que na prática não se definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova.
Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes e concordantes entre si.
Como salienta o acórdão do STJ de 29-02-1996, anotado e comentado na “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 6.º, fascículo 4.º, pág. 555 e seguintes, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.”
Nada impedirá, porém, que devidamente valorada a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação (conforme Mittermaier, Tratado de Prueba em Processo Penal, pág. 389) - (in Acórdão da Relação de Coimbra de 09 de Fevereiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXV, Tomo I, pág. 51).
Neste aspeto não se suscitam quaisquer dúvidas ao tribunal.
Na verdade, para além de todos os apontados elementos de convergência formal e material, nada aponta em sentido contrário e a própria arguida não apresenta explicação plausível ou coerente que seja susceptível de afastar ou sequer abalar a conclusão para que apontam todos os sentidos do normal entendimento das coisas, da vida e das reações das pessoas.
Aliás, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida (cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997).
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.
O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.
Como é sabido, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 - já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”.
O certo é que, como se apura do percurso lógico desenvolvido na formação da convicção, o tribunal colectivo não ficou com dúvidas sobre a actuação da arguida.
Concretizando perante a situação em apreço:
Uma mulher que se encontra na casa de banho, em trabalho de parto, com dores e hemorragia, que responde às colegas que são apenas cólicas, quando, do lado de fora, lhe perguntam se está bem e se precisa de ajuda, e depois sai sem dizer nada só pode pretender esconder o nascimento.
Uma mãe cujo filho tivesse morrido após o nascimento, contra a sua vontade e que pretendesse efectivamente ter para si o filho com vida, ao deparar-se, naquele envolvimento de dor pelo parto, de constrangimento pelo local, de memória por já ter sofrido um aborto involuntário e outra perda com hemorragias, laceração e internamento, com a manifestação de apoio das colegas, não resistia a clamar de dor pela perda do filho no momento do nascimento.
Uma mãe que suporta silenciosamente as lacerações, dores e hemorragia do parto, que corta o cordão umbilical com a tesoura que trazia das suas funções, que coloca o filho num saco de plástico, juntamente com a tesoura, papéis de um penso e papéis ensanguentados como se fosse lixo, que pede uma carteira onde guarda os sacos de plástico onde tinha fechado o filho, que sai da casa de banho sem dizer o que se passou e vai colocar a carteira com o filho na bagageira do seu carro só pode pretender esconder a morte que provocou ao filho.
No entanto, vejamos mais detalhadamente, de maneira a afastar qualquer possibilidade de lapso neste percurso de ponderação lógica e de formação da convicção para que não restem dúvidas e seja possível a compreensão ou contestação e sindicância do mesmo.
A arguida afirma que não matou o filho e que o colocou nos sacos de plástico porque queria ficar com ele para si para poder estar com ele.
O comportamento da arguida antes, durante e depois demonstra exactamente o contrário.
Antes do dia 11.05.2011: a arguida havia tido problemas com anterior gravidez, sabia da gravidez desde Janeiro, sempre procurou situar o período de gestação dentro das 15-16 semanas, não teve qualquer cuidado especial, na consulta de 28.03.2011 insistiu com a médica numa idade de gestação diversa daquela que a ecografia permitia calcular, chegou a negar a colegas que estava grávida, só o admitiu na visita de estudo depois de se mostrar cansada e com choro, sem dizer qual o tempo de gestação e ainda faltou à consulta marcada para o dia 02.05.2011.
Na altura dos factos, na escola: não pediu ajuda, disse que eram apenas cólicas, nada referiu quanto ao nascimento, actuou em silêncio, colocou o bebé nos sacos de plástico juntamente com a tesoura, um invólucro de plástico de penso diário e vários papéis ensanguentados fechando-os com um nó e meteu dentro do outro saco “F...”, pediu a sua carteira referindo apenas que necessitava de um penso, guardou os sacos na mala e foi colocar na bagageira, pedindo para lhe levarem o carro a casa, quando perguntada pelo telefonema do INEM nada disse acerca do nascimento e voltou a colocar a gestação nas 15 semanas (quando já sabia há muito tempo que tal não era verdade).
Depois: no hospital continuou a insistir com as 15 semanas de gestação mesmo quando confrontada pela médica, nada disse ao marido do que ocorrera nem do que fizera ao corpo do bebé mesmo durante os dois dias em que esteve internada.
Temos por certo que o marido não sabia o tempo de gestação; na verdade, a reacção do marido no hospital mostra que ele desconhecia tão avançado período de gestação porque aceitou o choro da mulher sem questionar o que teria acontecido pois que se parecia com uma “repetição de 2008”; só por ter sido convencido de menor tempo de gestão e de que tinha sido aborto espontâneo é que não se preocupou em tratar de nenhum assunto relacionado com o bebé, diferentemente do que fez quando teve conhecimento de que o mesmo se encontrava na mala depois de encontrado pela cunhada. Fica completamente afastada a possibilidade de o marido já antes saber que o corpo do bebé se encontrava dentro do carro, pois se tal acontecesse não autorizaria a cunhada G... a ir lá buscar as cadeiras.
O facto de o marido não saber a idade da gestação também aponta no sentido de que arguida queria desfazer-se do filho de modo a parecer aborto espontâneo.
Se a arguida fosse surpreendida pela morte do bebé era incapaz de calar a dor e o desespero que, seguramente, teria partilhado com as pessoas que estavam próximas, fosse na escola, na ambulância, no hospital e, especialmente, com o marido.
Se o bebé, tendo nascido com vida, não tivesse sido morto pela arguida esta não seria capaz de calar a revolta, a frustração, a dor de coração, a mágoa; nenhum motivo a levaria ao silêncio, à desculpa, ao desvio e ao esconder do nascimento; indiscutivelmente que teria que soar uma reacção de dor e mágoa.
E o que fez a arguida? Procurou esconder tudo. Note-se que a arguida disse em audiência de julgamento, por várias vezes, que sentiu o corpo “expelir algo”, pretendendo insinuar que foi um acto simples, mas as lacerações que apresentava mostram que não foi “algo” assim tão singelo, pois correspondia a um corpo com 53 centímetros de comprimento e pesando 3.550,00 gramas.
A arguida continuou, depois, a insistir nas 15 semanas de gravidez, na ambulância e na urgência do hospital, mesmo quando confrontada com a impossibilidade das suas afirmações e apresentando-se tranquila, normal e respondendo às perguntas sem mostrar pânico, nem parecer ansiosa como testemunhou a médica que a assistiu.
Quando o marido a visitou no hospital escondeu-se no choro, mas nada lhe disse durante os dois dias de internamento.
Perante este comportamento o que se pode concluir acerca da actuação, motivação e intenção da arguida?
A arguida actuou procurando fazer crer que a gravidez tinha um tempo menor para fazer desaparecer o bebé; a arguida, que até já tinha a experiência de como estas situações se processam (o aborto por mal formação do feto e a situação do episódio de urgência de 2008), não consegue explicar este seu comportamento.
A arguida estava “preparada” para enfrentar aquela situação, já tinha passado por “dois abortos” e tinha dois filhos de 4 e 9 anos de idade, pelo que já não era a primeira vez que ia ter um filho.
Sabia que camuflando o tempo de gravidez tinha possibilidades de a sua actuação não ser descoberta.
Não estamos a dizer que a situação de 2008 foi semelhante. A semelhança, no que se mostra indiscutível, encontra-se no estado em que a arguida se apresentou no hospital: igualmente com hemorragias e laceração, com o útero aumentado e com coágulos de sangue sendo sujeita igualmente a curetagem. Ora isso, dava à arguida uma capacidade para reagir em termos completamente diferentes. Ou então, inculcou-lhe a esperança na possibilidade de fazer crer que, sendo a gravidez de cerca de 15 a 16 semanas, poderia fazer desaparecer o corpo e dizer que tinha sido um aborto espontâneo.
A única explicação que a arguida dá para o seu comportamento é a vontade de ficar com o bebé.
Isto não tem qualquer cabimento e é logo afastado pela própria actuação da arguida: se ela quisesse guardar o bebé para si não o colocava no saco de plástico retirado do lixo, nem depois o juntava com lixo (tesoura, invólucro e papel ensanguentado) - não há coerência entre o sentimento que procura invocar e a reação de uma mãe naquele contexto; também a arguida mente quando diz que teve o filho ao colo: se a arguida tivesse estado com o corpo do filho ao colo a roupa teria ficado com marcas; ora, a arguida não mudou de roupa e apenas lhe foi visto sangue nas calças. Se tivesse estado com o corpo do bebé ao colo teriam ficado marcas, pelo menos de sangue, que seriam vistas pelas pessoas que estiveram com ela quando saiu da casa de banho e, no hospital, o olhar treinado da médica não deixaria de apurar tais vestígios face à estranha insistência da arguida em negar o parto recente de um bebé de termo.
A arguida não apresentou uma explicação coerente e plausível para o seu comportamento, seja durante o nascimento da criança seja posteriormente.
Antes pelo contrário, a justificação que convocou não tem sentido e é desmentida pela sua própria actuação.
O comportamento da arguida só pode assentar numa vontade / necessidade de esconder algo. E isso só pode ser a sua acção de matar o filho. Só tendo sido a arguida a provocar a morte do filho, por asfixia, dentro do saco de plástico, dá coerência ao seu comportamento.
Todos os aludidos indícios apontam nesse sentido, nada os contraria e não se consegue vislumbrar qualquer outra possibilidade efectiva de os factos terem ocorrido de modo diferente.
E nem se diga que se a arguida quisesse matar o filho não teria ficado na casa de banho da escola. Com efeito, o comportamento da arguida - repare-se no esforço que certamente constituiu a deslocação ao carro para deixar a carteira com o corpo do bebé - mostra que se a mesma admitisse a possibilidade de o filho estar prestes a nascer certamente não teria ficado na escola.
De todo o modo, para além disso, o seu plano de actuação apenas falhou porque não controlou o tempo que ficou internada nem a deslocação da cunhada ao seu carro (esse é o verdadeiro sentido da expressão que a arguida trouxe para a audiência de julgamento na re-inquirição: “perdeu o controlo da situação” depois de o ter colocado na mala do carro e seguido para o hospital).
Aliás, saliente-se o facto de a arguida naquelas circunstâncias ainda ter o cuidado de pedir para lhe levarem o carro a casa; com hemorragias, com lacerações, com dores e depois de um parto naquelas condições ainda tem força para se preocupar em salvaguardar o “cofre” onde guardou os sacos de lixo com o corpo do filho.
Eis o resumo: tendo o bebé nascido, se a arguida não lhe tivesse provocado a morte, esta teria necessariamente exteriorizado e comunicado aos demais essa morte; a arguida, sendo mãe, só cala e esconde porque foi ela a causadora, por sua vontade, dessa morte.
No que respeita ao momento em que a arguida formulou o propósito de matar o filho, o seu comportamento na visita de estudo, a falta à consulta que lhe tinha sido marcada sem justificar, mostra que, seguramente, desde essa semana, estava decidida a desfazer-se do filho.
Por isso se pode concluir que o modo como a arguida colocou o corpo num saco de lixo, com objectos de lixo, mostra que não o queria para si, mas sim para o encaminhar de maneira a não ser encontrado.
Por essa razão, também, nem sequer deixou no balde do lixo da casa de banho os papéis ensanguentados, pois ainda acreditava que nada seria descoberto, colocou-os juntamente com o corpo do filho.
Ora, essa ânsia de ocultar tudo e não deixar vestígios só pode compaginar-se com uma actuação direccionada voluntariamente para a morte do filho.
E essa morte foi produzida por asfixia.
Essa asfixia não resultou das escamas de queratina nem do líquido amniótico. Se tal tivesse ocorrido a arguida não teria agido do modo como o fez, tal como já se explicitou.
Tal asfixia só pode ter ocorrido dentro do saco de plástico, ficando, assim, o corpo sem quaisquer marcas.
A maneira como acondicionou o corpo - dentro dos sacos do lixo e acompanhado com objectos que, certamente, não queria guardar para “ter consigo” - o silêncio que sempre manteve durante os dois dias em que esteve hospitalizada - sabendo onde o mesmo estava e em que condições, mostram que a arguida apenas esperava o momento oportuno para se desfazer do corpo do filho.
Este é o percurso lógico que levou o tribunal a afirmar que pelo menos desde a primeira semana de Maio de 2011, a arguida já tinha formulado o propósito de matar aquele seu filho (facto 29) e que a mesma ao colocar o corpo do filho na bagageira do carro pretendia, depois, fazê-lo desaparecer por forma a não mais ser encontrado (facto 30).
O facto 34 acerca da actuação livre, voluntária e consciente resulta de a arguida se apresentar em condições de se determinar na sua actuação sem qualquer constrangimento e sabendo o que fazia e com capacidade para representar as consequências dos seus actos; a arguida não põe em causa essas suas capacidades e as pessoas que com ela se cruzaram desde a escola ao hospital dizem que ela, nesse âmbito se mostrava normal.
A falta de arrependimento da arguida (facto 47), para além da falta de qualquer expressividade facial ou corporal nesse sentido, resulta de a mesma ainda não ter interiorizado a gravidade do seu comportamento a ponto de continuar a negá-lo, procurando, assim, eximir-se à responsabilização pelos seus actos e levar a decisão do tribunal num sentido diverso do efectivamente ocorrido, sendo que tal é do seu conhecimento íntimo.
No que respeita aos factos não provados, a decisão do tribunal resulta da falta de prova credível e fiável quanto aos mesmos ou resulta de diferente perspectiva da realidade apurada.
Não existe firme possibilidade de a arguida já ter entrado em trabalho de parto antes de se dirigir para a casa de banho: a arguida nega tal e o facto de a mesma ter levado consigo a tesoura que utilizou para abrir os envelopes dos testes (apesar de uma das testemunhas ter afirmado que a arguida não abriu envelopes), à míngua de outros elementos probatórios, não é suficiente para suportar tal hipótese.
Não é verdade que o bebé tenha nascido morto, pois o relatório de autópsia é claro quanto ao nascimento com vida.
Não se pode concluir que a arguida tenha produzido a morte do filho em resultado das dores e perturbação ou da influência do parto, nem por o mesmo ter ocorrido naquelas circunstâncias; com efeito, antes pelo contrário, a arguida actuou com calma e contactou com as colegas e assistente operacional sem revelar qualquer perturbação.
Nem se coloca, nem foi sequer suscitada, a eventual necessidade de qualquer avaliação psiquiátrica à arguida, de forma a determinar se o seu comportamento resultou da “influência perturbadora do parto”, pois a envolvência em que decorreu a actuação da arguida e as pessoas que estavam à sua volta atestam que a sua actuação não sofreu influência das condições emocionais e físicas em que decorreu o parto; o que também resulta do depoimento da médica que a recebeu no serviço de urgência.
Em momento algum se percebeu que a arguida sentiu amargura ou sofrimento em resultado da morte do filho; antes pelo contrário, a arguida revelou serenidade e só sentiu perturbações quando foi descoberta a sua atuação, ou seja, depois de ter sido constituída arguida e interrogada pela Polícia Judiciária, como decorre do confronto da data desses documentos e do estado em que se apresentou nas consultas médicas posteriores por comparação com a sua reacção no hospital.
Se a roupa que a arguida vestia acima da cintura apresentasse sinais de sangue certamente tal teria sido percepcionado pelas suas colegas, pela assistente operacional ou pela médica que a assistiu nas urgências; isto é, ninguém viu algo que seria manifesto e “saltaria à vista” naquele contexto.
Nada foi afirmado, nem o seu comportamento ou qualquer outro indício permite concluir, acerca do modo como a arguida projetou livrar-se do filho, nem porque formulou tal propósito.
Nada tendo sido referido a esse respeito e não se conhecendo as condições meteorológicas, não se pode saber se o carro da arguida ficou ao sol até ao fim da tarde do dia 11.05.2011.
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Naturalmente que na parte em que o Tribunal da Relação alterou a redacção de dois dos factos, como acima se enunciou, importa convocar as razões aí aduzidas (fls. 612 a 658), mas que em nada derrogaram a avaliação crítica e ponderação probatória, que se enunciou, levada a cabo pelo anterior Tribunal Coletivo.
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Importa, agora, enunciar as razões porque este Tribunal Coletivo não logrou esclarecer o que foi determinado pelo STJ e que motivou o reenvio do processo à primeira Instância (“a motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico de mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime [de homicídio] ”).
Tendo por bússola tal determinação, importa subdividi-la em três aspetos:
- A motivação da arguida para praticar os factos (ou seja, porque motivo fez isso);
- O estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto;
- A existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime (de homicídio).
Foi solicitada ao INML uma perícia psiquiátrica à arguida B..., nos precisos termos determinados pelo STJ (fls. 950 e 951), encontrando-se o respetivo relatório junto aos autos (fls. 1075 a 1079).
No que respeita a este relatório, desde logo importa referir que a síntese conclusiva enunciada sob os pontos 2 e 3 (fls. 1079) não fazia parte da perícia psiquiátrica que foi solicitada, extravasando da mesma, sendo que foi remetido ao INML cópia do despacho que a determinou e estabeleceu o seu objeto (fls. 950/51 e 954). Porém, a razão de ser de tal conclusão e seus fundamentos foram esclarecidos em audiência pelo Exm.º Perito que procedeu à avaliação e elaborou tal relatório (como a seguir se dirá).
Ademais, o STJ não questionou a imputabilidade da arguida relativamente aos factos praticados (cfr. fls. 928 - “Nada disso implica qualquer suposição de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída da recorrente…”), nem tão pouco ela foi colocada em causa ao longo do processo, designadamente pela própria, incluindo no anterior julgamento, como também é referido no acórdão condenatório (cfr. fls. 472), sendo que os factos apurados pela primeira Instância, concretamente na vertente subjectiva (voluntariedade, consciência da ilicitude e da punibilidade), não foram objecto de alteração / revogação pelo Tribunal da Relação e pelo STJ, afirmando mesmo este Alto Tribunal que “não é na dimensão da imputação à recorrente da prática de factos que preenchem o tipo objetivo e o tipo subjetivo do homicídio doloso que ela [a insuficiência da matéria de facto] se manifesta” (fls. 924). Assim, tal como acima se referiu, a matéria de facto, incluindo em termos de imputação subjectiva, encontra-se definitivamente assente.
Tal relatório pericial foi elaborado em 06-09-2016, tendo-se baseado, como aí se refere, nos dados colhidos junto da arguida B..., do seu Psiquiatra Particular e do seu marido, sendo que os relatos daquela relativos ao episódio dos autos, quer ao Exm.º Perito, quer anteriormente ao Dr. P... (seu Psiquiatra Particular), a este em 24-05-2011 (bem próximo dos factos), em nada correspondem ao que resultou apurado nos autos, particularmente quanto ao que sustenta o crime de homicídio, sendo que este último mencionou que na altura a arguida “não apresenta(va) sintomatologia psiquiátrica para além do sentimento de tristeza enorme.”
Relativamente ao relato do marido, é referido no relatório pericial que o mesmo mencionou, além do mais, que ela “não poderia estar bem”, que “já andava meio nervosa”. Ela própria negou antecedentes médicos relevantes, psiquiátricos ou outros. (fls. 1076/77).
Essa avaliação do seu Psiquiatra Particular (Dr. P...) foi efetuada 13 dias após a data dos factos dos autos (quando já havia intervenção policial, pois que a mesma foi constituída arguida e interrogada nessa qualidade em 13-05-2015).
No mesmo relatório pericial, cuja avaliação incluiu exame complementar de “avaliação de personalidade” (psicologia), realizado em Junho de 2016 (“perfil de validade questionável, podemos inferir que a examinanda respondeu de forma defensiva, procurando dar a impressão de adequação e normalidade, dissimulando a maior parte do tempo”), o Exm.º Perito, começando por invocar a dificuldade resultante do desfasamento temporal relativamente aos factos, mencionou que “em momento algum se percebem sinais ou sintomas que possam indiciar um estado psicótico que pudessem ter condicionado a examinada na sua capacidade de determinação perante os seus atos. As queixas psicasténicas minor, prévias ao parto, não explicam um quadro psicótico, eventual, que se pudesse afigurar mais tarde, bem como por si só não o representam. O estado depressivo posterior ao parto, segundo os dados colhidos na perícia e a integração com os registos do médico psiquiatra que assistiu a doente, também não revela ter caraterísticas psicóticas. Não há referência a delírios (envolvendo ou não o recém-nascido) ou a atividade alucinatória (imperativa ou outra) em qualquer dos registos clínicos disponibilizados ou no relato da examinada.”
Admite depois o Exm.º Perito que, em face dos relatos da examinada ao então seu Psiquiatra Particular (após a expulsão do recém-nascido terá ficado “em pânico, numa confusão total”), que “os altos níveis de ansiedade, supostamente provocados pelo facto de ter de enfrentar o sofrimento de um novo suposto abortamento, poderão ter contribuído de alguma forma para a capacidade da examinada se determinar no momento dos factos. Desta forma a considerar imputabilidade para os factos, esta deverá ser atenuada pelos elevados níveis de ansiedade registados e possível estado dissociativo transitório, que fogem ao seu percurso habitual”, tendo concluído (além da já referida imputabilidade atenuada) que a examinada “padece de “Estados de Ansiedade (ICD9 - 3000) e Reação ou Estado Dissociativo, SOE (ICD9 – 300.15).” - (fls. 1978/79).
Como se constata pelo relatório, o exame pericial não permitiu esclarecer as questões apontadas pelo STJ, designadamente o diagnóstico de patologia psiquiátrica à data dos factos, que tivesse condicionado a arguida B... à prática dos mesmos, ressalvando-se que se forneceram ao Exm.º Perito todos os elementos / registos médicos existentes nos autos, incluindo aqueles que foram agora juntos pela arguida, a qual havia sido advertida pelo Tribunal para remeter ao processo todos os elementos que possuísse relativos ao período em causa (cfr. fls. 951, 975 a 991, 999 e 1000).
E estes novos elementos / relatórios, agora juntos pela arguida B..., são os seguintes:
- Relatório médico elaborado pelo Dr. V... (Médico de Clínica Geral / Medicina do Trabalho), datado de 03-03-2016, o qual refere que consultou a arguida B... “em 10-05-08, por quadro clínico depressivo, com recaídas, e sendo consultada pela última vez em 14-05-11, com sintomatologia depressiva agudizada.” (fls. 975).
A sugestão do Tribunal no decurso da sessão de 05-01-2017, para melhor perceber e sustentar esse relatório (fls. 1152), a arguida juntou aos autos os registos clínicos relativos a tais consultas (fls. 1154 a 1156/1161 e 1162). Destes registos resulta que a arguida B... foi consultada em 23-02-2004, 10-05-2008, 27-09-2008,[6] 09-10-2008, 24-06-2009, 14-05-2011 e 03-03-2016. Porém, ressalvando a dificuldade de perceção de parte da escrita, daí não resulta qualquer registo de avaliação psicológica ou psiquiátrica, que não era, como se verifica, a especialidade do Exm.º Médico em causa, sendo apontado, no geral, fatigabilidade, cefaleias, zumbidos, insónias (em 23-02-2004), cansaço físico e mental, períodos de palpitações, insónias, mas estar na cabeça, tonturas esporádicas (em 10-05-2008), acronagia(?) há 4 dias, com surgimento entretanto de equimose do braço e antebraço direito, fatigabilidade, cefaleias, anorexia e emagrecimento (em 27-09-2008), cefaleias, hoje ainda com tonturas e vómitos, insónias, sonolência, fatigabilidade, dor na coxa / anca esquerda até ao joelho (em 24-06-2009),[7] aborto espontâneo, tonturas, tristeza, angústia, (?), insónias (em 14-05-2011).
Atente-se que esta última consulta (14-05-2011) ocorreu 3 dias após os factos dos autos, numa altura em que já havia sido constituída arguida e interrogada sobre os factos dos autos (como se referiu), sendo que a arguida referiu ao seu médico “aborto espontâneo” (em contrário do que havia ocorrido e se apurou nestes autos).
- Relatório médico elaborado pelo Dr. W... (Médico Especialista em Psiquiatria), datado de 23-09-2015, o qual refere que a arguida B... foi por ele observada em 12-03-2015 e mantém-se em tratamento desde então, referindo aí que, no seu entender, a mesma “apresenta sintomatologia compatível com um quadro de Depressão Endógena com sintomatologia Psicótica (F33.3 da CID 10) ou um quadro de Psicose Atípica (F29.1 da CID 10).” Acrescenta que “do ponto de vista etiológico e com base na anamnese efetuada a doente apresenta uma longa evolução de episódios depressivos recorrentes, graves e limitantes, com sintomatologia psicótica, que são desencadeados sem causa específica e com periodicidade sazonal.”
Refere ainda que a paciente lhe relatou que “abortou de forma espontânea na Escola onde trabalhava” e que, em seu entender, a situação descrita “configura um quadro de psicose puerperal que apresenta como antecedentes a sintomatologia depressiva com sintomatologias psicóticas já referidas”, acrescentando que à data da observação apresentava “tristeza acentuada, ideação de ruina e suicídio, anedonia, astenia, irritabilidade, insónia, astenia e ansiedade marcada, deslizamento cognitivo e ideação de referência.” Conclui que a mesma “encontra-se de forma definitiva, absoluta e permanente incapaz de exercer as suas funções profissionais”, pelo que “deve ser considerada com incapacidade Permanente.” (fls. 976).
Tratou-se de uma avaliação para efeitos de reconhecimento da incapacidade profissional da arguida B..., com observação, pela primeira vez, pelo Exm.º Médico quase quatro anos após os factos dos autos, os quais não lhe relatou com verdade (falou-lhe em aborto espontâneo), não se conseguindo daí retirar, nem tal é tratado, que a mesma padecesse de qualquer perturbação do foro psicológico / psiquiátrico no decorrer da gravidez, durante e logo após o parto, e quais os fatores, endógenos ou exógenos, que a podem ter condicionado à prática do crime de homicídio, o que se pretendia esclarecer, em face do determinado pelo STJ.
- Informação clínica elaborada pela Prof.ª Dr.ª X... (Médica Neurorradiologista), datada de 30-03-2015, a qual indica “doente com perdas cognitivas acentuadas com evolução de 2 anos. Provável organicidade.” (fls. 977).
- Relatório de Avaliação Psiquiátrica efetuada pelo Dr. Y... (Médico Psiquiatra), datado de 14-05-2015, o qual refere que a arguida B... foi por ele observada em 08-05-2015, daí constando, além do mais, que ela “não refere(iu) antecedentes patológicos de relevo, exceção feita a aborto voluntário dada a existência de malformação fetal grave” e que “terá iniciado o acompanhamento psiquiátrico em 2011”, estando então medicada (por “enfermar de quadro depressivo ansioso reativo com queixas de humor depressivo, ansiedade e insónia, irritabilidade, astenia, anedonia, bem como ideação de ruina e suicidária”), tendo concluído, na sequência de discussão, onde aludiu ao relato da paciente quanto ao ocorrido (parto no quarto de banho da escola, “cuidando tratar-se de nado morto”), que a perturbação resultante do parto “é transitória e a avaliação é difícil, mas, no caso presente, é admissível poder ter-se tratado de uma personalidade transitoriamente desarmónica reagindo a emoções primárias com acentuada deficiência de crítica e portanto não completamente responsável pelo seu delito”. (fls. 978 a 983).
Neste caso a própria conclusão não é segura, além de que assenta também em dados fornecidos pela arguida B... não totalmente conformes com a realidade, sendo ainda de referir que a mesma foi observada pelo Exm.º Médico decorridos 4 anos após a ocorrência dos factos, o que, naturalmente, dificultou / impediu o diagnóstico de eventual perturbação reportada a tal momento.
- Relatório de Avaliação Psicológica efetuada pelo Dr. Z... (Psicólogo), datado de 10-10-2015,[8] o qual refere que a arguida B... foi examinada pela primeira vez na sessão de 05-10-2015, aí se mencionando que a mesma referiu, além do mais, uma “longa evolução de episódios depressivos, tendo-se agravado em 2011, após um aborto espontâneo”, manifestando então “tristeza acentuada, anedonia e dificuldades na memória” e demonstrando um “discurso negativo, medo, isolamento social, choro fácil e dificuldade em dormir”, além de relatar ter “baixa autoestima, baixo autoconceito, pensamentos auto lesivos e de ideação suicida”, referindo não se encontrar capaz para exercer funções de docência, tendo-se aí concluído que aquela “manifesta sintomatologia concordante com um Quadro Depressivo Endógeno Grave com caraterísticas de cronicidade (…), conducente a “uma Incapacidade Absoluta e Permanente (…).”- (fls. 984 a 991).
Esta Avaliação Psicológica está relacionada com o Relatório Médico elaborado pelo Dr. W... (acima aludido), pelo qual foi solicitada, direcionada para fins profissionais, não se podendo dela igualmente concluir que a arguida B... padecesse de qualquer perturbação do foro psicológico / psiquiátrico no decorrer da gravidez, durante e logo após o parto (ocorrido em 11-05-2011), nem tão pouco os fatores, endógenos ou exógenos, que a podem ter condicionado à prática do crime de homicídio, o que se pretende esclarecer, em face do ordenado pelo STJ.
Adquiridos para os autos esses elementos probatórios, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com produção de prova, designadamente testemunhal, sendo que arguida B... optou por usar do seu direito ao silêncio, não permitindo, assim, que, através das suas declarações, o Tribunal Coletivo pudesse vir a conhecer os motivos que a levaram a praticar o crime (de homicídio), nem tão pouco perceber o seu estado emocional e psíquico ou outros fatores que a tenham levado a agir desse modo. Por esta via não foi possível esclarecer as questões colocadas pelo STJ.
No decorrer da audiência, com vista ao esclarecimento dessas questões, foram levadas a cabo as seguintes diligências:
- O Exm.º Perito que elaborou o relatório do exame solicitado ao INML, Dr. D... (Médico Psiquiatra), prestou esclarecimentos, tendo o mesmo, em síntese, referido que não consegui perceber a motivação da arguida, não tendo encontrado traços de personalidade que justificassem tais atos, sendo que dispunha de poucos elementos para fazer uma avaliação (só foi vista por especialista “passados cerca de 10 dias”, referindo-se ao Dr. P...), mais dizendo que a mesma “dissimulou a maior parte do tempo” nos testes de psicologia forense realizados, não tendo ele dados para concluir por um quadro depressivo prévio ao parto, sendo a “ansiedade” um sintoma muito inespecífico, pelo que, apesar de alguns registos de que andaria ansiosa, não colheu sintomas de psicose puerperal (apenas valorou a ansiedade para a conclusão da imputabilidade atenuada), nem encontrou um quadro psicótico (disse não haver referência a tal pelos médicos que a viram). O mesmo disse ainda que o envolvimento no próprio processo judicial (por ser um aspeto de vida negativo) pode desenvolver um estado depressivo.
Tais esclarecimento permitiram melhor perceber o sentido do que foi mencionado no relatório, não havendo elementos que permitam ao Tribunal Coletivo por em causa essa prova pericial e dela divergir (art. 163.º do CPP).
Os depoimentos das testemunhas seguintes, já antes indicadas na acusação e inquiridas em audiência (fls. 993):
- K... (Médica - Ginecologia e Obstetrícia), a qual disse, em síntese, ter recebido a arguida B... na Urgência do Hospital ..., mencionando de que ela se queixava (de hemorragia) e o estado em que a mesma se encontrava (disse que não lhe pareceu perturbada, aflita, em pânico ou confusa, respondendo a tudo de forma normal), mais referindo o que foi questionando e a arguida respondeu (disse que ela negou sempre que tivesse ocorrido um parto, mas pelos sinais era evidente que tinha tido um bebé), bem como esta reagia (disse que notou nela uma certa apatia, alguma indiferença, mostrando-se desligada do quadro que a depoente lhe colocava) e o que a depoente concluiu e reportou (disse ter concluído que não estaria bem emocionalmente, pois tinha laceração pós-parto e não tinha o bebé, tendo que comunicar superiormente), mais referindo a razão de não ter solicitado uma perícia / avaliação psiquiátrica na altura (disse que os dados objetivos que recolheu naquele momento em que a observou não justificavam a chamada de um psiquiatra à urgência). Mais referiu as condições em que a viu enquanto esteve sob os seus cuidados na urgência (referiu estar uma pessoa normal e tranquila, não tendo sequer pedido para chamar ninguém próximo).
- L... (Médica - Ginecologia), a qual disse, em síntese, ter recebido e consultado a arguida B... na C..., mencionando o que esta lhe transmitiu (disse que ela falava de um tempo de gestação muito menor do que o que resultava da avaliação da depoente - cerca de 3 / 6 meses, respetivamente), bem como a não perceção de qualquer outra situação que a chamasse à atenção (designadamente o estado psíquico e/ou emocional da paciente, nada registando a tal respeito), explicando que apenas teve esse contacto com a mesma e que a gravidez adiantada era evidente (disse que “saltava à vista que não teria de 3 meses”, julgando que ela também saberia disso).
- M... (Professora), a qual disse, em síntese, ser na altura colega da arguida B..., na mesma Escola, tendo a mesma descrito as alterações físicas que foi notando naquela e explicações que a mesma ia dando (disse que as alterações foram notadas a partir de Fevereiro / Março e que ela dizia que era um “mioma”), bem como a altura aproximada em que lhe disse que estava grávida (a testemunha falou em 8/15 dias antes dos factos, mas que ela não dizia o tempo de gravidez) e também o que a depoente fez na altura da ocorrência e o que a arguida B... dizia (disse que chamou os bombeiros e que ela referia que “estava de 3 / 4 meses”).
Mais referiu a forma como a arguida se comportava mesmo depois de saberem da gravidez (disse que ela nunca mostrou grande nervosismo, sendo uma pessoa calma, nunca a tendo visto triste ou a chorar, fazendo as coisas de forma normal) e também o que ocorreu no dia dos factos, incluindo as condições em que viu a arguida na casa de banho (disse que viu sangue no chão, mas ela estava calada, não a vendo chorosa, aflita ou nervosa, não se queixando de nada), após o que chamou os bombeiros, aludindo ainda ao estado em que a arguida se apresentava à chega destes (disse que ela continuava calma, não se queixando de nada, embora visse que estava triste, pensando a depoente que tinha tido um aborto, o que a arguida lhe afirmou quando ela lhe telefonou para o Hospital).
Disse ainda não saber o porquê de a arguida B... ter praticado os factos e não ter notado nenhuma mudança na maneira de ser e no estado de espírito dela ao longo do tempo, desde que com ela começou a conviver (Setembro de 2010), parecendo-lhe ter uma vida profissional e familiar normal (do que se foi apercebendo, embora a arguida fosse sempre uma pessoa algo reservada).
- O... (Assistente Educativa), a qual disse, em síntese, trabalhar na altura na Escola onde lecionava a arguida B..., a qual já conhecia há 4 / 5 anos, tendo referido aquilo de que se foi apercebendo e as explicações que aquela dava (disse parecer-lhe que ela andaria de bebé, mas dizia que eram “miomas”, localizando essas conversas alguns meses antes do que veio na ocorrer), bem como o que ocorreu na data dos factos, designadamente a ida da arguida para a casa de banho e o que a depoente verificou e fez a pedido daquela (que e descreveu), referindo mesmo a forma como a arguida com ela comunicou ao pedir-lhe a carteira (disse que “falou de forma natural” e que “nesse dia não a viu muito preocupada”).
Mais referiu o comportamento habitual da arguida na escola (disse que “andava sempre bem disposta” e que “no comportamento nunca lhe viu mudanças”).
- N... (Professora aposentada), a qual, em síntese, disse ser na altura Colega de Escola da arguida B... (nesse ano, mas que já oito anos antes tinham também lecionado ambas nessa Escola), tendo mencionado a altura em que soube da gravidez desta (disse que foi durante a visita de estudo, em 02 de Maio, a sua interpelação se estava grávida, pois que “tinha alguma barriga”), mais referindo a reação da arguida quando lhe confirmou a gravidez (disse que aquela estava “triste e até lhe vieram as lágrimas aos olhos”), bem como a maneira de ser da mesma (disse ser “contida, reservada, calma, mas bem disposta e com iniciativa, embora falando pouco da sua vida pessoal) e comportamento que manteve ao longo do tempo (disse que nunca notou mudanças de comportamento nela ao longo do tempo, incluindo desde a tal visita de estudo em que a depoente soube da gravidez, andando normal e até habitualmente bem disposta) e até no dia dos factos (disse que também então a viu normal e mesmo quando estava na casa de banho e respondeu à depoente “não achou nada de anormal na voz”).
Mais referiu como ela se comportou quando esperavam pelos Bombeiros (disse que aí a achou mais debilitada, mas nada referiu quanto ao bebé e “não tem ideia de lamentos ou queixumes”) e o teor da conversa que depois teve com ela por telefone quando já estava no Hospital (ela disse à testemunha que tinha “abortado”), bem como a relação que a arguida tinha com os dois filhos (disse que era “amorosa e preocupada com os filhos”) e a avaliação que a depoente faz do sucedido (disse não ter explicações para este ato, económicas ou outras).
- J... (Insp. PJ), o qual, em síntese, referiu a forma como teve notícia dos factos (através do Hospital ...) e diligências então realizadas, incluído a localização do bebé, mais referindo a ausência de elementos quanto à “motivação” da conduta da arguida B..., não tendo logrado perceber o “móbil” do crime, designadamente dificuldades económicas, que não foram detetadas, não tendo também encontrado sinais de eventual infidelidade,[9] além de que ninguém detetou sinais de “perturbação mental” por parte daquela.
Foram ainda colhidos os depoimentos das testemunhas seguintes, indicadas pela arguida B... (fls. 973/74):
- Z... (Psicólogo, autor do relatório de fls. 984 a 991), o qual, em síntese, disse conhecer a arguida B... desde Outubro de 2015, aludindo à avaliação que fez desta, para efeitos de atribuição da incapacidade para o trabalho, como professora, tendo descrito a forma como ela se apresentava e diagnóstico que ele fez, com referência a essa data, confirmando o relatório respetivo (fls. 984 a 991), além de circunscrever a finalidade do mesmo (para efeitos laborais), dizendo ainda que não pode afirmar que esse estado de “depressão endógena” já se verificava em 2011 (embora possa vir já de “longe”), esclarecendo que para poder reportar a tal data “teria de ser avaliada na altura”, além de não possuir elementos relativos a tal período (referiu que o “historial clínico” de que dispõe era apenas desde 12-03-2015 - acompanhamento do Prof. W... - e o historial de vida era só pelo que a arguida lhe referiu, não lhe tendo falado deste processo, sendo que isso não era relevante para a avaliação para efeitos laborais).
- Y... (Psiquiatra, autor do relatório de fls. 978 a 983), o qual disse, em síntese, conhecer a arguida B... desde 08-05-2015, altura em que a entrevistou, tendo descrito a forma como ela se encontrava e diagnóstico que ele fez, que verteu no relatório respetivo (fls. 978 a 983), o qual explicou, bem como o que a mesma lhe relatou sobre o ocorrido (disse que foi de “forma vaga que ela lhe fez a descrição das coisas”, mas referiu que “a gravidez foi plenamente aceite e que teve acompanhamento da mesma”), dizendo ter sido ela a única fonte dessa informações.
Relativamente ao disgnóstico de “quadro depressivo ansioso reativo” (informação do psiquiatra assistente) não soube precisar a que foi tal reação (se foi à perda do bebé ou à condenação pendente), admitindo também que o relatório pode enfermar de erro avaliação em função do que lhe foi omitido pela arguida B... (quanto aos factos dos autos, que em parte lhe foram dados agora a conhecer em audiência), dizendo não ter resposta / explicação para o que aconteceu (designadamente se foi devido a perturbação mental, por não dispor de elementos para o poder afirmar).
Foram ainda tomadas declarações ao Consultor Técnico indicado pela arguida para assistir ao exame pericial, Dr. W... (Médico Psiquiatra, autor do relatório de fls. 976), o qual, em síntese, disse conhecer a arguida B... desde Março de 2015, altura em que a consultou pela primeira vez, aludindo à forma como a mesma se apresentava e diagnóstico que lhe fez na altura (“sintomatologia depressiva grave”), bem como ao posterior contacto que com ela teve em fim de Abril / princípio de Maio, ocasião em que ela lhe falou deste processo (mas sem receber qualquer elemento / peça do mesmo), e quadro que apresentava (“quadro depressivo com sintomatologia psicótica”), mencionando ainda a incapacidade para o exercício de funções que lhe foi reconhecida (tal relatório teve essa finalidade), tendo esclarecido em que se traduz tal disgnóstico e ao que o mesmo conduz (a uma “anestesia afectiva”), indicando não se tratar, no seu entendimento, de uma doença recente.
Foi confrontado com o facto de a arguida B... lhe ter ocultado os factos já então apurados nestes autos, dizendo ser “difícil” ele não detectar uma “simulação do doente” (mas acrescentou que “não diz que não possa ser enganado”) e admitiu que a condenação só por si “já pode levar a uma depressão grave” (mas disse já ter dúvidas que ela possa conduzir ao “quadro dissociativo” que referiu).
Confrontado também com o episódio vivido pela arguida B... em 23-09-2008 (constante do relatório de perícia de natureza sexual do INML, na sequência do exame realizado em 18-05-2011 - fls. 154, ponto 3. - levado ao ponto 48) dos factos provados), disse que a mesma nada lhe falou a tal respeito, além de referir o que ela lhe relatou sobre a gravidez que conduziu ao desfecho destes autos (que “teve acompanhamento” da mesma e que “as colegas sabiam da gravidez”), considerando que ela “estaria doente ao ponto de praticar os factos” (“teve que haver um corte na vida da pessoa”, disse, apontando como explicação o “quadro depressivo” que referiu).
Confirmou ter elaborado o relatório datado de 23-09-2015 (fls. 976), a pedido da arguida e para efeitos laborais, tendo-a consultado pela primeira vez em 12-03-2015, como aí referido, considerando que, se o seu disgnóstico estiver correcto (mas “admite poder ter-se enganado”), conclui que ela terá antecedentes familiares, sendo que “esses quadros aparecem de vez em quando”, deixando o porquê ela ter procedido assim neste caso (?).
Acrescentou que este caso é “uma situação psiquiátrica”, um “deslizamento fora do contexto”, porque “tudo é fora do contexto do real” (disse ser “um cenário demasiado complicado para ser feito de propósito”), pelo que “tudo aponta para patologia psiquiátrica” e só consegue perceber o que ocorreu “no quadro de uma doença mental”, voltando a questionar porque é que isto aconteceu (?).
Reconheceu que a ausência de registos / disgnósticos contemporâneos dos factos dificulta a tarefa de avaliação, admitindo, contudo, que seria normal que a arguida B... tivesse, na altura dos factos, comportamentos que evidenciassem aquelas doenças psiquiátricas que o declarante referiu, como seja, “afastamento”, “isolamento”, “perda de concentração”, “afastamento social”, concluindo que “haveria alertas”.
Analisando as declarações do Exm.º Consultor Técnico, constata-se que, além de não ter observado a arguida B... em momento próximo dada data dos factos, nem tão pouco ter tido acesso a registos / diagnósticos deles contemporâneos, sustentou a sua argumentação e conclusões em dados insuficientes, pois que aquela lhe omitiu alguns particularmente relevantes (o seu historial clínico / factos do processo), apontando o mesmo explicações para o ocorrido apenas com base no seu convencimento pessoal, porque não vê outra explicação, além de que os apontados sintomas / comportamentos que ela, em princípio, apresentaria nessa altura (que indicou) não foram corroborados pelas pessoas que com a mesma conviviam diariamente de perto, designadamente as Colegas e Auxiliar da Escola (testemunhas acima referidas).
Por isso, estas declarações, sem pôr em causa as competências profissionais do Dr. M..., não são bastantes para se poder afirmar a existência de qualquer patologia psiquiátrica da arguida B... durante a gravidez, durante e logo após o parto, tal como não concluiu pela sua existência o exame psiquiátrico a que foi sujeita no INML, conforme relatório junto, acima enunciado e esclarecido pelo seu autor, o Dr. D... (não tendo nós argumentos válidos para por este juízo pericial em causa).
O referido pela generalidade dos Exm.ºs Médicos indicados pela arguida B... assentou mais em convicções pessoais, pela observação e avaliação que fizeram passados anos, por não encontrarem outra explicação para os actos, mas sem que lograssem transpor, de forma minimamente segura, o diagnóstico para a altura da ocorrência, tanto mais que foi admitido, pela generalidade, que a existência do processo e o risco de cumprir uma pena acarretará necessariamente alterações comportamentais relevantes.
Refira-se que a testemunha AB... (Enfermeiro - Obstetrícia, aposentado), que disse conhecer a arguida B... apenas “de vista”, nada de relevante trouxe para as questões em apreciação, limitando-se a explanar os seus conhecimentos sobre as questões conexionadas com o parto, designadamente em termos de “depressões pós-parto”, mas em termos genéricos, sem qualquer ligação ao caso concreto, que não acompanhou (nem sabia do ocorrido que originou este processo).
Além de as testemunhas referidas em primeiro lugar (indicadas pelo Ministério Público) terem aludido a alguns aspetos relativos a factos já assentes nos autos (e por isso agora sem relevo probatório), pois que foram igualmente ouvidas na anterior audiência, de tudo se conclui que a arguida B... não quis ter aquele filho (o que resulta dos factos já assentes e nem é questionado pelo STJ - cfr. fls. 925), sendo que da conjugação da prova agora produzida, acima elencada, não foi possível perceber qual o motivo porque ela praticou o crime de homicídio (nem a mesma o quis referir, pois que optou por não prestar declarações em audiência).
Do mesmo passo, com tais elementos, quer o resultado da prova pericial, quer da testemunhal e restante produzida, devidamente analisados e conjugados, não se logrou reconstituir as concretas circunstâncias em que a arguida B... actuou, designadamente que a mesma apresentasse algum distúrbio no seu estado emocional e psíquico ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, além de que não se apurou a existência de factores, endógenos ou exógenos, que a possam ter condicionado à prática desses factos.
E o facto de não ter sido encontrada qualquer explicação, minimamente plausível e segura, para o ocorrido não nos permite considerar como justificação uma qualquer perturbação do foro psicológico / psiquiátrico, não logrando, assim, obter-se o esclarecimento das questões apontadas pelo STJ (que, por isso, integraram os factos não provados).
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Encontrando-se assentes os factos, sem acrescento de outros (na sequência do reenvio), importa naturalmente reafirmar, transcrevendo-a, a fundamentação de direito constante do acórdão do anterior Tribunal Colectivo, pois que a eventual alteração / revogação do decidido não compete a este novo Tribunal Colectivo, mas eventualmente ao Tribunal Superior, sem sede de recurso, incluindo o que agora foi apreciado (art. 399.º do CPP). Ademais, tal enquadramento jurídico já foi submetido à apreciação do Tribunal de Relação e do STJ (que não o alteraram).
Tal fundamentação é do seguinte teor:
B) De direito:
A arguida responde pela prática, em autoria material, na forma consumada, de:
a) um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c) e j), do Código Penal; e
b) um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (ao qual pertencem todos os artigos sem indicação de origem).
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Autoria:
O artigo 26.º do Código Penal, no que respeita à autoria, estabelece que «é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo da execução
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A) - Crime de homicídio:
Estabelece o artigo 131.º do Código Penal: «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito e dezasseis anos
«Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos» (art.º 132.º, n.º 1).
O n.º 2 elenca as circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, salientando-se, para o que agora importa, as alíneas a), c) e j):
a) «o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima
c) «o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez
j) «o agente agir com frieza de animo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas
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Tendo em conta os factos provados, mostram-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos da prática do crime de homicídio.
Na verdade, como resulta dos factos provados, a arguida, agindo de forma livre, voluntária e consciente, colocou o seu filho dentro de sacos de plástico, que fechou, provocando-lhe a morte por asfixia.
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A discussão da causa «tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia» como determina o artigo 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se analisar a possibilidade de preenchimento dos diversos tipos legais de crime envolvendo a morte em situações próximas, desde o imputado homicídio qualificado até ao infanticídio passando pelo homicídio privilegiado.
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A acusação imputa à arguida a prática do crime de homicídio qualificado.
Como é pacificamente entendido pela nossa jurisprudência [Acs. STJ de 01.03.1990, BMJ 395.º - 218; de 23.07.86, BMJ 359.º - 395; de 06-06-90, CJ Ano XV, III – 19, e de 04-07-96, CJ Ano IV, II - 222] e doutrina (vd., nomeadamente Teresa Serra, “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Coimbra, 1990 e Comentário Conimbricense), a nossa legislação penal em sede de qualificação ou agravação do crime de homicídio, acolheu a teoria dos exemplos padrão, ou seja, consagra uma série de circunstâncias que normalmente são indiciadoras da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, que não funcionam automaticamente, mas apenas se, no caso concreto, forem susceptíveis de revelar essa censurabilidade ou perversidade.
Importa, assim, analisar, em cada caso concreto, as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que ocorreu o crime, os motivos do agente, a sua vida pregressa e, todo um enumerado de referências que permitam explicar, perante o direito, se o agente actuou de forma a merecer maior censura e reprovação, ou se, ao invés, não foi além de um «vulgar criminoso de ocasião», assumindo um comportamento de delinquente frio, calculista, sem valores e sem respeito pela vida humana da vítima.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos, no homicídio qualificado, há, pois, como que um plus em relação ao normal que justifica, por isso, uma reprovação acrescida, um castigo aumentado (Código Penal de 1982, Vol. II, 1986, pág. 24).
Para a Sr.ª Dr.ª Teresa Serra «existe especial censurabilidade quando as circunstâncias em que a morte é causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores e existe especial perversidade quanto existe uma determinada atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» (ob. cit. pág. 63).
A qualificação do homicídio do artigo 132.º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, págs. 27-28).
O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28).
Como se salienta em anotação ao Acórdão do STJ de 10.12.97 (BMJ, 472.º - 152) as circunstâncias previstas no artigo 132.º são basicamente de duas espécies: circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente; nas primeiras é notória a existência do maior desvalor da acção para a ordem jurídica, quer o emprego de tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima, quer a utilização de veneno ou a dos outros meios previstos, correspondem a acções que encerram uma grande perigosidade objectiva, porque a sua probabilidade de destruir a vida é altíssima e difícil de combater ou porque associam à lesão da vida a lesão de outros bens jurídicos da vítima ou de terceiros; nas segundas, embora, aparentemente, só o interior do agente esteja em causa, também é verdade que elas não se referem a aspectos da personalidade do agente como características definidoras de um tipo de relação do agente com a sociedade, mas só à implicação da pessoa do agente na acção, caracterizada na própria espécie de acção.
E, assim, nesta segunda espécie de circunstâncias, embora o «íntimo do agente» surja em primeiro plano como objecto de apreciação, também o desvalor por elas indiciado é directamente desvalor da acção.
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No caso em apreço, a imputada qualificação do homicídio assenta nas circunstâncias previstas nas alíneas a), c) e j) do nº 2 do artº 132º.
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Nesta abordagem seguiremos o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, para uma situação relativamente semelhante, decidida no acórdão de 09.09.2010, relatado pelo Senhor Conselheiro Souto de Moura, em recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.03.2010, relatado pela Senhora Desembargadora Maria de Fátima Mata-Mouros.
“É sabido que, por um lado, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas (se bem que valorativamente equivalentes), as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, deverá ter-se logo por qualificado.
Interessa sim que ocorra uma “imagem global do facto agravada” (Figueiredo Dias ob. cit. pág. 26).
Como resulta da recensão feita no acórdão proferido no Proc. 1224/08, desta 5.ª Secção (Rel. Cons. Simas Santos), a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se pronunciado, uniformemente, neste sentido [cf. Acórdãos de 13.02.97 (Proc. 986/96), de 21.05.97 (Proc. 188/97), de 10.12.97 (Proc. 1207/97), de 18.02.98 (Proc. 1086/97), de 03.06.98 (Proc. 301/98), de 08.07.98 (Proc. 646/98), entre muitos outros].
Assim sendo, o modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave.
Mas mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido dos outros em relação aos quais se possa dizer que encontra eco «a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir» (a expressão é de Curado Neves, in «Indícios de culpa ou tipos de ilícitos?» - «Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos», autores vários, pág. 255).
Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido.
E aqui chegamos ao ponto da confluência de efeitos contrários agravativo e atenuativo.
A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu «com efeito de indício» (expressão de Teresa Serra, in «Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena», pág. 126), interessará sempre ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como «contraprova», eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ou seja, importa verificar sempre a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplos padrão (ou circunstâncias equivalentes).»
No que respeita à relação mãe - filho, que integraria a circunstância da alínea a) do n.º 2 do artigo 132º, também aqui interessa ter em conta que esse facto não funciona automaticamente.
O preceito parte do princípio de que devem existir contramotivações éticas assentes no parentesco, que refreiam o impulso para o crime, e que se são vencidas revelam uma especial intensidade dolosa. Daí a maior censura. Só que, situações haverá, em que se aceita razoavelmente que essas contramotivações éticas tenham pouca força, devendo por isso a censura acrescida ser excluída.
A arguida não teve que vencer a resistência oposta por laços afectivos que se estabelecessem, entre si e a pessoa do filho, ambos ligados por parentesco, porque logo à partida recusou esse parentesco. Ao pôr de lado assumir a maternidade, quando projectou desfazer-se do filho antes do nascimento, deve ficar prejudicada uma especial censura do homicídio, que radicasse na relação mãe - filho, porque essa relação não chegou a existir em termos psico-afectivos; nunca passou de um nível biológico.
Poderá censurar-se aquela atitude inicial, do ponto de vista ético (ético, apenas, porque compatível com saídas juridicamente aceites), só que esta última censura não tem a ver com a agravante prevista na alínea a) em apreço.
Em relação à circunstância da alínea c): «praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade», evidentemente que também ela não pode funcionar automaticamente.
Pretende-se com esta circunstância proteger o desamparo da vítima, a sua especial vulnerabilidade, que assim facilita a tarefa do agente.
Ora, no caso em apreço, a idade não foi um factor facilitador do homicídio, porque foi um factor intrínseco à principal motivação da arguida. Na medida em que matou o filho logo que este nasceu, não será de lhe dirigir uma maior censura, por ter tirado partido da fragilidade do recém-nascido.
Seja como for, ainda haverá que ter em conta o estado psicológico da arguida quando asfixiou o recém-nascido. A explicação para o comportamento da arguida não ficou a dever-se à perturbação causada pelo parto (nessa hipótese dificilmente se poderia deixar de enquadrar a conduta no infanticídio), antes terá radicado numa atitude de rejeição da maternidade.
Nesta conformidade, parece-nos de afastar a possibilidade de se verificarem as qualificativas das alíneas a) e c) do n.º 2, do artigo 132.º.
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Homicídio Qualificado:
A alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º assenta na circunstância de a arguida agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
A «imagem global do facto agravada» de que fala o Senhor Professor Figueiredo Dias pode resultar da frieza de ânimo posta na actuação em apreço.
«A ideia fundamental [da al. i), agora alínea j) do n.º 2 do art. 132.º do CP] é a da premeditação, pressupondo uma reflexão da parte do agente (…). E, quando a premeditação se materializa na chamada «frieza de ânimo», esta traduzir-se-á «numa actuação calculada, em que é de modo frio que o agente toma a sua deliberação de matar e firma sua vontade (…)», situação em que «no fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano e ponderou toda a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» - Fernando Silva, Direito Penal, Crimes contra as Pessoas, Quid Iuris, 2005, pág. 73» (cfr. Ac. do STJ, de 12-05-2005, Proc. n.º 1439/05 – 5.ª).
O Senhor Conselheiro Raul Borges (Ac. STJ, de 17.04.2013, Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1) relembra que a frieza de ânimo é um dos possíveis entendimentos da premeditação, uma das suas manifestações; a premeditação pressupõe uma reflexão do agente, incluindo ponderação sobre os meios empregados, um plano e decurso de tempo, em que persista a intenção de matar.
Recorda os acórdãos de 21-05-1997, Processo n.º 107/97, SASTJ, n.º 11, pág. 82, e de 15-04-1998, BMJ n.º 476, pág. 238, afinando a frieza de ânimo como um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. Para tanto, há que provar que um agente decidiu definitivamente tirar a vida à vítima, antes dos factos, aguardando apenas o momento propício para o fazer.
Reafirma: na expressão do acórdão de 30-09-1999, Processo n.º 36/99 - 3.ª Secção, SASTJ, n.º 33, pág. 94 (citado no acórdão de 30-10-2003, Proc. 3281/03 - 5.ª), a frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
Realça, no acórdão de 30-10-2003, Processo n.º 3252/03 - 5.ª, in CJSTJ 2003, Tomo III, pág. 208 (citando-se o já referido acórdão de 30-09-1999 e ainda os constantes do BMJ 358.º, pág. 260, e BMJ 476.º, pág. 238, CJ 1990, Tomo III, pág. 19, RC, CJ 1983, Tomo IV, pág. 68, e RE, BMJ 352.º, pág. 450, e por sua vez citado no acórdão de 21-06-2006, Proc. 1913/06 - 3.ª), afirma-se que «actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.»
Lembra, do mesmo modo, o acórdão de 20-12-2005, proferido no Processo n.º 2887/05 - 5.ª, publicado na CJSTJ 2005, Tomo III, pág. 238, onde pode ler-se: a frieza de ânimo significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir, o agente, a resolução de matar. Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (a este propósito, cfr. Acórdão de 30-11-2011, proferido no Processo n.º 238/10.2JACBR.S1 -3.ª, onde se expõem posições de doutrina e vária jurisprudência sobre o tema).
Salienta: como referimos no acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4730/07, a acção deve sobrevir a uma ideia, a uma tomada de posição pensada, com um mínimo de reflexão antecipada, meditada, amadurecida, a algo que segue a necessário planeamento, a uma previsão e predisposição no sentido de levar por diante a intenção homicida.
Igualmente o Senhor Conselheiro Pires da Graça (Ac. STJ, de 21-03-2013, Proc. 321/11.7PBSCR.L1.S1) convoca a frieza de ânimo como uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na «firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa» (cfr. Ac. de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 e jurisprudência ali citada, e Ac. de 19-06-2008, Proc. n.º 2043/08 - 5.ª Secção).
Em acórdão de 13-02-2013 (Proc. 707/10.4PCRGR.L1.S1) o Senhor Conselheiro Pires da Graça, apura outro dos sentidos: agir com frieza de ânimo significa actuar com serenidade, com o espírito límpido de emoções; vislumbrando um «modo de execução do facto, tenaz e inexorável, está bem longe do que se pudesse avaliar como um acto tresloucado e decorrente de um súbito impulso violento».
No caso em apreço, a arguida, desde cedo, procurou alguma reserva quanto ao seu estado e não se mostrou especialmente cuidadosa no que respeita ao acompanhamento médico, continuando sempre a sustentar um período de gestação diferente do que a ecografia permitia calcular; na consulta de 28-03-2011, a arguida não exibiu a referida ecografia nem as análises que disse ter feito, faltou à consulta marcada para o dia 02-05-2011, acabando por decidir desfazer-se do filho.
No dia 11-05-2011, a arguida agiu, em execução da sua anterior decisão de matar o filho, de modo frio (logo após o nascimento, asfixiou-o dentro de um saco de plástico que encontrou na casa de banho), cauteloso (sem fazer barulho, ruídos ou apresentar queixumes), deliberado (sem qualquer piedade pela situação de desamparo do bebé e sem se deixar motivar pelo receio das consequências da sua conduta) e calmo (dizendo às colegas que não tinha nada, que eram apenas cólicas), o que demonstra a persistência da resolução já anteriormente assumida.
Na verdade, a conduta da arguida traduz sangue frio, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução: conseguiu esconder o nascimento, suportou as dores e hemorragia, matou mesmo com pessoas próximo e pediu a carteira para guardar os sacos de plástico onde estava o corpo do filho, levando-o de imediato para a bagageira do seu carro.
Todo o comportamento da arguida denota uma tomada de posição pensada, com um mínimo de reflexão antecipada, amadurecida, uma previsão e predisposição no sentido de levar por diante a intenção de se ver livre do filho que trazia no ventre, o que corresponde a um comportamento revelador de firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa.
A actuação da arguida espelha o resumo essencial desenhado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça: «actuar com serenidade, com o espírito límpido de emoções» num «modo de execução do facto tenaz e inexorável».
Nesta conformidade, consideramos que as circunstâncias descritas na matéria de facto provada, revelam especial censurabilidade e perversidade na actuação criminosa da arguida, que assim, praticou, o crime de homicídio qualificado, por se verificarem todos os elementos objectivos e subjectivos dessa ilicitude criminal típica e punível, tendo agido com frieza de ânimo.
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A arguida na defesa que apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal, considera que ocorre alteração substancial dos factos descritos na acusação no que respeita ao facto de a arguida ter formulado o propósito de matar o filho na primeira semana de Maio de 2011 e ao facto de faltar à consulta marcada para 02-05 e nada dizer, pelo que não aceita que os mesmos sejam tomados em conta no processo.
A acusação já imputava à arguida o preenchimento da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º e também já referia que a decisão havia sido tomada anteriormente; além disso, eram invocados e feitas afirmações respeitantes à frieza de ânimo concretizada especificamente no momento da execução do crime.
Salvo o devido respeito por diferente entendimento, não se verifica qualquer alteração substancial dos factos, pois o que há de diferente é uma mera concretização sendo que, mesmo sem tal, sempre se mostrava preenchido o exemplo padrão estabelecido naquela alínea.
Na verdade, tal alteração não pode ser qualificada como «substancial» pois não tem por efeito a imputação à arguida «de um crime diverso» nem «a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», ou seja fica excluída da definição plasmada na alínea f), do n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Infanticídio:
Apesar de já se mostrar definido o entendimento do tribunal colectivo, impõe-se justificar porque foi afastada a qualificação dos factos quanto a possível infanticídio.
Definindo o crime de infanticídio, o artigo 136.º estabelece: a mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora é punida com pena de prisão de um a cinco anos.
A arguida matou o filho logo após o parto.
Assim sendo, impõe-se analisar a possibilidade de se tratar de infanticídio (seguiremos os Acórdãos do TRP de 23-10-2013 e TRG de 19-11-2007, disponíveis em www.dgsi.pt).
Neste crime existe uma limitação temporal na medida em que a mãe tem de matar o filho durante ou logo após o parto (ainda que se possa discutir a delimitação temporal do «logo após o parto» [Augusto Silva Dias, «Crimes contra a vida e a integridade física», AAFDL, 2005, pág. 41, adianta que o momento «logo após o parto» «cessará logo que cessem os efeitos mais intensos e psicologicamente inibitórios da influencia perturbadora puerperal»); e, para além disso, a conduta de matar o filho tem de ocorrer estando a mãe ainda sob a influência perturbadora do parto (estado de perturbação que pode ser endógeno ou exógeno [assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 369], mas de qualquer maneira sempre relacionado com o parto).
Como diz o Senhor Professor Figueiredo Dias o «fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é pois, no nosso direito positivo actual, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto. (…) a influência perturbadora do parto é um elemento autónomo da tipicidade e cuja prova, por isso, se impõe (…)» [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora Limitada, 1999, págs. 101 a 103].
O artigo 136.º consagra um tipo de culpa, «a mãe encontra-se sob um estado perturbador impar, que apenas uma situação com a violência de um parto pode provocar.»
Os Senhores Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos comentam este artigo 136.º: «No direito português a infracção é beneficiada pela lei sob a condição de concorrência de duas ordens de circunstâncias, a saber: - uma de carácter temporal - o momento da acção (conduta que teve lugar durante ou logo após o parto); - outra de tipo pessoal - o condicionamento da acção (conduta que teve lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal da mãe). A primeira condição exige que o crime tenha sido consumado durante ou logo após o parto, abrangendo, portanto, a criança que é morta enquanto decorre o parto (nascente) e a que é morta logo que acaba de nascer (neonata). (…) E quando é que se deve considerar que se entrou no período logo após o parto?
Parece que esse momento surge, antes mais, quando se derem por terminados os respectivos trabalhos, ou seja, a partir do momento imediatamente a seguir à expulsão da placenta e ao corte do cordão umbilical.
Para os fins da lei, contudo, cuida-se ser de alargar esse momento, de forma a abranger também todo o período que se segue, variável e indeterminado, coberto pelo impacto puerperal.
É que, enquanto a parturiente não haja ingressado no estado de acalmia e sossego que se segue ao trabalho de parto, não se pode assegurar que a mesma esteja já senhora de si própria e capaz de responder pelo seu instinto maternal, portanto de colocar barreiras a ímpetos incontrolados da expulsão fetal.
A outra circunstância de que depende a aplicação da censura indulgente prevista no artigo é o condicionalismo puerperal, perturbador da conduta da mãe.
O estado puerperal é o estado psicossomático inerente à mulher, imediatamente antes, durante e logo após o parto, susceptível de alterar a capacidade de entendimento ou de auto-inibição.
Se a perturbação psicológica da mãe resultar não do processo do parto, mas de circunstâncias alheias (vg. medo do futuro, ódio ao pai ou ao filho, etc.), a conduta será censurada à luz do artigo 133.º, eventualmente com alguma atenuação.
Em suma, deve ter-se presente que só se acham compreendidas neste artigo as perturbações psicossomáticas decorrentes do parto, que só a mulher pode viver» (Código Penal Anotado, Ed. 3.ª, 2000, 2.º Volume, pág. 173).
Analisando o caso concreto, é manifesto que o comportamento da arguida B... não preenche o crime de infanticídio, porquanto não se provou que, ao matar o filho, logo a seguir ao parto, tenha agido sob a influência perturbadora do parto, pois não ficou demonstrado que a arguida matou o filho em resultado das dores e perturbação ou da influência do parto, nem de o mesmo ter ocorrido naquelas circunstâncias.
Antes pelo contrário, como já demonstrado, a arguida agiu com frieza de ânimo.
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Homicídio privilegiado:
O artigo 133.º estabelece: «quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.»
Afastada a verificação do crime de infanticídio do artigo 136.º, ainda se deverá ponderar a possibilidade de a arguida ter cometido o crime de homicídio privilegiado deste artigo 133.º.
Diz-nos o Senhor Professor Figueiredo Dias que a «compreensível emoção violenta», ali prevista como factor atenuativo «é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível» (in loc. cit., pág. 50).
A atenuação reclama a compreensibilidade da emoção, e esta compreensibilidade não pode ignorar a dimensão ética da dita emoção. Se o estado psicológico do agente como dado de facto, só por si, fosse suficiente, não teria sido necessário acrescentar o requisito da compreensibilidade. Esta, não releva, pois, apenas, como explicação do encadeamento causal do comportamento, porque o que está aqui em causa é a sua força atenuativa, ao nível da culpa, é dizer, da censura ética que o agente merece.
O outro elemento de atenuação que o preceito ora em apreço contém, e que eventualmente poderia aplicar-se ao caso, respeita ao desespero. E, aqui, a mesma condição se nos afigura de exigir. Dificilmente o desespero poderá diminuir a censura dirigida ao agente, quando ninguém mais, para além do homicida, contribuiu para essa situação de desespero ou, sobretudo, quando ela radica em procedimentos do agente, antecedentes, que sejam, eles mesmos, censuráveis.
O Mestre Amadeu Ferreira ensina, a propósito desta circunstância («Homicídio Privilegiado», pág. 69): «Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança. (…)
II. A lei, mais uma vez, não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. A redacção do artigo parece ligar tal facto aos motivos que impeliram o agente a agir. Será assim? Como entender tais motivos? Alguns exemplos poderão ajudar a responder, tomando vários tipos de casos:
III. Casos de suicídios alargados: a mãe que tenta matar-se com os filhos para lhes poupar sofrimentos ulteriores., e que sobrevive (…).
IV. Casos de humilhação prolongada (…)»
Para este Autor, a autonomia da circunstância «desespero», como factor atenuativo face à «compreensível emoção violenta», radica na pressão de certo tipo de motivos, pressão essa que assume um carácter duradouro. E diz a terminar este ponto: «Em conclusão: há casos de desespero que cabem na 1.ª parte do artigo 133.º e em que o fundamento da atenuação é exclusivamente de culpa; há outros casos em que apenas o valor dos motivos do agente, pela pressão que sobre este exercem no sentido do crime, pode fundamentar a atenuação sensível da culpa. É pois um fundamento de atenuação idêntico ao dos casos de homicídio por compaixão» (in loc. cit., pág. 71).
Para Teresa Quintela de Brito, «o desespero, capaz de dominar o agente e de o arrastar ao homicídio, pode ter quaisquer causas, nem todas de relevante valor moral ou social. Todavia o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função (a) da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientem o agente e (b) da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.» (in «O homicídio privilegiado: algumas notas» - «Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos», págs. 340 e 341).
Ora, no caso em apreço, para além da angústia e do desespero própria da ocorrência do parto naquelas circunstâncias, nada mais aponta no sentido de qualquer atenuação da culpa suficiente para o privilegiamento, antes pelo contrário como ficou demonstrado.
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B) - Crime de profanação de cadáver:
Nos termos do artigo 254.º, n.º 1, comete este crime quem:
a) sem autorização de quem de direito, subtrair, destruir ou ocultar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida;
b) profanar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida, praticando actos ofensivos do respeito devido aos mortos; ou
c) profanar lugar onde repousa pessoa falecida ou monumento aí erigido em sua memória, praticando actos ofensivos do respeito devido aos mortos;
é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Este tipo legal de crime visa a protecção dos sentimentos de «piedade» para com os defuntos, por parte da colectividade; prescinde de qualquer fé religiosa, referindo-se antes a um sentimento moral colectivo (seguiremos o ensinamento do Sr. Prof. Damião da Cunha no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo II, pág. 653 e segs.).
O tipo objectivo de ilícito previsto na alínea a) visa garantir o destino normal do cadáver.
Uma vez que se visa proteger o sentimento de piedade, enquanto sentimento social, deverá também proteger-se o cadáver do nado-morto, dado o facto de ele, em regra, estar submetido ao mesmo tipo de procedimento de uma qualquer outra pessoa falecida.
No caso desta alínea a) a acção típica consiste em subtrair, destruir ou ocultar o cadáver sem autorização de quem de direito, impedindo, portanto, que se dê a este o destino normal em termos de manifestação daqueles sentimentos.
São aqueles a quem compete o direito-dever de cuidar do corpo e garantir a realização das cerimónias fúnebres; «quem de direito» serão as pessoas ou instituições às quais, de acordo com as regras sociais, cabe a «guarda» dos restos da pessoa com o fim de garantir as cerimónias fúnebres ou a conservação do cadáver.
A este respeito há que ter presentes as competências das autoridades policiais, sanitárias e judiciárias atinentes à remoção e sepultura de restos mortais de pessoas, falecidas fora da habitação ou em que haja suspeita de crime, começando desde logo pelo registo / declaração do óbito até à decisão acerca da realização ou não de autópsia.
Leal-Henriques e Simas Santos, comentando o artigo 226.º da versão inicial do Código Penal, definem o ocultar como «fazer desaparecer, mas sem que haja destruição» dando como exemplo a «mãe que oculta o cadáver do filho, escondendo-o ou sepultando-o no quintal» (O Código Penal de 1982, 1986, Vol. 3, pág.137).
A arguida praticou este crime ao ocultar o cadáver do seu filho na bagageira do seu carro fazendo-o desaparecer sem conhecimento nem autorização das autoridades competentes para decidir acerca do destino normal do mesmo, nomeadamente quanto à verificação da morte, certificação do óbito ou realização de autópsia, sabendo que tal era criminalmente punido.
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A arguida na defesa que apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal, sustenta que existe alteração substancial dos factos descritos na acusação no que respeita ao segmento do facto que ficou plasmado sob o número 33 «sem conhecimento nem consentimento das autoridades competentes para a verificação da morte, a certificação do óbito e realização de autópsia».
A acusação já imputava à arguida o preenchimento da alínea a) do artigo 254.º.
Ao nível da jurisprudência não foi encontrada qualquer exigência a esse respeito, pois tal decorre da especificidade da interpretação da norma para outras situações e não directamente para a situação em apreço neste caso.
Por isso, não se verifica qualquer alteração substancial dos factos pois o que há de diferente é uma mera concretização, sendo que, mesmo sem tal, sempre se mostravam preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime previsto naquela alínea.
Na verdade, tal alteração não pode ser qualificada como «substancial» pois não tem por efeito a imputação à arguida «de um crime diverso» nem «a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», ou seja, também aqui, fica excluída da definição plasmada na alínea f), do n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Também no que respeita à escolha e graduação da pena, julgamos que este Tribunal Colectivo, na ausência de novos factos apurados (concretamente as questões que agora estiveram em apreciação), não tem competência para sindicar a decisão antes proferida, o que apenas competirá aos Tribunais de recurso, sendo de evidenciar os limites impostos pela proibição da reformatio in pejus (art. 409.º, n.º 1, do CPP).
Assim, mantêm-se os fundamentos e o decidido no anterior acórdão do Tribunal Colectivo, que são os seguintes:
O crime de profanação de cadáver é punido com pena compósita alternativa.
Segundo o critério de escolha da pena estabelecido nos artigos 40.º e 70.º, não pode ser dada preferência à pena de multa porquanto a mesma não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pois não assegura a protecção dos bens jurídicos em causa e a reintegração do agente na sociedade.
São as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, que justificam a intervenção do sistema penal e conferem fundamento e sentido às suas reacções específicas.
A prevenção geral, enquanto prevenção positiva ou de integração, i. e. «como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida», assume o primeiro lugar como finalidade da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, págs. 72-73).
No entanto, o equilíbrio desejável entre as finalidades relativas à prevenção geral e à prevenção especial não obsta a que, perante as especificidades do caso concreto, uma dessas finalidades haja de prevalecer sobre a outra.
Neste caso, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, não se pode afirmar que a pena de multa seja suficiente para assegurar as expectativas comunitárias na validade e vigência da norma especialmente face à motivação da ocultação do corpo de um bebé recém-nascido, pela própria mãe, para depois se desfazer dele.
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Inexistindo causa de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade, há que concretizar a pena.
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Tendo presente aquela moldura penal, os factos provados e os critérios do artigo 71.º, há que apurar a medida concreta da pena em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (n.º 1).
Há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele; critério que o legislador, exemplificativamente, concretiza nas diversas alíneas do n.º 2.
Como salienta o Senhor Conselheiro Santos Cabral (Acórdão STJ de 15-02-2010, in www.dgsi.pt, cujo ensinamento seguiremos), ao evidenciar o pensamento já expresso em anteriores decisões do Supremo Tribunal de Justiça, e tomando como referência Jeschek, o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas, pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação.
Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena.
Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial. Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Kohlrausch sobre a prevenção especial «Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada à lei».
Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do círculo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).
Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade, as normas deveriam «ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas» enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.
A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma.
A restrição do princípio da culpa à função de «meio para a limitação da pena» é o ponto central na interpretação deste conceito transmitida por Claus Roxin. Por tal forma pretende o mesmo autor fazer a teoria jurídico-penal da culpa «independente do livre arbítrio» por seu turno, tal conceito de culpa, restringido ao papel de margem superior da pena, é o fundamento da nova categoria sistemática de «responsabilidade», na qual se fundiu a culpa do autor com a necessidade preventiva da pena.
A isto pode-se objectar, reafirmando o ensinamento de Jeschek, que a culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também toda a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.
Só apelando à profundidade moral da pessoa se pode esperar tanto a ressocialização do condenado como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral. A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa Hans Heinrich Jescheck, «Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003)».
Aprofundando ainda o exposto, mas agora em sede de violação do princípio da proporcionalidade, torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena. Ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado, no exercício do seu direito de punir e esta sanção poderá importar uma limitação da sua liberdade.
Uma das principais ideias presente no princípio da proporcionalidade é justamente, invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo, isto é, invadir na medida do estritamente necessário à finalidade da pena que se aplica porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido.
É certo que a determinação da concreta medida definitiva da pena tem sempre presente pontos de vista preventivos. Dado que o parâmetro da culpa representa um estádio na determinação da medida definitiva da pena a sua dimensão final fixa-se, também, de acordo com critérios preventivos dentro dos limites impostos pela culpa.
Também neste contexto a proibição de excesso tem uma importância determinante. Segundo o mesmo importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autor. É justa aquela medida que se limita estritamente á obtenção da finalidade imprescindível. Como refere Liszt: «A pena necessária, neste sentido, é também a pena justa».
Como salienta Anabela Rodrigues a finalidade de prevenção geral que aqui está em causa é limitada pela referência ao bem jurídico e sua importância. Com o que o conteúdo da prevenção geral que aqui está em causa começa a ganhar contornos: a gravidade do facto cometido deve integrar esse conteúdo, servindo, além do mais, de limite à prevenção (in A determinação da medida da pena privativa de liberdade, pág. 371).
Adianta a mesma Autora que o que se diz, pois, é que, exactamente do ponto de vista de um controlo racional preventivo da criminalidade que se justifique a partir da necessidade social da intervenção penal jurídico-constitucionalmente consagrada (artigo 18.° - 2), é possível assinalar à prevenção geral um conteúdo que a impeça de excessos. Via a exigir que o efeito preventivo, a obter-se (apenas) mediante a confirmação da validade da norma jurídica violada, se realize em consonância com a função de protecção de bens jurídicos que cabe ao direito penal assegurar. Só assim, e ainda na medida em que esta função apenas se legitima se e enquanto não há outros meios para possibilitar a convivência pacifica dos homens em sociedade, a realização daquela finalidade de prevenção postulará a sua limitação pelo princípio da proporcionalidade. Princípio que não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida. O que significa que, com isto, o efeito de prevenção geral que se quer obter - protecção de bens jurídicos -, radicado na necessidade, mediante o limite que constitui a própria referência ao bem jurídico, postula um limite à sua própria realização - a proporcionalidade -, com que nunca correrá o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.
Na verdade, e atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas à transcendência social - mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção: Norbert Barranco «El princípio de proporcionalidad», pág 211.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo a incriminação a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - Parte I, Título II, Direitos, liberdades e garantias, Capítulo I, Direitos, liberdades e garantias pessoais - artigo 24.º da Constituição da República - estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, Volume I, págs. 446/7, «O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto».
O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei, tratando-se essencialmente de um direito a não ser privado da vida, um direito a não ser morto - neste sentido, Vera Lúcia Raposo, O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo, in Jurisprudência Constitucional, n.º 14, pág. 59 e segs.
A necessidade de proporcionalidade constitui também uma exigência do Estado democrático: um direito penal democrático deve ajustar a gravidade das penas á transcendência que para a sociedade têm os factos a que se ligam. Exigir uma proporção entre delitos e penas não é, com efeito, mais que pedir que a dureza da pena não exceda a gravidade que para a sociedade possui o facto punido.
Em termos redutores dir-se-á que a proporcionalidade entre a medida da pena e o crime, a qual implica uma retribuição pelo mal praticado pelo arguido, é uma exigência da comunidade que só assim pode, e deve, aceitar a justiça encontrada no caso concreto.
Em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa).
Não obstante, estes dois factores básicos para a individualização da pena não se desenvolvem paralelamente sem relação alguma. A culpa jurídico-penal afere-se, também, em função da ilicitude; na sua globalidade aquela encontra-se substancialmente determinada pelo conteúdo da ilicitude do crime a que se refere a culpa.
A ilicitude e a culpa são, assim, conceitos graduáveis entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a intensidade do dano, a forma de executar o facto a perturbação da paz jurídica contribuem para dar forma ao grau de ilicitude, enquanto que a desconsideração, a situação de necessidade, a tentação e as paixões que diminuem as faculdade de compreensão e controle, a juventude, os transtornos psíquicos ou erro devem ser tomados em conta para graduar a culpa.
A dimensão da lesão jurídica mede-se desde logo pela magnitude e qualidade do dano causado, devendo atender-se, em sentido atenuativo ou agravativo, tanto as consequências materiais do crime como as psíquicas. Importa, ainda, considerar o grau de colocação em perigo do bem jurídico protegido quer na tentativa quer nos crimes de perigo.
A medida da violação jurídica depende, também, da forma de execução do crime. A vontade, ou o empenho empregues na prática do crime são, também, um aspecto subjectivo de execução do facto que contribui para a individualização. A tenacidade e a debilidade da vontade constituem valores angulares do significado ambivalente da vontade que pode ser completamente oposto para o conteúdo da ilicitude e para a prevenção especial. (Conf. Jeschek, «Tratado de Direito Penal», ed. Espanhola, pág. 780).
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Face a esta explanação de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva à individualização da pena no caso concreto impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares da actuação em apreço.
A determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor da arguida ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:
- grau de ilicitude do facto: elevadíssimo - no homicídio está em causa o bem primordial e inviolável que é a vida humana de um filho que a própria arguida criara em seu ventre; na ocultação de cadáver igualmente está em causa esconder o filho até um ponto de putrefacção;
- modo de execução do crime: asfixia - silencioso e sem possibilidade de defesa pois a vítima acabara de nascer; e esconder o corpo do filho dentro do próprio carro e mandá-lo seguir para a sua garagem;
- gravidade das consequências: violação total do bem jurídico em causa pois o crime atingiu a consumação no homicídio; o cadáver do filho ficou escondido na mala do carro durante dois dias;
- grau de violação dos deveres impostos ao agente: em quaisquer circunstâncias e civilizações é dever da mãe proteger o filho, especialmente o recém nascido; e, também, que em caso de falecimento seja o garante do respeito que lhe é devido;
- intensidade do dolo: grau mais elevado - dolo directo - artigo 14.º, n.º 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar
- sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo completo pela vida do bebé e pelo respeito devido ao filho morto;
- fins ou motivos que o determinaram: não se apurou a motivação da arguida quanto à morte sendo que a ocultação do cadáver tinha como finalidade desfazer-se do corpo para encobrir o nascimento e subsequente homicídio;
- condições pessoais do agente e situação económica: a arguida, nascida em 1970, é professora, do primeiro ciclo, ensina crianças, tem dois filhos menores, uma situação familiar aparentemente estável; economicamente a situação mostra-se acima da média com residência em vivenda própria, com ambos os membros do casal apresentando ocupação laboral e remunerações acima da média;
- conduta anterior aos factos: ausência de antecedentes criminais e nada de negativo a apontar, bem como o facto de ser considerada uma boa mãe e não revelar problemas de saúde;
- conduta posterior aos factos: falta de arrependimento e a depressão que surgiu, especialmente depois de ter sido constituída arguida.
Definindo, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa), o tribunal entende que devem ser fixadas as seguintes penas:
-» crime de homicídio qualificado (moldura penal de 12 a 25 anos de prisão): treze anos; e
-» crime de profanação de cadáver (moldura penal de um mês a 2 anos de prisão): um ano.
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A pena de prisão imposta pela prática do crime de profanação de cadáver -independentemente da sua inserção no cúmulo jurídico - deve ser considerada para cumprimento efectivo pois não se vislumbram quaisquer possibilidades de a mesma ser substituída por multa, suspensa na execução ou beneficiar de um modo mais favorável, atendendo às necessidades de prevenção geral e de prevenção especial da prática de futuros crimes que a situação concreta deste caso exige (arts. 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 48.º e 50.º).
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Cúmulo jurídico:
A arguida B... vai condenada pela prática de dois crimes.
Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (n.º 2).
Nesta conformidade, para a determinação da moldura do cúmulo jurídico, o limite máximo da pena de prisão é de 14 anos («soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes») sendo o limite mínimo de 13 anos («a mais elevada das penas concretamente aplicadas»).
O referido critério para a individualização da pena única determina que sejam considerados «em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
É pacífico o entendimento de que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer do Senhor Professor Figueiredo Dias, «a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).» - (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime», pág. 291).
A opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu por certo traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artigo 40.º, em matéria de fins das penas.
Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.
Como expressa o Senhor Conselheiro Carmona da Mota (citado no acórdão STJ de 09-09-2010 pelo Senhor Conselheiro Souto de Moura, que temos seguido), a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito «expansivo» sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito «repulsivo» que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas.
Ora, este efeito «repulsivo» prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos já aludidos critérios da «imagem global do ilícito» e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.
No entanto, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração.
A imagem global do ilícito é, no caso, marcada fortemente pelo homicídio praticado sobre o bebé; surgindo a ocultação do cadáver, por parte da arguida, como um procedimento destinado a ocultar aquele seu outro crime.
As duas infracções estão ligadas intrinsecamente numa relação de causa e efeito, e, por sua vez, surgiram ambas praticamente ao mesmo tempo, no condicionalismo de uma gravidez com algumas especificidades quanto à sua aceitação; nada aponta para que se esteja perante um qualquer risco de reiteração e não se pode falar aqui, evidentemente, em qualquer tendência criminosa.
O que tudo apontará neste caso, e excepcionalmente, para um fraco «efeito expansivo» da pena mais grave, com a consequente aplicação de uma pena conjunta, pouco acima da pena parcelar mais grave, que é no caso de treze anos de prisão.
Tendo em conta que foi aplicada uma pena de um ano pela prática do crime de profanação de cadáver, procedendo ao cúmulo jurídico da mesma, com a de treze anos de prisão pela prática do crime de homicídio, deve fixar-se, em cúmulo jurídico, a pena única de treze anos e seis meses de prisão.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a arguida e recorrente alegar que o Tribunal a quo, ao autolimitar os seus poderes de cognição, violou o disposto no artigo 4,º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) e o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Alega que ao instituto do caso julgado não pode atribuir-se um valor absoluto, que anule o seu direito de defesa e a possibilidade de anulação de uma condenação injusta (é isso que explica a alínea d) do n.º 1, do artigo 449.º do Código de Processo Penal).
Vejamos.
Não estamos perante alguma autolimitação dos poderes de cognição do Tribunal a quo, nem perante alguma violação do artigo 4.º, n.º 1, da referida Lei de Organização do Sistema Judiciário. Pelo contrário, o Tribunal a quo cumpriu o que determina este preceito quando afirma o dever de acatamento das decisões proferidas em recurso pelos tribunais superiores.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que reenviou o processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º., n.º 1, do Código de Processo Penal é muito claro ao determinar que o novo julgamento não era relativo à totalidade do objeto do processo, mas, como se prevê na parte final desse número, a uma questão determinada, em relação à qual (e só em relação à qual) se verificava insuficiência de facto para a decisão. Tal significa que as outras questões já apreciadas nas várias instâncias se devem ter por definitivamente encerradas, com a força própria do caso julgado.
E esse acórdão também é muito claro, como se depreende dos excertos que são citados na sentença recorrida, no sentido de que entre as questões já definitivamente encerradas estão a questão da imputabilidade da arguida, assim como a questão da não verificação da previsão do artigo 136.º do Código Penal (ou seja, que a arguida tenha atuado sob a influência perturbadora do parto).
O seja, não poderá ser agora reanalisado (nem na primeira instância, nem nesta sede) se a arguida atuou, ou não, com dolo e se poderá, portanto, deixar de ser condenada pela prática de crime de homicídio doloso, tal como não poderá ser agora reanalisado se ela atuou sob a influência perturbadora do parto e se poderá, portanto, ser condenada pela prática do crime de infanticídio p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal.
O que não estava encerrado, e sobre que deveria incidir o novo julgamento, era apenas, e tão só, o apuramento de circunstâncias relativas ao grau de culpa da arguida (excluindo a sua imputabilidade, total ou parcial), na medida em que esse grau de culpa dependa da motivação desta, do seu estado emocional e psíquico ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e da existência de fatores que, tanto endogena como exogenamente, a possam ter condicionado à prática do crime. O que pudesse ser provado a este respeito seria relevante no que se refere à qualificação do crime de homicídio, pois esta qualificação depende desse grau de culpa (saber se esse grau de culpa corresponde a uma especial censurabilidade ou perversidade revelada por alguma das situações elencadas, come exemplos-padrão, no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal). E seria sempre relevante no que se refere à determinação da medida concreta da pena.
Também isto se depreende com clareza do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que determinou o reenvio do processo para novo julgamento, acórdão que vincula o Tribunal de primeira instância, como nos vincula a nós nesta sede.
Deveremos, pois, apreciar, nesta sede, apenas se a prova produzida impõe (ou não) que se considere provado o facto mencionado nesse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e descrito na alínea i) do elenco dos factos não provados constante do acórdão recorrido, e não quaisquer dos outros factos referidos na motivação do recurso.
Importará apurar as consequências que a eventual prova desse facto possa ter em relação à qualificação do crime de homicídio e em relação à determinação da medida da pena. Mas já está encerrada a questão de saber se a arguida poderá deixar de ser condenada pela prática de crime de homicídio doloso, ou pela prática do crime de infanticídio, p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal.
Nem pode alegar-se, como faz a arguida e recorrente, que a prova resultante da repetição de julgamento contradiz factos considerados provados no acórdão inicial. Esses factos devem considerar-se assentes. Qualquer eventual prova que os pudesse contrariar extravasaria do âmbito do objeto do novo julgamento e a consideração dessa prova representaria uma inadmissível desobediência à decisão de um tribunal superior.
Alega a arguida e recorrente que ao instituto do caso julgado não pode atribuir-se um valor absoluto, que anule o seu direito de defesa e a possibilidade de anulação de uma condenação injusta. Invoca, nesse sentido, a alínea d) do n.º 1, do artigo 449.º do Código de Processo Penal.
Na verdade, o caso julgado é limitado pela possibilidade de recurso extraordinário de revisão, a que se reportam os artigos 449.º e seguintes do Código de Processo Penal. Mas não estamos em sede de recurso extraordinário de revisão, e não nos cabe, obviamente, estender as exceções ao caso julgado para além dessa, que está legalmente prevista.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso quanto a estes aspectos.

IV 2. –
Vem a arguida e recorrente alegar que a prova produzida impõe que se considere provado o facto descrito na alínea i) do elenco dos factos não provados constante do acórdão recorrido: A motivação da arguida B..., o estado emocional e psíquico da mesma ao longo da gravidez, durante e logo após o parto, e a existência de fatores que, tanto endogenamente como exogenamente, a podem ter condicionado à prática do crime (de homicídio). Invoca o teor de documentos e relatórios juntos aos autos, assim como de esclarecimentos prestados em audiência pelos médicos psiquiatras e psicólogo autores desses relatórios e exames, que transcreve.
Alega também que a dúvida a respeito de tal facto deverá ser valorada a seu favor, ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
Vejamos.
O acórdão recorrido considerou não provado o facto em questão e, consequentemente, manteve integralmente a decisão anterior. Considerou que dos exame, relatórios e documentos juntos aos autos, assim como dos esclarecimentos prestados em audiência pelos médicos psiquiatras e psicólogo autores desses exame, relatórios e documentos (Drs. D..., Y..., W... e AC...), não pode retirar-se a prova de que no momento da prática do crime (não em momento posterior, o que, para o efeito, será irrelevante) a arguida padecia de patologia psiquiátrica que pudesse explicar a sua conduta ou pudesse influir no seu grau de culpa. O quadro depressivo grave que foi observado por qualquer desses médicos e psicólogo poderá ser superveniente e até consequência do próprio processo.
As razões do acórdão recorrido, bem aprofundadas e desenvolvidas e acima expostas, merecem a nossa adesão quanto à decisão de não considerar provado, num juízo de certeza e para além de toda a dúvida razoável, tal facto.
Mas também nenhum desses documentos e esclarecimentos nos permite excluir, com certeza e para além de toda a dúvida razoável, que esse quadro depressivo grave fosse anterior à prática do crime e explique (ou ajude a explicar este) essa prática. Essa possibilidade é real e verosímil e é apenas a falta de registos e diagnósticos anteriores à prática do crime (não uma qualquer impossibilidade à luz da ciência, da lógica ou da experiência comum) que impede a eventual prova desse facto.
Como doutamente se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que determinou o reenvio do processo para novo julgamento, é dificilmente compreensível a motivação da arguida ao praticar o crime em apreço, beneficiando ela de um bom grau de instrução e de uma estável situação familiar e económica. Tal confere verosimilhança (não certeza, certamente) à hipótese de a sua tão trágica e chocante decisão, na sequência de uma gravidez que também incompreensivelmente procurou ocultar, ter sido influenciada por alguma patologia do foro psíquico.
Estamos, assim, claramente, perante uma situação de dúvida, uma dúvida fundada e razoável.
E assiste razão à arguida e recorrente quanto a este aspeto: o princípio in dúbio pro reo impõe que esta dúvida seja valorada a seu favor. Na verdade, tal princípio é aplicável não apenas em relação à prova dos elementos típicos do crime, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às circunstâncias modificativas e de ordem geral e à prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja uma condição indispensável de uma decisão suscetível de favorecer o arguido (ver, neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de novembro de 1998, in C.J.-S.T.J., 1998, III, pg. 201)
Assim, impõe-se considerar, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, que um quadro depressivo grave influenciou a decisão da prática do crime pela arguida.
Nesta medida, deverá ser dado provimento ao recurso.

IV 3. –
Vem a arguida e recorrente alegar que não poderá ser condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, devendo ser reduzida a pena de prisão em que foi condenada.
Vejamos.
Como já acima salientámos, o Supremo Tribunal de Justiça, ao determinar o reenvio do processo para novo julgamento, considerou que a prova do facto a apurar seria relevante na determinação da medida da culpa da arguida e, nessa medida, na qualificação, ou não qualificação, do crime de homicídio por si praticado.
Como bem se afirma no acórdão recorrido, na esteira da doutrina e da jurisprudência, as situações elencadas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal não conduzem necessariamente à qualificação do homicídio, são exemplos-padrão, são normalmente indícios de especial censurabilidade ou perversidade, mas não necessariamente. E a especial perversidade e censurabilidade é relativa ao grau de culpa do agente
Deve considerar-se, como vimos, que um quadro depressivo grave influenciou a decisão da prática do crime de homicídio pela arguida.
Esse facto, por si só, faz com que qualquer das circunstâncias a que se reportam as alíneas a), c) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, circunstâncias que se poderão verificar na situação em apreço (e daí a acusação pela prática de crime de homicídio qualificado com referência a essas três alíneas), não seja neste caso (ao contrário do que será a regra na generalidade dos casos) sinal de especial censurabilidade ou perversidade. Esse quadro depressivo grave, que certamente não justifica ou desculpa a conduta, explica o que na generalidade dos casos seria explicado por uma atitude e postura de especial censurabilidade ou perversidade.
Não se coloca a questão da eventual condenação da arguida e recorrente pela prática de crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133.º do Código Penal, pois o quadro depressivo em questão não configura alguma das situações previstas neste artigo.
Assim, a arguida e recorrente deverá ser condenada, não pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, j), do Código Penal, mas pela prática de um crime de homicídio, p. e p. apenas por esse artigo 131.º.
Consequentemente, considerando a moldura da pena correspondente a este crime e (à luz do artigo 71.º, n,ºs 1 e 2, também do Código Penal) as circunstâncias já consideradas no acórdão recorrido (cujo relevo agravante é, porém, sempre atenuado pelo quadro depressivo grave), entende-se adequado fixar a pena a aplicar à arguida e recorrente, pela prática do referido crime de homicídio, em nove anos de prisão.
Considerando as circunstâncias já consideradas no acórdão recorrido, e à luz do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, deverá ser fixada a pena correspondente ao cúmulo jurídico dessa pena e da pena correspondente ao crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, a), do mesmo Código, por que a arguida e recorrente foi também condenada, em nove anos e seis meses de prisão
Nesta medida, deverá ser dado provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em convolar o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, j), do Código Penal, por que a arguida e recorrente foi condenada, em crime de homicídio p. e p. apenas por esse artigo 131.º; fixar a pena correspondente a este crime em nove (9) anos de prisão e fixar a pena correspondente ao cúmulo jurídico dessa pena e da pena correspondente ao crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, a), do mesmo Código, por que a arguida e recorrente foi também condenada, em nove (9) anos e seis (6) meses de prisão; mantendo-se, no restante, o douto acórdão recorrido

Notifique

Porto, 10-01-2018
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
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[1] A LOSJ (Lei de Organização do Sistema Judiciário) é a Lei n.º 62/2013, de 26-08.
[2] Redacção introduzida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que, por isso, se destaca (fls. 656 / 658 e verso).
[3] Procedeu-se à correção da idade do marido e filhos, pois que a indicada diz respeito à data em que foi proferido o acórdão de 1.ª Instância (10-02-2014), sendo que a actualização consta, em parte, do relatório social agora solicitado (fls. 1052 a 1054 / 1061 e 1062).
[4] Facto introduzido nos não provados pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 656 / 658 e verso).
[5] Naturalmente que se atualizou essa factualidade, com referência ao presente, designadamente quanto à idade do marido e filhos, bem como dos rendimentos daquele, atento o atual relatório (fls. 1052 a 1054 / 1061 e 1062), para evitar repetições.
[6] Certamente por lapso, no requerimento de junção destes documentos a arguida refere a consulta 21-04-2008 (mas nenhuma existe nessa data), em que apontou o suposto registo de que a arguida já não dormia à 4 dias, mas que depois retirou, por daí tal não resultar (cfr. fls. 1158).
[7] Atente-se que por essa altura a arguida B... estava com uma gravidez, vindo a ser assistida nos Serviços de Urgência do Hospital ... em 23-09-2008 (cfr. facto 48)).
[8] Esta Avaliação Psicológica foi solicitada pelo Dr. W..., acima mencionado, conforme dela consta (fls. 986).
[9] Realça-se, no entanto, que não existe qualquer prova pericial que confirme ou afaste a paternidade do recém-nascido por parte do marido da arguida B....