Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
479/22.0T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
BEM COMUM
ATO DE ADMINISTRAÇÃO
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RP20240305479/22.0T8MCN.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia, mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela; é objeto não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade coletiva ou de mão comum.
II – Aspeto especialmente significante do dito regime é: antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem.
III – O ato praticado por um dos cônjuges, traduzido simplesmente no depósito de dinheiro que é bem comum em conta bancária da qual é único titular, constitui ato de administração legítimo.
IV – Por não resultar de tal ato qualquer deslocação patrimonial da esfera própria do cônjuge não depositante para a esfera própria do cônjuge depositante, a natureza de bem comum do dinheiro depositado não sofre qualquer alteração.
V – Daí que que não tenha cabimento equacionar o instituto do enriquecimento sem causa, com previsão no artigo 473.º e ss. do CCivil, como fundamento do direito do cônjuge não depositante de lhe ser restituído pelo cônjuge depositante o dinheiro depositado, no todo ou em parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 479/22.0T8MCN.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Cível de Marco de Canaveses]


Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjuntos: Márcia Portela
João Proença




SUMÁRIO:
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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

RELATÓRIO

1.

AA intentou a presente ação declarativa de condenação sob processo comum contra BB.

Pediu que a Ré seja condenada a restituir-lhe o montante de 16.050,00€, acrescida de juros à taxa legal.

Alegou, para tanto, em síntese, que foi casado com a Ré e, por causa do divórcio, foi decidido vender um imóvel comum, tendo a ré ficado com o cheque destinado ao Autor para pagamento da sua parte do preço do imóvel.

2.

A Ré contestou, invocando a prescrição do direito pretendido fazer valer pelo Autor e, em todo o caso, que o negócio foi celebrado na constância do matrimónio, razão pela qual o dinheiro da venda do imóvel integra o património comum do casal, não existindo deslocação patrimonial, para além de ter sido o Autor quem acordou com a Ré que tal quantia ficava para esta, uma vez que tinha a seu cuidado e guarda os dois filhos menores do casal, não existindo a falta da causa justificativa; aproveitou ainda para pedir a condenação do Autor como litigância de má-fé.

3.

Respondeu o Autor, pugnando pela improcedência da matéria de exceção.

4.

Foi proferido despacho saneador que julgou válida e regular a instância; identificou-se o objeto do litígio e foram elencados os temas da prova.

5.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi prolatada sentença, com o seguinte dispostivo:

[Nestes termos julgo a ação totalmente procedente por provada e em consequência condeno a ré a restituir ao autor a quantia de €16.050,00 com a qual se enriqueceu à custa do empobrecimento do autor, acrescida de juros de mora a contar desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Absolvo o autor do pedido de condenação em litigância de má-fé.]

6.

Inconformada, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

1.ª A douta sentença recorrida padece de erros notórios ao nível da decisão da matéria de facto e do respetivo enquadramento jurídico.

I – RECURSO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

2.ª Mesmo que venha a ficar intacta, no âmbito do presente recurso, a factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida, sempre esta padecerá de erro de julgamento quanto ao seu enquadramento e solução jurídica adotada, o que imporá a sua revogação.

Da prescrição do direito reclamado na ação

3.ª O Autor teve conhecimento do direito que aqui alega (sem prejuízo de o mesmo não lhe assistir), e bem assim da pessoa alegadamente responsável (a Ré, in casu e segundo o alegado pelo Autor) em 22 de Setembro de 2017 (data da outorga do negócio de compra e venda do imóvel) – facto 15 dos provados,

4.ª A presente ação deu entrada em 21 de Abril de 2022 – data em que se encontrava já decorrido o prazo prescricional previsto pelo artigo 482º do CC.

5.ª Pelo que o direito que o Autor pretende fazer valer nestes autos encontra-se prescrito, assistindo à Ré a faculdade de recusar o cumprimento da prestação e opor-se ao exercício de tal direito (ainda que o mesmo não assista ao Autor, e sem conceder): 304º CC.

6.ª Se o Tribunal rejeita a tese da Ré de que não houve deslocação patrimonial em virtude de vigorarem ainda os efeitos do casamento à data dos factos, e pelos quais aquele património tinha ainda carácter comum – não pode então vigorar o regime prescricional previsto legalmente para, exatamente, acautelar os efeitos que a relação matrimonial tem nas vicissitudes do património comum ou conjugal.

7.ª A prescrição importa a absolvição integral do pedido, pelo que configura exceção perentória que expressamente se invoca: 576º CC.

8.ª Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 304º e 482º do Cód. Civil, sem prejuízo do douto suprimento.

Da falta de verificação dos requisitos do enriquecimento sem causa

9.ª Requisito necessário para a ocorrência de um enriquecimento ilícito é, assim, que tenha havido uma deslocação patrimonial da esfera própria do alegado empobrecido para património alheio e próprio do enriquecido, necessariamente diverso do património do empobrecido, requisito que não se verifica no caso dos autos.

10.ª No caso das partes, os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao dia 31 de Dezembro de 2018 - após a celebração do negócio de compra e venda objecto dos autos, outorgado em 22 de Setembro de 2017.

11.ª O produto da venda do imóvel em apreço, atenta a natureza de bem comum do mesmo, adquire também natureza de bem comum, incluído no património conjugal e necessariamente não configura património próprio do Autor, e não integrou património alheio ao ser “apropriado” pela Ré.

12.ª Inexiste assim qualquer “deslocação patrimonial” causal de qualquer enriquecimento da Ré e respetivo empobrecimento do Autor,

13.ª Acresce ainda que, tratando-se efetivamente de património comum a importância que, alegadamente e sem conceder, terá sido “apropriada” pela Ré terá de falecer também o carácter de última ratio ou subsidariedade do instituto do enriquecimento sem causa, pois temos que, então, a lei facultava ao Autor (supostamente empobrecido) outro meio de ser restituído/indemnizado, que não aquele do qual veio lançar mão nesta acção – mas antes dentro da tutela do património conjugal, regulado por norma diversa e prevendo meio de acção também diverso.

14.ª Meio esse que tem prevalência obrigatória sobre o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa – necessariamente subsidiário.

15.ª No entanto, o tribunal de primeira instância rejeita os argumentos da Ré que vieram de expor-se, com argumentos que não podem ser acolhidos.

16.ª O Tribunal parece confundir a noção de titularidade/propriedade do património com disposição do património: é perfeitamente irrelevante, para a determinação da natureza/titularidade do bem (dinheiro) em causa, que o mesmo tenha sido depositado em conta titulada apenas pela Ré.

17.ª Não perde a natureza de bem comum o dinheiro depositado ou creditado em conta bancária titulada por apenas um dos cônjuges, como é amplamente reconhecido no nosso ordenamento jurídico.

18.ª Ficou intacta a natureza de bem comum do dinheiro (sem conceder), bem como intactos se mantiveram os meios de defesa de que o Autor dispunha para sindicar a respetiva disposição e administração do património comum pela Ré (dos quais não lançou mão).

19.ª É de resto inequívoco que resulta do texto recorrido que o Tribunal nunca deixa de considerar o dinheiro titulado pelo cheque endossado pelo Autor e que foi depositado em conta da Ré como bem comum – a sentença fala em “subtração do direito a usufruir do bem comum”.

20.ª No entanto, na ilação jurídica que retira desse facto, parece tentar fazer operar uma pretensa justiça material ao caso concreto em frontal violação com o regime decorrente do art. 1789º, nº 1 do CC, fazendo-o sem qualquer fundamentação jurídica válida.

21.ª Nos termos supra expostos, mal andou a sentença recorrida ao conceder provimento à pretensão do Autor, como o que violou o disposto nos artigos 1789º, nº 1, 473º, nº 1 e 474º do CC, sem prejuízo do douto suprimento.

Do endosso

22.ª Está provado nos autos o ato de endosso, pelo Autor, de um cheque emitido à sua ordem: trata-se do cheque identificado no ponto d) do item 10 dos factos provados.

23.ª A redação do facto 11 indica já que a entrega ao Autor daquele cheque identificado em 10 –d) visava já o ato do endosso, por aquele – “para este o endossar”.

24.ª O acervo dos factos provados nada mais refere quanto ao referido endosso: nem a modalidade nem a forma do endosso (que é um conceito jurídico, por si mesmo) que o Autor terá procedido sobre o especifico cheque identificado em 10, d).

25.ª O endosso é uma forma específica e legítima de transmissão dos títulos cambiários, e no caso concreto dos cheques (artº 14º, § 1º, da LUC), e traduz-se num ato jurídico voluntário e unilateral de declaração de vontade por parte do endossante, no sentido de proceder à transmissão a terceiro do titulo cambiário por si titulado e com ele o respetivo direito de crédito ali contido.

26.ª O endosso configura um negócio jurídico, que “transmite todos os direitos do cheque”, e confere ao seu portador o direito de obter o respetivo pagamento.

27.ª Invoca-se a jurisprudência do acórdão TRC. 1-2-2011.

28.ª Da demais factualidade dada como provada, resulta também inequívoco que, na sequência do endosso levado a cabo pelo Autor, foi a Ré que passou a ser portadora do cheque endossado, sendo inquestionável ter ocorrido a tradição do cheque endossado: foi ela quem o recolheu e guardou no termo do ato notarial – facto 14 (sem prejuízo da impugnação da redação desse facto 14, adiante, quanto às expressões ”pertencente”, de cariz conclusivo e de Direito),

29.ª E foi a Ré que o apresentou a pagamento/depósito, em conta por si titulada – o que veio a ser aceite, sem reservas, pelo banco sacado – facto 17.

30.ª Posto isto, e estabelecida a relação cartular imanente do endosso, é necessário apreciar de que modo poderia o Autor fazer opor à Ré portadora uma exceção pessoal que a impedisse de obter pagamento através do cheque endossado de que foi portadora.

31.ª O Autor não desencadeou o procedimento de revogação do cheque, por falta/vício da vontade, junto da entidade bancária competente – como seria o mais natural de acordo com a versão que traz a Tribunal.

32.ª Competia ao Autor alegar e provar factos que se traduzissem em razão pessoal oponível à Ré no sentido de demonstrar: 1 - ter o Autor incorrido em erro/vício da vontade na consumação do acto do endosso; 2 – que a Ré, com a aquisição desse endosso, o fez conscientemente em detrimento do Autor.

33.ª Manifestamente não o fez.

34.ª O Autor pretende fazer vingar a tese de que endossou o cheque por engano.

35.ª Assim sendo, entramos no domínio do erro por vício/falta de vontade negocial, para cuja verificação teria de ser alegada e provada, pelo Autor, a factualidade atinente à verificação judicial de tal vício, o qual, de resto, é conducente à anulabilidade da declaração negocial, vício esse cuja declaração também não foi pedida nos autos – pese embora sempre estivesse já caducado o direito à respetiva arguição, pelo Autor.

36.ª Ficou o Autor muitíssimo aquém do cumprimento do ónus de prova que sobre si incumbia no sentido de produzir nos autos matéria de facto que demonstrasse a realidade de ter ocorrido divergência entre a sua vontade e ato material de formalização de endosso, por aposição de assinatura do seu punho, no título cambiário de que a Ré foi portadora.

37.ª Nenhum facto ficou provado no sentido de deixar assente ou sequer implícito de que o Autor endossou o cheque por engano, lapso ou equívoco, sem o pretender ter feito.

38.ª Também não se assentou factualidade suficiente para que retire a conclusão de que a Ré se apoderou do cheque da d) do ponto 10 contra a vontade do Autor.

39.ª Não cumpriu o Autor o seu ónus de prova quanto a factualidade que levasse à conclusão de que a Ré adquiriu o cheque endossado de forma consciente para causar prejuízo ao Autor.

40.ª É manifestamente insuficiente para este efeito, por ser de teor puramente conclusivo e não fáctico, a locução “pertencente ao Autor” ínsita no facto 14 e identificando o cheque endossado e que constitui objeto destes autos.

41.ª Não está assim alegada nem provada qualquer factualidade conducente à qualificação do endosso como irregular ou inválido, nem formulado foi tal pedido nos autos.

42.ª É assim completamente omissa a matéria de facto provada, quanto supra descritos pressupostos necessários à oponibilidade da relação pessoal entre endossante e endossatário, tendo sempre de prevalecer, nessa medida, a relação cartular e cambiária,

43.ª E que torna portanto legítima a obtenção do pagamento, pela Ré portadora, do direito de crédito contido no cheque em questão.

44.ª À luz do regime do instituto do enriquecimento sem causa, sempre se teria de considerar o endosso válido do cheque como causa justificativa – impedindo o acionar daquele instituto.

45.ª Mal andou a sentença recorrida ao conceder provimento à pretensão do Autor, com o que violou o disposto nos artigos 14º, 17º e 22º da LUC, 247º do CC, sem prejuízo do douto suprimento.

Ainda do não preenchimento do enriquecimento sem causa – articulação do instituto com a figura de endosso enquanto negócio jurídico

46.ª Invoca-se a jurisprudência do STJ, por acórdão de 2-2-2010 (cfr. Alegações).

47.ª Refere o citado acórdão que, para o Autor ver julgada procedente a sua pretensão tendo por base o instituto do enriquecimento sem causa, “Seria necessária a demonstração de um locupletamento sem suporte legal ou negocial.”

48.ª A causa daquela transferência patrimonial é o endosso, válido e regular, do cheque em causa nos autos, emitido pelo Autor em benefício da Ré.

49.ª O endosso configura um negócio jurídico, causal da transmissão do título cambiário em causa para a esfera da Ré, sem o qual esta não teria podido depositar o cheque em conta por si titulada.

50.ª É forçoso concluir que, sendo o endosso um negócio jurídico, e tendo o mesmo sido comprovadamente realizado pelo Autor – facto 11 – competia ao Autor enveredar pela via da anulação de tal negócio cartular, com base em demonstração erro/vício da vontade (como parecer resultar da sua tese), para obter o ressarcimento dos prejuízos sofridos, incluindo a restituição do valor do cheque – o que não fez,

51.ª Optou, antes, pelo instituto do enriquecimento sem causa, que pressupõe ausência de fonte ou suporte negocial na transmissão patrimonial que dela provém, o que não é o caso dos autos.

52.ª Tendo então optado pela causa de pedir assente no enriquecimento sem causa, teria o Autor de provar factualidade suficiente à verificação integral de tal instituto, sendo por demais patente a absoluta insuficiência do acervo de factos provados para que se declare que o Autor cumpriu com tal obrigação.

53.ª factualidade provada resulta apenas – ainda que de forma vaga e muito pouco circunstanciada – o facto de que o Autor procedeu ao endosso (negócio jurídico) de um cheque inicialmente emitido à sua ordem com o base no qual a Autora, sua posterior portadora, exerceu o direito de crédito que tal cheque titulava, por crédito em conta por si (Autora) titulada.

54.ª Mesmo que se oferecesse no caso dos autos dúvida quanto à existência de uma deslocação patrimonial e à existência de causa para a mesma (o que aqui se tem de ter presente como ocorrendo um negócio jurídico – endosso – que não foi declarado nulo nem anulável e que legitima a transferência patrimonial) - tal dúvida aproveitará sempre à Ré.

55.ª Nos termos supra expostos, mal andou a sentença recorrida ao conceder provimento à pretensão do Autor, como o que violou o disposto nos artigos 1789º, nº 1 473º, nº 1e 474º do CC, sem prejuízo do douto suprimento.

II – RECURSO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A) Introito – Breves Considerações sobre o Ónus da Prova

56.ª Relativamente à factualidade que serviria de fundamento à invalidação do endosso emitido pelo Autor, por vício da vontade/erro na sua outorga, ao conhecimento e consciência da Ré no detrimento e prejuízo para o Autor com a aceitação do endosso e apresentação a pagamento do cheque, e aos factos constitutivos do instituto do enriquecimento sem causa, o ónus da prova impendia sobre o Autor, que falhou em toda a linha quanto a essa obrigação processual, sendo a matéria de facto provada paupérrima para a corporização factual de todos os conceitos jurídicos de que dependia a procedência da ação.

B) Ponto 14 dos Factos Provados

57.ª A Ré discorda do ponto 14 da factualidade provada, em específico da inclusão do excerto “o cheque que lhe pertencia e o cheque pertencente ao Autor”.

58.ª A utilização pelo Tribunal das expressões “pertencia” e “pertencente” para se referir, respetivamente, ao cheque identificado em 10 – e) e que havia sido emitido à ordem da Ré, e ao cheque identificado em 10 – d) e que havia sido emitido à ordem do Autor é errónea, porque introduz na locução do referido facto provado uma consideração iminentemente jurídica, e não fáctica, quanto à titularidade dos cheques.

59.ª Tanto mais quando a “pertença” ou direito ao dinheiro titulado pelo cheque – e ao próprio domínio do cheque, atento o endosso e a qualidade de portadora invocada pela Ré – são ainda matérias controvertidas e a requerer análise jurídica pelo Tribunal

60.ª O conceito de “pertença” traduz-se numa ilação jurídica da qual o rol dos factos provados deve estar isenta.

61.ª Deverá assim tal ponto 14 da matéria de facto ser expurgado dos conceitos jurídicos e conclusivos de que está dotado,

62.ª E, nesse sentido, requer a Ré a alteração da sua redação para que do ponto 14 dos factos provado passe a constar: “14. Terminada a leitura da escritura e assinatura da mesma, a Ré ficou com dois cheques, o cheque emitido à sua ordem e identificado na alínea e) do ponto 10 dos factos provados, e o cheque pertencente emitido à ordem do Autor e identificado na alínea d) do ponto 10 dos factos provados, guardando-os na sua carteira.”

63.ª Nos termos supra expostos, mal andou a sentença recorrida ao conceder provimento à pretensão do Autor, como o que violou o disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC, sem prejuízo do douto suprimento.

C) Ponto 15 dos Factos Provados

64.ª Entende a Ré que o referido facto dever ser eliminado do elenco dos Factos Provados.

65.ª A fundamentação oferecida para sustentar a consideração deste facto como demonstrado, é apenas “15. Provado por acordo.” - Mas tal acordo não ocorreu.

66.ª O facto provado nº 15 é transcrito, ipsis verbis, do artigo 13º da petição inicial.

67.ª Em sede de contestação, escreveu a Ré no seu artigo 5º: “5. É falso ou inexacto o que vai alegado nos artigos 7º, 9º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 22º (excepto o facto do arquivamento do processo, que se aceita), 23º, 24º, 25º, 26º e 30º da PI – pelo que vai o seu teor impugnado.”: A Ré, cumprindo com o ónus de impugnação especificado que sobre si impende, impugnou expressamente o facto vertido no artigo 13º da petição inicial, com o que impediu o efeito previsto pelo artigo 574º quanto a tal facto alegado pelo Autor: a sua admissão por acordo.

68.ª Sublinha-se que é o próprio Tribunal que reconhece a natureza controvertida de tal facto, em sede de julgamento e antes da produção do depoimento de parte da Ré, enquanto elencava, verbalmente, os factos da petição inicial que ainda não se encontravam provados, refere expressamente o artigo 13º: excerto de 00:25 até 1:20 da gravação do depoimento de parte da Ré, captado em 23-5-2023, entre as 15:00 e as 15:22.

69.ª Em sede de depoimento de parte da Ré, nunca a mesma confessou tal facto – cfr. [gravação do depoimento de parte da Ré, captado em 23-5-2023, entre as 15:00 e as 15:22]: (09:40 – 10:30), (18:40-18-50)

70.ª Acresce ainda que o próprio Autor nega que tal facto tenha ocorrido: [gravação do depoimento de parte do Autor, captado em 23-5-2023, entre as 14:31 e as 14:57], excerto (04:35 – 05:20): o Autor nunca faz qualquer referência a uma suposta abordagem à saída da Conservatória junto da Ré, a propósito do cheque endossado.

71.ª Mas ainda: tendo tal factualidade sido inicialmente incluída na matéria “assente” por despacho de 26-4-2023, o Tribunal detetou o lapso de tal inclusão em sede de julgamento, e corrigiu esse mesmo despacho de 26-4-2023, com novo despacho de 23-5-2023.

72.ª É o que resulta, sem margem para qualquer dúvida, do teor da ata de 23-5-2023 (primeira sessão de julgamento): “Após a Mmª Juiz de Direito ordenou que ficasse consignado em ata que, por lapso, foi incluído na matéria provada o penúltimo facto elencado no despacho de 26-04-2023, passando a constar como matéria controvertida.”

73.ª Tal despacho transitou já em julgado.

74.ª Existe erro notório na apreciação e decisão da matéria de facto, quando se considera, sem invocação de qualquer outro meio de prova, demonstrada a realidade de facto vertida em 15 dos Factos Provados “por acordo”, quando tal facto foi expressamente impugnado pela Ré em sede de contestação, e taxativamente reputado por controvertido conforme despacho judicial exarado em ata de 23-5-2023, e já transitado em julgado, e inexiste qualquer meio de prova (muito menos invocado na sentença) que permita dar tal factualidade como provada.

75.ª Nessa medida, deve o facto 15 ser eliminado do rol dos Factos Provados.

76.ª Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa relativamente ao Facto Provado 15 são os seguintes: Depoimento de parte prestado pela Ré, em 23-5-2023, captado entre as 15:00 e as 15:22, nos excertos de minutos 9:40 a 10:30 e 18:40 a 18:45; Depoimento de parte prestado pelo Autor, em 23-5-2023, captado entre as 14:31 e 14:57, nos excertos de minutos 4:25 a 5:20;

77.ª Tudo sem prejuízo da falta de acordo quanto ao dito facto, não tendo aqui aplicação o disposto no art. 574º, nº CPC – ao contrário do decidido na sentença recorrida, que assim violou a citada norma.

D) Ponto H dos Factos provados e demais fundamentação invocada na sentença

78.ª A Ré não tinha qualquer ónus de provar um acordo verbal com o Autor subjacente ao endosso para ver a ação contra si interposta improceder.

79.ª Com escassa profundidade na análise feita, a apreciação crítica do Tribunal passa apenas por considerar que, por um lado, a versão da Ré quanto a tal acordo verbal lhe pareceu inverosímil e não oferecendo sequer qualquer menção à prova testemunhal que se produziu especificamente quanto a tal matéria, e que, por outro, lhe parece haver normalidade no acaso do Autor ter endossado o cheque em questão por engano, atento o nervosismo e solenidade que rodeiam o ato de outorga de escritura pública,

80.ª A Ré provou o facto H dos “factos não provados”. Vejamos:

A – Prova por acordo – 574º, nº 2 CPC

81.ª Desde logo, tal facto deve considerar-se provado por acordo por força do disposto no artigo 574º, nº 2 do CPC. A Ré alegou tal factualidade na sua contestação, destacando-a autonomamente como exceção perentória – factos 42º a 54º, com especial concretização em 48º da contestação; em resposta à matéria de exceção, o Autor não impugnou nenhum dos factos 42º até 54º, e, por maioria de razão, não impugnou o facto 48º - vertido em sentença no ponto H dos não provados.

B – Das circunstâncias de facto atinentes à escritura de compra e venda

82.ª Por seu lado, a Ré é perfeitamente clara no modo como relata as circunstâncias em que ocorre o endosso no âmbito da escritura: [gravação do depoimento de parte da Ré, captado em 23-5-2023, entre as 15:00 e as 15:22] excerto (19:30-19:45);

83.ª Resulta no entanto do depoimento do Autor - [gravação do depoimento de parte do Autor, captado em 23-5-2023, entre as 14:31 e as 14:57]- (04:35 – 05:20), (19:00 – 24:14):

84.ª A total contradição com aquilo que foi por si mesmo afirmado no artigo 13º da petição inicial: no seu relato dos factos, em momento algum menciona tal pedido à saída da Conservatória – o Autor menciona mesmo que a Ré, aquando da recolha do cheque, remete para uma conversa a ter lugar no Marco de Canaveses, o que tornaria perfeitamente escusada a abordagem à saída da Conservatória.

85.ª Ainda sobre a interpelação do Autor à Ré no dia da escritura: o Autor refere, em petição inicial, expressamente, que a Ré, em conversa já mantida no Marco de Canaveses, lhe negou a entrega do cheque alegando que “dinheiro era para dar aos filhos”; só que em sede de depoimento de parte, o Autor afirma e reitera várias vezes que afinal, em tal conversa, a Ré já lhe disse que “não ia ver dinheiro nenhum” e que com ele ia fazer umas “boas férias” – faltando grosseira e dolosamente à verdade.

86.ª Ao invés, foi à Ré que o Tribunal associou falta de credibilidade – descurando as grosseiras inverdades e contradições em que o Autor se deixou enredar, não fazendo a sua apreciação crítica em sede de decisão judicial.

87.ª Mas também: O Autor refere inequivocamente que lhe foram colocados à frente cinco cheques, com o verso virado para cima (sem que pudesse ler à ordem de quem tinham sido emitidos); mas é patente nos autos, pela prova documental junta, que o Autor apenas assinou quatro cheques dos cinco envolvidos naquela transação.

88.ª Isto porque o Autor não procedeu à assinatura do cheque emitido à ordem da Ré: c. doc. º 4 junto com a contestação.

89.ª Se o Autor afirma que lhe foram colocados cinco cheques à frente para assinar, com o verso virado para baixo – efetivamente sendo verdade que existiam 5 cheques envolvidos no dito negócio – não pode justificar-se que o Autor, seletiva e cirurgicamente, por uma coincidência inexplicável, se tenha abstido de assinar o cheque da Ré (necessariamente incluído no grupo de cheques presentes ao Autor, virados de verso para cima).

90.ª Daqui apenas pode resultar a conclusão de que o Autor sabia perfeitamente que cheques tinha à sua frente, quais é que tinha de assinar (incluindo o “seu” cheque, QUE ENDOSSOU), e sabia qual cheque NÃO TINHA DE ASSINAR, como não assinou (o da Ré).

91.ª Igual conclusão tirou o Ministério Público no âmbito do inquérito que decorreu sobre os mesmos factos doc. nº 6 da contestação.

92.ª De tal despacho de arquivamento resulta que “(…) dos elementos de prova carreados para os autos, a versão apresentada pela arguida é a que granjeia maior credibilidade, em detrimento da versão apresentada pelo ofendido.(…) o ofendido endossou o cheque emitido em seu nome, de forma livre e espontânea. (…) A explicação que avançou para tal facto – a de que se limitou a endossar todos os cheques emitidos pela compradora, já que lhos entregaram em verso virado – não colhe, até porque o cheque emitido a favor da arguida não se encontra endossado.” “(…) decorre ter sido o próprio ofendido a efetuar voluntariamente a entrega de tal cheque à arguida, como aquela aliás refere ter acontecido.”

93.ª Resulta depois do depoimento da testemunha CC matéria relevante para a revogação da decisão da matéria de facto ora impugnada: [gravação do depoimento da testemunha CC, captado em 23-5-2023, entre as 15:27 e as 15:50], quer sobre o modo de pagamento – por cheque - (03:30-03:55), que desmente frontalmente o depoimento do Autor a passagem (03:50-04:00),

94.ª Quanto ao modo como decorreu a escritura – excerto (20:30 – 21:20).

95.ª Pretende o Autor convencer o Tribunal que a Ré, no decorrer da escritura, e aquando da fase de assinatura e entregas dos cheques envolvidos, tenha reparado que o Autor endossou inadvertidamente o próprio cheque e que, perante aquele súbito e imprevisto acontecimento, tenha tido a frieza, o calculismo e a presença de espírito para de imediato tomar a atitude de lho subtrair ou recolhê-lo em antecipação ao próprio Autor, já antevendo que poderia dirigir-se a entidade bancária posteriormente e invocar que aquele endosso teria sido feito em seu benefício.

96.ª E tudo isto sem que o Autor tenha esboçado, LOGO ALI, qualquer sinal ou reação de desagrado, de insatisfação, de oposição a tal ato por parte da Ré, o que comprovadamente não fez, como assinala o mediador da ERA no excerto supra citado.

97.ª Tal hipótese é completamente inverosímil e irrazoável.

98.ª Outro aspeto que assinala a total irrazoabilidade da versão dos factos que o Autor pretende fazer crer este Tribunal: é do mais comum conhecimento geral que os titulares de direitos cambiários dispõem de meios de reação junto das entidades bancárias em caso de erro ou vício da vontade na emissão de cheques ou endossos – através da revogação do cheque – art. 32º LUCH.

99.ª O Autor não alegou nem provou ter movido qualquer diligência para, junto das entidades bancárias envolvidas, impedir o pagamento daquele cheque à pessoa da Ré ou de outra a quem a mesma pudesse ter entregue o cheque – como seria normal e expectável que fizesse.

C – Do concreto acordo verbal prévio ao negócio entre Autor e Ré

100.ª Foi produzida nos autos prova suficiente para que se impusesse julgar o citado facto como provado – sem prejuízo da sua prova por acordo, como já alegado supra.

101.ª Em sede de depoimento de parte, a Ré esclarece e confirma tal acordo: [gravação do depoimento de parte da Ré, captado em 23-5-2023, entre as 15:00 e as 15:22]: (13:30- 14:00),

102.ª E quanto à concreta necessidade do dinheiro para o sustento dos filhos, a Ré esclareceu a carência que sentia, dado que o Autor, desde a separação do casal, pagou apenas pensão de alimentos por um período de 4 meses, tendo depois passado a viver em França, data a partir da qual não mais entregou à Ré qualquer quantia a esse título: (18:00-18:30),

103.ª O que acaba por transparecer também do depoimento de parte do próprio Autor: (02:55-08:00)

104.ª A Ré carreou para os autos outros elementos de prova, totalmente desconsiderados pela decisão recorrida – não existe sequer qualquer menção dos mesmos no texto da sentença – aptos a demonstrar a veracidade daquele acordo do facto H dos não provados.

105.ª Assim é no caso da testemunha DD, cunhado da Ré e pessoa de confiança de ambos os membros do casal: 15:59 - 16:21 - Testemunha: DD – 23-5-2023, excerto (04:15 – 07:35),

106.ª E com a testemunha EE, filha do casal: 14:13 - 14:32 - Testemunha: EE – prestado em 20-6-2023, excerto (03:10 – 06:00).

107.ª Os depoimentos supra aludidos não foram sequer dignos de qualquer menção na sentença recorrida.

108.ª Ré produziu prova positiva e idónea no sentido da demonstração do acordo que alegou:

- o seu depoimento a confirmar tal facto;

- o depoimento de duas testemunhas com contacto direto com o Autor que corroboram que houve esse compromisso do Autor em que a Ré ficasse com todo o produto da venda;

- o endosso emitido pelo Autor, com culminar formal e consumatório desse acordo, e todas as circunstâncias que remanesceram provadas quando à forma como a escritura decorreu, acima já escalpelizadas.

109.ª O Tribunal bastou-se com as declarações do próprio Autor em sentido contrário e com ambíguas presunções judiciais para infirmar a prova supra elencada.

110.ª Atento o exposto, impunha-se dar como provado o facto não provado H.

111.ª Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa relativamente ao Facto Não provado H são os seguintes:

q) Teor da certidão judicial junta pela Ré em 24-1-2023;

r) Documentos nº 3, 4 e 5 da contestação;

s) Depoimento de parte prestado pela Ré, em 23-5-2023, captado entre as 15:00 e as 15:22, nos excertos de minutos 19:30 a 19:45, 13:30 a 14:00 e 18:00 a 18:30;

t) Depoimento de parte prestado pelo Autor, em 23-5-2023, captado entre as 14:31 e 14:57, nos excertos de minutos 4:35 a 5:20, 19:00 a 24:14, 3:50 a 4:00 e 2:55 a 8:00;

u) declarações prestadas pela testemunha CC, em 23-5-2023, captado entre as 15:27 e as 15:50, nos excertos de minutos 1:40 a 2:00, 2:30 a 3:20, 15:25 a 15:30, 3:30 a 3:55 e 20:30 a 21:20;

v) declarações prestadas pela testemunha DD em 23-5-2023, captado entre as 15:59 e 16:21, nos excertos de minutos 4:15 a 7:35;

w) declarações prestadas pela testemunha EE em 20-6-2023, captado entre as 3:10 e 6:00;

Tudo sem prejuízo da prova por acordo por efeito do disposto no artigo 574º, nº CPC, violado pela decisão da matéria de facto neste ponto concreto da decisão recorrida.

112.ª Com tal facto assente e demonstrado, tem de revogar-se a procedência dada à acção em primeira instância, por existência de causa justificativa para a deslocação patrimonial em causa nos autos.

E) Factos alegados em 49º, 50º, 51º, 52º e 53º da contestação

113.ª Repristina-se o que se disse em d) quanto à prova por acordo desta matéria de facto.

114.ª Por força de tal efeito probatório, e por ser relevante à decisão da causa, desde logo

porque relevante à apreciação e contexto do acordo verbal entre Autor e Ré mencionado no Facto H não provado, deveria ter-se levado ao rol dos Factos Provados a matéria contida em 49º, 50º, 51º, 52º e 53º da contestação, por força do disposto no artigo 574º, nº 2 do CPC (que resulta violado em função da decisão recorrida).

115.ª Sem conceder, e no que toca aos factos 49º e 50º, mesmo que não se entenda haver prova por acordo quanto aos mesmos, sempre se teria de tê-los considerados demonstrados, porquanto está junto aos autos o Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais celebrado entre as partes aquando divórcio – cfr. Certidão judicial junta em 24-1-2023 – que atesta que o filho menor do casal ficaria a residir com a Ré, donde resulta, sem prejuízo do cumprimento ou não da correspetiva obrigação de alimentos a cargo do Autor, que era aquela quem proporcionava e custeava todos os cuidados e sustento do filho menor do casal.

116.ª Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa relativamente aos factos 49º a 53 da contestação são os seguintes:

a) Teor da certidão judicial junta pela Ré em 24-1-2023;

b) Documentos nº 3, 4 e 5 da contestação;

c) Depoimento de parte prestado pela Ré, em 23-5-2023, captado entre as 15:00 e as 15:22, nos excertos de minutos 19:30 a 19:45, 13:30 a 14:00 e 18:00 a 18:30;

d) Depoimento de parte prestado pelo Autor, em 23-5-2023, captado entre as 14:31 e 14:57, nos excertos de minutos 4:35 a 5:20, 19:00 a 24:14, 3:50 a 4:00 e 2:55 a 8:00;

e) declarações prestadas pela testemunha CC, em 23-5-2023, captado entre as 15:27 e as 15:50, nos excertos de minutos 1:40 a 2:00, 2:30 a 3:20, 15:25 a 15:30, 3:30 a 3:55 e 20:30 a 21:20;

f) declarações prestadas pela testemunha DD em 23-5-2023, captado entre as 15:59 e 16:21, nos excertos de minutos 4:15 a 7:35;

g) declarações prestadas pela testemunha EE em 20-6-2023, captado entre as 3:10 e 6:00;

Tudo sem prejuízo da prova por acordo por efeito do disposto no artigo 574º, nº CPC, violado pela decisão da matéria de facto neste ponto concreto da decisão recorrida.

117.ª Nestes termos, deveria ter sido levado ao rol dos Factos Provados a factualidade alegada pela Ré em 49º, 50º, 51º, 52º e 53º, factualidade essa que, conjugada com a demonstração do Facto Não Provado H, teria de conduzir à improcedência da acção e absolvição da Ré do pedido, nos termos já supra expostos.

7.

Contra-alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso, fundamentando assim:

1.º A decisão judicial em análise não merece qualquer censura ou reparo, quer sob o prisma da aplicação do direto quer sob a análise da matéria de facto.

2.º A propositura da ação respeitou rigorosamente prazo legalmente estabelecido, em consonância e respeito pelo disposto nos artºs 482; 306 e 318 do Código Civil, mostrando-se infundamentada a alegação da prescrição invocada a título de exceção.

3.º Da atuação da Apelante resulta, sem qualquer dúvida, a apropriação em seu único e excluso interesse de todo o produto da venda do único bem comum do casal, com completo e intencional propósito de desprezar o direito do Apelado.

4.º Aquando da realização do contrato de venda do imóvel – único bem comum da Apelante e Apelado enquanto casal — o produto da venda foi repartido entre ambos na proporção de 50% para cada um mediante dois cheques emitidos a favor de cada um deles.

5.º Dessa forma foi repartido o único bem comum, cuja partilha não exige qualquer formalidade “ad substantiam” e cuja prova resulta inequívoca pela entrega do valor que a cada um competia, passando a integrar o património autónomo do Apelado e da Apelante o montante por cada um deles recebido.

7.º Ao apropriar-se abusivamente do cheque emitido a favor do Apelado integrando-o na sua exclusiva esfera patrimonial, a Ré/Recorrida enriqueceu o seu património em detrimento e empobrecimento do património do Autor/Recorrido o que implica a deslocação de património, sem qualquer justificação da esfera do Autor para o património da Ré.

8.º Factualidade que legitima o recurso à presente ação pois: não subsistindo quaisquer bens comuns após a divisão/partilha do produto da venda do imóvel cada um dos patrimónios se autonomizou.

9.º E a impossibilidade de o autor aceder à parte que lhe coube nessa partilha do dinheiro, que passou a ser detida e possuída exclusivamente pela Apelante, impõe o exercício do direito do Apelado pela via da ação proposta.

10.º Não ocorre qualquer falta ou desacordo no que respeita à matéria de facto decidida como provada e não provada, sendo infundamentada a reclamação apresentada pela Apelante.

Não foram violadas quaisquer normas legais, quer substantivas quer adjetivas

II.

OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art. 5.º, n.º 3, do citado Código).

Assim, tendo por base o sentido da decisão recorrida e as conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, o que importa apreciar e decidir no presente recurso passa, em primeira linha, por saber se se justifica operar a alteração da decisão em matéria de facto, nos termos preconizados pela Recorrente, e, independentemente da resposta dada àquela questão, se se justifica diferente solução para o problema jurídico suscitado, o que convoca para discussão diversas temáticas, com especial relevância para o regime de bens do casamento, enriquecimento sem causa e, se necessário, prescrição de direitos.

III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

OS FACTOS

1.1.

Factos provados

O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1 – O Autor e a Ré contraíram matrimónio católico, sem convenção antenupcial, em 18 de julho de 1998.

2 – O Autor vivia em separação de facto da Ré desde janeiro de 2017.

3 – Correu termos no Juízo de Competência Genérica de Castro Daire, Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, sob o nº 262/18.7T8CDR, processo de divórcio litigioso entre Autor e Ré, convertido em divórcio por mútuo consentimento, onde foi declarado dissolvido por divórcio o casamento entre ambos, por sentença homologatória datada de 26 de março de 2019.

4 – No referido aresto não foi fixada data de separação de facto.

5 – A ação foi intentada a 31.12.2018.

6 – A propriedade da fração autónoma, identificada pelas letras T-3, com o nº ...6, com um lugar de garagem, na cave, assinaladas com as letras AD, destinado a habitação, situado na rua ...., freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, inscrito na matriz sob o artigo ...95... da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses, sob o número ...73/19990210-.., da freguesia ..., esteve inscrita a favor do Autor e da Ré desde 05.07.2002 até 22.09.2017.

7 – A referida fração estava onerada com hipoteca voluntária a favor do Banco 1... S.A.

8 – Mediante escritura pública outorgada na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Felgueiras e datada de 22 de setembro de 2017, Autor e Ré declararam vender a referida fração a FF, contribuinte fiscal nº ...57 e esposa GG, contribuinte fiscal nº ...57, ambos residentes na Rua ...., freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, que a declararam comprar.

9 – No negócio supra identificado, houve intervenção de mediação Imobiliária, pela sociedade “A... Lda.”, licença ami nº ...24.

10 – Para pagamento da referida venda foram entregues, no ato da outorga da escritura de compra e venda, ao Autor e à Ré, os seguintes cheques:

a) Um cheque sacado sobre a conta dos compradores supra identificados, com data de 22/09/2017, do Banco 2..., passado à ordem do Autor e por este endossado e entregue ao representante da imobiliária já identificada, para pagamento de parte do valor correspondente aos serviços prestados no montante global de 6.150,00€.

b) Um cheque sacado sobre a conta dos compradores, com data de 22/09/2017, do Banco 2..., passado à ordem do Autor e por este endossado e entregue ao representante da imobiliária supra identificada para o pagamento do remanescente do preço.

c) Um cheque sacado sobre a conta dos compradores, com data de 22/09/2017, do Banco 2..., no valor de 49.437,96€, passado à ordem do Autor e por este endossado e entregue ao representante do “Banco 1..., S.A.”, para liquidação/amortização total do empréstimo contraído pelo Autor e Ré para aquisição da fração.

d) Um cheque sacado sobre a conta dos compradores, com data de 22/09/2017, do Banco 2..., no valor de 16.050,00€ e passado à ordem do Autor.

e) Um cheque sacado sobre a conta dos compradores, com data de 22/09/2017, do Banco 2..., no valor de 16.050,00€ e passado à ordem da Ré.

11 – Sucede, porém, que no ato da escritura os cheques foram colocados à frente do Autor para este os endossar, o que fez, com exceção do cheque emitido a favor da Ré.

12 – Entretanto, o representante da instituição bancária “Banco 1..., S.A.” (atual “Banco 3...”) compareceu na escritura para entregar o documento de “Distrate” e levou o cheque para liquidação do empréstimo, ausentando-se do local.

13 – O Sr. CC, na qualidade de representante da imobiliária, ficou com os dois cheques, supra referidos, para pagamento dos serviços prestados pela imobiliária e pousou os outros dois cheques na mesa da sala das escrituras.

14 – Terminada a leitura da escritura e assinatura da mesma, a Ré ficou com dois cheques, o cheque que lhe pertencia e o cheque pertencente ao Autor, guardando-os na sua carteira.

15 – Quando saíram da Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Felgueiras, o Autor pediu à Ré o cheque que lhe pertencia, ao que ela respondeu que o cheque estava guardado.

16 – Entretanto, o Autor e a Ré dirigiram-se para o carro pertencente ao Senhor CC (representante da imobiliária), juntamente com aquele e a procuradora dos compradores que outorgou a escritura, para regressar a Marco de Canaveses, pois foi com ele que tinham ido para Felgueiras.

17 – A ré depositou o cheque emitido à ordem do Autor no valor de 16.050,00€ numa conta por si titulada.

18 – O Autor interpelou a Ré através da sua mandatária para que aquela devolvesse o dinheiro, tendo esta recebido a carta.

1.2.

Factos não provados

O Tribunal de que vem o recurso julgou não provado:

A. Foi o representante da imobiliária - Senhor CC - quem colocou os cheques, à exceção do cheque passado à ordem da Ré, com o verso virado para o Autor, para que este os endossasse.

B. De seguida, o referido representante da imobiliária pegou nos cheques e colocou-os na mesa à frente do Autor, enquanto decorreu a leitura da mencionada escritura.

C. Quando chegaram a Marco de Canaveses, o Autor voltou a pedir à Ré o cheque que lhe pertencia e que ela tinha na sua posse.

D. Tendo a Ré respondido que não lho entregava, que o dinheiro era para dar aos filhos.

E. Ao que o Autor retorquiu dizendo que se quisesse dar o dinheiro aos filhos da parte que lhe pertencia dava, mas ela tinha que lhe entregar o cheque, porque lhe pertencia.

F. Ato contínuo, a Ré não entregou o cheque ao Autor e foi-se embora.

G. O Autor tentou por diversas vezes interpelar a Ré para que esta lhe entregasse o cheque, mas esta nunca o fez.

H. Autor e ré acordaram verbalmente que o remanescente do produto da venda do imóvel ficava na posse exclusiva da ré.

1.3.

Apreciação da impugnação da decisão em matéria de facto

1.3.1.

Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[1].

O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, pontuais limitações relacionadas com os princípios da oralidade e da imediação.

A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.

De todo o modo, como vem sendo reiteradamente afirmado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, nº 1, 137.º e 138.º, todos do C.P.C.)”[2].

1.3.2.

A prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[3], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos”(art. 341.º do CCivil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.

Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.

Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[4].

Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[5].

Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.

Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.

Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”[6].

Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[7], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º). O art. 466.º do CPCivil acrescenta a “prova por declarações de parte”.

Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.

Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivil, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.

Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).

O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[8].

A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).

Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).

Por último, a prova bastante carateriza-se por ser suficiente a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[9].

1.3.3.

Do ponto 14) do elenco dos factos provados: “Terminada a leitura da escritura e assinatura da mesma, a Ré ficou com dois cheques, o cheque que lhe pertencia e o cheque pertencente ao Autor, guardando-os na sua carteira.”

A Recorrente, assinalando na redação da factualidade em apreço a utilização de expressões de cunho notoriamente jurídico-conclusivo (“pertencia” e “pertencente”), entende que as mesmas devem ser expurgadas, propondo a seguinte redação em substituição:

- [Terminada a leitura da escritura e assinatura da mesma, a Ré ficou com dois cheques, o cheque emitido à sua ordem e identificado na alínea e) do ponto 10 dos factos provados, e o cheque pertencente emitido à ordem do Autor e identificado na alínea d) do ponto 10 dos factos provados, guardando-os na sua carteira.].

Não obstante as expressões em causa, claramente de conteúdo jurídico-conclusivo, não assumam importância decisiva na solução da questão jurídica essencial do caso, por razões de rigor terminológico, na tarefa que cumpre sempre ao julgador de separar, tanto quanto possível, os factos do direito, justifica-se a pretendida alteração da redação do ponto 14) do elenco dos factos.

Procede, pois, nesta parte, a pretensão recursiva.

1.3.4.

Do ponto 15) do elenco dos factos provados: “Quando saíram da Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Felgueiras, o Autor pediu à Ré o cheque que lhe pertencia, ao que ela respondeu que o cheque estava guardado.”

Sustenta a Apelante que tendo a decisão recorrida julgado provado este facto “por acordo das partes”, certo é que tal acordo não se verifica, porquanto resultando o facto da transcrição ipsis verbis do alegado no artigo 13.º da petição inicial, o mesmo foi expressa e especificamente impugnado pelo que se deixou afirmado sob o artigo 5.º da contestação: “É falso ou inexacto o que vai alegado nos artigos 7º, 9º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 22º (excepto o facto do arquivamento do processo, que se aceita), 23º, 24º, 25º, 26º e 30º da PI – pelo que vai o seu teor impugnado.”.

Também nesta parte se nos impõe conceder razão à Apelante, por considerarmos suficientemente cumprido pela Ré o ónus de impugnação previsto no art. 574.º, n.º 1, do CPCivil quanto a tal facto, passando este a integrar o elenco dos factos julgados não provados, considerando também a ausência de produção de qualquer meio de prova relevante e credível no sentido da respetiva ocorrência.

1.3.5.

Da alínea H) do elenco dos factos não provados: Autor e ré acordaram verbalmente que o remanescente do produto da venda do imóvel ficava na posse exclusiva da ré.”

 A Apelante defende que esta factualidade deverá antes ser julgada provada, por duas ordens de razões: desde logo por “acordo”, em virtude de falta de impugnação especificada pelo Autor em sede de articulado de resposta; e em todo o caso, tendo por base a valoração que é devida a certos meios de prova, designadamente declarações de parte da Ré e do Autor, assim como nos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, nos segmentos das respetivas gravações áudio que identifica e transcreve, e ainda nos documentos juntos sob os nºs 3, 4 e 5 com a contestação e teor da certidão judicial junta por si em 24.01.2023.

Quanto à pretendida prova “por acordo”, por falta de impugnação em sede de articulado de resposta, é manifesta a falta de razão da Apelante, porquanto tal factualidade se encontra em oposição tanto com a factualidade que integra a causa de pedir como com a defesa constante do articulado de resposta, uma e outra consideradas no seu conjunto (cf. art. 457.º, n.º 2, do CPCivil).

Para decidir como o fez, neste particular, a decisão recorrida fundamentou assim: [(…) o facto H foi considerado não provado, porquanto a ré não o logrou demonstrar. Desde logo porque as suas declarações de parte foram totalmente contraditórias, não se mostrando credíveis, quer porque a sequência de factos provados apontam em sentido oposto ao defendido pela ré, como passamos a expor: Veja-se que nas declarações prestadas em audiência, a ré não foi capaz de dizer duas vezes a mesma coisa. Por outro lado, analisadas as declarações que a autora prestou na GNR no âmbito do inquérito, constatamos que mencionou ter acordado com o autor que o dinheiro ficava para si por conta das prestações do crédito bancário que tinha suportado. Nestes autos defendeu que o acordo teve em consideração o facto de o dinheiro ser para si e para os seus filhos porque estes ficaram com a mãe após o divórcio, sem contudo ter procedido ao depósito da verba em conta titulada pelos filhos. O facto de o autor pedir ao agente imobiliário para o pagamento do preço do imóvel ser em dois cheques em vez de um, contraria a existência de tal acordo, assim como a tentativa extrajudicial do autor reaver a sua parte na venda e bem assim a propositura desta ação e para nós o facto do autor ter endossado os cheques não é de per si, suficiente para nos demover da convicção que formamos. Todos sabemos que perante atos públicos que envolvem alguma solenidade é normal as pessoas ficarem nervosas e agirem de acordo com instruções que lhes são dadas por aqueles em quem confiam, não estranhando que o autor tivesse assinado todos os cheques que lhe foram colocados à frente sem se aperceber que o fazia no cheque emitido em seu nome, passando todos os cheques à ré para que esta também o fizesse. Tudo analisado levou a que considerássemos não provada a existência do acordo].

Escutados integralmente os registos da gravação áudio atinentes aos meios de prova pessoal indicados pela Apelante, começamos por dizer, no que respeita especificamente às declarações de parte de Autor e Ré, que a leitura que fazemos em nada diverge da que foi alcançada e expressa pela Exma. Juíza de Direito.

Por outro lado, dos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE nada se retira com especial relevo, em termos de conhecimento direto e circunstanciado, de modo a permitir formar convicção no sentido da existência de maior probabilidade de ter ocorrido o “acordo” invocado pela Ré.

Tal “acordo”, como bem se evidencia na decisão recorrida, é categoricamente refutado pela atuação do Autor quando, previamente ao ato de assinatura da escritura de compra e venda, pediu ao agente imobiliário para que fossem emitidos pelos compradores, para além do mais, dois cheques de igual valor, um em seu nome e outro em nome da Ré, atuação confirmada pelo dito agente, a testemunha CC. Escusado será dizer que se o invocado “acordo” existisse razão alguma haveria para o dito pedido, já que tudo se poderia processar com toda a facilidade mediante a emissão de um cheque único a favor da Ré.

Também os documentos indicados pela Apelante, por si só em conjugação com os demais meios de prova produzidos, não se nos apresentam suficientemente adequados a formar convicção suficientemente segura no sentido da verificação da factualidade em questão.

É certo que o Autor assinou o verso do cheque do valor de 16.050,00€ passado à sua ordem, e não assinou o verso do cheque de igual valor passado à ordem da Ré, como se evidencia da leitura dos documentos juntos.

Porém, de tal facto não podemos retirar, com suficiente segurança, que o Autor tivesse plena consciência quanto ao ato de assinatura do verso do dito cheque, e muito menos que tal ato significava um endosso do cheque a favor da Ré.

Com efeito, dada a inexperiência do Autor no que concerne à utilização de cheques bancários, patente desde logo na declaração do mesmo transcrita nas alegações de recurso – “eu nunca tive cheques na minha vida, nunca passei um cheque na minha vida” –, não posta em causa pela produção de qualquer outro meio de prova relevante, e considerando o formalismo solene do ato da escritura, não custa admitir o nervosismo e a ausência de esclarecimento bastante do Autor acerca do ato praticado, como se alude na decisão recorrida.

Quanto ao facto de o Autor não ter assinado o verso do dito cheque emitido a favor da Ré, o que se nos apresenta mais conforme com a normalidade do acontecer é que tal cheque nem sequer tenha sido colocado à sua frente para o efeito, por não ser necessário recolher a sua assinatura, e daí que admitamos a possibilidade de equívoco do próprio Autor quando admite que “lhe puseram à frente cinco cheques”, e não apenas quatro.

De referir, ainda, com todo o respeito, a inutilidade das extensas considerações tecidas pela Apelante em torno da temática do endosso do cheque feito pelo Autor, relativamente ao cheque do valor de 16.050,00€ emitido à sua ordem, por de tal ato nada resultar de decisivo ou sequer relevante em benefício da posição da Ré, como melhor se perceberá quando tratarmos das questões de direito.

Por último, não custa adiantar desde já que mesmo que pudéssemos julgar provada a factualidade vertida sob a alínea H) do elenco dos factos não provados, a solução jurídica que temos em mente não seria diferente, como igualmente procuraremos demostrar infra.

Não vemos, pois, razões, para censurar o juízo probatório ínsito na decisão recorrida, porquanto alcançado com base no princípio da livre apreciação das provas produzidas, e favorecido pela imediação, dotado de racionalidade, objetividade e inteligibilidade bastantes.

Concluímos pela improcedência do recurso nesta parte.

1.3.6.

Defende ainda a Apelante que a factualidade alegada sob os artigos 49.º a 53.º da contestação – “49. Que [a Ré] tinha a seu cuidado e guarda exclusivas os menores e filhos do casal EE e AA, 50. Sendo que os mesmos habitavam com a Ré e era esta quem lhes proporcionava todos os cuidados e sustento, suportando os respectivos encargos, incluindo habitação, alimentação, vestuário, calçado, material e despesas escolares e de educação, despesas de saúde, de lazer, higiene entre todos os demais encargos necessários à vida diária e ao bem-estar dos menores. 51. Acresce ainda que, durante a vida em comum do casal, havia sido sempre a Ré quem tinha suportado todos os encargos associados ao empréstimo bancário contraído para a aquisição do referido imóvel, incluindo as prestações mensais relativas a capital e juros. 52. Tais factos foram pressuposto do acordo verbal entre Autora e Ré, supra alegado. 53. Sendo que a Ré, caso o Autor não tivesse concordado em entregar-lhe todo o produto remanescente da venda da dita fracção, como concordou e entregou, a Ré não teria consentido na celebração do dito negócio –, por ser relevante para a decisão da causa, e por ter resultado provado por acordo, por via do preceituado no art. 574.º, n.º 2, do CPCivil, deverá passar a integrar o elenco dos factos provados.

Ora, considerando tudo o que deixámos vertido a propósito da impugnação da materialidade elencada em H) dos factos julgados não provados, a matéria a que agora se refere a Apelante não assume relevância para a boa decisão da causa, até porque meramente instrumental daquele outro facto, sendo certo que se tida em conta com o sentido pretendido pela Recorrente, jamais se poderia considerar provada por acordo, pela mesma ordem de razões que deixámos explicitadas supra.

Improcede, pois, também neste segmento, o recurso.

1.3.7.

Por todo o exposto, a modificação da decisão recorrida operada nesta instância de recurso representa apenas parcial procedência do recurso, cingindo-se ao seguinte:
a) O ponto 14) do elenco dos factos provados passa a assumir a seguinte redação: [Terminada a leitura da escritura e assinatura da mesma, a Ré ficou com dois cheques, o cheque emitido à sua ordem e identificado na alínea e) do ponto 10 dos factos provados, e o cheque pertencente emitido à ordem do Autor e identificado na alínea d) do ponto 10 dos factos provados, guardando-os na sua carteira]; e
b) O ponto 15) é eliminado do elenco dos factos provados, passando para o elenco dos factos não provados.

2.

OS FACTOS E O DIREITO

2.1.

Da relação jurídica estabelecida entre as partes

Da leitura da factualidade julgada provada resulta que Autor e Ré casaram entre si em 18 de julho de 1998, sob o regime supletivo de comunhão de adquiridos (cf. art. 1717.º do Código Civil (CCivil)[10], casamento que se manteve até 26 de março de 2019, data em que, no âmbito de processo de divórcio instaurado em 31.12.2018, foi proferida sentença que declarou dissolvido o vínculo conjugal, sem fixação da data da separação de facto.

Como se deixou lucidamente sintetizado no acórdão da RC de 08.11.2001[11], “[n]o regime de comunhão de adquiridos, existem fundamentalmente duas massas patrimoniais: a dos bens próprios de cada um dos cônjuges e a dos bens comuns (artºs 1722, 1723 e 1726 do Código Civil). Nada impede, todavia, a existência de bens da titularidade de ambos os cônjuges em termos de compropriedade, o que sucederá, por via de regra, no tocante a bens que os cônjuges tenham levado para o casamento. O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela [Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, pág 397]. Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade colectiva ou de mão comum [Antunes Varela, Direito da Família, pág. 436]. Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar [A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens destinada a por fim à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. Cfr. Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão e Ac. da RP de 19.04.83, CJ VII, II, pág. 259]. A natureza de propriedade colectiva da comunhão conjugal, moldada na antiga comunhão de tipo germânico, que a recorta nitidamente da comunhão de tipo romano, de tipo individualista, resulta de vários pontos do seu regime jurídico. Aspecto mais significante desse regime é, porém, notoriamente este: antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento].

Voltando à factualidade apurada, na constância do matrimónio, o casal formado por Autor e Ré adquiriu o bem imóvel correspondente à fração autónoma identificada em 6) do elenco dos factos provados, e daí que tal bem se considere integrado na comunhão, por via do preceituado no art. 1724.º, al. b).

Ainda na constância do casamento, embora vivendo em separação de facto desde janeiro de 2017, o casal decidiu vender o dito imóvel, o que concretizaram em 22 de setembro daquele ano, outorgando a respetiva escritura pública.

Em resultado do preço pago pelos compradores, após retirada dos valores necessários para custear as despesas tidas com a intermediação do negócio, bem assim para liquidação/amortização total de mútuo bancário que havia servido para custear a aquisição do imóvel por Autor e Ré, ficou disponível para estes o montante global de 32.100,00€, montante que, à partida, se integra na comunhão, considerando o cit. art. 1724.º, al. b).

Chegados aqui, a questão que se nos coloca é se ocorreu ou não algum ato ou negócio jurídico que tenha validamente determinado a alteração da condição de bem comum do casal do dito montante de 32.100,00€.

Antes de mais, importa que se tenha presente que as relações patrimoniais entre os cônjuges apenas cessam pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens (cf. arts. 1688.º e 1795.º-A). Contudo, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da ação de divórcio ou mesmo à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, só a requerimento de qualquer dos cônjuges (cf. art. 1789.º nºs 1 e 2). “Com a retroacção - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da acção ou na data em que cessou a coabitação - quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos actos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da acção sobre valores do património comum [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1992, Volume IV, pág. 561][12]”.

No caso dos autos, tendo a ação de divórcio sido instaurada a 31.12.2018, é essa a data relevante para efeitos de considerarmos cessadas as relações patrimoniais entre Autor e Ré enquanto casal.

Sendo assim, à data de 27 de setembro de 2017, quando da celebração do negócio de venda do imóvel e obtenção pelo casal da respetiva contrapartida líquida do dito montante de 32.100,00€, vigorava em pleno o mencionado regime de comunhão de bens.

Na tese defendida pela Ré, de modo a negar o direito pretendido fazer valer pelo Autor, teria existido um acordo verbal entre as partes, previamente à celebração do negócio de venda do imóvel, no sentido de que a totalidade do provento líquido obtido com aquela venda reverteria para ela mesma, passando a constituir seu bem próprio.

Ora, como vimos, tal alegado acordo nem tão pouco resultou provado.

E, mesmo que tivesse resultado provado, jamais poderia constituir modo válido de partilhar entre Autor e Ré o que então era inquestionavelmente bem integrado na comunhão do casal, pelo que deixámos dito supra e agora repetimos: [antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem].

E é por isso que as extensas considerações tecidas pela Apelante em torno do endosso do cheque – “forma específica e legítima de transmissão dos títulos cambiários, e no caso concreto dos cheques (art. 14.º, § 1º, da LUC)” –, nenhuma relevância assumem para a solução do caso, porquanto de tal ato formal nada mais resultou a não ser a legitimidade da Ré enquanto portadora do dito título de crédito que havia sido inicialmente emitido a favor do Autor, permitindo-lhe movimentá-lo só por si, como acabou por fazer, depositando-o em conta bancária de que era titular. Mas, tanto o endosso como o subsequente depósito em conta bancária titulada pela Ré, nenhuma virtualidade têm para alterar a natureza comum do dito montante pecuniário, transformando-o em bem próprio da Ré, como de resto a Apelante acaba por reconhecer amplamente nas suas alegações de recurso, ao menos quando se refere ao depósito do cheque na sua conta bancária.

2.2.

Do instituo do enriquecimento sem causa enquanto fonte do direito pretendido fazer valer pelo Autor

Importa agora que nos debrucemos sobre o instituto do enriquecimento sem causa, invocado pelo Autor para valer o seu alegado direito de crédito ante a Ré e como tal atendido pela sentença objeto de recurso.

Nos termos do art. 473.º n.º 1, do CCivil, “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. O n.º 2 do mesmo artigo elucida que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Prevêem-se, pois, numa enumeração exemplificativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto)[13].

Acompanhamos o que se deixou vertido na sentença sob recurso em torno da caraterização geral do instituto em apreço, que reflete o que há muito se encontra sedimentado na nossa doutrina e jurisprudência: [O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e suscetível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, “encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objetivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)”, neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, in, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, páginas 492 e 493, e Pereira Coelho, in, O enriquecimento e o dano, separata dos anos XV e XVI, Direito e Estudos Sociais, 2ª reimpressão, Coimbra 2003, páginas 24 e seguintes e 36 e seguintes. Como escreveu Vaz Serra, in, Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 102º, página 337 nota 2 “o enriquecimento consiste numa melhoria da situação patrimonial do obrigado a restituir, representando a diferença entre o estado atual do seu património e o estado em que ele se encontraria se não tivesse tido lugar a deslocação, sem causa, de valores”. O enriquecimento consiste, pois, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo traduzir-se, quer num aumento do ativo patrimonial, quer no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio. A doutrina tradicional alude ainda a um outro requisito para haver lugar à obrigação de restituição, qual seja, será necessário que o enriquecimento seja obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição. É o requisito do carácter imediato da deslocação patrimonial ou, como por alguns é designado, da unicidade (ou unidade) do facto de enriquecimento. Menezes Cordeiro, in, Tratado de Direito Civil Português, volume II, Tomo III, páginas 226, 228, 230, 231 e 234, a propósito dos requisitos gerais deste instituto, referindo-se ao enriquecimento e depois de elencar as situações em que ele pode traduzir-se, escreveu que, dado estarmos no campo do direito das obrigações “o instituto do enriquecimento só pode ser ativado quando algo transite de uma pessoa para a outra”, ademais, referindo-se ao empobrecimento, depois de mencionar que ele pode traduzir-se nas figuras inversas às apontadas a propósito do enriquecimento, bastando o dano em abstrato, e acrescentou ser necessária “a deslocação patrimonial ou o acervo de vantagens que se destinariam ao empobrecido mas que, mercê do fenómeno em estudo, surgem na esfera do enriquecido.” Quanto à relação entre o enriquecimento e o empobrecimento defende que ela deve existir, por decorrer da expressão “à custa de outrem”, a qual tem utilidade desde que seja devidamente integrada, devendo ser entendida como “uma proposição específica de enriquecimento sem causa, que exprime uma relação entre os futuros credores da obrigação de restituir o enriquecimento e o devedor da mesma.” Menezes Cordeiro, in, Tratado de Direito Civil Português, volume II, Tomo III, página 234, sustenta ainda a necessidade da imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra e que a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser direta, na medida em que, e nas palavras daquele Autor, “Um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor…”, o qual “vai ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação”, também neste sentido, ou seja, enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, com o outro dá-se o inverso: desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar, veja-se, Inocêncio Galvão Telles, in, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, páginas 197 e 198, e Mário Júlio de Almeida Costa, in, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, páginas 495 e 496].

Em todo o caso, a obrigação de restituição por enriquecimento assume natureza subsidiária, por via do que dispõe o art. 474.º do CCivil: “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Mas, se acompanhamos a decisão recorrida no respeitante à caraterização do instituto, outro tanto não poderemos dizer quanto à aplicação que do mesmo foi feita em 1.ª instância.

Com efeito, como bem observa a Apelante nas suas alegações de recurso, a decisão recorrida “parece confundir a noção de titularidade/propriedade do património com disposição do património”.

Tal observação radica na seguinte passagem da sentença: [A ré veio defender a inexistência de deslocação patrimonial, porquanto o produto da venda do bem comum é também ele comum, não existindo empobrecimento do autor. A alegação da ré parece-nos acertada, não fosse o caso de a mesma ter depositado o produto da venda do bem comum, numa conta bancária titulada única e exclusivamente em seu nome, não tendo o autor acesso a um único cêntimo de tal verba. Dito por outras palavras, a aceitar-se a tese da ré, a mesma ter-se-ia apropriado do património comum para seu uso exclusivo, não retirando o autor qualquer vantagem/proveito do património comum. Tal conceção seria manifestamente injusta e por isso, quanto a nós inadmissível. Com a sua conduta a ré subtraiu ao autor o direito a usufruir do património comum, tendo havido deslocação patrimonial de um património pertença do autor e da ré, para um património a que só a ré tem acesso e por isso enriquecido].

É claro que não podemos ter como acertado tal entendimento, desde logo pelas razões que expusemos supra em torno do significado e consequências jurídicas decorrentes do ato de depósito do montante em questão em conta titulada unicamente pela Ré.

Procurando esclarecer ainda um pouco mais a questão, importará também chamar à discussão a temática da administração dos bens comuns do casal, conjugadamente com a abertura e movimentação de contas bancárias.

Neste âmbito, como decorre do preceituado no n.º 3 do art. 1678.º, “[f]ora dos casos previstos no número anterior, cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal”, sendo que, no respeitante a depósitos bancários, o art. 1680.º deixa bem esclarecido que “[q]ue qualquer que seja o regime de bens, pode cada um dos cônjuges fazer depósitos bancários em seu nome exclusivo e movimentá-los livremente”.

Ora, o ato praticado pela Ré, consubstanciado no depósito da quantia pecuniária em questão em conta bancária titulada unicamente por si, nas circunstâncias apuradas, mais não traduz do que um ato de gestão ordinária de um bem comum do casal, bem esse que indiscutivelmente não deixou de ser comum por via do depósito.

Do exposto decorre, com toda a lógica, que a atuação da Ré, à luz da factualidade julgada provada, não conduziu à deslocação, em qualquer medida, de património próprio do Autor para a esfera jurídico-patrimonial da Ré, com consequente empobrecimento daquele e correlativo enriquecimento deste.

E sendo assim, como nos parece indubitavelmente ser, forçoso é concluir pela não verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa enquanto fonte do direito de restituição pretendido fazer valer pelo Autor nesta ação.

Como se deixou bem sublinhado no recente acórdão desta Relação, de 21.01.2014[14], “[d]ecorrendo do nº 1 do art. 1681º do C. Civil que o cônjuge que administrar bens comuns não é obrigado a prestar contas da sua administração e apenas responde pelos atos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, só com apuramento de tais atos é que poderá ocorrer a reposição de tal dinheiro no património comum”.

No caso, afigura-se-nos, pois, manifesto que a factualidade julgada provada não autoriza a que reconheçamos o direito de o Autor se ver restituído pela Ré do pretendido montante de 16.050,00€, seja por via do instituto do enriquecimento sem causa, seja por via de qualquer outra fonte de obrigações consentida pelo nosso ordenamento jurídico.

Prejudicada fica assim o conhecimento da invocada prescrição do enriquecimento sem causa (cf. art. 608.º, n.º 2, do CPCivil).

A nosso ver, o problema jurídico recortado pela factualidade julgada provada reclamaria uma outra abordagem, que não a escolhida pelo Autor e acolhida pelo Tribunal a quo: a necessidade de partilha dos bens comuns do casal subsequente ao divórcio, afinal o meio adequado e próprio para resolver as questões que se prendem com o “deve e haver” decorrente da extinção das relações patrimoniais havidas entre Autor e Ré enquanto casados um com o outro (cf. art. 1689.º).

Concluímos, pois, pela procedência do recurso em matéria de direito, com a consequente revogação da decisão recorrida.

2.3.

Tendo dado causa às custas do recurso, o Apelado constituiu-se na obrigação de as suportar (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais).

IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso procedente e, consequentemente, decidimos:


a) Revogar a decisão recorrida;
b) Julgar improcedente a ação e absolver a Ré do pedido.
c) Condenar o Autor/Apelado no pagamento das custas do recurso.


***


Porto, 5 de março de 2024
Fernando Vilares Ferreira
Márcia Portela
João Proença
___________________
[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, p. 332.
[2] Cf. Ac. RG de 15.12.2016, relatado por MARIA JOÃO MATOS no processo 86/14.0T8AMGR.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
[4] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
[6] Ob. cit.
[7] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152.
[8] Cf. CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
[9] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
[10] São deste Código todas as normas doravante citadas sem menção diversa.
[11] Relatado por HENRIQUE ANTUNES no processo 4931/10.1TBLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[12] Cf. ac. RC, cit.
[13] Vide, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 205; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 505; e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 395.
[14] Relatado por MENDES COELHO no processo 766/21.4T8VCD.P1, acessível em www.dgsi.pt.