Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12305/20.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: DIREITO AO REPOUSO
DIREITO À ATIVIDADE ECONÓMICA
COLISÃO DE DIREITOS
RUÍDO
GINÁSIO
LICENCIAMENTO ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP2023032712305/20.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo em vista alcançar o duplo grau de jurisdição ao nível da decisão de facto, incumbe ao Tribunal da Relação proceder à reanálise crítica e autónoma da decisão de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância, convocando, para o efeito, todo os meios de prova disponíveis no processo (e não apenas os que foram convocados pelo apelante).
II - O facto de um estabelecimento de ginásio se encontrar licenciado num prédio (habitacional) e os níveis de ruído provocados pelo seu funcionamento se encontrarem dentro dos limites abstractos previstos no Regulamento Geral de Ruído (RGR) não dispensa dos respectivos administradores/gerentes dos deveres de controle dos níveis de ruído que o mesmo irradia para as demais fracções, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita no mesmo prédio.
III - É ilícita a actividade, geradora de excesso de ruído, ocorrido em espaço controlado pelos titulares de estabelecimento de ginásio e lesiva do direito fundamental de personalidade dos autores, impedidos de descansarem e repousarem no interior do seu próprio domicílio, por tal comportamento traduzir a violação de um direito de personalidade (artigo 70º, do Cód. Civil), que, pela sua própria natureza e relevância em termos de qualidade de vida/saúde, não pode deixar de ser, em princípio, prevalecente sobre os interesses económicos/empresariais dos RR, em explorarem no local um ginásio.
IV. Não tendo sido alegada tal factualidade pelos RR durante o curso do processo em primeira instância, não é lícito à Relação, numa perspectiva de compatibilização normativa dos direitos em conflito/colisão (direito ao descanso e repouso no domicílio versus iniciativa privada/actividade económica) e à luz do artigo 335º, do Cód. Civil (ou do artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), substituir o decretado encerramento do dito estabelecimento por uma inibição, meramente temporária ou condicional, da actividade comercial em causa, posta na dependência da realização eventual de obras de insonorização por parte dos RR, obras essas insuficientemente concretizadas ou sobre as quais não é sequer possível fazer qualquer juízo seguro quanto à sua possibilidade técnica de execução e quanto à sua real e efectiva eficácia em termos de insonorização do espaço em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 12305/20.0T8PRT.P1 - Apelação
Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3.

Relator: Desembargador Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Eugénia Cunha
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Sumário:
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. AA e cônjuge, BB, CC e DD propuseram a presente acção especial de tutela da personalidade contra EE e FF, pedindo que se ordene encerramento do estabelecimento explorado pelos réus e se condene os mesmos no pagamento da quantia de 15,00€ por cada dia de atraso no cumprimento de tal ordem.
Alegaram, em suma, serem condóminos do prédio constituído em propriedade horizontal que identificaram, fazendo uso para habitação das fracções de que cada qual é proprietário, bem como que do mesmo faz parte integrante outra fracção, sita no rés-do-chão, que os réus tomaram de arrendamento, na qual exercem a actividade de prestação de serviços desportivos na área da manutenção da condição física, actividade essa que causa ruído que se propaga e sente nas fracções habitacionais ocupadas pelos autores, pondo com isso em causa o direito ao repouso destes e prejudicando dessa forma o seu bem-estar e saúde.

2. Foi designada data para a realização do julgamento.

3. Citados, os réus contestaram, alegando, em termos essenciais, que a actividade exercida na fracção em causa se encontra licenciada, que a fracção dispõe de revestimento e isolamento que minora o ruído e que o ruído produzido no exercício da actividade se contém nos limites impostos pelo Regulamento Geral do Ruído.

4. Frustrada a conciliação, foi ordenada a realização da prova pericial e ordenada a verificação não judicial à fracção na qual os réus exploram a sua actividade.

5. Concluída a perícia, foi produzida a demais prova oferecida pelas partes.

6. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a causa, ordenando o encerramento do estabelecimento de prestação de serviços desportivos na área da manutenção da condição física explorado pelos réus na fracção “E” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Avenida ..., ..., da freguesia ..., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e, ainda, foi fixada, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 15,00€ por cada dia de incumprimento da obrigação antes imposta.

7. Inconformados, vieram os RR interpor recurso, que foi admitido, oferecendo alegações e nelas deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
A. A sentença recorrida, antes de mais é insuscetível de produzir quaisquer efeitos, devendo considerar-se mesmo inexistente nos termos expostos;
B. Com efeito, o processo foi orientado e decidido (e a sentença lavrada) por um senhor magistrado que estava legalmente impedido de exercer as suas funções no âmbito deste processo;
C. Ainda que assim não fosse, a sentença recorrida sempre não teria nem tem possibilidade de produzir quaisquer efeitos porquanto, nos termos da lei, ofende caso julgado, designadamente sentença proferida no processo 22524/19.6T8PRT.
D. Acresce que a sentença recorrida é inválida, verdadeiramente nula, por omissão e/ou contradição entre os fundamentos invocados e o decidido, quer quanto à questão de facto, quer quanto à questão de direito.
Sem prescindir,
E. A sentença recorrida, mesmo face à prova produzida nos autos, erra na apreciação da mesma, em violação até de normas imperativas respeitantes à apreciação e valoração da prova, o que a fere igualmente de invalidade, nos termos expostos.
Sempre sem prescindir,
F. A sentença recorrida, face à prova produzida nos autos erra na apreciação da questão de facto.
G. Porquanto, dá como provadas vaguidades e factos que não têm suporte no caso concreto nem na prova produzida e que são até contrários a ela e à fundamentação indicada para tal decisão designadamente factos da matéria assente com os números: 4, 10, 11, 12, 13, 14, 15 que, deverão ser alterados ou dados como não provados nos termos supra expostos.
H. Assim como omite factos concretos importantes para a boa decisão da causa, que deveria ter dado como assentes e não deu, concretamente:
a. Correu termos no Juízo Local Cível do Porto – J6 sob o número 22524/19.6T8PRT ação especial para tutela de direitos de personalidade na qual figuraram como autores os aqui Autores e como Réus os aqui Réus e cujo objeto e pedido foram idênticos àqueles formulados nos presentes autos.
b. A ação judicial a que se aludiu em 9. extinguiu-se com a celebração de acordo de transação entre as partes, datado de 02 de Dezembro de 2022, homologado por sentença da mesma data já transitada em julgado, nos seguintes termos:
1. Requerente e requeridos acordam em reduzir o horário de funcionamento do estabelecimento dos requeridos pelo prazo de 90 dias, o qual ficará a funcionar de segunda a sábado das 09.00 às 20.00h;
2. O prazo de 90 dias será o prazo acordado para a elaboração de um estudo acústico, após o qual serão apresentadas as conclusões e medidas a tomar, nomeadamente quanto à realização de obras de insonorização;
3. Em função do resultado do estudo e do custo financeiro, ficarão a cargo dos requeridos a realização e o custo das obras, ou caso assim o entenderem procederem ao encerramento do estabelecimento naquele local.
4. O prazo de 90 dias será o prazo acordado para a elaboração de um estudo acústico, após o qual, serão apresentadas as conclusões e medidas a tomar, nomeadamente quanto à realização de obras de insonorização.
5. As custas em dívida a juízo serão suportadas em partes iguais por requerentes e requeridos, prescindindo reciprocamente de custas de parte.”
c. O pavimento da fração “E” encontra-se revestido de borracha com 12 mm de espessura, tecnicamente indicado e apropriado a pisos onde se pratica a preparação e recuperação física.
d. As paredes do dito espaço encontram-se revestidas com material isolante em esferovite e este sobreposto com material denominado OSB.
e. Por baixo da placa do teto (em betão) existe também na fração “E” um teto falso que se encontra isolado com lã de rocha, que é o material apropriado para isolamento acústico, isolamento de humidade e de calor.”
I. Deve ser assim revogada / alterada quanto à decisão de facto a decisão recorrida, nos termos dos poderes que a lei lhe confere – artigo 662º do CPC.
J. Os Réus baseiam e fundamentam esta sua primeira pretensão nos seguintes elementos probatórios:
- Todos os documentos juntos pelas partes, em particular, o requerimento junto pelos Réus com a referência eletrónica 19019068, com relevância especial a constituição de propriedade horizontal, plantas juntas aos autos.
- Relatório pericial realizado nos autos a 13.05.2022;
- Depoimentos de parte de AA, realizado na audiência de 06.07.2022, gravação áudio das 14:25:35 às 14:36:52;
- Depoimentos de parte de CC, realizado na audiência de 06.07.2022, gravação áudio das 14:37:44 às 14:49:26.
- O depoimento das testemunhas:
- GG realizado na audiência de 06.07.2022, gravação áudio de 15:05:31 a 15:27:46;
- HH, realizado na audiência de 06.07.2022, gravação áudio de 15:58:46 a 16:23:10;
Sempre sem prescindir,
K. Independentemente da inserção sistemática deste processo especial, continua a ser função – obrigação – do Tribunal ponderar adequadamente o conflito de direitos que considere existir e, independentemente da posição das partes e do pedido, encontrar a melhor forma de mitigar tal conflito (com o menor sacrifício para cada um dos direitos envolvidos).
L. O decretamento da medida de encerramento, puro e simples, do estabelecimento aqui em causa, sem qualquer ponderação entre o interesse dos Autores e do interesse dos Réus e de todos aqueles que lhe são conexos viola os princípios que regem o nosso ordenamento jurídico (adequação e proporcionalidade), ofende a lei (desde logo artigo 70º do CC) e é mesmo inconstitucional.
M. Nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se ajuíza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores, nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial, o tribunal avaliará, em concreto, a solução mais razoável e proporcional à coexistência dos direitos em conflito. O sacrifício de um deles (em particular se absoluto) apenas deverá ocorrer numa situação limite.
N. Mesmo que se entenda dever prevalecer (em abstrato) o direito ao repouso sobre o direito à iniciativa privada (como parece ter entendido o Tribunal a quo), importará sempre aquilatar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, quando é certo que o sacrifício e compressão do direito tido por inferior (no caso o direito da livre iniciativa privada) apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante.
O. Não pode deixar de considerar-se que, no caso, e em face da prova produzida, em face das declarações dos próprios A., a existir violação do seu direito ao sossego, ela era meramente ocasional, em período diurno e de muito residual expressão.
P. De resto, a atividade dos RR. é essencialmente uma atividade exercida em período diurno, num prédio localizado numa das avenidas mais movimentadas na cidade do Porto, com inúmeros estabelecimentos.
Q. Ou seja, o acréscimo de ruido que a atividade dos RR. poderia provocar era sempre muito residual com relação ao ruido do ambiente e apenas pontualmente.
R. A vida em sociedade implica necessariamente limitações à plena liberdade de cada um e, por isso, a tutela jurídica dos bens de personalidade só é admissível quando, face à consciência jurídica dominante, esses bens mereçam tutela autónoma e a ofensa, pela sua gravidade ou anormalidade, se deva considerar excluída dos riscos próprios da vida em comunidade.
S. Impunha-se ao Tribunal a quo compatibilizar os direitos de personalidade dos autores com o direito dos réus a desenvolver a sua atividade comercial, convocando para o efeito os apontados critérios de proporcionalidade – lavoro do qual, data vénia, o tribunal a quo se demitiu.
T. Os Réus têm dezenas de milhares de euros investidos no espaço em causa nos autos;
U. Têm contrato de arrendamento em vigor, tendo já fixado o respetivo prazo e renda e tendo realizado um expressivo investimento para adaptação do espaço à atividade a desenvolver – investimento que os Recorrentes realizaram contando poder amortiza-lo e capitaliza-lo por determinado período (o que será impossível caso se mantenha a decisão recorrida).
V. Devendo também o Tribunal a quo ponderar os legítimos interesses de terceiros afetados pela decisão.
a. O Senhorio dos Réus tem, também, um interesse e direito: quer a beneficiar da renda acordada pelo arrendamento pelo prazo fixado; quer a fruir e gozar livre e plenamente do direito de propriedade que lhe assiste sobre a sempre aludida fração “E”, designadamente colhendo os respetivos frutos.
b. Todos os clientes / utentes dos Réus que, muitos tendo mesmo já pago antecipadamente a respetiva prestação, ver-se-ão impedidos em absoluto de beneficiar dos serviços contratados;
c. Todos os treinadores, funcionários e colaboradores dos Réus perderão, por força da decisão recorrida, a posição, função e remuneração de que atualmente beneficiam no estúdio de fitness explorado por estes.
W. O Tribunal a quo falhou – esqueceu em absoluto – a justa ponderação de todos estes elementos densificadores do direito dos Réus (e até de terceiros) na prolação da decisão recorrida e proferiu uma decisão abstrata.
X. Sendo que, no limite e ainda que se entenda, após justa ponderação dos valores, direitos e interesses em causa nestes autos, que os Réus devem, para melhor harmonizar o seu direito com os dos Autores (seja ele qual for), cumprir quaisquer injunções judicias;
Y. Deverá sempre a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, realizando a justa composição dos direitos aqui em causa condene no limite os Réus a:
a. Em prazo judicialmente fixado, nunca inferior a 3 meses, realizarem as obras necessárias à mitigação do efeito da sua atividade nas demais frações que compõe o prédio aqui em causa;
b. Obras consubstanciadas na Instalação de membrana de espuma para isolamento acústico de ruídos de impacto;
c. Levantar piso existente de borracha, aplicação de dupla camada de tela "texsimpact 10";
d. Colocação de piso de borracha existente.
Z. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, por errada aplicação ou interpretação, além do mais, o disposto nos artigos: 12, 20 e 203 da CRP; 3-A, 4, 115, 480, 577, 578, 621, 625, 878 e segts. do CPC; 70 e 335 e 1346 do CC.
Termos em que (…) deve a decisão recorrida ser superiormente revogada e substituída por outra que:
A) Declare a verificação dos vícios invocados, declarando o processo e a sentença proferida inexistente, não produzindo quaisquer efeitos, porque decidido por um Senhor Magistrado que não podia exercer funções no âmbito deste processo.
Sem prescindir,
B) Declare verificado caso julgado material, absolvendo os Réus da Instância e arquivando os presentes autos;
Ainda que assim não se entenda,
C) Declare improcedente a presente ação, arquivando sem mais os presentes autos;
Ainda que assim não se entenda,
D) Revogue em qualquer caso a decisão recorrida substituindo-a por outra que, em prazo judicialmente a fixar ordene aos Réus a realização de obras de adequação do seu estabelecimento, nos termos supra indicados.
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8. Os AA contra-alegaram e pugnaram pela improcedência do recurso.
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9. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente na nossa lei adjectiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
Assim, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
I. Inexistência da sentença – Impedimento da Sr.ª Juíza do Tribunal de 1ª instância;
II. Nulidades da sentença – omissão de pronúncia e/ou contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC;
III. Violação do caso julgado/autoridade de caso julgado;
IV. Impugnação da decisão de facto.
V. Do mérito da sentença, consoante seja alterada (ou não) a decisão de facto.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
1) O prédio constituído em propriedade horizontal sito na Avenida ..., ..., da freguesia ..., no Porto, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ....
2) As fracções designadas pelas letras “K”, “S” e “T”, todas destinadas a habitação, encontram-se registadas a favor dos primeiros, segundo e terceiro autores, respectivamente.
3) A fracção designada pela letra “E” é destinada a estabelecimento, fica no rés-do-chão, e é descrita como provida de WC e com a área de dezoito metros quadrados.
4) Os autores mantêm residência nas fracções identificadas em 2) desde 1987, aí desenvolvendo a sua actividade familiar, tomando refeições, recebendo o correio, recebendo amigos, descansando e pernoitando.
5) Os réus celebraram em 9 de Outubro de 2018 um contrato, que reduziram a escrito, mediante o qual tomaram o gozo da fracção designada pela letra “E” para o exercício de comércio, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Outubro de 2018, mediante a obrigação de pagamento de uma renda.
6) Os réus obtiveram em 14 de Fevereiro de 2022 autorização administrativa de utilização da fracção designada pela letra “E” com a menção de “ginásio – instalação desportiva especializada”, com a lotação máxima de oito pessoas.
7) O estabelecimento mantém afixado o seguinte horário: de 2.ª a 6.ª das 7h às 22h e aos Sábados das 7h às 20h.
8) Os réus vêm exercendo na fracção a actividade de prestação de serviços desportivos na área de manutenção da condição física.
9) Os réus utilizam máquinas e aparelhos comuns ao desenvolvimento da actividade, tais como halteres e pesos.
10) O funcionamento do estabelecimento provoca ao longo de todo o período de abertura do estabelecimento constantes ruídos impulsivos e de precursão decorrentes da utilização das máquinas e equipamentos, bem como pelos clientes no desenvolvimento da actividade física.
11) Tais ruídos são audíveis nas fracções identificadas em 2).
12) Em datas e em número de vezes não apurado, os ruídos são sentidos antes e para além dos horários afixados.
13) Em datas e número de vezes não apurado, os réus utilizaram a parte exterior do prédio para o exercício da actividade, o que aumentou o ruído produzido.
14) O ruído sentido nas fracções identificadas em 2) vem perturbando o sono e descanso dos autores e familiares, sobretudo logo no período da manhã e à noite.
15) O que os faz sentir perturbados, irritados e nervosos.

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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Inexistência da sentença recorrida – Impedimento legal da Sr.ª Juíza do Tribunal de 1ª instância.
Antes ainda de dedicarmos algumas, breves, considerações sobre a questão concreta invocada pelos Recorrentes, cumpre dar nota que no processo civil vigoram em pleno e para todos os nele intervêm e, muito em especial, sobre os magistrados e os mandatários judiciais os princípios básicos da cooperação, da boa-fé, do dever de recíproca correcção e por especiais deveres de urbanidade. Basta, para tanto, ler os artigos 7º n.º 1, 8º e 9º, n.º 1, do CPC, que nos escusamos a aqui repetir, dando apenas nota que nos termos do citado n.º 1 do artigo 7º, na condução do processo e intervenção no processo devem os magistrados, mas também os mandatários judiciais cooperar, de boa-fé, entre si para obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Dito isto, a invocação do impedimento da Sr.ª Juíza do Tribunal de 1ª instância, nos termos e na oportunidade em que é deduzido pelo Sr. Mandatário Judicial dos RR/Recorrentes, é ostensivamente violador daquelas regras de conduta que devem nortear a actuação dos vários intervenientes no processo e, em especial, da boa-fé, no sentido da proibição do comportamento contraditório, que, de modo particular, se impõe aos Srs. Mandatários Judiciais.
Se não, vejamos.
Nos presentes autos e na acta da audiência de julgamento de 5.11.2020, a Sr.ª Juíza ditou para a acta o seguinte despacho:
Ao preparar o julgamento, dei-me conta que o litígio em causa nos autos envolve condóminos e arrendatários de fracções de um edifício constituído em propriedade horizontal situado na cidade do Porto no qual sou titular do direito à nua propriedade de uma das frações.
Pese embora tenha aí residido outrora, não mantenho com quaisquer dos vizinhos relação de amizade ou de inimizade, nem mantenho ou alguma vez mantive qualquer litígio com o condomínio, pois que não participo nem nunca participei nas assembleias de condóminos, não suporto nem nunca suportei quaisquer encargos relativos às quotizações do condomínio.
Nesta medida, dando embora conhecimento do exposto às partes, não se vê razões para qualquer impedimento ou a escusa.
Notifique.
Foram todos os presentes notificados do despacho supra, do qual declararam ficar cientes.
Seguidamente foi dada a palavra aos il. mandatários das partes e pelos mesmos foi dito nada ter a requerer.
Significa isto, portanto, que, tendo a Sr.ª Juíza dado a conhecer, de forma aberta e transparente (de boa-fé) a sua relação com o prédio em causa e as demais circunstâncias tidas por relevantes para efeitos de aferição da sua própria possibilidade/capacidade para, de forma independente e imparcial, decidir do mérito da causa – como se lhe impunha à luz dos citados deveres de boa-fé e correcção perante as partes e os seus Mandatários Judiciais -, nenhum dos ditos Sr. Mandatários colocou naquele momento qualquer questão ou dúvida quanto àquelas plenas condições da Sr.ª Juíza para decidir do mérito da causa, situação silente esta que, aliás, perdurou até à data da interposição do recurso pelos RR (a 20.09.2022) – praticamente dois anos - e apenas quando estes se viram confrontados com uma decisão judicial que lhes é desfavorável e que lhes foi notificada a 23.08.2022
Ora, com o devido respeito, é difícil configurar uma situação de maior deslealdade processual do que aquela que os autos revelam no caso por parte dos RR e do seu actual Mandatário Judicial, que nunca antes da prolação daquela sentença invocaram qualquer impedimento da Sr.ª Juíza, antes aceitando (durante cerca de dois anos…) que a mesma se mantivesse como titular do processo e dirigisse o respectivo julgamento e, nessa sequência, proferisse a dita sentença, embora soubessem (desde 5.11.2020) das circunstâncias que ora lhes servem de fundamento para a alegada nulidade ou inexistência da sentença proferida contra os seus interesses…
Isto dito, que se nos impõe por dever de consciência, enfrentando, do ponto de vista legal, a questão concreta suscitada pelos Recorrentes cumpre dizer que não lhes assiste qualquer razão quanto a tal matéria, sendo evidente e cristalino que esta sua nova e oportunista pretensão não colhe fundamento legal.
E não o colhe por duas razões essenciais, a saber:
- A questão substantiva nos presentes autos prende-se com o direito (de personalidade) dos Requerentes ao descanso, silêncio e tranquilidade na fracção em que habitam, sendo que esse direito de personalidade não lhes advém da simples titularidade do direito à propriedade de uma qualquer fracção no prédio em causa, mas do seu concreto uso e fruição e das exactas condições em que o fazem, isto é se usufruem desse uso e fruição da fracção onde habitam com a tranquilidade e o descanso que é suposto/exigido, sendo, portanto, este direito de personalidade (pessoal/individual) que os mesmos visam proteger com a sua pretensão de encerramento do estabelecimento comercial detido pelos RR/Recorrentes. [2]
Destarte, sendo esta a questão substantiva que está em causa nos autos (para o que é irrelevante a mera titularidade da nua propriedade sobre certa fracção do mesmo edifício – que pode não ser minimamente atingida pelos ruídos ou incómodos alegadamente causados pela actividade levada a cabo na fracção de que os RR são arrendatários) e tendo, ainda, a Sr.ª Juíza dito expressamente naquele despacho de 5.11.2020 que já não reside no dito edifício, nem nunca interveio nas Assembleias de Condóminos do mesmo – o que não se mostra minimamente posto em causa -, daí decorre, em termos lineares, que nenhum interesse actual, directo e pessoal tem a Sr.ª Juíza do Tribunal de 1ª instância na presente causa e que, assim, lhe permitisse ser parte principal na mesma, conforme prevê o n.º 1, alíneas a) e b), do artigo 115º, do CPC.
De facto, os impedimentos a que aludem as alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 115º, do CPC, remetem sempre para um critério de legitimidade (activa ou passiva), no sentido de o juiz não poder intervir em processo em que pudesse (litisconsórcio voluntário) ou devesse (litisconsórcio necessário) figurar como parte principal, como Autor (ou co-Autor) ou como Réu (ou co-Réu), o que, em face do antes exposto, não ocorre, pois o que está em causa enquanto causa de pedir/fundamento do presente litígio são os estritos e individuais/pessoais direitos de personalidade (direito ao repouso, ao descanso e qualidade de vida) dos AA/apelados e de mais ninguém…

Vale, pois, por dizer que, em primeiro lugar, não existe uma qualquer situação que possa ser enquadrada na previsão daquele normativo ou de qualquer outro e, logicamente, não existe qualquer situação de impedimento (ou de escusa) que legitime a posição agora suscitada pelos RR/Recorrentes quanto a uma pretensa invalidade (inexistência!) da sentença ou de quaisquer outros actos processuais levados a cabo no processo pela Sr.ª Juíza titular dos mesmos.
Mas, ainda que assim fosse (e admitindo-o apenas por dever de raciocínio), certo é que há muito está ultrapassado o prazo para que os RR/Recorrentes pudessem validamente suscitar, como o fazem agora (em recurso da sentença que lhes é desfavorável…), o dito impedimento.
Com efeito, quando se verifique alguma das causas previstas no artigo 115º, do CPC, das duas, uma: - ou o juiz se declara impedido – o que não ocorreu, como já se referiu, atento o despacho que foi ditado para a acta na sessão de julgamento de 5.11.2020; ou, não o fazendo, mas entendendo a parte que o juiz assim o deveria ter feito, tem a mesma que requerer a declaração de impedimento ao juiz do processo no prazo geral de 10 dias a partir da data em que tem conhecimento do fundamento do alegado impedimento e no máximo, até à data da prolação da sentença – artigo 116º, n.º 1, do CPC.
Não o tendo feito, como não o fizeram os RR, que apenas suscitaram a questão do alegado impedimento após a prolação da sentença em causa e nas alegações de recurso (apesar de, repete-se conhecerem os ditos factos desde 5.11.2020…), tal vem a significar, em segundo lugar, que esse eventual vício sempre se mostraria definitivamente ultrapassado/sanado, não podendo, pois, merecer acolhimento em sede de recurso de apelação. [3]
Improcede, assim, a primeira questão suscitada pelos RR/Recorrentes e a consequente invalidade/inexistência da sentença proferida, o que se julga – pedido formulado em A) [conclusões A e B].
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IV.II. Nulidades da sentença.
Relativamente às nulidades da sentença, começamos, conforme já é habitual, por citar A. ABRANTES GERALDES para salientar a inexplicável frequência com que as partes suscitam, sem o mínimo de fundamento legal, nulidades atinentes ao acto decisório, pretendendo desviar o conhecimento das questões substantivas do caso em litígio para o conhecimento de questões estritamente formais, que apenas consomem meios humanos, sem qualquer utilidade substantiva para a resolução definitiva/substantiva do litígio, sendo certo que, mesmo a existirem tais nulidades, sempre cabe, por princípio, ao Tribunal da Relação avançar para o conhecimento da questão substantiva, suprindo a eventual nulidade cometida (artigo 665º, n.º 1, do CPC), não ocorrendo, pois, regra geral, a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância. [4]
Nesta perspectiva, no caso dos autos, a invocação de tais nulidades só pode, com o devido respeito, justificar-se por desconhecimento sobre os fundamentos legais que estão na base daqueles vícios do acto decisório.
Dito isto, no caso dos autos, a situação é ainda mais complexa pois que, ainda que os RR/apelantes invoquem uma alegada omissão de pronúncia do Tribunal de 1ª instância na sentença para efeitos de um eventual decretamento da sua nulidade (artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC), compulsadas as suas extensas alegações e conclusões nem sequer se percebe bem a que questões os RR/apelantes se estão, de facto, a referir quando invocam o dito vício.
Todavia, não obstante esta dificuldade imputável apenas e só à forma ambígua e confusa como os RR/apelantes elaboraram as suas alegações, sempre se dirá que a argumentação dos mesmos não colhe fundamento, confundindo os mesmos os vícios do artigo 615º, do CPC (error in procedendo), com erro de julgamento (error in judicando).
O vício de omissão de pronúncia contende com a previsão do artigo 608º, n.º 2, do CPC, quando no mesmo se consagra que o Tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, assim como só pode conhecer das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento de outras (princípio do dispositivo).
Este comando resulta, ainda, do próprio dever de administrar justiça a cargo dos juízes e que resulta do artigo 152º, n.º 1, do CPC, no sentido de os juízes deverem proferir despacho ou sentença sobre as matérias pendentes, sempre fundamentando o seu veredicto – artigo 154º, n.º 1, do mesmo Código.
Ora, dito isto, se bem se conseguem alcançar, nesta sede, as alegações/conclusões dos RR/apelantes, os mesmos invocam que o Tribunal de 1ª instância não conheceu da excepção de caso julgado (decorrente da sentença proferida em prévia acção que correu entre as mesmas partes e com a mesma causa de pedir e pedido) – a acção n.º 22524/19.6T8PRT -, não fundamentou devida e completamente a decisão de facto e, ainda, não ponderou, em termos casuísticos, os vários direitos ora em conflito, nomeadamente o direito à saúde/integridade física dos AA/apelados e o direito de iniciativa privada deles RR/apelantes, ambos direitos constitucionalmente protegidos, sendo que este último direito foi integralmente desconsiderado na sentença recorrida ao decretar, sem mais, o encerramento do estabelecimento de ginásio que os mesmos exploram nas fracções de que são arrendatários.
Pois bem; nada dito disto, com o devido respeito, contende com a omissão de pronúncia a que alude o artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Relativamente ao caso julgado, cumpre dizer que os próprios AA/apelados invocaram a existência daquela anterior acção n.º 22524/19.6T8PRT e do ali decidido na sua petição inicial (vide, por todos, o artigo 54º da petição inicial), mas, ainda assim, os RR/apelantes, na sua contestação, em lado nenhum dessa peça invocaram a dita excepção e concluíram pela sua absolvição da instância, de que só agora oportunisticamente se lembraram…
Dir-se-á, no entanto, com inteiro acerto, que a dita excepção é de conhecimento oficioso (artigos 577º, alínea i) e 578º, do CPC), mas talvez convenha lembrar os RR/apelantes que, para além daquela alegação dos próprios AA/apelados, nenhuma das partes, incluindo os RR/apelantes, se dignaram obter e juntar em 1ª instância certidão daquela sentença com nota de trânsito em julgado, sendo certo que só assim, de facto, estaria o Tribunal de 1ª instância habilitado, com a devida segurança e certeza, a conhecer da dita excepção de caso julgado, que, insiste-se, ninguém, nomeadamente os RR/apelantes, se lembraram de suscitar.
De todo o modo, em nosso ver, certo é que o Tribunal de 1ª instância na sentença proferida e ora recorrida, ainda que sem aludir (como julgamos que deveria ter feito, para evitar quaisquer dúvidas no espírito das partes…) expressamente a tal excepção de caso julgado, não deixou de referir/decidir que «a instância se mantêm válida e nada obsta ao conhecimento da causa», ou seja, ao menos implícita e genericamente, não deixou de afirmar que não ocorria qualquer obstáculo processual ao conhecimento do mérito da causa e, portanto, logicamente, considerou que não ocorria a dita excepção, sendo certo que se considerasse que ela existia não teria sequer conhecido do mérito da causa e decretado, desde logo, a absolvição da instância dos RR/apelantes, sabendo-se (como se sabe) que as excepções dilatórias, nomeadamente o caso julgado, obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduzem à absolvição da instância – artigo 576º, n.º 2, do CPC.
Por conseguinte, ainda que o Tribunal de 1ª instância devesse, salvo o devido respeito, conhecido expressamente de tal excepção de caso julgado – pois que a mesma é de conhecimento oficioso e, em última instância, o próprio Tribunal também poderia colher junto do aludido processo em causa certidão da sentença proferida, com nota de trânsito em julgado -, certo é que, em nosso julgamento, ao menos implicitamente dela conheceu e julgou-a improcedente, não ocorrendo, pois, a dita omissão de pronúncia.
No entanto, o que mais importa, é que, mesmo a admitir-se uma tal nulidade por omissão de pronúncia, como já se referiu, sempre nos cumpre nesta instância (enquanto tribunal de substituição – artigo 665º, n.º 1, do CPC), conhecer de tal excepção, pois que também essa matéria constitui uma das questões/matérias suscitadas pelos RR/apelantes.
Assim, sem prejuízo do que, no lugar próprio, se decidirá quanto a tal excepção só agora invocada pelos RR/apelantes, quanto à omissão de pronúncia a que alude o artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, a mesma deve improceder, o que se julga.
A segunda questão tem a ver com a alegada incompletude ou indevida fundamentação da decisão de facto.
Ora, também esta matéria em nada contende com uma pretensa nulidade por omissão de pronúncia, apenas podendo ser conhecida e dirimida em sede de impugnação da decisão de facto e nos termos do artigo 640º e 662º, do CPC.
Com efeito, mesmo a entender-se que assiste razão aos RR/apelantes nesta parte atinente à fundamentação/motivação da decisão de facto por erro de valoração/apreciação dos meios de prova, a consequência nunca será o decretamento da nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, mas a alteração da decisão de facto (artigo 662º, do CPC), ou, em determinadas condições, a anulação do julgamento ou a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância nos termos das alíneas c) e d), do n.º 2, do mesmo artigo 662º, do CPC.
Destarte, também este outro argumento não colhe o mínimo fundamento e deve improceder, o que se julga.
Relativamente ao último argumento, a sua improcedência é ainda mais evidente.
Com efeito, o que os RR/apelantes revelam é a sua discordância quanto ao julgamento de direito expresso na sentença recorrida e a circunstância de, na sua perspectiva, o Tribunal de 1ª instância ter decidido do mérito do litígio de forma errónea, por desconsideração do seu direito à exploração da sua actividade comercial (ginásio) - iniciativa privada -, no confronto com o direito dos AA/apelados ao descanso, repouso, silêncio, enquanto elementos integrantes da sua saúde e integridade físico-mental.
Ora, esta discordância dos RR/apelantes e a eventual desconsideração daquele seu direito de iniciativa privada imputada à sentença recorrida, pode conduzir, em sede de reapreciação do mérito do julgamento jurídico da causa nesta instância, à alteração/revogação da sentença, mas nunca ao decretamento da sua nulidade. [5]
A segunda nulidade invocada pelos Recorrentes alude a uma alegada contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, tal como prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Sucede, no entanto, que não obstante as considerações dos RR/apelantes nas alegações quanto a tal matéria, basta ler a fundamentação de facto e de direito da sentença recorrida para logo se alcançar que nela não existe qualquer contradição lógica entre essa fundamentação e a decisão proferida a final.
O que existe, mas nada tem a ver com a contradição lógica a que alude o artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC, mas apenas com uma eventual com oposição entre aquela que deveria ser, na perspectiva dos RR/apelantes, a decisão jurídica do litígio em apreço em função dos novos factos que os mesmos julgam deverem ter sido julgados provados e não provados e aquela que, na sua perspectiva, deveria ser a interpretação/subsunção/fundamentação jurídica perfilhada pelo Tribunal de 1ª instância…
Ora, tal como já antes se referiu, mesmo a dar-se razão aos RR/apelantes quanto a essa sua distinta perspectiva quanto ao julgamento de facto e de direito da causa, a consequência será sempre a alteração/revogação da sentença e nunca o decretamento da sua nulidade por contradição lógico-dedutiva nos termos do citado artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC. [6]
De facto, considerando-se na sentença que existe violação dos direitos de personalidade dos AA por parte dos RR e que aqueles direitos dos AA merecem, na perspectiva do juiz, superior protecção face ao direito de iniciativa privada (exercício da actividade comercial em causa – exploração de um ginásio), a conclusão lógica, em termos dedutivos (silogismo judiciário), só poderia ser no sentido da procedência da acção, como foi decretado na sentença recorrida.
Digamos, pois, que a decisão final é totalmente consequente ou consentânea com a fundamentação jurídica previamente invocada pelo julgador na mesma peça jurídica, o que é o bastante para afastar totalmente a alegada contradição lógica, tal como prevista no citado artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Os RR/apelantes podem, naturalmente, dissentir desta conclusão ou veredicto final do Tribunal de 1ª instância, defendendo que outra deveria ter sido a decisão final, mas não podem defender, de forma minimamente fundamentada, que existe uma contradição lógica entre a decisão e os seus fundamentos de facto e de direito, pois que tal contradição lógica ostensivamente não existe.
Por conseguinte, a nossa conclusão lógica só pode ser a da total improcedência das nulidades da sentença arguidas pelos RR/apelantes, o que se julga – pedido A [conclusão D].
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IV.III. Violação do caso julgado.
Dirimidas as questões antecedentes, cumpre conhecer da questão do caso julgado e da sua alegada violação.
O efeito mais importante a que a sentença pode conduzir é o caso julgado.
Diz-se que a sentença forma caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da sentença é assim o núcleo essencial do caso julgado.
Quanto à noção de caso julgado refere MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA [7] que “ … o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação [da sentença] por qualquer tribunal [incluindo aquele que a proferiu] em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão.
Deste modo, a formação do caso julgado supõe ou exige que não seja a decisão em causa susceptível de recurso ordinário ou de reclamação por nulidades ou obscuridades ou, ainda, para reforma quanto a custas e/ou multa, em conformidade com o preceituado no artigo 628º do CPC.
Neste conspecto, tanto podem transitar em julgado as sentenças ou despachos recorríveis, relativos a questões de caracter processual/formal, como a decisão referente ao mérito da causa, isto é referente à concreta relação material controvertida sob litígio.
No primeiro caso, como é consabido, forma-se caso julgado formal ou interno; no segundo caso, forma-se caso julgado material ou externo. Ambos pressupõem, nos termos expostos, a preclusão dos recursos ordinários ou da reclamação, mas têm efeito ou relevo radicalmente distinto.
O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal ou, por outro, entretanto chamado a apreciar a causa - artigo 620º, n.º 1, do CPC.
Por seu turno, o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada – artigo 619º, n.º 1 do CPC. [8]
Em suma, o caso julgado formal tem valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo, ao passo que o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer em processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada.
Como assim, o caso julgado material é sempre vinculativo no próprio processo onde a decisão foi proferida, mas também o pode ser num outro processo – eficácia extraprocessual.
No caso dos autos, em termos liminares, sendo indiscutido que o caso julgado suscitado nos presentes autos se reporta ou tem por referência o conteúdo decisório inserido na sentença homologatória proferida na aludida acção declarativa n.º 22524/19.6T8PRT, não existem dúvidas de que não curamos de uma situação de caso julgado formal, pois que a aludida decisão não versou sobre qualquer questão processual ou adjectiva, antes versou sobre a relação material controvertida ali sob litígio entre as mesmas partes.
Assim, a questão situa-se em sede de caso julgado material e dos seus efeitos vinculativos externos.
Quanto ao caso julgado material e aos seus efeitos externos (que a doutrina e a jurisprudência usualmente denominam de «extensão do caso julgado») é ele definido pela tríplice identidade, ou seja pela identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as acções, sendo certo que é sempre pressuposto da figura do caso julgado (e da litispendência) a repetição de uma causa – artigos 580º e 581º, ambos do CPC.
A excepção de caso julgado (material) pressupõe, de facto, a repetição de uma causa e verifica-se depois de a primeira ter sido decidida, por sentença que já não admite recurso ordinário, destinando-se a evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, atento o estipulado pelo artigo 580º, nºs 1 e 2, do CPC.
Ora, como também se evidencia do artigo 581º do mesmo Código, a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo certo que existe identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, existe identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, nos termos do preceituado pelo artigo 581º, n.ºs 1 a 4, do CPC.
Como salienta ainda M. TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 574-575, perante o sobredito circunstancialismo (relação de identidade entre os objectos de ambas as decisões, decorrente de ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas ser formulado o mesmo pedido – e abstraindo, por ora, do âmbito subjectivo do caso julgado), o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado, evitando que o tribunal seja colocado perante a alternativa de contradizer ou de reproduzir, de forma redundante, a decisão antes transitada em julgado.

Como assim, a função da excepção de caso julgado é tanto a de proibir que o tribunal da segunda acção, dada a sua vinculação ao caso julgado da decisão transitada, profira uma decisão contraditória com a anterior, como a de obviar a que esse órgão seja obrigado, numa situação de identidade de causas, a repetir a decisão já antes transitada.
Nestes termos, o caso julgado realiza dois efeitos: - um efeito negativo, que decorre da excepção de caso julgado, que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal (mesmo, portanto, aquele que decidiu) se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida, seja proferindo decisão oposta, seja repetindo a anterior; - um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido. [9]
Em suma, o mesmo instituto do caso julgado produz dois efeitos distintos: um efeito negativo exercido através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas idênticas, segundo o critério já antes referido (identidade de partes; identidade de causa de pedir; identidade do pedido); um efeito positivo através da autoridade de caso julgado, impondo a força vinculativa da decisão proferida ao próprio tribunal decisor ou a outro tribunal a quem se apresente a dita decisão anterior como questão prejudicial ou prévia face ao “ thema decidendum ”/objecto no processo posterior.
Neste mesmo sentido, refere JOSÉ LEBRE de FREITAS que “… pela excepção [de caso julgado] visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito “(…), ao passo que “… a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. “ [10]
Daí que, nesta última vertente, para a afirmação da autoridade de caso julgado não seja, via de regra, exigível uma estrita identidade da acção, em particular ao nível do pedido e causa de pedir, bastando que exista, de facto, aquela relação de prejudicialidade entre as duas acções, mesmo com objectos distintos.
Dito isto, o alcance do caso julgado que a sentença constitui, estabelece-se, em conformidade com o disposto no artigo 621º, do CPC, ou seja, “… nos precisos limites e termos em que julga. “
Por conseguinte, como tem sido afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a expressão utilizada no artigo 621º do CPC, para definir o alcance ou extensão objectiva do caso julgado, afere-se pelas regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção, compreendendo todas as questões solucionadas na sentença e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.
Neste mesmo sentido, a mesma jurisprudência tem reafirmado que são abrangidas pelo caso julgado não apenas o segmento decisório final enquanto conclusão a partir de determinados fundamentos - «silogismo judiciário» -, mas, ainda, as próprias questões apreciadas e que constituam antecedente lógico indispensável da conclusão ou parte dispositiva da sentença. [11]
Em suma, como refere FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA [12] em termos que nos merecem inteira adesão, “O caso julgado reside na firmeza ou consistência prático-jurídica ou prático-económica dessa decisão central, que não também na resolução das questões incidentais, instrumentais ou interlocutórias que logicamente a precedem, as quais, com o caso julgado, ficam a salvo de novo escrutínio jurisdicional. Do que resultam dois corolários determinativos dos limites do caso julgado: - por um lado, a necessidade [por via interpretativa da decisão] da fixação dos reais e exactos sentido e alcance da resposta jurisdicional à pretensão ou pretensões constantes da decisão final; por outro, a consideração de que eventuais e sucessivos julgamentos de facto e de direito, não compreendidos na decisão final (embora eventualmente louvados na motivação desta) «não são abrangidos pela eficácia do caso julgado.»
Nestes termos, como também assinala MANUEL de ANDRADE, “ Noções Elementares de Processo Civil “, pág. 285-286, embora os limites do caso julgado sejam moldados pelos elementos caracterizadores da relação jurídica substantiva definida pela sentença - os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo -, para a respectiva aferição do caso julgado torna-se necessário atender aos termos dessa concreta definição ou estatuição. A sua autoridade «faz lei» para qualquer processo futuro, mas só em estrita correspondência com o respectivo conteúdo, nada obstando a que, numa nova acção, se discuta e dirima aquilo que a mesma não definiu. Advém essa força do que foi efectivamente decidido, não do que podia ou devia ter sido decidido.
Neste quadro, a aferição do caso julgado deve arrancar do próprio teor ou conteúdo da sentença e do que nela foi definido, procedendo à sua interpretação segundo um declaratário normal, ainda que com a formação própria dos profissionais do foro, sendo certo que a sentença é uma peça jurídica que sempre carece de ser interpretada [13].
Destarte, interpretado o acto decisório/sentença, se este não houver estatuído, de modo exaustivo, sobre a pretensão deduzida pelo autor ou pelo réu-reconvinte (thema decidendum), nada obstará à prolação de uma nova decisão útil em nova acção, ao passo que, ao contrário, se nele se tiver conhecido e estatuído de modo exaustivo sobre determinada pretensão, esse pronunciamento faz caso julgado material, verificados os demais pressupostos.
Com efeito, o fundamento e o objectivo da excepção do caso julgado, com o que se obtém o conceito funcional da mesma, consistem em evitar que o Tribunal da segunda acção se veja “ colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. ”
Nesta mesma linha de pensamento, salienta ainda M. TEIXEIRA de SOUSA que “… a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante (…) a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica… ” [14]
Esta noção corresponde à função, habitualmente, atribuída à excepção de caso julgado, que se traduz em proteger a força e autoridade de uma decisão que, transitada, adquiriu força de caso julgado material, nos termos definidos pelo artigo 619º, nº 1, tutela essa, aliás, que, se falhar, se encontra ainda prevista, no artigo 625º, nº 1, ambos do CPC, já que a segunda decisão, em qualquer hipótese, será sempre inútil, pois que só vingará a primeira decisão que tenha transitado em julgado.
De facto, conforme é lição do Prof. MANUEL de ANDRADE, op. cit., pág. 306, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais, considerando que “ tal prestígio seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente ” e, numa razão de certeza ou segurança jurídica, sendo certo que “ sem o caso julgado cair-se-ia numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa ”.
Ora, perante estes ensinamentos, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que, mesmo a admitir-se que os sujeitos, a causa de pedir e o pedido sejam exactamente os mesmos que já figuravam na anterior acção n.º 22524/19.6T8PRT, a sentença que nesta outra acção (a presente acção e em que se insere o presente recurso) seja proferida jamais contrariará ou repetirá o que foi decidido, em termos definitivos, naquela acção n.º 22524/19.6T8PRT.
Com efeito, naquela outra acção, as partes puseram-lhe termo por acordo (homologado por sentença, transitada em julgado), acordo esse em que apenas se definiu que os RR deveriam reduzir o horário de funcionamento do estabelecimento em causa por um período de 90 dias (cláusula 1ª), que deveria ser efectuado naquele prazo um estudo acústico para definição de eventuais obras de insonorização a terem lugar na fracção onde funcionava o estabelecimento comercial dos RR, podendo estes últimos optar por realizar essas obras ou por encerrar o estabelecimento (cláusulas 2ª, 3ª e 4ª).
Porém, com o devido respeito, em parte nenhuma desse acordo (e subsequente sentença homologatória) se mostra excluída a possibilidade de as obras a realizar não resolverem os problemas atinentes aos ruídos provenientes do dito estabelecimento, de esses ruídos se manterem e, logicamente, de os ali Autores, nessa outra hipótese, proporem nova acção com fundamento nesses ruídos subsistentes, nas perturbações que dos mesmos decorrem para a sua saúde e integridade física e, nesse contexto, pretenderem o encerramento do próprio estabelecimento em causa, sendo certo que, como bem se alcança da dita transação judicial, em parte nenhuma da mesma os ali AA desistiram dos pedidos ali formulados, sendo certo que só essa desistência faria extinguir os direitos de personalidade ali invocados (artigos 284º e 285º, n.º 1, ambos do CPC).
Com efeito, interpretando aquela sentença (e o acordo que lhe subjaz), os ali AA colocaram termo àquele concreto litígio, concedendo aos RR a possibilidade de efectuarem um estudo acústico ao local e de efectuarem obras no dito estabelecimento de forma a procurar solucionar os problemas de ruídos que provinham do mesmo, sem que, no entanto, resulte minimamente do dito acordo e subsequente sentença homologatória, ali estabelecido ou decidido, repete-se, que os AA abdicariam para futuro de, não sendo feitas obras de insonorização ou de as mesmas, apesar de realizadas, não serem totalmente satisfatórias para os seus interesses, puderem, como fizeram, propor outra acção com vista a um eventual encerramento do dito estabelecimento (ou limitação no seu funcionamento) e em face dos ruídos que eventualmente permanecessem e na medida em que os mesmos afectassem a sua saúde/integridade física, ao nível do seu descanso e repouso nas fracções em que habitam.
Por conseguinte, o caso julgado formado na dita acção prévia (e dentro dos termos e limites do que ali foi decidido, por acordo das próprias partes – artigos 284º e 621º, do CPC ) não é, segundo julgamos, impeditivo da propositura e do conhecimento do objecto desta nova acção a título de excepção de caso julgado, não existindo, pois, como se frisou, a possibilidade de nesta nova acção o Tribunal decidir em sentido contrário ao que naquela outra acção n.º 22524/19.6T8PRT se decidiu ou, ainda, de repetir estritamente o que já ali foi decretado através da sentença homologatória proferida, não ocorrendo, assim, violação do caso julgado decorrente do que foi decidido naquela sentença homologatória e dentro dos precisos limites do que ali ficou consignado.
O que, em conclusão, nos conduz à improcedência da excepção de caso julgado ora invocada pelos RR/apelantes, o que se julga – pedido B [conclusão C]
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IV.IV. Impugnação da decisão de facto.
Dirimidas as questões anteriores, cumpre agora conhecer da impugnação da decisão de facto deduzida pelos RR/apelantes.
Em sede de impugnação da decisão de facto, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia não pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos concretos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação.
Com efeito, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 640º, incumbe ao recorrente, em primeiro lugar, circunscrever o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considerados viciados por erro de julgamento, com indicação da decisão que a seu ver deveria ter sido proferida [als. a) e c) do n.º 1] e, em segundo lugar, fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa [al. b) do n.º 1].
De facto, se ao Tribunal é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da sua decisão em matéria de facto (artigo 607º, n.º 4 do CPC), facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o respectivo ónus de impugnação, ou seja o ónus de expor, em termos claros e suficientes, os argumentos que, extraídos da sua própria apreciação crítica dos meios de prova produzidos, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
Neste sentido, a impugnação da decisão de facto não se basta com a afirmação pelo recorrente da sua discordância face ao decidido, sustentada em referências imprecisas, genéricas ou descontextualizadas, ou a mera reprodução parcial de um outro segmento parcial de algum ou alguns dos depoimentos, sendo certo que é o apelante que impugna a decisão da matéria de facto quem está em melhores condições para apontar, fundadamente, os eventuais erros de julgamento existentes ao nível da decisão de facto e respectiva apreciação crítica.
Na realidade, como refere ANA LUÍSA GERALDES [15], a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou de parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova produzidos, através da sua análise global, devidamente ponderada, em termos críticos, segundo as regras da lógica, da experiência e das regras da ciência, eventualmente convocáveis no caso concreto.
Como assim, neste contexto de apreciação global e crítica da prova produzida, “… mostra-se facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências da apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte à formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na motivação da decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas produzidas e registadas, apontando eventuais disparidades, contradições ou incorrecções que afectem a decisão recorrida.
É, portanto, suposto «desconstruir» a convicção firmada pelo Tribunal recorrido – e que o mesmo deve espelhar na motivação da decisão de facto, através da exposição do fio condutor do raciocínio lógico-dedutivo que o conduziu a afirmar a demonstração ou não demonstração de determinada realidade factual -, apontando, em termos precisos e suficientes, os erros de valoração que lhe estão subjacentes, sendo certo que, como é pacífico, o objectivo do 2º grau de jurisdição na apreciação de facto não é a simples repetição do julgamento mas a detecção e correcção de concretos, pontuais e fundamentados erros de julgamento.
De facto, segundo o que decorre do artigo 662º, n.º 1 do actual CPC, «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Como assim, e como é hoje indiscutido, através deste novo artigo 662º, em contraponto com o artigo 712º do CPC anterior, pretendeu-se realçar que, sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão de facto e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, sujeito às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.
Portanto, afastada está a tese que a modificação da decisão de facto só pode ter lugar em casos de erro manifesto de apreciação dos meios probatórios ou, ainda, que a Relação, atentos os princípios da imediação e da oralidade, não pode contrariar o juízo formulado em 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação.
Sem prejuízo do relevo de tais princípios e sem escamotear que o Juiz em 1ª instância se encontra, por via do imediato contacto com a produção da prova, em particulares condições para o julgamento da matéria de facto [condições que, por regra, não são repetíveis em sede de julgamento na Relação], dúvidas não existem que o pensamento legislativo consagrado no artigo 662º, n.º 1 [e, ainda, no n.º 2 alíneas a) e b) do mesmo inciso] aponta no sentido de a Relação se assumir “… como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), assistindo-lhe plena autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.[16]
De todo o modo, isto é, sem prejuízo dos aludidos poderes da Relação, ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efectuada com segurança e rodeada da necessária prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efectiva audição dos respectivos depoimentos, e os fundamentos valorativos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos pontos de facto impugnados, partindo do pressuposto da existência de um desvio na apreciação crítica da prova.
Como assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há-de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respectivos registos fonográficos -, deve, por princípio, prevalecer a decisão proferida em 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte. [17]
Quer isto dizer, como salienta Ana Luísa Geraldes, que na reapreciação da prova pela 2ª instância, não se procura obter uma outra convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência e da lógica, atendendo aos elementos probatórios que constam dos autos, e aferir, assim, nestes termos, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem seguros no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – artigo 640º, n.º 1 al. b), parte final, do CPC.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova testemunhal e das declarações de parte, do depoimento de parte, este último na parte em que não constitua confissão, e da própria prova pericial que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação de prova, conforme decorre do disposto nos artigos 361º, 396º e 389º do Cód. Civil e artigos 466º, n.º 3 e 607º, n.º 5, do CPC.
Note-se, neste âmbito, para evitar alguns equívocos, que os relatórios periciais, sejam os oferecidos pelas partes, seja o que o foi determinado pelo Tribunal não são meros documentos, sujeitos ao valor probatório previsto nos artigos 362º a 387º, do Cód. Civil, mas prova pericial, tal como definida pelo artigo 388º, do mesmo Código e, como tal, sujeita à livre apreciação do tribunal, ainda que, naturalmente, ela venha a ter expressão escrita num documento, o relatório pericial.
Dito isto, como é pacífico, prova livre não é prova arbitrária ou discricionária; prova livre “ quer dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade, como é natural e compreensível, com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental “(…), ou seja, segundo “… as máximas de experiência e as regras da lógica “, ou, ainda, nas palavras de MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “… as regras da experiência, da lógica e da experiência.[18]

Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjectiva (artigo 607º, n.º 4 do CPC) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada, expondo o fio condutor que, em termos lógicos e segundo as regras da experiência, conduziu ao julgamento de determinado facto como demonstrado ou não demonstrado. Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial, não só para efeitos de convencimento das partes e do eventual exercício do direito de impugnação da decisão de facto, mas, ainda, para o próprio Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que o Tribunal ad quem vai controlar, por recurso às mesmas regras da lógica e da experiência que são aplicáveis em 1ª instância, da razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância, confrontando-a com a sua própria e autónoma convicção, formada também ela (a convicção do tribunal de recurso), à luz dos meios de prova produzidos.
Por outro lado, ainda, importa dizê-lo, no contexto do julgamento da matéria de facto, seja ao nível da 1ª instância, seja ao nível da sua reapreciação no Tribunal de 2ª instância, a reconstrução histórica do material fáctico não persegue uma verdade absoluta ou uma certeza naturalística (própria de outros ramos das ciências), mas um grau de certeza empírica e histórica, baseada num alto grau de probabilidade. Como refere MANUEL de ANDRADE “… a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).[19]

Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre, pois, conhecer da impugnação deduzida pelos Recorrentes, ponto por ponto, tendo por referência a prova produzida e, em particular, a própria convicção evidenciada pelo Tribunal de 1ª instância, no sentido de confirmar, como defendem os Recorrentes, a existência de algum erro de valoração crítica dos meios de prova, ou seja, se a valoração ali efectuada incorreu em algum desvio ou vício que imponha decisão diversa.
O primeiro ponto que é posto em causa é o ponto 2 do elenco dos factos provados.
No dito ponto 2 de sentença consta a seguinte factualidade:
“As fracções designadas pelas letras K, S e T, todas destinadas a habitação, encontram-se registadas a favor dos primeiros, segundo e terceiro autores respectivamente. “
Os RR/apelantes, tendo por base os documentos juntos com os n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 com a petição inicial, pretendem que o dito ponto 2 passe a ter a seguinte redacção:
“As fracções designadas pelas letras K, S e T, todas destinadas a habitação, encontram-se registadas a favor dos primeiros, segundo e terceiro autores, situando-se a K no primeiro andar e as S e T no segundo andar, todas do mesmo prédio. “
Sobre esta matéria, dir-se-á, em primeiro lugar, que é pena que os RR/apelantes sejam agora tão meticulosos e rigorosos na impugnação da decisão de facto do Tribunal, mas não o tenham sido na sua contestação. É que, lida a sua contestação em lado nenhum da mesma os mesmos fazem referência a estes factos que agora julgam relevantes…
De todo o modo, resultando esses factos dos ditos documentos (certidões do registo predial), não vemos razões para que tais factos não possam ser considerados na sentença, sendo certo que “quoad abundat non nocet“.
Destarte, o ponto 2 da sentença passará a ter a redacção proposta pelos RR/apelantes e acima referida.
Em seguida, impugnam os Recorrentes o ponto 4 da mesma sentença.
No dito ponto consta o seguinte:
Os AA mantêm residência nas fracções identificadas em 2) desde 1987, aí desenvolvendo a sua actividade familiar, tomando refeições, recebendo o correio, recebendo amigos, descansando e pernoitando.
Os RR/apelantes defendem que passe a constar que o Autor AA adquiriu a sua fracção (K) em 1988 (e não em 1987), que o Autor CC adquiriu a sua fracção (S) em 1988 (e não em 1987) e o Autor DD adquiriu a sua fracção (T) em 1988 (e não em 1987).
Quanto a esta matéria, para além da mesma observação anterior, cumpre dizer, em primeiro lugar, que no ponto 4 não consta a data de aquisição das fracções em causa, mas a data a partir da qual os AA ali passaram a habitar, sendo certo que é perfeitamente possível adquirir-se (formalmente) a fracção apenas em 1988 e já ali habitar desde o ano anterior (1987). Portanto, os documentos invocados não impõem necessariamente a resposta distinta proposta pelos RR/apelantes.
Em segundo lugar, cumpre também dizer que a data da aquisição das fracções em causa é totalmente irrelevante para a decisão a proferir, sendo certo que, como consta do ponto 5 do mesmo elenco dos factos provados, não há a mais pequena dúvida que os AA já ali habitavam há muito quando os RR/apelantes deram início à sua actividade comercial de ginásio na fracção E do dito edifício (em 2018).
Improcede, assim, sem mais, a impugnação do ponto 4 do elenco dos factos provados, que se mantém.
Prosseguindo, impugnam os RR/apelantes o ponto 9) dos factos provados, invocando que o mesmo devia ser desdobrado em dois outros pontos (9 e 10), pontos estes atinentes à já referida acção n.º 22524/19.6T8PRT que correu termos entre as mesmas partes e com o mesmo objecto (ponto 9) e, ainda, ao teor da transação ali celebrada entre as partes, que veio a merecer sentença homologatória, com trânsito em julgado (ponto 10).
Quanto a este ponto, importa começar por referir que nenhum dos factos ali em referência e/ou os documentos que estão na sua base (documentos n.ºs 8 e 9, juntos com a petição inicial) colocam em causa a matéria de facto constante do ponto 9) do elenco dos factos provados na sentença e que reza assim: “ Os Réus utilizam máquinas e aparelhos comuns ao desenvolvimento da actividade, tais como halteres e pesos. “
Destarte, nenhum daqueles meios de prova invocados pelos RR/apelantes colocam em crise a demonstração daquela factualidade e que, portanto, imponha decisão diversa da que provem do Tribunal de 1ª instância.
Como assim, quanto ao ponto 9) da sentença o mesmo é de manter.
Relativamente à acção antes referida a mesma apenas poderia revelar interesse, segundo cremos, para a apreciação do caso julgado invocado pelos RR/apelantes nesta instância.
Sucede que, como resulta do ponto IV.III. deste acórdão, essa matéria de excepção já foi conhecida nesta instância e decretada a sua improcedência.
Por conseguinte, nenhuma alteração se impõe, sendo certo que essa alteração, face ao já antes conhecido e decidido quanto àquela excepção de caso julgado, sempre já será irrelevante à decisão jurídica do presente litígio.
Prosseguindo, ainda em sede de impugnação da decisão de facto, defendem os RR/apelantes que o Tribunal de 1ª instância deveria ter julgado como provada a factualidade por si alegada nos artigos 44º a 46º da sua contestação, sendo certo que, segundo afirmam, o Tribunal foi totalmente silente quanto a esta matéria.
Nesta sede cumpre começar por dar razão aos RR/apelantes quanto ao silêncio do Tribunal de 1ª instância, pois que, de facto, no elenco dos factos provados ou não provados nada consta quanto a tal matéria alegada pelos RR nos artigos 44º a 46º da sua contestação.
Poder-se-á dizer que tendo o Tribunal de 1ª instância julgado - como consta da sentença - que «… não resultaram provados quaisquer outros factos dos alegados que importem para a decisão da causa…», aquela factualidade também foi julgada como não provada…. Ainda que assim se possa entender, julgamos que deve o juiz fazer constar da sentença, pelo menos, os factos essenciais que julga não provados (fazendo o seu elenco e a motivação de tal decisão), pois que só assim, de facto, é dado estrito cumprimento ao preceituado no artigo 607º, n.º 4, do CPC, permitindo, não apenas às partes ter a percepção global do julgamento da factualidade alegada pelas mesmas, mas, ainda, à parte vencida na decisão a impugnação de tal matéria de facto e ao tribunal hierarquicamente superior aferir (reapreciar), em termos conscienciosos e seguros, do julgamento de facto e da sua precisa motivação de facto.
Feita esta observação prévia, nos artigos 44º a 46º da contestação, os RR alegaram o seguinte:
44º: O pavimento da fracção E encontra-se revestido de borracha com 12 mm de espessura, tecnicamente indicado e apropriado a pisos onde se pratica a preparação e recuperação física.
45º: As paredes do dito espaço encontram-se revestidas com material isolante em esferovite e este sobreposto com material denominado OSB.
46º: Por baixo da placa do tecto (em betão) existe também na fracção E um tecto falso que se encontra isolado com lã de rocha, que é o material apropriado para isolamento acústico, isolamento de humidade e de calor. “
Em abono da prova desta factualidade, os RR/apelantes invocam o teor do relatório pericial realizado nos autos, conjugado este com o depoimento da testemunha GG e HH.
Nesta matéria, importa começar por referir que ambas as partes ofereceram com os respectivos articulados relatórios periciais efectuados (a seu pedido) sobre os ruídos provocados pelo funcionamento do ginásio em causa na fracção E e o seu nível de repercussão nas fracções habitadas pelos AA/apelados, sendo que nenhuma das partes aceitou os resultados emergentes de tais perícias, colocando-as em causa.
Por ser assim, com expressa anuência de ambas as partes, na audiência de 5.11.2020 (já antes referida), foi determinada a realização de uma peritagem por parte do próprio Tribunal (por perito indicado pela Faculdade de Engenharia do Porto) e, ainda, determinada a realização de uma verificação não judicial, nos termos do disposto no art.º 494º do CPC, consistindo tal diligência na deslocação ao local de funcionário judicial que capte fotografias do interior da fração “E” que retratem os objectos, máquinas e equipamentos utilizados pelos requeridos no exercício da sua actividade comercial.
Como assim, estando em causa nos aludidos artigos 44º a 46º matéria claramente técnica, para a qual o juiz não está naturalmente habilitado a conhecer e decidir, aqueles meios de prova, concretamente a prova pericial determinada oficiosamente e realizada por perito independente e imparcial relativamente às partes (sendo que a prova pericial junta pelas partes e paga pelas mesmas assegura, à partida, por isso mesmo, menor consistência e credibilidade) e a verificação não judicial determinada pelo Tribunal e realizada por funcionário judicial (também alheio aos interesses em disputa), afiguram-se-nos, segundo as regras da experiência e da lógica, como os meios de prova a que deve o Tribunal conferir maior relevo probatório, dadas as garantias de imparcialidade e equidistância face ao conflito, para além, quanto à prova pericial, da habilitação superior técnica do sr. Perito que foi indicado pela Faculdade de Engenharia do Porto, prestigiada instituição universitária desta cidade do Porto.
Relativamente ao auto de diligência/verificação não judicial o mesmo consta do auto de 20.11.2020 e é composto por 13 fotos que dão nota, em termos essenciais, dos equipamentos ali existentes e que são os comuns a qualquer ginásio, sendo ainda possível discernir que as paredes são formadas por um tipo de aglomerado de madeira, tipo «tabopan» e que no piso existe também um material em plástico ou em borracha.
Por seu turno, quanto ao relatório pericial (em que interveio, por nomeação da FEUP, o Sr. Engº II), o mesmo consta dos autos com data de 13.05.2022, sendo composto por várias fotos e por dois anexos, um parecer técnico e um relatório de recolha de dados de acústica.
Tendo em consideração estes meios de prova – únicos que, em nosso ver, relevam à apreciação correcta, segura, conscienciosa, independente e imparcial das matérias em causa -, quanto ao ponto 11 o mesmo resulta, no essencial, demonstrado no dito relatório pericial elaborado pelo Eng.º II.
Assim, nesta parte, deverá passar a constar do ponto 11 do elenco dos factos provados a seguinte factualidade:
O pavimento da fracção E encontra-se revestido de borracha com 12 mm de espessura em toda a sua extensão.
Tudo o mais (alegado no correspondente artigo 44º da contestação, acima transcrito) é, em nosso ver, meramente opinativo, valorativo ou conclusivo, não devendo, como tal, figurar no elenco dos factos provados.
Quanto ao ponto 12, à luz dos mesmos meios de prova, apenas é possível afirmar-se, à luz das fotos colhidas do local e do relatório pericial a que antes se fez referência, que as paredes do ginásio encontram-se revestidas com um material constituído por um aglomerado de madeiras, do género «tabopan», sendo que nenhum elemento probatório e de índole técnica corrobora a afirmação de exista outra material aplicado nas paredes e que esse material («tabopan») tenha algum efeito isolante ao nível da propagação de ruídos e vibrações a partir da fracção em causa e para as demais, nomeadamente as que são habitadas pelos Autores.
Assim, no dito ponto 12 deve passar a constar o seguinte:
As paredes da fracção E encontram-se revestidas com um material do género de aglomerado de madeiras, tipo «tabopan».
Por último, quanto ao ponto 13, à luz dos mesmíssimos meios de prova, apenas é possível ter-se como certo e seguro que por baixo da placa do tecto (em betão) existe também na fracção E um tecto falso, como meio de reforço do isolamento sonoro.
Nada se sabe, no entanto, com rigor e a partir dos aludidos meios de prova, quanto à alegada existência no interior desse tecto falso de algum outro material, nomeadamente lã de rocha.
Neste conspecto, é de referir que, tendo nós escutado os depoimentos das testemunhas GG e HH invocados pelos RR/apelantes, em nosso ver, os seus depoimentos não se nos afiguraram suceptíveis de porem em crise os resultados que resultam da perícia oficial e da verificação não judicial efectuadas, meios de prova estes que não confirmam, de todo, a existência de algum outro material no interior do tecto falso, dando apenas nota da existência deste; Aliás, seria fácil aos RR/apelantes demonstarem esse facto, seja permitindo ou facultando o acesso ao tecto falso ou, ainda, juntando aos autos a factura da colocação desse tecto falso, com indicação do material que ali foi alegadamente colocado, o que não se verificou.
Destarte, quanto ao ponto 13 deve apenas passar a constar apenas o seguinte:
Por baixo da placa do tecto (em betão) existe também na fracção E um tecto falso, como meio de reforço do isolamento sonoro.
Em seguida e seguindo a ordem numérica da sentença, os RR/apelantes dissentem do ponto 10) da factualidade provada, a qual em seu ver, em parte, deveria ter sido julgada como não provada, pois que, segundo afirmam, nenhuma dos relatórios periciais confirma essa factualidade.
O ponto 10) tem a seguinte redacção:
O funcionamento do estabelecimento provoca ao longo de todo o período de abertura do estabelecimento constantes ruídos impulsivos e de precurssão decorrentes da utilização de máquinas e equipamentos, bem como pelos clientes no desenvolvimento da actividade física.
Por seu turno, os RR/apelantes sustentam que no dito ponto da matéria de facto deverá constar apenas, em função dos relatórios periciais efectuados nos autos, nomeadamente do relatório pericial determinado oficiosamente pelo Tribunal, o seguinte:
O funcionamento do estabelecimento provoca esporadicamente ruído impulsivo e de percussão decorrente da normal utilização dos equipamentos utilizados na respectiva actividade.
O Tribunal de 1ª instância, em sede de fundamentação/motivação desta matéria de facto, aduziu o seguinte:
Quanto aos factos das alíneas 10) e 11), foi atendido e valorado o relatório pericial (refere-se ao relatório pericial de 13.05.2022, determinado oficiosamente), ao qual, como explicitado supra, se atribuiu maior valor probatório do que à prova documental, e que confirmou a versão dos factos dos autores, também corroborada pelo depoimento das testemunhas GG e JJ: de facto, independentemente do nível do ruído e dos valores previstos no Regulamento Geral do Ruído, do referido relatório resulta inequívoco que, conseguindo-o isolar do demais ruído ambiente, a actividade desenvolvida pelos réus provoca ruído (decorrente das aulas, da utilização dos equipamentos/máquinas e do impacto provocado pela queda dos pesos) e que o mesmo é perceptível na fracção habitacional dos primeiros autores, esta situada imediatamente por cima da fracção ocupada pelos réus. Sempre importa notar que, pese embora os diferentes valores medidos, os dois relatórios oferecidos por cada uma das partes como documentos chegam a estas mesmas conclusões (a actividade provoca ruído e o mesmo é sentido na fracção dos autores).
Os valores medidos conferiram igualmente credibilidade às declarações dos segundos e terceiro réus (queria dizer-se autores) que descreveram de forma pormenorizada o ruído sentido nas respectivas fracções: ou seja, ainda que as fracções destes se situem no segundo andar, atentos os valores medidos de acréscimo de 4/5 dB (ou seja, as mais das vezes próximo ou mesmo no limite máximo previstos no Regulamento, e inclusive tendo sido registado valor superior num dos dias durante o período diurno) é de todo crível que também seja o ruído audível nestas fracções.
Apesar da testemunha KK ter deposto em sentido contrário, a sua percepção, como reconheceu, limita-se ao ruído sentido no seu apartamento que não fica por cima do estabelecimento dos réus mas antes ao lado e virado para as traseiras do prédio. “ (sic)
Feita esta resenha da motivação invocada pelo Tribunal a quo e tendo nós próprios procedido à leitura do relatório pericial efectuado pelo Sr. Perito indicado pela FEUP, e que em nosso ver é o meio de prova decisivo ao julgamento de tal matéria, a que já antes fizemos referência, nele não se encontra qualquer alusão ao caracter esporádico ou pontual dos ruídos provenientes do estabelecimento em causa, sendo de notar que, ao contrário do que pretendem sugerir os RR/apelantes, no dito ponto 10) dos factos provados não está em causa apenas o ruído decorrente de percussão ou impulsivo (de pesos, quedas de pesos e ou funcionamento de máquinas), mas o próprio ruído gerado pelos clientes do estabelecimento em causa no decurso da sua actividade física e no decurso das aulas que ali têm lugar.

Como assim, e sendo de supor, segundo as regras da experiência e da lógica, que durante todo o período de funcionamento do estabelecimento em causa (ginásio) ali existem clientes (sem prejuízo das variações que possam ocorrer durante aquele período) em utilização de máquinas, pesos e na realização de exercícios físicos e na realização de aulas, não existe, em nosso ver e segundo aquela que é a nossa própria convicção, face aos meios de prova produzidos e que pudemos reanalisar nesta instância, qualquer razão para divergir da convicção formada pela Sr.ª Juíza do Tribunal de 1ª instância, não se vislumbrando naquela sua convicção e na sua formação qualquer erro de valoração ou apreciação crítica que imponha uma decisão diversa daquela que foi proferida.
De facto, se, como já o dissemos, a Relação deve reanalisar de forma independente e autónoma os meios de prova produzidos (todos os meios de prova e não apenas os que são invocados pelo apelante), do mesmo passo só deve introduzir alterações na decisão de facto quando, à luz daquela sua própria valoração, detecte a existência de um erro ao nível da apreciação crítica da prova e que imponha uma decisão distinta.
Não sendo esse o caso pois que inexiste qualquer meio de prova que confirme o alegado caracter esporádico ou pontual dos ruídos acima referidos, o julgamento de facto em 1ª instância deve manter-se, como ora sucede quanto ao ponto 10) do elenco dos factos provados da sentença recorrida.
E o mesmo se diga, ainda, do ponto 11) dos factos provados, pois que, com o devido respeito, os RR/apelantes pretendem fazer uma leitura/interpretação enviesada e parcial do relatório pericial a que antes se fez referência, tentando, a partir da circunstância de os ensaios e medições terem tido lugar apenas no quarto da fracção K (por ser a divisão da casa que é suposta ser utilizada para o descanso e o sono das pessoas que nela habitam), extrair ou extrapolar, sem mais, a directa conclusão de que os ruídos em causa são apenas audíveis naquela fracção K (e já não nas fracções S e T) e, mesmo nesta fracção K, apenas são audíveis no quarto onde tiveram lugar os ditos ensaios ou medições, mas já não serão audíveis nas suas demais divisões.
Ora, quanto a esta matéria, repetindo a convicção que se mostra evidenciada e plasmada pelo próprio Tribunal de 1ª instância, face aos níveis de ruído que foi possível detectar no quarto da fracção K (e que constam do relatório pericial já antes referido e dos seus anexos), é perfeitamente plausível, razoável e conforme com as regras da lógica, deduzir, enquanto presunção natural/judicial, que esses mesmos ruídos também serão audíveis nas demais divisões da fracção K, mas, ainda que talvez com menor intensidade, nas fracções S e T, como, aliás, foi confirmado pelos próprios proprietários das ditas fracções nas suas declarações de parte, sendo que estas, como se vê, se mostram corroboradas pelos ensaios/medições de ruído efectuadas no âmbito da perícia efectuada sob determinação do Tribunal.
Por conseguinte, também quanto a este ponto 11) da factualidade provada não se vislumbra, com o devido respeito por opinião em contrário, qualquer erro de valoração/análise crítica da prova produzida e que nos deva impor nesta instância uma resposta distinta da que consta da sentença recorrida.
Improcede, assim, também quanto ao ponto 11) a impugnação deduzida pelos RR/apelantes, sendo de manter os ditos factos como provados.
Prosseguindo, impugnam também os RR/apelantes os factos constantes dos pontos 12) e 13) do elenco dos factos provados que, na sua perspectiva, deveriam ser expurgados do elenco dos factos provados.
Para tanto, sustentam, em primeiro lugar, que tais «factos» traduzem, afinal, um mero juízo abstracto e indeterminado/indeterminável e não, propriamente, uma concretização fáctica, razão porque não deveriam sequer constar do elenco dos factos provados.
Por outro lado, invocam que a partir de tais factos nem sequer é possível ao Tribunal aferir/avaliar o nível ou gravidade do incómodo decorrente da actividade dos RR/apelantes possa provocar nos Autores e, assim, avaliar a verdadeira extensão da colisão de direitos em causa e, neste enquadramento, formular um qualquer juízo de proporcionalidade e adequação do sacrifício imposto (encerramento do estabelecimento) para salvaguarda do direito violado.
Em terceiro lugar, invocam, ainda, que, mesmo a assim não se entender, os ditos «factos» nem sequer resultam das declarações de parte prestadas pelos Autores, as quais, de todo o modo, não se mostram corroboradas por qualquer outro meio de prova.
Quanto ao primeiro argumento o mesmo não colhe.
A asserção de facto constante dos pontos 12) e 13) reporta-se a factos concretos (percepção dos ruídos em causa nas fracções dos Autores e realização de actividades físicas no exterior do prédio com aumento do ruído circundante produzido), que como tal, podem/devem constar do elenco dos factos provados (ou não provados), sendo certo que a mera circunstância de não ter sido possível aos Autores (e, logicamente, ao próprio Tribunal) precisar com exactidão as datas dessas ocorrências (como muitas vezes sucede, pois que a memória dos depoentes não é infalível…), não é razão bastante, por si só, para considerar que tais factos são vagos, são abstractos ou indetermináveis, devendo, por isso, ser expurgados do elenco dos factos provados.
Neste sentido, como se refere, entre outros, na esteira da doutrina ali invocada, no AC STJ de 18.10.2018, relatora Sr.ª Juíza Conselheira ROSA TCHING, disponível in www.dgsi.ptNo âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos).
Ora, sendo assim, não vemos, com o devido respeito, que os ditos factos não possam ser tidos em consideração na sentença recorrida.
Quanto ao segundo argumento, com o devido respeito, o mesmo não traduz qualquer meio válido de impugnação daquela factualidade ora em causa, antes contende com o próprio mérito da sentença e da sua fundamentação jurídica, ou seja, dito de forma mais clara, com a avaliação/ponderação adequada e proporcional dos direitos ora em conflito (descanso/repouso versus iniciativa privada/exercício do comércio), ou seja, em síntese, se os direitos de personalidade dos Autores se mostram postos em causa em moldes que justifiquem a decisão do Tribunal de 1ª instância de decretar o estrito encerramento do estabelecimento explorado pelos RR/apelantes, sendo que, na perspectiva destes últimos, tal não deveria suceder, à luz de tais factos.
Assim, improcede também este outro argumento invocado pelos RR/apelantes.
Quanto ao terceiro e último argumento, já, em sentido oposto, cremos que assiste razão aos RR/apelantes, pois que, de facto, em nosso ver, aquela factualidade apenas foi confirmada e, ainda assim, em termos muito pouco assertivos e seguros por parte dos Autores no decurso das suas declarações, não sendo possível, ao contrário do afirmado pelo Tribunal, considerar que essas vagas e imprecisas asserções dos Autores se mostram corroboradas pela prova pericial, sendo que esta jamais faz referência aos períodos anteriores e posteriores ao horário de funcionamento do estabelecimento e, ainda, a uma eventual utilização do exterior do prédio para actividades desportivas do próprio ginásio.
Em suma, em nosso ver, aquela factualidade apenas colhe apoio nas declarações de parte interessadas dos próprios Autores, não sendo corroboradas por qualquer outro meio de prova que, de uma forma isenta e credível, as confirme de forma segura e rigorosa.
Ora, sendo assim, cumpre-nos explicitar a posição que sobre esta matéria vimos sufragando em outros acórdãos.
O valor probatório das declarações de parte é matéria que não conhece uma posição unívoca e pacífica na doutrina e na jurisprudência.
Impõe-se, assim, dar nota da posição que temos vindo a defender em outros acórdãos quanto a tal matéria.
Nos termos estatuídos no citado artigo 466º do CPC, as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo (n.º 1); às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417º – quanto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade – e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior, relativa à prova por confissão das partes (n.º 2); o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3).
Trata-se de disposição inovadora introduzida no novo Código, mencionando-se na Exposição de Motivos da proposta de Lei n.º 113/XII, que está na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que se prevê “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão. “
A relevância probatória destas declarações tem merecido apreciação pela doutrina e jurisprudência, salientando-se, este nível, três posições distintas, a saber:
- Uma primeira que confere às declarações de parte um caracter integrativo e supletivo, no sentido de que as declarações de parte apenas podem servir de elemento de clarificação de outras provas já produzidas ou, ainda, como meio probatório supletivo quando não existam outros meios de prova acessíveis e desde que assegurado o contraditório. [20]
- Uma segunda posição, que vem sendo sufragada pela maioria da jurisprudência, sustenta que as declarações de parte constituem um princípio de prova e, nesse contexto, por princípio, não são bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final da factualidade controvertida, podendo coadjuvar a prova desde que em conjugação com outros elementos de prova. [21]
Como assim, segundo esta corrente, em condições normais e por princípio, as declarações de parte, ainda que livremente valoradas pelo tribunal, não podem, segundo um juízo de razoabilidade e prudência, servir de sustento à prova de factos favoráveis ao próprio declarante, salvo quando acompanhadas de outros meios de prova que os corroborem.
- Uma terceira posição defende o seu valor autónomo, com o sentido de que devem ser valoradas de forma livre pelo tribunal e, nesse contexto, nada obsta a que a mesmas, ainda que não se mostrem corroboradas por outros meios de prova, sejam consideradas como prova de factos favoráveis, desde que se revistam de credibilidade bastante. [22]
Em nosso ver, dúvidas não existem de que as declarações de parte que, diga-se, divergem do depoimento de parte, devem ser atendidas e valoradas com especial cuidado. Não se pode ignorar que, como meio probatório, são declarações interessadas, parciais e não isentas, pois que quem as produz tem um manifesto interesse na sorte da acção ou da defesa.
De facto, estamos em crer que seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de qualquer outro meio probatório, seja ele documental ou testemunhal, o tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos ou confirmados.
Não obstante o antes referido, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que as partes tenham conhecimento directo).
Nesse contexto, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (466.º, n.º 3, do CPC) e, nessa apreciação, em função da credibilidade que as mesmas possam merecer, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar, ainda que favorável ao declarante.
Por conseguinte, a afirmação, peremptória e inequívoca, de que as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correcta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado n.º 3 do artigo 466.º do CPC.
Mas compreende-se, apesar disso, em nosso julgamento, que, tendencialmente as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação casuística pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar e favorável ao próprio declarante.
Neste contexto de suficiência probatória, e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova (e só assim pode ser, respeitando o princípio que se consagra no artigo 466.º, n.º 3 do CPC) parece-nos claro que nunca pode estar em causa uma interpretação que confronte a norma constitucional que salvaguarda a tutela efectiva do direito (artigo 20.º, n.º 5, da CRP).
Por outro lado, é evidente que, perspectivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declaração de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos constitutivos do direito invocado por mero efeito das declarações favoráveis, não deixaria de violar aquela norma constitucional, na medida em que, num processo de partes e sujeito ao contraditório como é o processo civil, uma tal interpretação deixaria praticamente sem possibilidade de defesa – e aí, sem tutela efectiva – a parte contrária, confrontada com essa versão do declarante.
Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466.º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias do caso e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será, em nosso ver, por princípio, insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir (ou excepção) invocada pelo declarante.
Com efeito, em nosso ver, e com o devido respeito por opinião oposta, estando as declarações de parte sujeitas à livre apreciação do julgador, cremos ser mais criterioso e prudente, nesse contexto de livre (mas não arbitrária) convicção, exigir o julgador, por regra, em razão dos interesses que subjazem à declaração favorável e à luz das regras da experiência e da lógica, que tais declarações sejam corroboradas por outros meios de prova produzidos nos autos. Trata-se, no fundo, de garantir, assim, que as ditas declarações possam alcançar no espírito do juiz aquele nível de credibilidade e segurança que justifique, de um ponto de vista crítico, a sua convicção positiva quanto à verificação de determinado facto que se apresenta como constitutivo da pretensão (ou excepção) deduzida pelo próprio declarante.
Na verdade, se é pacífico que a prova não visa alcançar um grau de certeza absoluta quanto à verificação dos factos controvertidos mas apenas um alto grau de certeza relativa, “essencial à aplicação prática do Direito”, ainda assim, sobretudo quando estão em causa meios de prova pessoais, de reconhecida falibilidade, a demonstração de determinada factualidade supõe que a mesma se alicerce em bases suficientemente sólidas e objectivamente justificáveis e, em particular, na apreciação crítica de um conjunto de provas que a confirmem ou corroborem, não sendo, pois, bastante para tal, nesta hipótese, via de regra, a produção de um único meio de prova com determinado sentido, nomeadamente as declarações de parte.
Ora, sendo assim, como cremos, tendo presente, como se expôs, que as declarações de parte dos Autores, ainda que confirmem a sua alegação inicial e, por isso, a factualidade ora em crise, não colhem, de facto, qualquer apoio suplementar na demais prova produzida nos presentes autos, é nosso julgamento que os factos referidos em 12) e 13) do elenco da sentença recorrida devem ser julgados como não provados, em sentido diverso ao decidido pelo Tribunal de 1ª instância que, confessadamente, se baseou apenas e só naquelas declarações de parte, que, para nós, não sendo corroboradas por outro meio de prova, não são o bastante para ter a dita factualidade como demonstrada.
Procede, assim, nesta parte, a impugnação, passando aqueles factos para o elenco dos factos não provados.
Por último, quanto aos pontos 14) e 15) da factualidade provada e que os RR/apelantes pugnam também no sentido de que os mesmos não colhem prova nos autos, valem aqui, na íntegra, as considerações já antes efectuadas quanto à impugnação do ponto 11) do mesmo elenco de factos (e que nos escusamos a repetir), sendo, ainda, de referir que, à luz daquela factualidade, será do senso comum, da experiência e da lógica extrair-se a conclusão de que aqueles ruídos são idóneos a por em causa, a perturbarem o descanso (o silêncio, a tranquilidade, a serenidade) e os próprio sono dos autores e seus familiares, sendo certo que os autores devem poder usufruir também no período diurno de condições de descanso e sossego que lhes permitam descansar e até dormir se o entenderem por bem, sendo que será também natural que as condições existentes nas fracções em causa e fruto dos ruídos constantes (de segunda a sábado) deixem os autores perturbados, irritados e nervosos, como, aliás, deixariam qualquer cidadão naquelas circunstâncias…
Destarte, ponderando toda a prova produzida e já referida na análise do ponto 11), não vemos qualquer razão séria para, de um ponto de vista de análise crítica da prova, segundo as regras da experiência e da lógica, para julgar como não provados os pontos 14) e 15) do elenco dos factos provados, que como tal se devem manter.
Procede, assim, apenas parcialmente a impugnação da decisão de facto, nos termos acima expostos [conclusões E a J].
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Como assim, passam a relevar para a decisão jurídica do litígio, os seguintes factos (com nova numeração):
1) O prédio constituído em propriedade horizontal sito na Avenida ..., ..., da freguesia ..., no Porto, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....
2) As fracções designadas pelas letras “K”, “S” e “T”, todas destinadas a habitação, encontram-se registadas, respetivamente, a favor dos primeiros, segundo e terceiro autores, situando-se a K no primeiro andar do prédio em causa nos autos e as S e T no segundo andar do mesmo prédio.
3) A fracção designada pela letra “E” é destinada a estabelecimento, fica no rés-do-chão, e é descrita como provida de WC e com a área de dezoito metros quadrados.
4) Os autores mantêm residência nas fracções identificadas em 2) desde 1987, aí desenvolvendo a sua actividade familiar, tomando refeições, recebendo o correio, recebendo amigos, descansando e pernoitando.
5) Os réus celebraram em 9 de Outubro de 2018 um contrato, que reduziram a escrito, mediante o qual tomaram o gozo da fracção designada pela letra “E” para o exercício de comércio, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Outubro de 2018, mediante a obrigação de pagamento de uma renda.
6) Os réus obtiveram em 14 de Fevereiro de 2022 autorização administrativa de utilização da fracção designada pela letra “E” com a menção de “ginásio – instalação desportiva especializada”, com a lotação máxima de oito pessoas.
7) O estabelecimento mantém afixado o seguinte horário: de 2.ª a 6.ª das 7h às 22h e aos Sábados das 7h às 20h.
8) Os réus vêm exercendo na fracção a actividade de prestação de serviços desportivos na área de manutenção da condição física.
9) Os réus utilizam máquinas e aparelhos comuns ao desenvolvimento da actividade, tais como halteres e pesos.
10) O funcionamento do estabelecimento provoca ao longo de todo o período de abertura do estabelecimento constantes ruídos impulsivos e de precursão decorrentes da utilização das máquinas e equipamentos, bem como pelos clientes no desenvolvimento da actividade física.
11) O pavimento da fracção E encontra-se revestido de borracha com 12 mm de espessura em toda a sua extensão.
12) As paredes da fracção E encontram-se revestidas com um material do género de aglomerado de madeiras, tipo «tabopan».
13) Por baixo da placa do tecto (em betão) existe também na fracção E um tecto falso, como meio de reforço do isolamento sonoro.
14) Tais ruídos (referidos em 10) são audíveis nas fracções identificadas em 2).
15) O ruído sentido nas fracções identificadas em 2) vem perturbando o sono e descanso dos autores e familiares, sobretudo logo no período da manhã e à noite.
16) O que os faz sentir perturbados, irritados e nervosos.
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IV.V. Do mérito da sentença recorrida.
Determinado o quadro factual relevante à decisão do mérito da causa, cumpre decidir.
Conforme emerge da sentença recorrida, o Tribunal de 1ª instância decretou o encerramento do estabelecimento comercial de ginásio explorado pelos RR/apelantes na fracção E do prédio em causa nos autos, relevando, para tanto, o direito ao descanso e ao repouso dos Autores/apelados como direito à saúde/integridade física destes últimos (artigo 70º do Cód. Civil – direito de personalidade) e considerando inviável a sua harmonização/compatibilização com o direito ao exercício da actividade económica/iniciativa privada (artigo 61º, n.º 1, da Constituição da República).
É contra este sentido decisório que se rebelam os RR/apelantes, defendendo os mesmos, em termos essenciais, em primeiro lugar, que aquela afectação do direito dos AA/apelados é meramente residual ou ocasional e, como tal, efectuando uma equilibrada e ponderada consideração dos direitos em conflito (tendo em conta os vários interesses envolvidos por parte dos RR, sejam os investimentos realizados, sejam os interesses dos seus clientes que beneficiam dos serviços proporcionados pelo ginásio, sejam todos os funcionários do mesmo ginásio que perderão a sua função e remuneração, seja, ainda, o interesse do senhorio da fracção E na obtenção da renda proporcionada e consequente gozo da sua propriedade sobre a mesma), aquele direito dos AA/apelados sempre deveria ceder perante o interesse dos RR/apelados, considerando também que a própria vida em sociedade sempre implica limitações à plena liberdade de cada um e, por isso, a tutela dos direitos de personalidade só é admissível quando, face à consciência jurídica dominante, esses bens, pela gravidade ou anormalidade da sua ofensa, seja de excluir dos riscos próprios da vida em comunidade.
Destarte, deveria, em sentido oposto ao decidido pelo Tribunal de 1ª instância, ter sido decretada a improcedência da presente acção – vide pedido formulado em C) do petitório do recurso (conclusões K a W).
Todavia, mesmo a entender-se que aquele direito de personalidade dos AA/apelados é merecedor de tutela e protecção superior face ao interesse económico/patrimonial dos RR/apelantes, sempre deveria o Tribunal ter considerado também este último interesse de uma forma adequada e proporcional e, nesse contexto, decretado, no limite, a condenação dos mesmos a realizarem em prazo nunca inferior a 90 dias as obras necessárias à mitigação dos efeitos da sua actividade nas demais fracções ora em causa, conforme melhor descrito sob a conclusão Y, alíneas a) a d) – vide pedido formulado em D) do mesmo petitório do recurso (conclusões X a Z).
Vejamos.
Em primeiro lugar, perfilhando-se aquela que vem sendo a posição reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, releva, no contexto da presente acção, distinguir claramente os planos de uma eventual ilegalidade administrativa no exercício das actividades que geram poluição ambiental (incluindo, sonora), decorrente do eventual desrespeito das normas regulamentares ou atinentes ao licenciamento e à polícia administrativa, e o plano da ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade.
Neste sentido, como se refere no AC STJ de 7.04.2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro LOPES do REGO, disponível in www.dgsi.pt, “ … Tal diferenciação de planos tem justificadamente conduzido à conclusão de que os tribunais constituem a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade, sempre que o mesmo não tenha sido devidamente acautelado pela actividade regulamentar ou de polícia da Administração, em nada obstando à tutela prioritária do direito fundamental lesado a mera circunstância de ter ocorrido licenciamento administrativo da actividade lesiva ou os níveis de ruído pericialmente verificados não ultrapassarem os padrões técnicos regulamentarmente definidos.[23]
Com efeito, como se salienta no mesmo sentido no citado AC STJ de 7.11.2019, “… o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida configuram-se como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do direito fundamental de personalidade. Por isso se compreende que, desde que há muito, se tenha firmado jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que a relevância da ofensa ao direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade nem sequer é afectada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamentado relativamente ao ruído e/ou de a actividade que o provoca se encontrar, ou não, devidamente licenciada, dispensando a ilicitude, nesta perspectiva, a aferição do nível do ruído pelos padrões legalmente estabelecidos.
Por conseguinte, não releva à decisão a proferir a circunstância de a actividade comercial realizada pelos RR se encontrar licenciada pela entidade administrativa, nem, ainda, releva, nesse contexto, o estrito cumprimento dos níveis de ruído previstos no Regulamento Geral do Ruído (RGR), desde que, como é o caso dos presentes autos, se mostre demonstrado que os ruídos gerados por aquela actividade comercial de ginásio colocam em crise o direito ao repouso, ao descanso e ao sono dos AA/apelados que habitam nas fracções em causa, conforme emerge em termos inequívocos dos pontos 10), 14), 15) e 16), conforme elenco de factos provados ora fixados.
Neste sentido, ainda, como se escreve no AC STJ de 5.04.2018, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro A. ABRANTES GERALDES, com indicação de muita outra jurisprudência do mesmo Supremo em casos similares, e disponível no mesmo sítio oficial, “ … pode afirmar-se, com toda a legitimidade, que o facto de num imóvel estar licenciada determinada actividade não é absolutamente oponível aos particulares que sejam afectados na sua esfera de interesses, designadamente quando não estejam reunidas as condições previstas no artigo 1346º do CC ou quando exista violação dos direitos de personalidade.
Note-se, neste âmbito, que, ao contrário do que defendem os RR/apelantes, em função da alteração da decisão de facto que propunham na sua impugnação daquela decisão, não estamos a falar de ruídos esporádicos ou ocasionais, mas de ruídos constantes ou, no mínimo, regulares, que ocorrem durante todo o período de funcionamento do estabelecimento em causa, ou seja, entre as 7 h da manhã e as 22 horas da noite, de segunda a sexta-feira, e das 7 h da manhã às 20 horas da noite, ao Sábado, apenas não ocorrendo ao Domingo, dia de encerramento do estabelecimento.
De facto, como resulta da factualidade provada acima exposta, o estabelecimento em causa provoca ao longo de todo o período de funcionamento constantes ruídos impulsivos e de precursão decorrentes da utilização das máquinas e equipamentos, bem como pelos clientes no desenvolvimento da actividade física (ponto 10), ruídos estes que são audíveis nas fracções ora em causa e onde habitam diariamente os AA/apelados (ponto 14), sendo certo, ainda, que esses ruídos constantes ou regulares perturbam o sono e descanso dos AA e familiares, sobretudo – mas não só - logo no período da manhã e à noite, deixando-os perturbados, irritados e nervosos (pontos 15 e 16).
Por outro lado, ainda, importa enfatizar que se aos RR/apelantes, em função do acordo celebrado na prévia acção a que já antes se fez referência, mandaram efectuar um estudo acústico à fracção em apreço e nela terão efectuado algumas obras com vista à resolução da situação, certo é que, como resulta da mesma factualidade provada, essas obras não se revelaram bastantes para a devida e integral insonorização da fracção E, insonorização essa que lhes cumpria levar a cabo enquanto interessados no prosseguimento da actividade comercial a que se dedicam e onde terão alegadamente investido avultadas quantias e de onde retirarão os consequentes proventos.
Tendo presente este enquadramento prévio, como também vem sendo afirmado pela jurisprudência, em especial do STJ, a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais ou colectivos, carecidos de tutela jurídica, pode ser encarada por três ópticas distintas, embora, em muitos casos, conexionadas e interligadas:
- a do direito do ambiente, enquanto causa evidente de poluição ambiental, com assento no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66º da Constituição da República Portuguesa – CRP), complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada para a protecção de interesses colectivos ou difusos, que, no caso dos autos, não estão propriamente em causa, pois que o ruído de que ora se trata ocorre apenas no interior da fracção E, ainda que atinja as fracções acima referidas e imediatamente superiores ao nível do 1º e 2º andares do edifício em causa.
- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal/comum do prédio de que emanam (artigo 1346º, do Cód. Civil). [24]
- finalmente, e como ocorre na situação dos autos – a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto da constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º e 26º, n.º 1, da CRP) e reiterados no Código Civil, ao contemplar no artigo 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo uma emanação do referido direito fundamental de personalidade. Daí que, como vem sendo posição sucessivamente reiterada pela jurisprudência do STJ - e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, que leve em consideração as particularidades de cada caso, em função dos princípios da proporcionalidade e da adequação acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade e o direito ao lazer ou à iniciativa privada na veste de exploração económica de determinados serviços associados à prática desportiva (ginásios) -, se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do artigo 335º, do Cód. Civil.
Neste contexto, releva ponderar que, como também se salienta no AC STJ de 7.04.2011, acima referido, “ … as normas, constitucionais e legais, que tutelam a preservação do direito básico de personalidade não podem sem ser vistas como contendo uma mera proclamação retórica ou platónica, sendo essencial que lhes seja conferido o necessário relevo e efectividade na vida em sociedade – não sendo obviamente tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de quaisquer actividades lúdicas, de diversão ou económicas se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de residir nas proximidades, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no próprio domicílio.
Nesta perspectiva, e como se salienta também no já citado Acórdão do STJ de 5.04.2018, a habitação é o espaço, com as condições de higiene e conforto, destinado a preservar a intimidade pessoal, a privacidade e convívio familiar, bem como o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual dos que nela habitam, que a todos incumbe salvaguardar, proteger, nomeadamente aos Tribunais.
De facto, retomando a posição sufragada naquele douto Acórdão do STJ de 7.04.2011, em situação concreta que apresenta significativas semelhanças com a dos presentes autos (ali estava em causa a actividade de restauração em edifício habitacional), não é aceitável que a situação lesiva retratada nos autos – perturbações na fruição do domicílio dos AA, decorrentes dos ruídos regulares que ali se sentem durante o funcionamento do estabelecimento em causa – se deva considerar como inócua, corrente ou irrelevante, por ser normal a produção de tais ruídos no âmbito da actividade de ginásio ora em causa (utilização de máquinas e pesos/halteres, realização de aulas): “ … como temos por evidente e seguro, cabe a quem pretenda exercer uma actividade dessa natureza em edifício habitacional uma obrigação especial de contenção quanto aos níveis de poluição sonora que provoca e o dever de optar pelas soluções técnicas adequadas, no que respeita ao isolamento acústico das suas instalações, que eliminem ou reduzam ao máximo possível os incómodos causados aos outros residentes, degradando a sua qualidade de vida.
Ora, quanto a estas técnicas de isolamento acústico as mesmas são de excluir por duas ordens de razões, a saber:
- em primeiro lugar, porque já no âmbito do acordo estabelecido na prévia acção foi prevista essa possibilidade/prerrogativa de os RR/apelantes virem a efectuar essas obras de isolamento acústico e, como já antes se referiu, os RR/apelantes não lograram aproveitar essa prerrogativa, pois que, como resulta desta outra acção, não obstante essa intervenção a situação não foi resolvida e os ruídos continuam a fazer-se sentir nas fracções dos AA, colocando em causa o seu sossego, o seu descanso e o próprio sono, em especial (mas não só) nos períodos do amanhecer (a partir das 7 h da manhã) e do entardecer (pois que o estabelecimento em causa apenas encerra durante os dias da semana, segunda a sexta-feira, às 22 horas e ao sábado às 20 h); Não se vislumbra, assim, com o devido respeito, que se justifique a concessão de uma nova oportunidade para a insonorização do espaço em causa, sendo que, em rigor, não existe qualquer garantia que essa insonorização máxima ou total seja, de facto, viável…
- mas, além disso, avulta, ainda, em segundo lugar, uma outra circunstância que exclui, de todo, essa possibilidade e para efeitos do preceituado no artigo 335º, do Cód. Civil.
Com efeito, como se refere em situação similar à dos presentes autos, no já referido AC STJ de 7.04.2011, que aqui se segue de perto, se, de um ponto de vista normativo nada obstaria a que o Tribunal, em aplicação dos critérios constantes do referido artigo 335º, do Cód. Civil e que definem as regras gerais de resolução das situações de conflitos ou colisão de direitos, optasse por proferir condenação numa inibição meramente condicional ou temporária da actividade lesiva dos direitos dos AA (sujeitando-a à realização de determinadas obras de insonorização), tal só seria possível “ … se a matéria de facto alegada pelas partes e apurada na causa mostrasse que as causas da lesão eram efectivamente elimináveis ou removíveis através de procedimentos técnicos determinados, por essa forma se limitando o sacrifício do direito do demandado ao estritamente necessário para assegurar o exercício pleno do direito prevalente do demandante. “
E prossegue, ainda, o mesmo douto Acórdão, em termos que aqui se mostram inteiramente aplicáveis, “… Não é, porém, manifestamente essa a situação que se verifica no caso dos autos: porque a R. não curou efectivamente de alegar, como seria seu ónus durante o processo (naturalmente na sua contestação e em 1ª instância… - vide a contestação dos RR/apelantes datada de 5.11.2020), a sua disponibilidade para remover as deficiências construtivas que potenciavam o incómodo substancial dos lesados, tal matéria não foi objecto de discussão entre as partes (em 1ª instância), nem foram processualmente adquiridos factos que demonstrassem, por um lado, que as insuficiências do isolamento acústico eram, do ponto de vista técnico e económico remediáveis; e, por outro lado, quais seriam exactamente as obras e procedimentos que se impunha à R. realizar no seu estabelecimento para alcançar plenamente aquele objectivo (definindo, afinal, em termos minimamente consistentes, o projecto de isolamento acústico que se verificou inexistir).
Ora, no caso dos autos, não obstante os RR/apelantes indiquem agora (em sede de recurso) um conjunto de obras que, segundo defendem, poderiam contribuir para o isolamento acústico da fracção em que exercem a sua actividade (vide conclusão Y do recurso), certo é que, tal como ocorreu no caso sobre que versou o citado Acórdão do STJ, nada disso foi alegado em 1ª instância e, logicamente, não colhe qualquer respaldo na matéria de facto provada.
Sendo assim, só se pode concluir que, sendo indiscutivelmente, em nosso julgamento e com o devido respeito por opinião em contrário, superior o direito de personalidade dos AA/apelados na vertente de descanso, sossego, tranquilidade e sono na sua própria habitação (artigo 70º do Cód. Civil e artigos 25º e 26º, n.º 1, da CRP), não se vislumbrando à luz da factualidade alegada e provada nenhuma possibilidade técnica de, através de isolamento acústico da fracção em causa, salvaguardar em termos mínimos e alternativos aquele outro direito superior, deve, nos termos do citado artigo 335º, n.º 2, do Cód. Civil, este último direito prevalecer sobre o direito à iniciativa privada, na vertente de actividade económica lucrativa, com o consequente encerramento do estabelecimento em causa.
Aliás, como dá nota a mesma jurisprudência do STJ (vide o aludido Acórdão de 7.04.2011, ou, ainda, o AC STJ de 19.04.2012, também já antes citado), uma tal condenação condicional (sujeita à realização de obras de insonorização não previamente definidas/apuradas) não é admissível à luz da lei processual, pois que tal equivaleria à prolação de uma “… sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão – sendo tal orientação inquestionavelmente justificada nos casos em que o facto condicionante exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção (cfr. Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º volume, pág. 654 e 684).
Ora, tal como se escreveu no dito AC STJ de 7.04.2011, não resultando, no caso dos autos, da factualidade provada em termos minimamente densificados e determinados os procedimentos construtivos idóneos para eliminarem satisfatoriamente a verificada lesão do direito de personalidade dos AA/apelados, uma decisão que assim acolhesse uma tal solução acabaria, verdadeiramente, por não solucionar definitivamente o litígio que – subsistindo praticamente entre as partes – acabaria sempre por ter que ser resolvido através de uma nova acção, em que se controvertesse a viabilidade técnica e a idoneidade, suficiência e real eficácia das obras que, porventura, viessem a ser realizadas –, o que não é naturalmente compatível com o princípio da efectividade da tutela dos direitos de personalidade invocados como base da presente acção.
E nem se diga que assim se ignora o princípio da compatibilização dos direitos em conflito e ou os princípios da proporcionalidade e da adequação/necessidade, princípios estes que decorrem, não só do já citado artigo 335º, do Cód. Civil, como, ainda, em termos similares, do artigo 18º, n.º 2, da CRP.

De facto, como salienta nesta matéria RABRIDANATH CAPELO de SOUSA, op. cit., pág. 547-548, “… Para a hipótese de colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, estipula lapidarmente o n.º 1 do artigo 335º do Código Civil (…) que devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos (os direitos) produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.» Ou seja, a solução do conflito passa pelo sacrifício no mínimo necessário de qualquer dos direitos conflituantes e pelo não privilegiar qualquer um desses direitos, suportando cada um dos titulares dos direitos, em igual medida, os custos da resolução da colisão, de modo a que os direitos conflituantes, nos seus concretos modos de exercício, possam coexistir um ao lado do outro e produzam os seus efeitos próprios em condições de igualdade. A concordância prática de tais direitos faz-se, pois, aqui com idênticos ou equivalentes sacrifícios ou cedências recíprocas.
Por seu turno, como ora sucede, “… Diferentemente, para a hipótese de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente (no caso, direito de personalidade dos AA versus iniciativa privada dos RR) determina o n.º 2 do mesmo artigo 335º do Código Civil que «prevalece o que deva considerar-se superior.» As partes não estão agora em posições conflituais idênticas ou equiparadas, pois a maior carga axiológico-jurídica do direito superior postula uma correspondente e adequada eficácia jurídica, mais ampla ou intensa do que a do direito inferior e, se necessário, com detrimento desta. Por exemplo, nos casos de referidos acima (págs. 214 e seg. e 547) de prevalência do direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida de moradores de prédio habitacional sobre o direito de exploração de actividade comercial ou industrial, no mesmo prédio, com produção de ruídos e cheiros incomodativos, o proprietário de um estabelecimento onde se exerciam estas actividades foi judicialmente obrigado a efectuar obras que evitassem tais incómodos e a não exercer as suas actividades durante os períodos normalmente destinados aos descansos das pessoas.
E, ainda, prossegue o mesmo Ilustre Professor, “ … Só que, mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses. Inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos de superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológica-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário. [25]
Ora, no caso dos autos, se à partida se poderia conceber em termos normativos esta compatibilização entre os dois distintos direitos em conflito, sempre o direito de personalidade dos AA/apelados (ao descanso, ao sossego, à tranquilidade e ao sono de que devem usufruir no seu domicílio) deveria prevalecer, ainda que com algumas limitações (próprias da vida em sociedade, em especial em zonas urbanas), mas para tanto era suposto, por um lado, que os RR/apelantes tivessem, de facto, procedido à máxima insonorização possível da fracção em causa (fracção E) no âmbito da transação que efectuaram na prévia acção já acima referida, o que não lograram cumprir (pois que se assim fosse, esta acção não teria sequer fundamento…) ou, ainda, no âmbito desta subsequente acção se disponibilizassem na pendência do processo (em 1ª instância) a realizar obras de insonorização da fracção em causa, em termos cabais, eficazes e que pusessem, de facto, termo à situação lesiva que os autos retratam, o que também não fizeram, sendo certo que uma mera redução significativa do horário do funcionamento do estabelecimento em causa também não chegou sequer a ser proposta nesta acção e, ademais, essa redução de horário, desacompanhada de obras de insonorização tecnicamente possíveis e eficazes também não obstaria à violação do superior direito de personalidade dos AA/apelados.
O que, em conclusão, nos deve conduzir a sufragar o sentido decisório da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância quanto ao encerramento do estabelecimento de ginásio explorado pelos RR/apelantes no prédio em causa.

Improcedem, assim, todos os argumentos invocados pelos RR/apelantes, sendo de confirmar a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, o que se julga, sendo certo que quanto à (modesta) sanção pecuniária compulsória fixada nenhuma questão se nos mostra colocada neste recursou ou nas suas contra-alegações.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso de apelação interposto pelos RR/apelantes, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
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Custas pelos Recorrentes, pois que ficaram vencidos – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 27.03.2023
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Eugénia Cunha


(A redacção do presente Acórdão não segue, por opção do Relator, as regras do novo Acordo Ortográfico).
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[1] Vide, neste sentido, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “ Manual dos Recursos em Processo Civil ”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de processo Civil ”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Neste sentido, como refere RABINDRANATH CAPELO de SOUSA, “ O Direito Geral de Personalidade ”, Coimbra Editora, 1995, pág. 533, “ O direito geral de personalidade e os direitos especiais de personalidade são, como vimos, iura in se ipsum, pelo que cada pessoa é a única e exclusiva titular dos direitos que incidem sobre a sua personalidade, não havendo direitos sobre a personalidade de outrem.
[3] Vide, neste sentido, por todos, JOSÉ LEBRE de FREITAS, J. REDINHA, RUI PINTO, “CPC Anotado”, 1º Volume, Coimbra Editora, 1999, pág. 224-226, em anotação ao anterior artigo 123º, que corresponde ao actual artigo 116º, do novo CPC.
[4] A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 139.
[5] Sobre as nulidades da sentença referia, com a sua habitual clareza e suprema inteligência, A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 686, que “ … não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça de decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário … ”, mais acrescentando na pág. 688 “ … que o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições … ”, sendo que “ … a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo jugador. ”
Mais claro do que isto, não julgamos possível e, no caso dos autos, torna evidente que a argumentação invocada pelos Recorrentes em sede de nulidade por omissão de pronúncia é totalmente desprovida de fundamento.
[6] Vide sobre o vício em causa, por todos, A. VARELA, op. cit., pág. 689-690, enquanto vício dedutivo e lógico em que a fundamentação jurídica do julgador aponta num sentido e a decisão do mesmo segue caminho oposto ou direcção diferente, nada tendo, pois, que ver com a eventual discordância da parte quanto ao julgamento de facto e ou de direito da causa, enquanto erro de julgamento («error in judicando» versus «error in procedendo»).
[7] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil “, Lex, 1997, pág. 567.
[8] Sobre a distinção entre caso julgado formal e material, vide, por todos, M. TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos …”, cit., pág. 569 e A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 703-704.
[9] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 572.
[10] J. LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, “Código de Processo Civil Anotado”, II volume, Coimbra Editora, 2011, pág. 325.
[11] Vide, neste sentido, por todos, M. TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos … ”, cit., pág. 580, e, ainda, AC STJ de 16.02.2016, relator HÉLDER ROQUE, AC STJ de 26.01.2016, relator MARIA CLARA SOTTOMAYOR, AC STJ de 17.11.2015, relator SEBASTIÃO PÓVOAS e AC STJ de 12.07.2011, relator MOREIRA CAMILO, todos in www.dgsi.pt .
[12] FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, “Direito Processual Civil”, II volume, 2015, pág. 622.
[13] Como se refere no AC STJ de 4.10.2018, relator JOAQUIM PIÇARRA, disponível in www.dgsi.pt “ Partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, o Supremo Tribunal de Justiça tem reiterado o entendimento de que à interpretação da sentença são aplicáveis os critérios interpretativos definidos no artigo 236.º do Cód. Civil, ex vi do disposto no artigo 295.º do Cód. Civil, o que significa que a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto.
Contudo, não constituindo a sentença um verdadeiro negócio jurídico, haverá que ter sempre em conta as especificidades próprias dos actos jurisdicionais (…), pelo que, no desenvolvimento da descrita tarefa interpretativa, não importa apurar ou reconstruir a «mens judicis», mas antes descortinar o sentido perceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente ou, dito de outro modo, o seu sentido juridicamente relevante.
[14] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado”, BMJ 325º, pág. 49.
[15] ANA LUÍSA GERALDES, “Impugnação e Reapreciação da Decisão da Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas”, I volume, pág. 589 e seguintes, ou, ainda, no mesmo sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 133.
[16] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 232-233, F. AMÂNCIO FERREIRA, op. cit., pág. 213-221 ou, ainda, AC STJ de 18.05.2017, relatado por ANA LUÍSA GERALDES, disponível in www.dgsi.pt
[17] A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 245.
[18] ALBERTO dos REIS, “CPC Anotado”, III volume, 4ª edição, 1985, pág. 245 e MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, 1995, pág. 236-239.
[19] MANUEL de ANDRADE, op. cit., pág. 192; No mesmo sentido, vide, ainda, A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 435-436. Refere este último Professor: “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.”
[20] Vide, neste sentido, por todos, J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “CPC Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 309 e PAULO PIMENTA, “Processo Civil Declarativo”, 2015, pág. 357.
[21] Vide, neste sentido, CAROLINA HENRIQUES MARTINS, “Declarações de Parte”, UC, 2015, pág. 58 , MARIA dos PRAZERES BELEZA, “A Prova por Declarações de Parte”, in II Congresso de Processo Civil, 2014, pág. 21 e, na jurisprudência, AC RP de 26.06.2014, relator ANTÓNIO JOSÉ RAMOS, AC RP de 23.03.2015, relator JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, AC RP de 20.06.2016, relator MANUEL FERNANDES e AC RP DE 10.01.2022, por nós relatado (e que aqui seguimos de perto), todos disponíveis in www.dgsi.pt
[22] Vide, neste sentido, L. FILIPE PIRES de SOUSA, “ Direito Probatório Material “, 2ª edição, pág. 295, ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Esse Testis…?”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 36 e, por todos, AC RL de 26.04.2017, relator LUÍS SOUSA, AC STJ 7.02.2019, relatora ROSA RIBEIRO COELHO, AC STJ de 11.07.2019, relator BERNARDO DOMINGOS, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[23] Vide, no mesmo sentido, por todos, AC STJ de 22.09.2005, relator PEREIRA da SILVA, AC STJ de 19.04.2012, relator ÁLVARO RODRIGUES, AC STJ de 7.11.2019, relator ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, AC STJ de 10.10.2019, relator FÁTIMA GOMES ou, ainda, AC STJ de 18.10.2018, relator ROSA TCHING, todos disponíveis in www.dgsi.pt, ou, ainda, PEDRO PAIS de VASCONCELOS, “ Direito de Personalidade “, Reimpressão, 2014, pág. 138-139.
[24] Sobre esta matéria, vide, por todos, ELSA VAZ SEQUEIRA, anotação ao artigo 1346º, do Código Civil, in “Comentário ao Código Civil”, UCE, 2021, pág. 249-256 (com vasta indicação de outra bibliografia e jurisprudência) ou, ainda, JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, “Restrições de Vizinhança”, Quid Iuris, 2ª edição, 2009, pág. 170-198.
[25] Vide, ainda, nesta matéria, neste sentido, no contexto do artigo 18º, n.º 2, da CRP, por todos, JOSÉ CARLOS VIEIRA de ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição da Portuguesa de 1976”, 1983, pág. 220-224 ou, ainda, quanto a esta matéria, ainda, AC STJ de 18.10.2018, já citado, com referência à doutrina perfilhada no AC TC n.º 632/2008, de 23.12.2008, acessível in www.tribunalconstitucional.pt