Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3175/06.1TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP00042559
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP200905183175/06.1TBPRD.P1
Data do Acordão: 05/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO - LIVRO 378 - FLS 07.
Área Temática: .
Sumário: A abertura de um processo de falência em Estado Membro impõe-se de modo mediático e automático em todos os outros Estados Membros, aí devendo ser reclamados todos os créditos e segundo a legislação aplicável do país do Tribunal, não podendo prosseguir os processos contra a insolvente em qualquer dos outros estados, mesmo que nestes tenha entretanto corrido providência cautelar de arresto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º3175/06.1TBPRD.P1
Apelante: B……….
Apelado: C……….
(Tribunal Judicial de Paredes - ..º Juízo Cível)



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I-RELATÓRIO


C………. e mulher D………., residentes na Rua ………., …., Bloco ., ….., ………., …. MAIA, intentaram acção de condenação com processo ordinário contra:
B………., viúvo, NIF ……….., residente em ………., ….. ………., ESPANHA, nos termos e com os seguintes fundamentos, em síntese:
Como preliminar desta acção, o A. marido intentou contra o R. um Procedimento Cautelar de Arresto que foi decretado e correu os seus termos sob o nº …./05.0 TB PRD do .º Juízo desta Comarca.
Os AA. eram donos e legítimos proprietários de 4 quotas no capital social da firma “E………., L.da”, com sede em ………., ………., Paredes, com o capital social de 1.049.639,35 € a saber:
- 1 de 8.313.30 €, outra de 8.313,30 €, outra de 33.253,19 € e uma outra de 300.000 €.
Por escritura pública outorgada em 24/03/05, no Cartório Notarial de Penafiel os AA. cederam ao R. as supracitadas quotas tendo o A. marido renunciado à gerência que exercia na sociedade, pelo valor global de 588.000 € apesar de na escritura se ter declarado que já estavam pagos, a verdade é que o não foram.
Antes foi acordado que tal quantia seria paga em 39 (trinta e nove) prestações mensais e sucessivas de 15.000 € e uma última de 3.000 €, vencendo-se a primeira em 24/3/05 e a última em 24/6/2006, as quais ficaram tituladas por igual número de cheques pré-datados emitidos pelo R. sobre a F………. .
Desses cheques o Réu apenas liquidou dois, pelo que está em dívida a quantia de €558.000,00.
Terminam pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia em dívida acrescida de juros vencidos e vincendos.

O Réu contestou a acção e defendeu-se por excepção, invocando a sua ilegitimidade decorrente do facto de ter sido decretada em Espanha a sua insolvência, pelo que os créditos devem ser reclamados na acção de insolvência, contra a massa insolvente e perante a Administradora da insolvência.
Mais alega que o crédito que vem peticionado já foi reconhecido em Espanha pela Administradora da insolvência.
Na sua resposta, os Autores pugnaram pela legitimidade do Réu e pediram que fosse proferida decisão já no despacho saneador, quanto ao mérito da questão, em face do reconhecimento da dívida.
Foi proferido saneador-sentença, em que foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade e julgado procedente o pedido formulado, condenando-se o réu a pagar a quantia peticionada.
Inconformado com tal sentença vem da mesma interpor recurso de apelação.

Formula as seguintes conclusões de recurso:

Os autos de insolvência que correram os seus termos sob o número Concurso Abreviado 200/2006 no Juzgado de Lo Mercantil n.º1 Oviedo, foram interpostos em data anterior aos presentes autos.
O apelante foi declarado insolvente em 23/05/2006 pelo Juzgado de Lo Mercantil de Oviedo, Reino de Espanha, no âmbito do concurso abreviado n.º 200/2006.
Os presentes autos tiveram início em data posterior à declaração de insolvência do apelante e na pendência do concurso abreviado n.º 200/2006 que correu os seus termos no Juzgado de Lo Mercantil de Oviedo, Reino de Espanha.
No referido Concurso Abreviado 200/2006 que correu os seus termos no Juzgado de Lo mercantil n.º1 Oviedo, o apelado foi reconhecido como credor do apelante na quantia de € 588.000,00.
A legislação aplicável para a decisão dos presentes autos deveria ser o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 29-05-2000 nomeadamente as disposições constantes dos artigos 1.º, 3.º, 4.º n.º1 e alínea f) do n.º2, 15.º, 16.º e 17.º e a LEY CONCURSUAL n.º 22/2003, de 9 de Julho do reino de Espanha, nomeadamente o estatuído no seu art.º 50.º.
Qualquer acção interposta pelo apelado para reconhecimento do seu crédito, posterior à acção que correu os seus termos sob o número Concurso Abreviado 200/2006 no Juzgado de Lo Mercantil n.º1 Oviedo e que declarou o apelante como insolvente, deveria correr nos referidos autos de insolvência.
Os presentes autos ou outra acção com vista ao reconhecimento do apelado como credor do apelante ainda que corra os seus termos, no concurso Abreviado 200/2006 no Juzgado de Lo mercantil n.º1 Oviedo são absolutamente desnecessários face ao reconhecimento do apelante como devedor do apelado que se verificou nos já referidos autos de insolvência
O Tribunal a quo deveria ter declarado a incompetência absoluta dos tribunais portugueses por violação das regras da incompetência internacional, como se infere do disposto nos artigos 3.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, 271.º do CIRE e 65.º n.º1 e 101.º do CPC.
O Tribunal a quo deveria ter declarado a absolvição da instância do Apelante por força do já exposto na conclusão anterior e da aplicação dos artigos 105.º, n.º1, 288.º, n.º1 a), 493.º n.º2 e 494.º n.º1 a) do CPC.

Nas suas contra-alegações, o Apelado defende a confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS

Na 1.ª Instância foram dados como provados os seguintes factos:

1-Na Conservatória do Registo Comercial de Paredes e a favor do autor C………., encontravam-se registadas duas quotas no valor de € 8.313,30 cada uma, no capital social da sociedade «E………., Lda», com sede no ………., freguesia de ………., Paredes.

2-De igual modo, na mesma Conservatória encontrava-se ainda registada, a favor do mesmo autor, uma quota no capital social da aludida sociedade comercial no valor € 33 253,19.

3-A favor dos AA e na mesma Conservatória do Registo Comercial de Paredes, encontrava-se ainda registada uma quota no capital social da sociedade comercial atrás referida, no valor de € 300.000,00.

4-Por escritura pública outorgada em 24/03/2005, no Cartório Notarial de Penafiel, os AA declararam ceder ao Réu as supracitadas quotas por preços iguais aos respectivos valores nominais, valor esse que já haviam recebido.

5-Do mesmo modo e na sequência de tal cessão, mais declarou o Autor C………. renunciar à gerência da dita sociedade «E………., Lda».

6-Não obstante o declarado na escritura de cessão de quotas aludida, o preço pelo qual os AA cederam ao Réu as suas quotas no capital social da dita sociedade «E………., Lda» foi de € 588.000,00.

7-E não obstante terem declarado, na mesma escritura que já haviam recebido o preço devido pela cessão de quotas a que procederam, os AA acordaram com o Réu que este lhes pagaria o montante em dívida em 39 prestações mensais e sucessivas de € 15.000,00 e uma última de € 3.000,00, vencendo-se a primeira, em 24/03/2005 e a última em 24/06/2008 que ficaram tituladas por igual número de cheques emitidas pelo Réu.

8-O Réu liquidou os cheques vencidos em 24/03/2005 e 24/04/2005, não tendo pago qualquer um dos demais.

9-Por sentença proferida em 23/05/2006, pelo 1.º Juzgado de lo Mercantil de Oviedo, Reino de Espanha, no âmbito do «Concurso Abreviado» n.º200/2006, foi o Réu declarado insolvente.

10-Na lista de credores do Réu, organizada no âmbito de tal processo consta o autor C………., como titular de um crédito no montante de € 588.000,00.

III-O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição, nos termos dos arts. 684.º n.º2 e 3 e 690.º n.º1 do CPC, a questão que importa decidir consiste em saber quais os efeitos na presente acção da declaração de insolvência do ora Apelante, decidida pelo Tribunal espanhol. Ou, de outro modo, se tendo sido declarada a insolvência do Réu e ora Apelante se deve aplicar o Regulamento (CE) n.º1346/00 do Conselho de 29 de Maio e se é de aplicar a Lei n.º 22/2003 de 9 de Julho ( Ley Concursal do Reino de Espanha)

Tal como consta da matéria dada por assente “por sentença proferida em 23/05/2006, pelo 1.º Juzgado de Lo Mercantil de Oviedo, Reino de Espanha, no âmbito do «Concurso Abreviado» n.º200/2006, foi o Réu declarado insolvente”.
Quando a presente acção foi instaurada, que ocorreu em 10 de Agosto de 2006, já tinha sido, portanto, proferida sentença a declarar a insolvência do Réu.
Ora, de acordo com o art.º 16.º do Regulamento(CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, posteriormente alterado pelo Regulamento (CE) n.º 603/2005 do Conselho de 12 de Abril de 2005 e pelo Regulamento (CE) n.º 694/2006 do Conselho de 27 de Abril de 2006, “ qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de uma Estado-Membro competente por força do art.º 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados - Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.”
E no art.º 17.º estabelece-se que “a decisão de abertura de um processo (…) produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados Membros, os efeito que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo”.
Assim, sendo imediatamente reconhecida no nosso território aquela decisão que declarou a insolvência do Réus, a mesma produz, no nosso ordenamento jurídico, os mesmos efeitos que tem em território espanhol. Logo, tendo a presente acção sido proposta após a referida declaração de insolvência, é a lei espanhola a aplicável no que se refere aos efeitos da insolvência relativamente à presente acção. Trata-se da Ley Concursal 22/2003 de 9 de Julho[1] que à semelhança do nosso CIRE prevê a obrigatoriedade de um concurso universal de credores para o exercício dos direitos de carácter patrimonial contra o insolvente, ou seja, impõe que os créditos anteriores à sentença que decreta a insolvência sejam reclamados naquele processo devendo os juízes dessas acções abster-se de as conhecer, remetendo as partes para o processo de insolvência[2].
Ou seja, à data em que a presente acção foi proposta – 10-08-2006 – por já ter sido declarada a insolvência do réu – 23-05-2006-, já os Autores estavam obrigados a reclamar os seus créditos naquele processo, nenhuma utilidade tendo o prosseguimento dos autos já que a sentença proferida não obrigaria o Réu ao pagamento da respectiva quantia nem vincularia o Juzgado de Lo Mecantil de Oviedo, por se referir a um crédito que obrigatoriamente ali teria de ser reclamado[3].
Os Apelados argumentam que, anteriormente, tinha sido decretado o arresto de bens do devedor, relativamente aos quais foi nomeado fiel depositário o Apelado. Assim, tendo o Apelante sido desapossado desses bens, deverá aplicar-se o disposto no art.º 15.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000. Refere aquele preceito sob a epígrafe “efeitos do processo de insolvência em relação a acções pendentes” que “os efeitos do processo de insolvência relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente.”
Ora, parece-nos que o campo de aplicação deste preceito não se estende à presente situação dado que não estamos perante uma “acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido”, não sendo o caso que nos ocupa semelhante àquele a que se refere o acórdão referido pelos Apelados[4]. Neste acórdão a questão foi levantada na pendência e no âmbito de um procedimento cautelar de arresto. No caso que nos ocupa não. É certo que existe uma arresto que foi decretado anteriormente à declaração de insolvência, mas o recurso que ora nos ocupa não foi interposto de qualquer decisão proferida no âmbito do arresto, mas sim da sentença proferida nos autos de acção declarativa, de condenação. Ora, esta acção não é relativa a um bem um direito de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido. A acção refere-se tão só a definir se o Réu é devedor ou não da quantia peticionada. Conclui-se, portanto, que a situação que nos ocupa não está abrangida pelo disposto no art.º 15.º do Regulamento(CE) n.º 1346/2000 do Conselho de 29 de Maio de 2000 aplicando-se-lhe, assim, os princípios gerais ali enunciados.
Como se pode ler no considerando (2) do Regulamento, “o bom funcionamento do mercado interno exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz.” “Para assegurar o bom funcionamento do mercado interno, há que evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou acções judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável”(4). Com este objectivo, o Regulamento assenta nos seguintes princípios:
1-O princípio de que o processo de insolvência seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor, visando abarcar todo o património do devedor - art.º 3.º e considerando (12).
2-O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como de decisões proferidas em conexão directa com esses processos. Assim sendo, o reconhecimento automático deve conduzir a que os efeitos conferidos pela lei do processo pela lei do Estado de abertura se estendam a todos os outros Estados - Membros - (artigos 16.º e 17.º do Regulamento e considerando (22).
3-O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado – Membro de abertura do processo (lex concursus) que determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência”- art.º 4.º e considerando (23).
À luz destes princípios, pode concluir-se que o Tribunal do Reino de Espanha é o competente para a abertura do processo de insolvência do Réu, por ser ali que o mesmo tem o centro dos seus interesses, dado que reside em Espanha, ali tendo sedeada a sua conta bancária, como resulta da análise dos cheques juntos aos autos entregues pelo Réu ao Autor para pagamento do negócio que com este realizou.
Mais se conclui que a declaração de insolvência do Réu, decidida pelo Tribunal competente de Espanha, produz efeitos imediatos nos outros Estados - Membros, logo, também em Portugal.
Por fim, a lei aplicável ao processo de insolvência bem como aos seus efeitos é a lei do Reino de Espanha que neste caso é a Ley n.º 22/2003 de 9 de Julho.
Aquela Ley Concursual prevê a obrigatoriedade de um concurso universal de credores para o exercício dos direitos de carácter patrimonial contra a insolvente, como aliás ocorre no nosso Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), nos artigos 36.º, 47.º e 128.º.Tal significa que todos os créditos contra a insolvente existentes à data da declaração de insolvência devem ser obrigatoriamente reclamados naquele processo.
Quanto às acções instauradas após a declaração de insolvência que é o caso dos presentes autos, rege o disposto no art.º 50 da Ley n.º 22/2003 segundo a qual o juiz se deverá abster de conhecer, remetendo as partes para o processo de insolvência[5]. Mais uma vez este regime é paralelo ao que o nosso CIRE estabelece nos artigos 89.º n.º 2 e 90.º.
Resulta, pois, do exposto, que o prosseguimento da acção declarativa nos termos em que o foi constituiu mais do que uma inutilidade, visto que o crédito dos Apelados já estava reconhecido no processo de insolvência, uma violação das regras da competência internacional, como decorre do disposto nos artigos 3.º do Regulamento, 271.º do CIRE e 65.º n.º 1 do CPC.
Procedem, pois, as conclusões do Apelante.
Assim, declarando-se a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para a presente acção, nos termos do art.º 101.º,105.º n.º1, 288.º n.º1 a), 493.º n.º2 e 494.º n.º 1 a) do CPC, deverá o Réu ser absolvido da instância.

IV-DECISÃO

De acordo com o supra expendido, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto, revogar a sentença recorrida e, declarando a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para a presente acção, absolver o Réu da instância.

Custas pelos Apelados.

Porto, 18 de Maio de 2009
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Baltazar Marques Peixoto

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[1] Boletim Oficial Espanhol (BOE) n.º 164, 10 de Julho de 2003, in www.boe.es/g/es/
[2] É o que resulta do disposto no art.º 50.º n.º 1 da Ley 22/2003: “Los Jueces del orden civil Y del orden social ante quienes se interponga demanda de la que deba conocer el juez del concurso (…) se abstendrán de conocer, previniendo a las partes que usen de su derecho ante el juez del concurso.”
[3] Vide neste sentido e num caso semelhante, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 22-04-2008, processo 0820286.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-06-2008, P0833213.
[5] “preveniendo a las partes que usen de su derecho ante el juez del concurso”- art.º 50 da Ley n.º 22/2003.