Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
382/19.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: SEGURO DE GRUPO
CONTRATO DE ADESÃO
NULIDADE DAS CLÁUSULAS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP20211123382/19.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Num seguro de grupo com coberturas de morte e invalidez total e permanente de que é tomador e beneficiário um banco, o qual providencia pela adesão dos segurados a esse contrato, em conexão com contratos de mútuo que com eles celebra, é ao banco, tomador do seguro, que compete o cumprimento das obrigações de informação e comunicação sobre o teor do contrato de seguro.
II - A eventual nulidade de uma cláusula de um contrato de adesão, tal como aquela em que se define o risco coberto por um contrato de seguro, por se poder ter por proibida, é passível de conhecimento oficioso e pode ser apreciada ainda que essa questão só tenha sido suscitada em sede de recurso.
III - No caso de não se reconhecer tal nulidade, é dispensável a audição da parte recorrida, que se revelaria um acto inútil.
IV - Não se tem por nula uma cláusula constante das condições especiais de um Contrato de Seguro do ramo vida, com cobertura de invalidez total e permanente, contendo uma definição do estado de invalidez total e permanente segundo a qual esse estado corresponde a uma incapacidade total de exercício de uma actividade remunerada, objectivamente verificável e definitiva e que se traduza num grau de desvalorização superior a 66,6%.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 382/19.0T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto - Juiz 4

REL. N.º 634
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 – RELATÓRIO

B… e marido, C…, residentes em …, ..- 4º tras., …, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra D…- Companhia de Seguros de Vida, S.A., com sede no …, …, Av. …, …, pedindo a sua condenação a cumprir o contrato de seguro de vida e de invalidez total e permanente que com ela celebraram, constante da apólice nº ………., certificados nº ………. e nº ………., pagando o valor em divida de dois contratos de mútuo celebrados com o “Banco E…, SA”, originalmente no valor total de € 205.000,00, indemnizando-os pelo valor de todos os prémios de seguro que têm sido pagos desde o requerimento de accionamento do contrato, em Maio de 2018, até efectivo pagamento do capital seguro, no montante que venha a apurar-se; e a indemnizá-los por danos não patrimoniais inerentes a discriminação em razão da deficiência, que lhes provocou, em montante não inferior a €10.000,00.
Alegaram, em síntese, que celebraram com o “Banco E…, SA”, dois contratos de financiamento bancário pelo valor total de € 205.000,00, em 04 de Junho de 2006 e, bem assim, que no âmbito desse negócio, contrataram com a ré um seguro do ramo Vida, de que seria beneficiário irrevogável o “Banco E…, SA”, o qual, entre outros riscos, cobria a invalidez total e permanente da pessoa segura, designadamente a autora. Tendo ela sido acometida de doença que lhe determina incapacidade permanente global de 84%, alegam tê-lo comunicado à ré em 25.05.2018, a qual, no entanto, recusou cumprir o contrato, pagando o capital em dívida daqueles contratos, de cerca de 167.650,00€ à data de Outubro de 2018, por a autora não se encontrar reformada por invalidez.
Alegam ainda que, sendo caso de a considerar aplicável, a cláusula contratual invocada pela ré deve ter-se por desproporcionada, não podendo obstar ao funcionamento do contrato. Por fim, alegam que a actuação da ré é uma prática discriminatória, determinando danos à autora, para cuja indemnização pedem o valor de 10.000,00€.
Citada, a ré contestou, admitindo a celebração do contrato de seguro de grupo do ramo Vida titulado pela apólice nº …….., no qual os aqui autores figuram como pessoas seguras, destinado a garantir empréstimo bancário celebrado entre os autores e o “Banco E…, SA”, tendo como coberturas «morte e invalidez total e permanente» relativamente à autora, e apenas «morte» relativamente ao autor. Sem prejuízo, alega que não se encontram preenchidos os pressupostos de accionamento da cobertura de invalidez total e permanente por a autora não se encontrar em situação de perda irremediável das faculdades e capacidades de trabalho. Salienta que a cobertura contratada não foi a de Invalidez Absoluta e Definitiva, mas a de Invalidez Total e Permanente, sendo que de todo o conteúdo do contrato disseram os autores estar bem cientes. Pediu a intervenção principal do Banco E…, por ser beneficiário do mesmo contrato de seguro e concluiu pela sua absolvição do pedido.
Depois de admitida a respectiva intervenção principal, ao lado dos autores, o “Banco E… “também apresentou contestação, afirmando ser alheio ao contrato celebrado entre as partes e às prestações em discussão, mas também ter cumprido as obrigações de informação aquando da sua intervenção na celebração dos contratos invocados.
Foi proferido despacho saneador e foram fixados os temas da prova e objecto do litígio. Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que concluiu pela improcedência da acção, em suma, por a condição física da autora não preencher o conceito de invalidez total e permanente tal como definido na correspondente cláusula do contrato de seguro.
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pelos autores, que o terminam alinhando sucessivos parágrafos que denominam por conclusões, sem sequer os numerarem (o que se supre, por forma a dotar o tratamento das questões suscitadas de uma conveniente organização) e de entre os quais, a esse propósito, apenas se nos afiguram úteis e com natureza conclusiva, enquanto caracterizadores das questões a apreciar, os que se passam a transcrever:
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A ré apresentou resposta ao recurso, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo. Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso. No caso, importará decidir se e em que termos as circunstâncias pessoais da autora, maxime a sua situação clínica, são subsumíveis ao clausulado do contrato de seguro celebrado com a ré ou, não o sendo, se alguma cláusula se deve ter por inválida ou ineficaz, por obstar intoleravelmente à cobertura do sinistro que tais circunstâncias configuram, na hipótese de esta questão poder ser apreciada nesta instância, pois que a apelada defende que isso não aconteça, por jamais ter sido suscitada até esta fase, no processo. Além disso, haverá que apurar se se verificam os pressupostos adequados a condenar a ré a reembolsar os AA. do valor dos prémios de seguro pagos desde 2018, bem como os necessários à condenação da ré no pagamento de qualquer indemnização por actuação discriminatória para com a autora, em razão da sua deficiência.
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Para a análise das questões identificadas, é útil ter presente a factualidade dada por provada na decisão recorrida, que assim a descreveu:
“Factos provados:
1- A 04 de Junho de 2006 os autores contrataram junto do “Banco E…, SA”, empréstimos nos montantes de € 180.000,00 e €25.000,00, esses empréstimos destinavam-se à aquisição de habitação própria e permanente.
2- No âmbito do negócio referido em 1, os autores obrigaram-se a contratar seguro de vida, e a fazer inserir na respectiva apólice que o “Banco E…, SA”, era credor hipotecário e que as indemnizações devidas em caso de sinistro reverterão para o “Banco E…, SA” .
3- Na sequência do referido em 2, após preenchimento da proposta de seguro nº……., os autores contrataram com a ré seguro do ramo Vida, aderindo ao contrato de seguro de grupo titulado pela apólice nº “……….”, pelo que foi emitido os certificados nº ………. e ………..
4- O contrato de seguro referido em 3 rege-se pelas condições gerais, especiais e particulares cujas cópias constam de fls. 33 a 42, cobrindo, além do mais, sem qualquer restrição a invalidez total e permanente da autora B…, e estipulando que o pagamento do capital seguro torna-se exigível no momento em que se verifique, em relação à pessoa segura, um dos riscos cobertos pelo contrato.
5- Em 25 de Maio de 2018 o autor C… comunicou à ré a invalidez decorrente de doença do foro oncológico da autora, afirmando ser uma invalidez total e permanente e que a invalidez não impossibilita o exercício de actividade profissional de pessoa segura mas obriga a recorrer a uma terceira pessoa para os actos ordinários da vida diária.
6- Em resposta à participação referida em 5, a ré remeteu as cartas cuja cópia consta de fls. 48, 49 e 50, recusando o pagamento por afirmar que para efeitos de cobertura do acidente apenas são atendíveis as situações em que a incapacidade da pessoa segura a impeça total e definitivamente do exercício de uma actividade remunerada, estabelecendo-se ainda que o reconhecimento desta situação é feito com base em elementos objectivos e comprovados clinicamente.
7- A autora autorizou a ré a proceder à recolha de dados pessoais relativos à sua saúde junto de médicos ou outros profissionais de saúde e de organismos públicos ou privados, como hospitais, clínicas, consultórios, centros de saúde, tendo em vista a confirmação ou complemento de informação prestada quando ou após a subscrição do seguro, com a finalidade de avaliação do risco.
8- No mesmo documento que assinou a autora constava “ tanto o tomador do seguro como a pessoa segura declaram ter conhecimento das condições gerais do contrato a realizar, bem como da possibilidade de realização de exames médicos (…).
9- A autora apresenta diversas patologias geradoras de défice funcional permanente de integridade física e psíquica (tumor maligno com metástases e permitindo uma vida de relação, amputação da perna direita e dor de desaferentação) fixável em 73,36 %.
10- As sequelas da autora são impeditivas do exercício da actividade profissional nos moldes habituais, sendo, no entanto, compatíveis com a reconversão da actividade profissional já concretizada, dentro da área da sua preparação técnico profissional, com evicção de tarefas que necessitem de esforços violentos e restrições de horários de refeições.
11- O valor do capital seguro no âmbito dos contratos referidos em 1, em Outubro de 2018 ascendia a € 147.206,98 e €20.444,14.
12- Em 29.11.2017 no F… a autora foi submetida a uma gastrectomia radical com colecistectomia.
13- Na sequência das intervenções a autora sofreu uma grave infecção.
14- Pelo que em 03.12.2017 foi submetida a uma nova cirurgia a uma peritonite biliar, causada por uma deiscência punctiforme da anastomose esofagojejunal.
15 - Uma vez que a autora entrou em choque séptico e começou a apresentar sinais de isquemia no membro inferior direito teve que ser submetida a uma amputação transmetatársica que ocorreu em 28.12.2017, onde lhe foi amputado o pé direito.
16- A autora necessita de auxílio de terceira pessoa.
17- A autora à data do evento era comercial em transitário de transporte de mercadorias e em 2019 retomou a sua actividade profissional na mesma empresa, no mesmo local de trabalho, exercendo a mesma actividade com reconversão profissional, passando a exercer funções de comercial interno.
18- A autora é portadora de atestado médico de incapacidade multiuso no qual lhe é conferida uma incapacidade permanente global de 84%.
19- No artigo 1º das condições gerais do contrato de seguro define-se o conceito de invalidez total e permanente como a pessoa segura encontra-se na situação de invalidez total e permanente se em consequência de doença acidente estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamentos objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando dessa invalidez paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades ser superior a 66,6% que para efeitos desta cobertura é considerado como sendo igual a 100%.
Factos Não Provados, os demais, designadamente:
a) Que a autora apresente deficiência de 84% de acordo com a tabela nacional de incapacidades;
b) Que devido ás patologias descritas nos factos provados de que sofreu a autora esteja totalmente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada;
c) Que os autores têm vindo a pagar as prestações relativas aos contratos de financiamento referido em 1- bem como os títulos de prémios de seguro;
d) Que aquando da celebração do referido contrato de seguro os autores foram informados pelos funcionários da ré da existência de dois tipos de coberturas.
e) A primeira designada com invalidez total e permanente (ITP) mais abrangente e a segunda, designada como invalidez absoluta e definitiva (IAD) menos ampla.
f) Que de acordo com a informação disponibilizada pela ré considerar-se-ia uma situação de invalidez total e permanente aquela em que a pessoa segura, por força de doença ou acidente coberto pela apólice, ficasse impossibilitada de exercer a sua actividade por força de uma incapacidade permanente, devidamente atestada, igual ou superior a 66%.
g) Que a cobertura de invalidez absoluta e definitiva, menos ampla, pressupunha que a pessoa ficasse definitivamente incapacitada para o exercício de qualquer profissão remunerada e estar dependente do auxilio de terceira pessoa.
h) Que foi explicado aos autores pelos funcionários da ré, que a primeira opção consubstanciava “opção vida-risco-simples e completa, ao passo que a segunda cobertura corresponderia apenas a uma opção vida-base – simples e acessível.
i) Com base nessas informações os autores optaram por subscrever a opção vida-risco, a opção mais dispendiosa de seguro de vida oferecido pela ré.
j) Que à autora foi comunicada e informada pela ré todas da existência de requisitos adicionais para o accionamento do seguro, mormente a apresentação do documento que a ré peticiona (comprovativo de que a pessoa segura se encontra reformada por invalidez).
k) Que quando em 25.05.2018 os autores efectuaram o requerimento formal junto da ré (doc. 7 junto com a petição inicial) foram informados pelo funcionário da ré de que a autora teria que responder “não” à pergunta “a invalidez impossibilita o exercício da actividade profissional da pessoa segura” onde a autora havia respondido afirmativamente, uma vez que não se encontrava reformada por invalidez.
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Os presentes autos têm já por resolvidas diversas questões, que compete recordar.
A primeira traduz-se na fixação definitiva da matéria de facto. Com efeito, não se compreende no objecto deste recurso qualquer alteração relativamente à matéria de facto dada por provada na sentença recorrida.
A segunda refere-se à caracterização do contrato que integra a causa de pedir: sem qualquer controvérsia, que exclui a utilidade de quaisquer considerações a esse propósito, trata-se de um contrato de seguro de grupo, do ramo vida, com cobertura dos riscos de morte e invalidez (em termos que se analisarão infra), qualificável como contrato de adesão no respeitante aos termos da vinculação dos autores ao respectivo conteúdo. Tal contrato está associado a dois contratos de mútuo, celebrados entre os AA. e o Banco E…, tomador e beneficiário do contrato de seguro de grupo a que os AA. aderiram, para obter o pagamento do capital mutuado em dívida, ao tempo da ocorrência de qualquer sinistro coberto, sendo caso disso.
A terceira questão respeita à intervenção principal do Banco E…. Essa intervenção foi admitida, a requerimento da ré D…, e o Banco foi absolvido a final. Porém, jamais se chegaram a discutir quaisquer factos ou a isolar, em função deles, qualquer pedido que tivesse como pressuposto uma conduta ilícita do Banco. É certo que se não deu por provado que os funcionários do Banco, que é tomador e beneficiário do seguro em causa, tivessem prestado informações nos termos e circunstâncias descritos pelos autores e que teriam sido decisivas para a escolha da modalidade do contrato que subscreveram, quando com eles negociaram os mútuos e decidiram contratar o seguro. Mas daí não resulta o incumprimento de qualquer obrigação de comunicação pela própria ré – que os AA. reconhecem não ter sido a entidade que lhes apresentou o contrato – e nenhum pedido se mostra dirigido contra o Banco. Aliás, só isso é coerente com a circunstância de a sua intervenção principal ter sido admitida no lado activo da lide, com fundamento na titularidade do direito ao pagamento do capital seguro, se fosse caso disso. Por isso mesmo, impertinente – mas irrelevante e por isso sem que se justifique extrair disso qualquer consequência – resulta a declaração da sua absolvição do pedido.
Em qualquer caso, é útil ter presente que o incumprimento de obrigações de informação, no âmbito da celebração desse contrato, sempre haveria de ser imputado ao banco tomador do seguro e não à ré, nos termos do art. 4º, nºs 1 e 2 do D.L 176/95, de 26/7, vigente ao tempo desse acto. E, bem assim, que essa matéria, no que ao Banco respeita, não foi trazida à lide, nem foi objecto da sentença.
Subsequentemente, mas ainda em coerência com isso mesmo, isto é, com os termos em que a acção se mostra estruturada, sem que qualquer pedido tenha sido dirigido contra o Banco, nas próprias conclusões extraídas do recurso os apelantes não suscitam qualquer questão sobre qualquer omissão do dever de informação, em função da qual se deva alterar o decidido. Essa é, pois, uma questão que se não inclui no objecto deste recurso.
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De seguida, e já sem que isso represente um problema a ter por resolvido, tendo sido suscitado na resposta que ofereceu ao recurso, veio a ré arguir que a imputação de uma invalidade à cláusula do contrato de seguro onde se define o risco de invalidez total e permanente se apresenta como questão nova nos autos. Como tal, conclui que essa matéria não pode ser alvo de decisão neste recurso.
Vista a sentença recorrida, é certo que essa questão não se mostra ali apreciada. Com efeito, a sentença ocupa-se da caracterização da situação clínica e pessoal da autora, da sua subsunção à cláusula do contrato de seguro de que pode decorrer a obrigação de pagamento e da sua interpretação, com fundamento no que acaba por concluir que aquela situação clínica e pessoal não é apta a determinar o funcionamento do contrato, isto é, o pagamento do valor dos mútuos, ao Banco, pela ré seguradora. Mas não chega a discutir a validade daquela cláusula, designadamente para poder ponderar o afastamento de algum dos seus elementos que possa ter-se por exagerado, desproporcionado e perante cuja ausência a cláusula se possa ter por preenchida e o contrato por actuante.
Porém, contrariamente ao alegado pela recorrida, já não é certo que essa questão não tivesse sido anteriormente colocada, antes se nos afigurando que o foi e que deveria ter sido decidida.
Com efeito, na p.i., apesar de os autores referirem que a exigência da certificação de invalidez pela segurança social, com consequente fixação de pensão de invalidez, é um requisito novo e não previsto no contrato, não deixam de alegar que essa exigência esvazia de conteúdo e sentido prático este contrato de seguro, impondo uma condição inaceitável, ética e juridicamente (arts. 72º e 73º da p.i). Depois, invocam, sob os arts. 112º a 118º, diversa jurisprudência à luz do que se torna inequívoco estarem a qualificar a cláusula em questão como desproporcionada à caracterização do estado de invalidez permanente que o contrato visava tutelar. Sucessivamente, nos arts. 120º a 122º, afirmam não poder reconhecer-se a exigência da certificação de situação de reforma por invalidez como um dos requisitos para a verificação da situação de invalidez total e permanente que o seguro devia cobrir. Por fim, afirmam que a cláusula em questão se deve ter como uma cláusula surpresa, por aparentar ter um conteúdo e acabar por ter outro, esvaziando o contrato de utilidade (arts. 128º a 136º da p.i.).
Em face disto, e sem prejuízo de se admitir que esta questão deveria ter sido mais clara e expressamente colocada, de resto como é recorrente nas muitas acções congéneres que chegam aos tribunais e cujo tratamento é fácil de apreender, só podemos concluir que ela não deixou de ser endereçada com suficiência, na petição inicial, para que devesse ter obtido pronúncia do tribunal, não constituindo, a sua arguição nesta fase, uma questão nova.
Em qualquer caso, mesmo que assim não fosse, a eventual nulidade de uma tal cláusula, por eventual conteúdo abusivo, constitui matéria de conhecimento oficioso, como vem sendo sucessivamente assinalado pela jurisprudência do STJ, como é o caso do Ac. de 27/9/2016 (proc. nº 240/11.7TBVRM.G1.S1, em dgsi.pt), com a fundamentação que se passa a transcrever e a que aderimos integralmente: “Sucede que a nulidade é de conhecimento oficioso (art. 286º do C.Civil), exigindo-se apenas, como condicionante desse conhecimento, que o tribunal dê prévia oportunidade de pronúncia às partes (o que foi rigorosamente cumprido pelo tribunal recorrido). Aliás, e para sermos exatos, a questão da nulidade da cláusula fora até suscitada no recurso de apelação dos Autores, logo tratava-se de questão a conhecer mandatoriamente pelo tribunal recorrido. Anote-se que a questão podia ser suscitada, como foi, no recurso de apelação, precisamente porque era passível de ser conhecida oficiosamente (a inadmissibilidade de levantar questões novas nos recursos não se coloca relativamente às questões de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas). Neste sentido, cite-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de julho de 2008, (processo nº 08B1846, www.dgsi.pt), onde se pode ler que “Numa acção de indemnização deduzida contra uma seguradora pela respectiva segurada, a Relação pode, em recurso de apelação, conhecer da nulidade de cláusulas do respectivo contrato de seguro, apesar de só nas alegações da apelante tal nulidade ser levantada, por apesar de se tratar de questão nova, ser do conhecimento oficioso, nos termos do art. 286º do Cód. Civil”.
Acresce dizer, e se dúvidas houvesse (que não há), que o art. 6º da Diretiva 93/13/CEE - cujos ditames enformam, por via do DL nº 220/95, o regime legal das cláusulas contratuais gerais (DL nº 446/85) - determina que os Estados-membros porfiem legislativamente na respetiva ordem interna de modo a que, imperativamente, as cláusulas abusivas não vinculem os consumidores, e é assim que deve ser interpretado o DL nº 446/85. Ocorre que este propósito não poderia ser alcançado convenientemente se acaso os consumidores se vissem sempre na obrigação de invocar eles mesmos o caráter abusivo das cláusulas. Por isso o Tribunal de Justiça da União Europeia tem reiteradamente decidido, em sede de reenvio prejudicial, que é dever dos tribunais nacionais suscitar oficiosamente a questão”.
Na esteira deste acórdão, outros do STJ se têm seguido, designadamente o de 9/11/2017, proc. nº 26399/09.5T2SNT.L1.S1; e o de 1/10/2019, proc. 3550/09.0TBVLG.P1.S1, disponíveis em dgsi.pt.
Pelo exposto, seja por via da nulidade decorrente da omissão de pronúncia atribuível à sentença recorrida, por não ter apreciado essa matéria, mas passível de superação pelo respectivo conhecimento nesta instância, nos termos do art. 665º, nº 1 do CPC, seja por via do dever do seu conhecimento oficioso, sempre teremos de apreciar e resolver o problema descrito.
Importa, pois passar à apreciação das questões essenciais deste recurso: verificar se, tal como o entendeu o tribunal recorrido, a situação pessoal da autora, condicionada pela sua situação clínica, é elegível como verificação do risco previsto no contrato de seguro em causa, bastando para que se obrigue a ré a satisfazer a prestação que dele deriva para si; ou, não o sendo, em razão do não preenchimento de todos os pressupostos ou da ocorrência de alguma causa de exclusão, verificar se tais obstáculos se devem ter por razoáveis e válidos, ou por desproporcionados e violadores de princípios da boa fé, devendo impedir-se a sua actuação.
No respeitante às condições pessoais da autora, sem que se esqueçam os demais elementos provados sobre a doença que a atingiu, encontra-se provado (itens 9º e 10º, 16º e 17º) o seguinte:
“A autora apresenta diversas patologias geradoras de défice funcional permanente de integridade física e psíquica (tumor maligno com metástases e permitindo uma vida de relação, amputação da perna direita e dor de desaferentação) fixável em 73,36 %.” “ A autora necessita de auxílio de terceira pessoa.”
“As sequelas da autora são impeditivas do exercício da actividade profissional nos moldes habituais, sendo, no entanto, compatíveis com a reconversão da actividade profissional já concretizada, dentro da área da sua preparação técnico profissional, com evicção de tarefas que necessitem de esforços violentos e restrições de horários de refeições.” “A autora à data do evento era comercial em transitário de transporte de mercadorias e em 2019 retomou a sua actividade profissional na mesma empresa, no mesmo local de trabalho, exercendo a mesma actividade com reconversão profissional, passando a exercer funções de comercial interno.”
No tocante à descrição do risco coberto pelo contrato de seguro celebrado entre AA. e ré, tal como referido no item 19º dos factos provados (embora com imprecisões de transcrição, como se constata do confronto desse texto com o documento de onde foi retirado, a fls. 162 e 163, que aqui se rectificam) o art. 1º das respectivas condições especiais, relativas à cobertura complementar de invalidez total e permanente, define que a pessoa segura se encontra na situação de invalidez total e permanente “…se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamentos objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades ser superior a 66,6% que para efeitos desta cobertura é considerado como sendo igual a 100%.”
Por tal ser um dos fundamentos da impugnação da sentença, é útil ter presente que, analisado o conteúdo desta cláusula, logo se constata que a certificação do estado físico do segurado através de um comprovativo de que se encontra reformado por invalidez não é requisito para o preenchimento do conceito de invalidez total e permanente, isto é, do sinistro coberto pelo contrato. Em qualquer caso, cumpre atentar em que também não se provou [cfr al. j) dos factos não provados] que tenha sido por essa razão que a ré recusou o cumprimento do contrato.
Se fosse esse - isto é, a ausência de um comprovativo de reforma por invalidez - o motivo invocado para o não cumprimento do contrato, logo se reconheceria a falta de razão da seguradora, por isso não ser um dos requisitos contratualmente estipulados. Com efeito, cumpriria verificar se a autora estava nas condições expressamente constantes na cláusula e, se isso acontecesse, indiferente seria que tivesse obtido, ou não, o reconhecimento do direito a reforma por invalidez.
Não será, pois, esse o cerne da questão.
Diferentemente, o problema coloca-se na falta de preenchimento dos pressupostos do conceito de invalidez total e permanente fixado no contrato cuja verificação consubstancia o sinistro coberto pelo seguro e no seu confronto com um eventual juízo de desproporção desses pressupostos, por fazerem recair o risco do contrato desequilibradamente sobre o segurado, esvaziando o efeito útil dessa contratação. O mesmo é dizer-se, por levarem a uma equação contratual em que ao segurado todo o cumprimento é exigido, mas sem que à seguradora se reserve um risco razoável de ocorrência do sinistro coberto e de cumprimento da obrigação que é contrapartida do preço pago pelo segurado, in casu, pelos autores.
Tais pressupostos, descritos na cláusula contratual citada, são os seguintes:
- Que o segurado fique total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada;
- Que isso decorra de doença ou acidente;
- Que essa incapacidade proceda de fundamentos objectivos, clinicamente comprováveis;
- Que não seja possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais;
- Que, em qualquer caso, lhe seja atribuído um grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, superior a 66,6%.
Não obstante se integrar no texto desta cláusula um elenco de causas que podem originar a situação de incapacidade ali constante (paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho), esse elenco é meramente exemplificativo e nenhum relevo assume, designadamente no caso em apreço onde é inequívoco que a situação clínica da autora lhe adveio da grave doença de que foi acometida.
Verificamos, então, que o risco coberto é, na essência desta cobertura de invalidez, a incapacidade total de exercício de uma actividade remunerada. Compreensivelmente, essa incapacidade tem de ser objectivamente verificável e tem de ser definitiva, isto é, sem expectativa de qualquer reversibilidade. Depois, como complemento, exige-se que essa incapacidade se traduza num grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, superior a 66,6%.
Perante esta definição do risco coberto, um sinistro apto a determinar a responsabilidade da seguradora não é meramente aquele acidente ou doença de que derivem lesões irreversíveis e determinantes de um grau de incapacidade superior a 66,6%. Será, isso sim, o constituído por doença ou acidente de que resulte uma situação clínica definitiva, determinante de uma incapacidade total de exercício de uma actividade remunerada.
Na economia desta previsão, a incapacidade de exercer uma actividade remunerada não é algo que esteja acrescentado à cobertura de um risco constituído por lesões determinantes de um grau de incapacidade superior a 66,6%. O risco é outro e este valor é previsto apenas como válvula de segurança de um grau de incapacidade suficientemente elevado para ser coerente com aquele risco, de incapacidade de exercício de qualquer actividade remunerada.
Neste contexto, é evidente o não preenchimento daqueles pressupostos pelo estado da autora, pois que se provou que esta, não obstante a grave doença que lhe adveio, bem como as sérias e relevantes consequências que dali lhe resultaram, continua a exercer profissão remunerada, dentro da sua área profissional, após reconversão da actividade que desenvolvia, com exclusão de tarefas que impliquem esforços violentos e com exigências relativas ao horário de refeições (item 10 dos factos provados). Aliás, nem sequer foi apurado, já que nem sequer fora alegado, que a autora tenha enfrentado qualquer perda remuneratória em razão da sua condição pessoal e da sua situação clínica actual.
Nestas condições, poder-se-á considerar tal cláusula como abusiva, ofensiva do princípio da boa fé na celebração do contrato, por violar a expectativa contratual dos segurados e esvaziar, para eles, a respectiva utilidade? Deveria, simplesmente, excluir-se o requisito relativo à impossibilidade de exercício de qualquer actividade remunerada, bastando a impossibilidade de continuação de exercício da actividade profissional nos moldes habituais, associada àquele grau de incapacidade superior a 66,6%?
A busca da resposta a esta questão leva-nos a ponderar também a vocação deste contrato de seguro: ele tende a prevenir o risco de situações (morte, acidente ou doença grave e incapacitante) por via das quais qualquer dos AA. possa ficar impossibilitado de cumprir os contratos de mútuo celebrados com o E…, cabedo então à seguradora suprir essa impossibilidade por via do pagamento do capital em dívida.
Ora, perante qualquer situação de doença de que não derive a prevista incapacidade de exercício de uma actividade remunerada, não se indiciará a impossibilidade de cumprimento dos compromissos para com o banco mutuante. Então, em coerência com isso, não se justifica concluir pela verificação do risco previsto no contrato de seguro, ou, o mesmo é dizer-se, não se concluir pelo risco defraudamento da expectativa do tomador e beneficiário do contrato de seguro, que impôs a sua celebração a par da celebração dos contratos de mútuo.
Parecerá, assim, não ser desequilibrada a concepção da cobertura contratual de um risco que se não verificará quando, apesar de doença grave ou acidente, o segurado continue a poder desenvolver uma actividade remunerada, continuando a dispor de meios que o habilitam a cumprir o contrato de mútuo com o qual o de seguro está conexionado.
Se nesta perspectiva falham razões para que se possa admitir a qualidade abusiva da referida cláusula contratual, ao estabelecer como essência do risco coberto a incapacidade de exercício de uma actividade remunerada, também na perspectiva dos próprios segurados devemos concluir pela ausência de tais razões.
Como se referiu no Ac. do TRG de 13/9/2018 (proc. 428/17.7T8FAF.G1) um declaratário normal, colocado na posição dos aqui AA, há-de deduzir do comportamento do declarante (art. 236º, n.º 1 do CC), em função do texto da cláusula em análise (art. 238º, n.º 1 do CC), que a cobertura do contrato de seguro corresponde a doença ou acidente que deixe qualquer deles total ou definitivamente incapaz para o exercício de uma actividade remunerada. Não bastará “(…)uma qualquer redução da capacidade de trabalho, nem uma impossibilidade de exercer qualquer atividade se esta não for remunerada, pois que se assim fosse não se considerariam os interesses da seguradora, mas apenas os interesses da pessoa segurada. O risco coberto seria desmesurado. A seguradora não teria aceite celebrar o seguro para todo esse risco, nem a boa fé o imporia.
Assim, invalidez, para efeitos de risco coberto por um seguro, tem que ser um estado de uma pessoa que a incapacite, completa e definitivamente, de exercer a sua profissão (entendida esta como atividade remunerada).
Daí que se justifique o acrescentamento do qualificativo de ‘total’, por assumir um significado mais grave: uma “invalidez total” já terá que ser vista como o estado de uma pessoa que a incapacite, completa e definitivamente, de exercer a sua profissão ou qualquer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões.(…).
Socorrendo-nos a propósito, do decidido no acórdão do STJ de 9/07/2014 (relator Silva Gonçalves), disponível in www.dgsi.pt., dir-se-á que a definição de “invalidez total e permanente”, a densificar, “pressupõe uma situação de total impossibilidade de a pessoa dela afrontada poder angariar os indispensáveis proventos à sua sobrevivência e, ainda, que essa contingência esteja inflexivelmente consolidada, isto é, quando o segurado, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais”.
Entendemos, assim, que na definição do conceito de invalidez total e permanente, estabelecida na cláusula 1ª das Condições especiais do contrato de seguro que integra a causa de pedir nesta acção, não se adoptou uma solução de tal modo apertada que seja praticamente impossível declarar verificado o sinistro coberto, nem cujos termos constituam uma violação do princípio da boa fé, por prevenirem a efectivação da responsabilidade da seguradora para além do que fosse expectável, em função dos termos do próprio contrato.
Com efeito, os termos de definição do sinistro coberto pelo contrato resultam precisos, prevendo uma hipótese que é razoável admitir como pressuposto de actuação do contrato de seguro, e não aquilo que, no Ac. do TRG de 11/17/2017 (proc. nº 1301/15.9T8VCT.G1, em dgsi.pt) se designou por “um esvaziamento irrazoável e excessivo da garantia do seguro, contrário à boa fé com que ambas as partes estão obrigadas a actuar não só na formação, mas também na execução do contrato”, por exigir uma “necessária verificação cumulativa de um elenco de plúrimas situações (nomeadamente, somando a um elevado grau de incapacidade, a insusceptibilidade completa e definitiva para o exercício da profissão habitual ou de qualquer actividade remunerada compatível com os conhecimentos e aptidão do segurado, ou a necessidade da assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária)”.
Diferentemente, a cobertura contratada pelos autores, através do contrato em causa, foi a destinada a responder a uma situação de incapacidade de tal modo grave que exclui a sua aptidão para continuarem a desenvolver uma actividade remunerada, a qual haveria de corresponder, pelo menos, a um grau de incapacidade de 66,6%.
A essa cobertura não foram adicionadas condicionantes sucessivas, tendentes a prevenir, requisito a requisito, a responsabilização da seguradora, cada vez mais abstractas e sem conexão com o próprio objectivo do contrato.
Pondere-se, para melhor compreensão, a hipótese de a verificação do estado de invalidez exigir a dependência da pessoa segura do auxílio de 3ª pessoa. Como se assinala em diversa jurisprudência, um tal requisito poderá ser tido como excessivo, violador do princípio da boa fé, desde logo em razão da ausência de qualquer conexão entre a causa do contrato de seguro, quando esta seja um contrato de crédito conexo, e o sinistro. Com efeito, nessa hipótese, a causa do contrato de seguro, constituída pelo interesse do banco no reembolso do capital mutuado, nenhuma conexão apresenta com a exigência da dependência de 3ª pessoa para o preenchimento do conceito de sinistro previsto no contrato de seguro (v.g., de invalidez ou incapacidade absoluta). Por isso, essa exigência, complementar em relação à verificação de um elevado grau de incapacidade física, pode ser razoavelmente classificada como injustificada e exclusivamente estabelecida para dificultar a responsabilização da contraente seguradora. Daí a resposta da jurisprudência, classificando como desproporcionada uma tal cláusula e declarando a sua nulidade.
No entanto, se este exemplo se cita, isso serve apenas para demarcar dele a situação sub judice, onde os elementos do caso são diferente s e merecem tratamento diferente. No caso, é a própria cobertura que visa tutelar um tipo de sinistro que não se traduz apenas num determinado grau de incapacidade, mas que, diferentemente, é representado por uma incapacidade de aquisição de rendimentos conexa com uma incapacidade de desenvolvimento de uma actividade remunerada adequada à aptidão da pessoa segura, fundadas nas consequências de uma doença grave ou de um acidente. Foi em função desse risco que a seguradora decidiu contratar e, se o risco fosse diferente, designadamente constituído apenas por um determinado grau de incapacidade física independentemente dos resultados funcionais para a pessoa segura, diferentes haveriam de ser as condições da sua assunção pela seguradora.
Por todo o exposto, e tendo presente o regime legal aplicável, em especial o constante do art. 15º e 16º do D.L. 446/85, de 25/10, forçoso se torna concluir que a cláusula contratual sob análise, constante do art. 1º das Condições Especiais do Contrato de Seguro celebrado entre as partes, contendo uma definição do estado de invalidez total e permanente segundo a qual a situação clínica e a condição pessoal da autora o não preenchem, não se revela ofensiva do princípio da boa fé, nem violadora da confiança que os autores possam ter adquirido por via da celebração de tal contrato, designadamente quanto ao objectivo a tal subjacente (no mesmo sentido, em situação quase totalmente idêntica, cfr. Ac. do TRL de 15-12-2020, proc. nº 25873/16.1T8LSB.L1-7, em dgsi.pt) .
Prejudicada fica, assim, a declaração da sua nulidade, em razão do que se mostrava ab initio inútil a audição da ré sobre a questão suscitada pela apelante, mesmo perante a constatação de lhe não ter sido proporcionada a oportunidade de sobre ela se pronunciar, designadamente em face da não inclusão da matéria na sentença recorrida.
Em qualquer caso, a resposta ao problema que acaba de se enunciar surge condicionada pelos termos em que os apelantes o colocaram, que não podem deixar de ter-se como difusos e diluídos entre a invocação do incumprimento de obrigações de informação, que não pode ser imputado à ré, como vimos, e também o não foi ao E…, pelo menos nestes autos; entre a alegação da violação do contrato, por exigência da comprovação de um reconhecimento ao direito de uma pensão de invalidez, que não se provou, mas no qual também assentava o que os apelantes apelidaram de inexigibilidade da cláusula em questão; e entre a arguição da própria nulidade da cláusula, por dever ter-se por proibida, em face do seu conteúdo desproporcionado, como se teve por subjacente à citação de jurisprudência correspondente. Todavia, pelos motivos expostos, sob nenhuma destas perspectivas se pode reconhecer razão aos apelantes.
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É, assim, possível enunciar nesta fase duas conclusões: por um lado, que a situação clínica da autora e a sua condição pessoal não habilitam a que possa afirmar-se que se encontra num estado de invalidez total e definitiva, em face dos termos em que tal estado é definido no contrato de seguro de vida e de invalidez celebrado entre as partes; por outro lado, que inexiste razão para afirmar a nulidade dessa mesma cláusula.
Por isso, e embora em termos complementares aos considerados na decisão recorrida, só pode concluir-se pelo não preenchimento dos requisitos necessários à actuação do referido contrato de seguro, cabendo confirmar, nessa parte, a sentença em crise.
Ainda por consequência, cumpre afirmar a total ausência de pressupostos que permitam condenar a ré D… no reembolso do valor correspondente aos prémios de seguro pagos pelos autores, desde Maio de 2018, já que tal contrato se mantém em vigor, do que decorre o direito da seguradora ao recebimento desses mesmos prémios.
Por fim, quer em razão da ausência de qualquer facto que demonstre qualquer actuação discriminatória da ré D… para com a autora, em razão de deficiência, quer por inexistir qualquer facto provado que permite identificar qualquer dano, que os autores jamais descreveram, restará concluir pelo acerto da decisão recorrida, ao decretar a improcedência do pedido correspondente. Com efeito, de modo algum se pode concluir que os termos da definição do conceito de invalidez total e permanente constituam relativamente à autora uma compulsão ao ingresso na situação de reforma por invalidez, já que a questão se resolve a montante disso mesmo: a permanência da sua capacidade para o desenvolvimento de um actividade remunerada, compatível com as suas aptidões e com a sua actividade anterior, inibe a identificação do sinistro contratualmente previsto, não impelindo a pessoa segura à reforma por invalidez.
Também em relação a tais questões haverá, pois, de ser confirmada a decisão recorrida, na total improcedência da apelação.
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Em conclusão, na ausência de outras questões a decidir, resta concluir pela improcedência da apelação, na confirmação da decisão em crise, embora com fundamentos não totalmente coincidentes com os da sentença recorrida.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, na confirmação da decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Porto, 23 de Novembro de 2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda