Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
245/16.1IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ERMELINDA CARNEIRO
Descritores: LEI NOVA
APLICAÇÃO RETROACTIVA DA LEI MAIS FAVORÁVEL
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP20181017245/16.1IDAVR.P1
Data do Acordão: 10/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 44/2018, FLS 228-240)
Área Temática: .
Sumário: I – Já após a prolação da sentença recorrida entrou em vigor a Lei nº 94/2017, de 23/08, extinguiu a pena de prisão por dias livres aqui aplicada ao arguido.
II – Assim sendo, impõe-se que seja equacionada a aplicação do regime de permanência na habitação, em termos de aplicação da lei penal no tempo, na consideração da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
III – Incumbe à 1ª instância equacionar a ponderação da aplicação de tal regime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 245/16.1IDAVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis

Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
No âmbito do Processo Comum identificado supra foram submetidos a julgamento, B..., Lda. e C..., tendo a final sido proferida sentença, depositada em 20 de novembro de 2017, que condenou os arguidos:
- C..., como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. no artigo 105º nºs. 1, 2 e 4 do RGIT na pena de seis meses de prisão a cumprir em dias livres, em 36 períodos correspondentes a fins de semana;
- B..., Lda., como autora de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. nos artigos 7º nºs 1 e 3 e 105º nºs. 1, 2 e 4 do RGIT na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, C... nos termos constantes da motivação cujo teor se dá por reproduzido, a qual finalizou concluindo da forma seguinte: (transcrição)
«CONCLUSÕES:
1. O arguido vem condenado por sentença do tribunal de primeira instância por não ter entregue, na qualidade de gerente, os valores do I.V.A. respeitantes ao primeiro trimestre de 2016, da sociedade – também ela arguida – no valor de € 22.604,40 e assim conseguir obter benefícios económicos indevidos e causar prejuízo ao Estado.
2. O tribunal deu como factos provados todos os factos constantes da acusação pública.
3. Tendo dado como factos não provados que “o arguido se debateu com dificuldades para conseguir com que os clientes pagassem as encomendas na totalidade e atempadamente; que só no período da crise económica o arguido deixou de cumprir as suas obrigações fiscais; que os créditos da sociedade arguida foram penhorados pelas finanças e por causa disso o arguido não procedeu ao pagamento das quantias fiscais; e que o arguido tentou contrair empréstimos para pagar as dívidas fiscais".
Em vez de tais fatos deveria o tribunal de primeira instância ter dado como provado - tendo em consideração as declarações do próprio recorrente quer da testemunha de defesa D... - que:
4. "A -O arguido efetivamente não entregou o valor do I.V.A. do período em causa nos presentes autos à Administração Fiscal.
B - Tendo no entanto tais fatos ocorrido devido:
- à diminuição do volume de encomendas naquele período temporal;
- á existência de um número reduzido de clientes;
- o aumento no mercado dos produtos chineses;
- a redução das receitas da sociedade arguida;
- o estado de necessidade de pagar os salários aos trabalhadores; C - Mediante o cenário supra descrito, contraiu o arguido empréstimos junto a particulares para liquidar a dívida;
5. Assim, e tendo em conta que não foram tais fatos considerados provados, com o devido respeito se alega que a apreciação da matéria factual considerada provada padece do vício de insuficiência, existindo também uma omissão quanto à factualidade constante na contestação e da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, nos termos do art. 410°, n° 2, alínea a) do C.P.P. e art. 32° da C.R.P., inconstitucionalidade que aqui se argui para os devidos e legais efeitos.
6. A testemunha de defesa D... ao longo de todo o seu depoimento refere e explica as dificuldades económicas pelas quais a sociedade arguida passou e originou a presente situação.
7. Nomeadamente, ao longo do seu depoimento a referida testemunha refere que tem conhecimento direto dos factos em causa e que conhece o aqui gerente e recorrente há vários anos.
8. Refere também que ele sempre tentou proceder ao pagamento dos valores em dívida sendo certo que nunca conseguiu dado o decréscimo de encomendas.
9. Por esta testemunha é referido também que os salários de todas as funcionárias ficaram liquidados, sendo certo que, e de acordo com a contestação apresentada, o valor em dívida ao Estado pelos arguidos não foi utilizado em beneficio próprio mas sim para satisfação das contas correntes da empresa e salários das funcionárias.
10. Ficou também comprovado nos autos o pagamento de um valor de 4.000,00€, em 11/08/2016, a título de pagamento por conta, que o aqui Recorrente efetuou para amortizar o valor em dívida ao estado, o que vem comprovar os esforços que este efetivamente fez para conseguir liquidar o valor em dívida, sem sucesso.
11. Tendo ficado também comprovado pelo depoimento da referida testemunha que o aqui Recorrente é um homem "sério, correto, lutador", "que por diversas vezes chegou a pedir dinheiro emprestado para o pagamento das dívidas.
12. A decisão ora recorrida condenou o aqui recorrente na pena de seis meses de prisão efetiva a cumprir no regime de dias livres (art. 45° do C.P. em conjugação com o art. 487° e art. 488° do C.P.P.), nomeadamente em 36 (trinta e seis) períodos correspondentes a fins de semana, cada um deles com a duração de 36 horas, devendo iniciar-se às 9h00 de Sábado e terminar às 21h00 de Domingo.
13. Ficou nos autos provada a situação sócio - económica do recorrente, nomeadamente que:
e) O recorrente é casado e vive em casa do seu filho;
f) Aguarda que lhe seja atribuída a pensão de reforma que requereu e é o gerente de facto da sociedade "E.... Lda.";
g) A esposa do recorrente é funcionária da referida sociedade auferindo um salário que corresponde ao salário mínimo nacional;
h) No caso concreto, o recorrente encontra-se inserido num contexto social normal, com responsabilidades laborais decorrentes da direção efetiva da referida sociedade, sendo responsável pelos cerca de 40 trabalhadores da mesma;
14. O aqui recorrente tem a seu cargo, após o óbito da sua progenitora, o seu irmão invisual de nascença, com cerca de 50 anos de idade, o qual vive em casa do recorrente e sendo este quem lhe fornece a alimentação, vestuário, calçado e toda a ajuda necessária no seu dia-a-dia, sendo que não tem quem o substitua nestas tarefas.
15. O recorrente considera-se reabilitado socialmente, em meio familiar e laboral idóneo, pelo que a referida condenação é demasiado pesada para o mesmo e iria prejudicar fortemente o recorrente que carece de todo o tempo que possui para gerir a sua empresa atual.
16. Sendo que a pena aplicada irá restringir a sua conduta social, ou seja, pode levar mesmo ao desmoronamento de 50 anos de trabalho ativo por parte do recorrente.
17. Pelo que vem assim o recorrente requerer que seja revogada a pena aplicada e a mesma substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do art. 58° do C.P.».
Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo deve ser rejeitado por manifesta improcedência ou, se assim não for entendido, não deverá merecer provimento.
Neste Tribunal da Relação do Porto o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do Código Processo Penal não foi apresentada qualquer resposta.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – Fundamentação
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Pretende o recorrente que a pena de prisão que lhe foi aplicada seja substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, alegando em síntese que o cumprimento da pena de prisão, ainda que em regime de prisão por dias livres, iria prejudicar fortemente o recorrente não só em termos familiares, mas também por carecer de todo o tempo para gerir a sua empresa atual.
Ponderando os antecedentes criminais do arguido e as sanções de que já foi alvo, conclui-se na sentença recorrida que «o arguido já sofreu várias condenações pelo mesmo crime, tendo beneficiado da suspensão de execução da pena de prisão (suspensão simples e prisão substituída por TFC) e, não obstante, cometeu e continua a cometer factos iguais aos daqueles em apreciação, denotando que não é possível formular, relativamente ao seu comportamento futuro, um juízo de prognose favorável que permita afirmar a capacidade de o arguido sentir a ameaça a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida e capacidade de vencer a vontade de delinquir».
Com efeito, o arguido sofreu já as seguintes condenações:
- por sentença proferida em 22.05.2006, na pena única de 440 dias de multa pela prática de 2 crimes de frustração de créditos e um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, praticados durante os anos de 1997 a 2000 (pena já declarada extinta);
- por sentença proferida em 11.11.2010, na pena de 150 dias de multa pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, ocorrido no ano de 2008 (pena já declarada extinta);
- por sentença proferida em 14.04.2011, na pena de 300 dias de multa, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, ocorrido no ano de 2009 (pena já declarada extinta);
- por sentença proferida em 27.06.2011, na pena de 9 meses de prisão suspensa pelo período de 4 anos, condicionada ao pagamento em igual período da quantia de € 125.719,09 à Segurança Social, ocorrido no ano de 2004;
- por sentença proferida em 15.04.2013, na pena de 12 meses de prisão substituída por 365 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, ocorrido no ano de 2011 (pena já declarada extinta);
- por sentença proferida em 09.01.2014, na pena de 20 meses de prisão substituída por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, ocorrido no ano de 2012 (pena já declarada extinta).
Ou seja, o arguido/recorrente já beneficiou de penas não detentivas, três das quais em substituição de penas de prisão, sendo duas das penas de prisão substituídas por prestação de trabalho a favor da comunidade, e a prática dos factos pelos quais se encontra a ser julgado, reportada ao ano de 2016, é suficientemente elucidativa de que a substituição pretendida (por PTFC) não se mostra suficiente e adequada às finalidades da punição. Bem pelo contrário, todas as anteriores condenações não surtiram o efeito contentor desejado, mostrando-se logradas todas as expectativas de prevenção especial que com as mesmas se visaram alcançar. Com efeito, para além dos factos agora em apreciação, o arguido admitiu em audiência ter constituído entretanto uma outra sociedade, da qual é gerente de facto, e no âmbito da qual confessou não cumprir as obrigações fiscais e à Segurança Social.
Como bem refere a ilustre Magistrada do Ministério Público na 1ª instância, «o arguido denota um quadro claramente negativo de uma personalidade manifestamente desconforme ao direito, de molde a não justificar como razoável um juízo de prognose positiva”... “a sua atuação ... revela a insistência do arguido em atuar em contrariedade com as regras de direito; o contínuo desprezo do cumprimento das suas obrigações tributarias e nefastas consequências para toda a comunidade ...; como mais a absoluta indiferença ante o aviso em que se traduziram as condenações anteriores, não tendo qualquer das penas anteriores sortido qualquer resultado ao nível da sua ressocialização».
A substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, como pretendido pelo arguido, traduziria um sentimento de quase impunidade que a comunidade não compreenderia, frustrando as necessidades de prevenção geral negativa.
Razão por que se julga igualmente improcedente este fundamento do recurso.
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Contudo, como foi realçado pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a Lei nº 94/2017 de 23 de agosto, que procedeu à alteração de diversas normas do Código Penal, extinguiu a prisão por dias livres aqui aplicada ao arguido.
Passou a admitir-se agora expressamente que a pena de prisão não superior a dois anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir (artigo 43º nº 1 alínea c) do Código Penal).
A nova lei traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado. Foi, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semidetenção, alterando-se (através da ampliação do respetivo campo de aplicação) o regime de permanência na habitação.
O novo regime não se encontrava em vigor à data da prolação da decisão recorrida, pelo que a 1ª instância não o poderia ter em consideração.
Considerando, porém, que a referida alteração legislativa entrou em vigor em 22 de novembro de 2017, ou seja, antes do trânsito da decisão recorrida, impõe-se que seja equacionada a aplicação do novo regime de permanência na habitação, em termos de aplicação da lei penal no tempo (artigo 2º nº 4 do Código Penal), na consideração do princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa).
A norma transitória do artigo 12º da citada lei permite concluir que existe um juízo do legislador sobre o carácter mais favorável ao arguido do regime de obrigação de permanência na habitação em face ao cumprimento da prisão contínua, como nos parece ser claro face do contexto normativo-legal e também do grau de privação de liberdade que cada uma das penas contém.
Com o regime de permanência na habitação evitam-se as consequências perversas da prisão continuada, não deixando de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação para o crime em causa. Trata-se de regime que tem justamente por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado, nos casos em que não é possível renunciar à ideia de prevenção geral.
Contudo, a obrigação de permanência na habitação assenta em pressupostos e requisitos, previstos no artigo 43º do Código Penal, na sua nova redação, como a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância e o consentimento do próprio condenado, que terão de ser obtidos e verificados pela 1ª instância, depois de devidamente equacionada a “adequação e suficiência” desta forma de execução ou de cumprimento da pena de seis meses de prisão a cumprir pelo condenado, eventualmente subordinada ao cumprimento de regras de conduta previstas no nº 4 do citado artigo 43º.
Assim, não por via dos fundamentos invocados pelo arguido, ora recorrente, mas sim por virtude da aplicação da nova lei penal de conteúdo mais favorável, terá procedência o recurso interposto, relativamente à eventual execução da pena de 6 meses de prisão em regime de permanência na habitação, cuja ponderação deverá agora ser equacionada pela 1ª instância.
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III – Decisão
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido C..., embora com fundamento diverso dos invocados, determinando-se que a 1ª instância equacione a possibilidade de cumprimento pelo arguido da pena de seis meses de prisão em regime de permanência na habitação e, em caso afirmativo, averigue da verificação dos respetivos pressupostos (artigo 43º nº 1 alínea c) e nº 4 do Código Penal), decidindo-se, então, em conformidade.
Sem tributação.

Porto, 17 de outubro de 2018
(elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores – artigo 94 nº2 do Código Processo Penal)
Maria Ermelinda Carneiro
Raúl Esteves